ABIMELEQUE — Enciclopédia Bíblica Online

ABIMELEQUE

O nome “Abimeleque” (hebraico: ʾăḇîmeleḵ – אֲבִימֶלֶךְ) é comumente traduzido como “pai do rei”, “meu pai é rei” ou ainda “pai-rei”, dependendo da vocalização e interpretação dos componentes léxicos. Deriva-se da junção dos termos ʾāḇ (אָב, “pai”) e meleḵ (מֶלֶךְ, “rei”), com o pronome enclítico de primeira pessoa possível na forma medial (-î, “meu”), formando uma expressão que pode carregar conotações diversas: tanto a de um patronímico (“meu pai é rei”) quanto a de um epíteto régio autodeclarativo (“sou pai-rei”) ou um título honorífico (“pai do rei”).

Essa ambiguidade lexical e semântica tem implicações significativas para a identificação histórica e literária dos portadores desse nome no Antigo Testamento. Vários estudiosos notaram, a partir do uso do nome em contextos régios repetidos, que “Abimeleque” parece funcionar em diversos textos como um título dinástico, equivalente ao uso de “Faraó” no Egito, “César” em Roma, ou Padishah (“pai-rei”) entre os persas. A tradição etíope, como bem observou Ludolf (Lexicon Aethiopicum, p. 350), contém a expressão abba nagasi, um paralelismo cultural que pode explicar a gênese do título filisteu. O próprio título do Salmo 34 (superscrição: le-Dāwiḏ be-shannōtô ’et ta‘amo lip̄nê ’Ăḇîmeleḵ) associa a figura de Abimeleque com o rei Aquis de Gate, evidência clara de um uso genérico do nome como designação régia.

A presença de múltiplos personagens chamados Abimeleque no corpus bíblico aponta para um fenômeno literário e teológico complexo. No total, ao menos cinco figuras distintas recebem esse nome, ou são assim denominadas: (1) o rei de Gerar no tempo de Abraão; (2) outro rei de Gerar nos dias de Isaque, provavelmente seu filho ou sucessor dinástico; (3) o Abimeleque mencionado no título do Salmo 34, identificado com Aquis, rei de Gate, em 1 Samuel 21; (4) o ambicioso filho de Gideão, que se autoproclamou rei após assassinar seus irmãos; e (5) um sacerdote nos tempos de Davi, cuja identificação textual oscilante com “Aimeleque” gera complexidades de tradição textual.

É importante destacar que os dois primeiros Abimeleques, relacionados respectivamente a Abraão (Veja ABRAÃO) e a Isaque, são figuras centrais nos relatos patriarcais de Gênesis 20–21 e 26. Os paralelos entre suas histórias, sobretudo a repetição do chamado “motivo da esposa-irmã”, sugerem a presença de dupletas literárias, nas quais uma estrutura narrativa é replicada com pequenas variações de contexto. Em ambos os casos, o patriarca dissimula o relacionamento conjugal com sua esposa para evitar ser morto por povos estrangeiros, e em ambas as situações a mulher é temporariamente tomada pelo rei local — o que exige uma intervenção divina, seguida de restituição e estabelecimento de aliança. Essa estrutura recorrente sugere, segundo autores como Van Seters, uma duplicação narrativa posterior, enquanto outros — como Wiseman — defendem sua plausibilidade histórica, argumentando que o termo “filisteu” aplicado aos habitantes de Gerar seria um anacronismo relativo apenas se concebido com base nas invasões dos Povos do Mar no século XIII a.C., havendo, contudo, indícios de presença filisteia anterior em centros como Gerar.

Rei Abimeleque de Gerar toma Sara, esposa de Abraão, antes da intervenção divina em Gênesis 20.

