ABRAÃO — Enciclopédia Bíblica Online

ABRAÃO

Abraão é uma das figuras centrais da história religiosa e teológica da humanidade, reverenciado simultaneamente pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islã como patriarca da fé, ancestral de diversos povos e modelo de fidelidade a Deus. No judaísmo, é considerado o primeiro dos patriarcas, aquele a quem Deus escolheu para estabelecer uma aliança perpétua, dando-lhe por herança a terra de Canaã e prometendo-lhe uma descendência numerosa e abençoada. No cristianismo, é exaltado como o pai espiritual de todos os crentes, aquele cuja fé foi-lhe imputada por justiça, segundo o ensinamento paulino, sendo também citado por Jesus como paradigma de obediência. No islã, conhecido como Ibrāhīm (إِبْرَاهِيم), é honrado como profeta exemplar (nabī) e monoteísta puro (ḥanīf), pai do profeta Ismael (Ismāʿīl) e ancestral de Maomé. A importância de Abraão transcende, portanto, sua atuação histórica, sendo uma figura teológica e espiritual que une as três grandes tradições abraâmicas, atravessando milênios de fé e memória religiosa.

I. Etimologia do Nome

A análise etimológica do nome do patriarca Abraão envolve tanto os dados filológicos das línguas semíticas antigas quanto as interpretações teológicas presentes nos textos sagrados. O nome “Abrão” (אַבְרָם, ʾAḇrām) e sua posterior transformação em “Abraão” (אַבְרָהָם, ʾAḇrāhām) são centrais para a compreensão da identidade e missão do patriarca, refletindo não apenas significados linguísticos, mas também conceitos espirituais e vocacionais. Este tópico explora as raízes hebraicas desses nomes, suas possíveis correspondências em acádio, árabe, ugarítico, aramaico e gueês, bem como as implicações pictográficas do paleo-hebraico e as leituras que as tradições judaica, cristã e islâmica fizeram dessas formas nominais. Ao fazer isso, evidencia-se a função do nome como espelho da função histórica e escatológica de Abraão nas Escrituras.

A. O nome “Abrão” (אַבְרָם, ʾAḇrām)

O nome original do patriarca era Abrão (ʾAḇrām), cuja forma hebraica padrão אַבְרָם deriva da combinação dos elementos ʾāḇ (אָב, “pai”) e possivelmente rām (רָם, “elevado, exaltado”), formando o significado tradicionalmente aceito de “pai exaltado” ou “pai é elevado”. Esta interpretação é corroborada por Gênesis 17:5, quando Deus altera seu nome para Abraão, interpretando esse gesto à luz de uma promessa de fecundidade: “porque por pai de uma multidão de nações te tenho posto”.

1. Fontes hebraicas e contextuais

O termo ʾāḇ é de uso comum no hebraico bíblico e ocorre como designação literal (pai biológico), figurada (fundador, ancestral, patrono) e também como epíteto teológico (cf. Isaías 9:6). O sufixo rām encontra-se, por exemplo, em nomes como Ramá (רָמָה), denotando altura ou elevação, tanto literal quanto metafórica. Assim, ʾAḇrām pode ter sido originalmente um nome teofórico ou honorífico, com o sentido de “meu pai é exaltado” ou “pai excelso”, com provável conotação de nobreza tribal.

2. Paralelos semíticos

Em ugarítico, encontra-se o termo 𐎓𐎁 (ʾab) como “pai”, e formas semelhantes ao elemento rām também indicam elevação. No acadiano, abum (𒀀𒁍) corresponde a “pai”, e ramûm a “ser elevado”. O nome Abi-ramu é atestado em documentos de Mari e Alalaḫ como “meu pai é exaltado”, sugerindo que ʾAḇrām pode refletir um nome comum no horizonte semítico setentrional do II milênio a.C.