O uso do nome em tradições paralelas e textos rabínicos reforça tanto sua ambiguidade quanto sua longevidade simbólica. A literatura midráshica e talmúdica trata Abimeleque como um rei gentio justo, raro entre os povos pagãos, e até mesmo como alguém dotado de dons proféticos (B. Rabbah 52). Paradoxalmente, a mesma tradição também tece críticas a Abraão por ter selado uma aliança com Abimeleque em troca de sete cordeiras — gesto que, segundo a exegese rabínica, implicaria uma punição para sua descendência por sete gerações (Midrash Shemu’el 12). Essa ambivalência tipifica a forma como o nome “Abimeleque” opera: um personagem ora respeitável, ora perigoso, mas sempre poderoso.

A instância de Abimeleque como rei de Gate aparece na superscrição do Salmo 34, onde o nome substitui o de Aquis, rei de Gate (1 Samuel 21:10–15). Esta troca é amplamente reconhecida como exemplo do uso do nome como título régio, embora haja quem considere erro editorial ou confusão textual. A identificação é aceita pela maior parte da crítica textual e pelas antigas traduções (LXX, Vulgata), sem comprometer a coerência narrativa da fuga de Davi entre os filisteus.

Finalmente, o nome aparece ligado ao sacerdócio levítico, em 1 Crônicas 18:16, como suposto filho de Abiatar. Essa leitura, porém, é textual e filologicamente contestada, pois nas versões da Septuaginta e em outros textos (como 2 Samuel 8:17), o nome aparece como “Aimeleque”. O consenso exegético é que o nome em Crônicas seja um erro de cópia ou uma confusão com o nome de seu avô, havendo clara inversão genealógica no texto massorético.

Assim, o nome Abimeleque serve não apenas como um marcador histórico ou pessoal, mas como símbolo literário e teológico. Ele opera como um título dinástico, um trope narrativo e, sobretudo, como um elemento estruturante das tensões entre Israel e os povos gentílicos vizinhos. Sua presença constante nos momentos limítrofes da história de Israel — pactos, usurpações, deslocamentos — torna-o um ponto focal da análise crítica tanto das tradições patriarcais quanto dos conflitos internos do período dos juízes.

I. Os Abimeleques de Gerar: Abraão e Isaque

A figura de Abimeleque aparece de modo reiterado nas narrativas patriarcais, ocupando o papel de rei de Gerar em dois momentos distintos e cronologicamente separados: nos dias de Abraão (Gênesis 20–21) e nos dias de Isaque (Gênesis 26). A similaridade entre as duas narrativas — ambas envolvendo uma estadia patriarcal em território filisteu, a dissimulação da identidade conjugal de suas esposas e a subsequente intervenção divina — leva a crítica moderna a reconhecer nelas um caso clássico de duplicação literária ou tradição redacional paralela. Contudo, é possível, e não menos plausível segundo algumas das fontes, que o nome “Abimeleque” funcionasse como título régio dinástico dos reis de Gerar, o que explicaria a aparente repetição do nome no espaço de cerca de um século.

O primeiro episódio (Gênesis 20) ocorre logo após a destruição de Sodoma, quando Abraão, ao migrar com seus rebanhos para a região de Gerar, oculta a condição matrimonial de Sara, identificando-a como sua irmã. Tal atitude visava preservar sua vida, dado o poder absoluto que monarcas locais detinham — especialmente o direito, então vigente em sociedades orientais, de cooptar mulheres solteiras para seu harém. Esse costume, ainda atestado em tempos persas e aludido em Ester 2:3, é considerado elemento importante na compreensão sociopolítica da narrativa. Abimeleque, acreditando tratar-se de uma mulher solteira, toma Sara para si; mas é advertido por Deus em sonho de que ela é esposa de um profeta, com quem Deus mantém comunhão direta. Esse dado, conforme a literatura rabínica (B. Rabbah 52), faz de Abimeleque um dos raros gentios considerados piedosos e até mesmo dotados de dom profético.

A resposta do rei, segundo Gênesis 20:16, é envolta em expressões ambíguas, geradoras de variadas interpretações. O presente de mil peças de prata dado a Sara é entendido por alguns intérpretes como um “véu de expiação” — um “cobrimento dos olhos”, não no sentido de ocultação literal, mas de ato simbólico de justificação pública de sua inocência perante todos. A tradição exegética também leu esse gesto como uma censura velada à ausência de véu por parte de Sara, o que, segundo os costumes do país, deveria ter servido de proteção visual e cultural contra investidas indevidas. Nesse gesto de restituição e reconciliação, Abimeleque não apenas demonstra prudência e respeito ao sagrado, como também abre caminho para uma relação diplomática entre as partes.

A narrativa prossegue com a visita de Abimeleque a Abraão (Gênesis 21:22–34), na companhia de seu chefe militar, Ficol, com o objetivo de firmar uma aliança. Aqui se registra o primeiro tratado diplomático formal da narrativa bíblica, envolvendo a restituição de um poço usurpado por pastores filisteus. O lugar do pacto é chamado Beer-Seba — “poço do juramento” ou “poço das sete [cordeiras]” — e se torna local de culto a YHWH (Veja TETAGRAMA). A tradição rabínica, entretanto, guarda um tom ambivalente. Segundo o Midrash Shmuel e o Bereshit Rabbah 54, a entrega dos sete cordeiros por parte de Abraão foi vista com desagrado por Deus, por implicar submissão indevida a um soberano gentio. A consequência, segundo essa leitura midráshica, seria uma série de punições que se abateria sobre os descendentes de Abraão: sete gerações de atraso na redenção, sete justos mortos pelos filisteus (Hofni, Fineias, Sansão, Saul e seus três filhos), sete objetos sagrados profanados e a Arca da Aliança cativa por sete meses em território filisteu. A crítica rabínica, nesse ponto, coloca o gesto diplomático sob suspeita teológica.

Já em Gênesis 26, o mesmo enredo parece se repetir com Isaque, sugerindo ou uma duplicação redacional, ou uma sucessão dinástica, onde o novo Abimeleque seria filho ou sucessor do anterior. Desta vez, é Rebeca quem é apresentada como irmã do patriarca, motivado pelo mesmo receio que acometera seu pai. Notavelmente, o Abimeleque desta narrativa não chega a se apropriar de Rebeca, pois percebe a verdade a partir da observação direta de seu comportamento com Isaque. O tom da reprimenda é mais direto, mas ainda envolto em tolerância e concessões. Rebeca, ao contrário de Sara, não chega a ser tomada, o que marca uma evolução narrativa e, possivelmente, uma gradação moral atribuída ao novo rei.

A convivência entre Isaque e os filisteus torna-se tensa quando o crescimento econômico do patriarca provoca inveja. Os poços cavados outrora por Abraão — em tempos em que tal ato implicava direito de propriedade territorial — haviam sido entulhados pelos filisteus, mas são reabertos por Isaque, que também cava novos poços. A disputa por esses recursos hídricos — elementos essenciais tanto à subsistência quanto à territorialidade — leva Isaque a se afastar por etapas, até encontrar espaço pacífico em Reobote (NAA), cujo nome expressa alívio: “agora o Senhor nos deu espaço”. A narrativa, neste ponto, ecoa a lógica da conciliação: a herança prometida não é tomada por violência, mas pela perseverança humilde e pacífica.

Posteriormente, Abimeleque, novamente acompanhado de Ficol e de um conselheiro chamado Auzate (Ahuzate), procura Isaque em Beer-Seba para renovar os laços de paz firmados com Abraão. A iniciativa parte do reconhecimento explícito de que “o Senhor está contigo”, o que implica um tipo de temor reverencial perante o Deus do patriarca. A recepção inicial é reservada — Isaque acusa Abimeleque de tê-lo hostilizado — mas, após a explicitação das intenções, realiza-se um banquete e o pacto é selado. A duplicação estrutural entre Gênesis 21 e 26 é notável, mas carregada de variações significativas que apontam para um amadurecimento temático e teológico. A aliança não é mais apenas uma garantia de coexistência; é um reconhecimento do favorecimento divino que repousa sobre o eleito.