3. Interpretação nas tradições

O Talmude (Bereshit Rabbah 39:7) interpreta “Abrão” como “pai de Aram” (com jogo sonoro de palavras com Aram e Ram), enquanto a tradição rabínica também explora a etimologia simbólica do nome como indicando sabedoria ou dignidade espiritual. O Midrash Tanhuma considera ʾAḇrām como aquele cuja elevação espiritual precede a mudança nominal operada por Deus.

B. O nome “Abraão” (אַבְרָהָם, ʾAḇrāhām)

A mudança de nome para Abraão (ʾAḇrāhām) é explicitamente interpretada em Gênesis 17:5 como reflexo da aliança divina: “Não se chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por pai de uma multidão de nações te tenho posto.” O termo hamôn (הָמוֹן, “multidão, hoste”) parece estar envolvido etimologicamente na justificação apresentada pelo texto hebraico, embora não esteja gramaticalmente integrado no nome ʾAḇrāhām de maneira transparente.

1. Desafios etimológicos

A forma hebraica ʾAḇrāhām não se encaixa perfeitamente nas regras morfológicas para abrigar o termo hamôn dentro da estrutura do nome. Alguns exegetas sugerem que o nome pode refletir uma antiga forma dialetal ou uma etimologia popular adaptada ao conteúdo teológico. De qualquer modo, a interpretação bíblica da mudança de nome está associada a uma missão universal e escatológica: o surgimento de uma descendência numerosa e multinacional, cumprida tanto em Isaque quanto em Ismael, Quetura e suas linhagens.

Antes de descobertas cuneiformes mais recentes revelarem a forma completa e historicamente atestada do equivalente babilônico, a interpretação mais comum desmembrava o nome em duas partes: a primeira, “pai de” (com o elemento construto -i em vez do sufixo possessivo -i), e a segunda, “Ram”, seja como nome próprio ou uma abreviação. Importante notar que o nome ou variações dele também eram empregados para mulheres na Assíria, como se observa nos nomes Abisague (Veja ABISAGUE) e Abigail (Veja ABIGAIL). Contudo, muitos estudiosos inclinavam-se a considerar o segundo elemento como um mistério, à semelhança da incerteza etimológica de outros nomes iniciados com ʾābh (“pai”) e ʾaḥ (“irmão”).

A revelação da grafia cuneiforme completa do nome babilônico, que inclui a desinência de caso –am (acusativo), modificou essa perspectiva. Essa forma indica que o substantivo “pai” está no caso acusativo, sendo regido por um verbo que constitui o segundo componente do nome. Assim, o verbo em questão é provavelmente rāmu (equivalente ao hebraico רחם, rāḥam), que significa “amar”. Dessa forma, o nome poderia ser interpretado como “ele ama o (seu) pai” ou “ele é amado pelo pai” (Ungnad e Ranke em Gressmann, 1910, p. 3). Essa interpretação encontra respaldo na onomástica babilônica do período, e a análise de diversas grafias desse e de nomes similares sugere que sua pronúncia se aproximava de ʾabh-rām̌.

2. Interpretações em línguas semíticas

Em acadiano, o nome Aburāmu (𒀀𒁍𒊏𒈬) já aparece em textos do período paleobabilônico, e poderia indicar um precursor linguístico de Abraão, ainda que a relação fonética exata não seja consensual. Em árabe clássico, a forma إِبْرَاهِيم (Ibrāhīm) é derivada provavelmente via aramaico-siríaco ܐܒܪܗܡ (ʾAvrāhām), preservando a raiz semítica ʾ-B-R e a glotalização medial, mas já adaptada fonologicamente ao contexto árabe. Em siríaco e etíope (gueês), formas equivalentes como አብርሃም (ʾAbrəhām) preservam tanto a raiz como a ressonância semântica da figura patriarcal.