Os relatos de Abimeleque com Abraão e Isaque, portanto, não apenas se espelham formalmente, mas formam um díptico narrativo com implicações maiores: tratam da tensão entre o eleito e o estrangeiro, entre o pacto e o poder local, e da forma como a bênção divina sobre os patriarcas transforma a relação de dominação em relação de respeito. A tradição rabínica, ao mesmo tempo que reconhece méritos a Abimeleque — considerando-o, em alguns aspectos, um modelo entre os gentios — também enfatiza os riscos teológicos e políticos de alianças com governantes não-israelitas. Já a crítica moderna vê nos textos um complexo palimpsesto de tradições que evoluem ao longo do tempo, refletindo não só os conflitos históricos entre israelitas e filisteus, mas também debates internos sobre identidade, separação, conciliação e mediação com o Outro.

II. Abimeleque de Gate: O Título no Salmo 34 e a Confusão com Aquis

Entre os personagens que carregam o nome Abimeleque nas Escrituras, destaca-se uma ocorrência particularmente intrigante na superscrição do Salmo 34: “De Davi, quando se fingiu de louco diante de Abimeleque, e este o expulsou, e ele se foi” (כְּשַׁנּוֹתוֹ אֶת־טַעְמוֹ לִפְנֵי אֲבִימֶלֶךְ). O problema, amplamente reconhecido pela crítica textual e pelas tradições exegéticas, reside no fato de que, na narrativa correspondente em 1 Samuel 21:10–15, o rei diante de quem Davi se apresenta fingindo loucura é chamado não de Abimeleque, mas de Aquis, rei de Gate.

Esse dado indicativo de aparente discrepância entre os dois textos, longe de ser um erro banal, reforça uma leitura mais complexa da onomástica política na Bíblia Hebraica. Conforme atestado em múltiplas fontes que você forneceu, o nome “Abimeleque” é amplamente considerado um título régio filisteu, não um nome pessoal. Assim como “Faraó” para os reis egípcios ou “César” para os imperadores romanos, Abimeleque teria sido o título dinástico dos soberanos filisteus de cidades como Gerar e Gate, sendo usado genericamente para designar a realeza entre os povos do litoral cananeu.

A aplicação desse título ao rei de Gate, em vez de seu nome pessoal (Aquis), deve ser interpretada dentro desse arcabouço cultural e literário. A tradição contida na introdução do Salmo 34 parece ter assumido ou transmitido esse título como representativo da função do soberano, não de sua identidade nominal específica. A própria alternância entre os nomes “Abimeleque” e “Aquis” reforça a ideia de que havia uma distinção entre nome pessoal e título régio, que explicitamente afirmam que “Abimeleque” é um nome-título, sendo inclusive trocado com “Aquis” nas tradições bíblicas.

A hipótese de erro redacional é contemplada por alguns estudiosos modernos, mas não é a única nem a mais consistente diante da tradição veterotestamentária. Tanto a Septuaginta quanto a tradição massorética mantêm a leitura com Abimeleque no Salmo 34, o que sugere que essa identificação já estava consolidada antes mesmo da fixação final do texto. De acordo com a análise literária rabínica e a tradição crítica, a função desse título pode ter sido mantida no Salmo por razões de estilo, reconhecimento de status ou até mesmo por decisão editorial que buscava uniformizar os registros régios dos filisteus.

A identificação de “Abimeleque” como título e não como nome também ajuda a resolver tensões entre os registros narrativos e litúrgicos. Enquanto em 1 Samuel a narrativa objetiva historicamente se refere a Aquis de Gate, o Salmo 34 — expressão poética e devocional — pode optar por uma designação genérica régia, que era mais compreensível ou respeitosa no contexto litúrgico e memorial. A lógica é semelhante à aplicação do título “rei do Egito” ao Faraó nos Salmos, mesmo quando seu nome pessoal não é citado.

Ademais, como se vê em outras instâncias bíblicas, o uso de títulos como nomes próprios é comum em textos poéticos, onde a precisão histórica cede espaço à força simbólica. Assim, o título “Abimeleque” em Salmo 34 funciona como símbolo da autoridade hostil diante da qual Davi se viu obrigado a usar de astúcia para sobreviver, e não como marcador onomástico exato.

Por fim, as fontes rabínicas reconhecem esse intercâmbio onomástico, ainda que de forma implícita. Não há, nas tradições haggádicas, uma preocupação em resolver essa aparente divergência, o que sugere que ela era compreendida no interior da tradição como legítima. A crítica textual mais recente também tende a reconhecer que a ocorrência de “Abimeleque” em Salmos não é erro, mas testemunho de uma tradição mais antiga que entendia o termo como epíteto oficial dos reis filisteus, conforme observado em diversos níveis do cânone bíblico.

III. Abimeleque, Filho de Gideão: Usurpação, Reinado e Juízo

O Abimeleque de Juízes 9 representa uma figura singular e trágica na história bíblica de Israel. Filho de Gideão (também chamado Jerubaal) com uma concubina siquemita, ele é o primeiro personagem nas Escrituras a reivindicar explicitamente a realeza em Israel. Sua ascensão é marcada não por eleição divina, como nos juízes carismáticos que o precederam, mas por uma combinação de violência política, apelo étnico e manipulação localista. Seu nome — “Abimeleque”, isto é, “meu pai é rei” ou “pai-rei” — funciona aqui como ironia narrativa, pois Gideão havia recusado o título real (Juízes 8:23), e o filho, nascido fora do casamento legítimo, se arroga a legitimidade dinástica que o pai explicitamente negou.

O ponto de partida de sua ascensão é Siquém, cidade de população mista e cultura sincrética, onde os parentes de sua mãe tinham influência significativa. É ali que Abimeleque obtém o apoio financeiro dos cidadãos locais — identificados com o templo de Baal-Berite — e o endosso político para seu plano de poder. Com os recursos recebidos, ele contrata homens “levianos e atrevidos” (Juízes 9:4) e parte para a chacina ritual de seus próprios irmãos: setenta filhos de Gideão assassinados sobre uma única pedra, possivelmente num ato de consagração violenta ao novo poder. Apenas o mais jovem, Jotão, escapa, tornando-se voz profética e juiz implícito da narrativa.

A fábula de Jotão, pronunciada do alto do monte Gerizim, estabelece um dos momentos mais refinados da literatura parabólica bíblica. Através da alegoria das árvores que procuram um rei, culminando na aceitação do espinheiro — símbolo do poder destrutivo e sem frutos —, Jotão denuncia a ilegitimidade e a periculosidade de Abimeleque como rei. A fábula, em sua forma e intenção, ecoa tradições didáticas universais, mas no contexto israelita, funciona como crítica à centralização política sem mandado divino, e como anúncio profético do juízo que virá tanto sobre Abimeleque quanto sobre seus apoiadores.

Durante os três anos de reinado em Siquém, o regime de Abimeleque é sustentado por alianças frágeis, fundadas mais no temor e na violência do que em legitimidade ou justiça. Eventualmente, o próprio povo de Siquém se arrepende de sua escolha, e uma rebelião se instala, liderada por Gaal, filho de Ébed. Este personagem parece evocar elementos cananeus tanto pelo nome quanto pelo papel de restaurador local, mas é rapidamente neutralizado por Zebul, governador de Siquém e aliado secreto de Abimeleque. A tática usada envolve desinformação e surpresa militar, culminando na destruição total da cidade por Abimeleque.

O cerco de Siquém e a subsequente execução em massa dos que se refugiaram na torre do templo de Baal-Berite marcam o ponto alto da crueldade do usurpador. Abimeleque ordena que se amontoe lenha em torno do templo e o incendeia, matando cerca de mil pessoas. Esse gesto, brutal e simbólico, retoma o paradoxo do nome do templo (“senhor da aliança”) e evidencia como o pacto profanado — tanto com Deus quanto entre os homens — leva à destruição. Segundo a leitura midráshica e histórica, a justiça retributiva se faz presente nesse episódio, punindo a idolatria e a cumplicidade com o crime político.

Após a destruição de Siquém, Abimeleque dirige-se a Tebes, cidade próxima que igualmente havia se revoltado. Ali, repete a mesma estratégia: ataque frontal e tentativa de incendiar a torre onde os habitantes se refugiaram. Mas desta vez, a providência inverte os papéis. Uma mulher lança de cima da torre uma mó que atinge o crânio de Abimeleque, ferindo-o mortalmente. Temendo morrer “pela mão de uma mulher” — vergonha insuportável para os padrões heroicos da época — ele ordena a seu escudeiro que o mate com a espada. Tal esforço em apagar a humilhação é, contudo, em vão: como registra 2 Samuel 11:21, a memória de Abimeleque permaneceu atrelada ao fato de ter sido morto por uma mulher, o que a tradição interpretou como sinal divino de desonra e justiça.

As fontes fornecidas ressaltam tanto a dimensão histórica e política da trajetória de Abimeleque quanto seu valor teológico e moral. De um lado, ele representa a transição perigosa entre liderança carismática e monarquia institucional sem respaldo divino. De outro, seu fim trágico ecoa a teologia da retribuição: “o que semeia injustiça colherá desgraça” (cf. Provérbios 22:8). A tradição rabínica, embora não explore em detalhes a figura de Abimeleque, reconhece que sua aliança com o povo de Siquém — fundada sobre o sangue inocente — não poderia produzir senão ruína. Seu reinado, por fim, não estabeleceu uma dinastia, mas acentuou a necessidade de uma liderança com legitimidade divina, algo que só surgiria mais tarde com a figura de Davi.

A morte de Abimeleque também entra na galeria de mortes desonrosas dos soberanos que desafiam a ordem de Deus, em paralelo com reis como Saul, Acabe e outros. As fontes comparam seu destino ao de figuras históricas como Pirro II de Epiro e às tradições clássicas que associam a queda de reis tirânicos a julgamentos cósmicos (cf. fontes sobre Pausânias, Valério Máximo, etc.). O gesto de lançar uma mó — um instrumento doméstico — por uma mulher, simboliza não apenas a inversão da hierarquia militar, mas também o desmonte da narrativa de glória construída por meio de sangue.

Assim, Abimeleque filho de Gideão se inscreve na história de Israel como um contraexemplo vívido de liderança, um “antirreinado” que ilustra o caos político e espiritual que emerge quando o poder é fundado em usurpação, violência e idolatria. A combinação entre narrativa histórica, crítica literária e leitura teológica produz uma figura ao mesmo tempo fascinante e repulsiva, cuja memória é preservada não como modelo, mas como advertência.

IV. Abimeleque, Sacerdote nos Dias de Davi: Problemas Textuais e Tradição Sacerdotal

A última ocorrência do nome Abimeleque nas Escrituras aparece em um contexto que foge aos domínios régios e militares das seções anteriores: trata-se de um sacerdote mencionado em 1 Crônicas 18:16, listado como filho de Abiatar e ocupante de ofício sacerdotal ao lado de Zadoque, durante o reinado de Davi. Esse Abimeleque aparece em uma posição análoga à descrita em 2 Samuel 8:17, o que leva à comparação direta entre os dois registros. A complexidade surge porque, no relato de 2 Samuel, o nome apresentado é Aimeleque (Ahimelek), e ele é identificado não como filho, mas como pai de Abiatar. Assim, temos aqui um problema de variação textual e inversão genealógica, reconhecido por todas as fontes.

A tradição crítica — e os próprios manuscritos antigos — reconhecem esse ponto como um erro de transmissão do texto massorético. Conforme atestado pelas versões da Septuaginta (LXX), da Peshitta siríaca, da Vulgata latina, dos Targumim aramaicos e de numerosos manuscritos hebraicos, o nome correto em 1 Crônicas 18:16 deveria ser Aimeleque, e sua relação com Abiatar, inversa à apresentada: ele não seria filho, mas pai. A persistência dessa leitura incorreta no texto massorético resultou da provável confusão entre nomes semelhantes e da repetição automática de fórmulas genealógicas que, em contextos paralelos, apareciam com outra estrutura.

A identificação entre Aimeleque e Abimeleque pode ser compreendida também como resultado da proximidade fonética entre os dois nomes, e da tendência de certos copistas em homogeneizar registros com base na frequência de nomes anteriores. A confusão, contudo, não é apenas genealógica, mas também onomástica. As fontes que você forneceu ressaltam que “Abimeleque” pode ter sido aqui um erro de copista por “Aimeleque” — especialmente porque em nenhum outro lugar Abimeleque é apresentado como filho de Abiatar, enquanto a tradição textual consolidada é a de que Abiatar é filho de Aimeleque, sacerdote da casa de Eli, morto por ordem de Saul em Nob (cf. 1 Samuel 22:20).

A posição sacerdotal desse Abimeleque/Aimeleque é significativa. Em 1 Crônicas 24:6, no contexto da organização do serviço sacerdotal por Davi, são mencionadas as casas sacerdotais de Zadoque (descendente de Eleazar) e de Aimeleque (descendente de Itamar). O texto parece atribuir a ambos autoridade conjunta, o que reflete o momento de transição e divisão de poder sacerdotal durante o reinado davídico. Contudo, o nome “Aimeleque” nessa passagem reforça a leitura segundo a qual o nome “Abimeleque” em 1 Crônicas 18:16 deve ser corrigido.

As fontes fornecidas também observam que a genealogia sacerdotal neste caso carrega implicações significativas para a crítica bíblica e para a história da instituição sacerdotal em Israel. A presença simultânea de Zadoque e Aimeleque/Abimeleque sinaliza a coexistência, durante certo período, de duas linhagens sacerdotais: a de Eleazar (pela qual viria posteriormente a linhagem zadoquita dominante no templo) e a de Itamar (à qual pertenciam Eli, Aimeleque e Abiatar). O episódio indica que, mesmo após a rejeição da casa de Eli em função dos pecados de seus filhos (1 Samuel 2:27–36), sua linhagem ainda possuía prestígio e função durante os anos iniciais de Davi.

A presença do nome “Abimeleque” nesse contexto, ainda que problemática do ponto de vista crítico-textual, é de valor analítico. Se de fato ocorreu uma substituição nominal, trata-se de um reflexo da permeabilidade da tradição textual aos nomes mais frequentes — e Abimeleque, como visto nas partes anteriores, aparece repetidamente no Antigo Testamento, tanto como nome próprio quanto como título. O nome, portanto, pode ter sido introduzido em Crônicas por um escriba que, ao lidar com nomes sacerdotais associados ao período de Davi, confundiu ou substituiu “Aimeleque” por “Abimeleque”, inadvertidamente invertendo também sua relação genealógica com Abiatar.

A crítica tradicional e os estudiosos da transmissão textual observam que essa substituição não compromete a teologia do texto, mas revela as camadas redacionais e o desafio da preservação filológica do cânone. O caso de Abimeleque/Aimeleque em Crônicas é exemplar no estudo da crítica textual bíblica: mostra como pequenos deslizes de nome e genealogia podem ser identificados, corrigidos e compreendidos a partir do cotejo com tradições paralelas e versões antigas. Mais do que erro, é uma janela para a história do texto e sua transmissão.

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GALVÃO, Eduardo M. Abimeleque. In: ENCICLOPÉDIA BÍBLICA ONLINE. [S. l.]: [s.d.]. Disponível em: Biblioteca Bíblica. Disponível em: [cole o link aqui]. Acesso em: [coloque aqui a data que você acessou a página].