3. Paleo-hebraico e pictografia

No sistema paleo-hebraico, os pictogramas originais que compõem ʾāḇ (אב) são 𐤀 (“boi”, representando força, cabeça, liderança) e 𐤁 (“tenda” ou “casa”, representando família, estrutura, linhagem). A combinação dessas ideias evoca o conceito de “chefe da casa” ou “líder da linhagem”. A introdução do elemento -hām pode ter sido visualizada pelos antigos escribas como ampliação do domínio paterno, conforme a ideia de uma “multidão” de descendentes.

II. Época, Nomeação e Vocação Patriarcal

A trajetória de Abraão se inicia não com seu nascimento, mas com a sua nomeação divina e com o chamado que o separa do restante da humanidade para torná-lo “pai de uma multidão de nações” (Gênesis 17:5). Antes de abordarmos sua nomeação e vocação patriarcal, devemos localizá-lo no tempo.

A. Localização temporal

Juntando o conhecimento histórico de outras fontes com a narrativa do livro de Gênesis, a data mais provável para Abraão é por volta do século XIX a.C. Alguns estudiosos conectam uma grande queda na estimativa de densidade populacional desse período com a campanha militar destrutiva descrita em Gênesis 14. Os nomes dos reis mencionados ali são típicos do período Babilônico Antigo (2001–1700 a.C.), embora seja improvável que Amrafel seja o rei Hamurabi, como alguns pensaram. As alianças de poder onde quatro reis lutam contra cinco eram típicas das coalizões políticas e militares dessa época específica. Mais tarde, as coalizões geralmente envolviam um número maior de reis.

Os nomes pessoais de Abraão e dos outros patriarcas são parecidos com nomes encontrados em textos do século XIX ao XVII a.C. A ocupação sazonal (em certas estações do ano) da região do Neguebe aparece tanto na narrativa de Gênesis quanto nos dados arqueológicos por volta de 2101–1800 a.C. Isso não acontecia nem no milênio anterior nem nos oito séculos seguintes a esse período. Alguns estudiosos datam Abraão séculos depois. Essa datação mais tardia é apresentada por H. H. Rowley (em seu livro “From Joseph to Joshua”, de 1950) e C. H. Gordon (em “Introduction to Old Testament Times”, de 1953), mas a ideia deles de que as listas de genealogias na Bíblia servem como base para calcular uma cronologia completa é frágil.

A data de Abraão está diretamente ligada à data do Êxodo, que varia em cerca de dois séculos — entre 1451 e 1250 a.C. (veja ÊXODO). Se Abraão viveu cerca de 600 anos antes do Êxodo, a data mais antiga para sua chegada em Canaã seria por volta de 2085 a.C. ou depois, quando ele tinha setenta e cinco anos de idade. (Para mais detalhes sobre a datação do Êxodo e do período dos patriarcas, veja M. F. Unger, “Archeology and the Old Testament”, de 1954, capítulos 9 e 12.) Considerando esses pontos válidos sobre a cronologia desse período inicial, é razoável datar Abraão por volta de 2001–1900 a.C.

B. A primeira menção de Abrão

Abrão (אַבְרָם, ʾAḇrām), “pai é exaltado”, surge pela primeira vez na genealogia das gerações de Sem, filho de Noé, especificamente em Gênesis 11:26: “E viveu Tera setenta anos, e gerou Abrão, Naor e Harã.” Apesar de seu nome aparecer em primeiro lugar, as evidências cronológicas deixam claro que Abrão não era o primogênito de Tera, mas o mais importante entre os filhos, o que explica sua primazia na lista (cf. Gênesis 11:32; 12:4). De acordo com a cronologia interna do texto bíblico, Tera tinha 70 anos ao ter seu primeiro filho, mas Abrão nasceu sessenta anos depois, quando Tera tinha 130 anos. Isso é confirmado por Gênesis 11:32 (que afirma que Tera morreu aos 205 anos) e Gênesis 12:4 (que declara que Abrão tinha 75 anos quando saiu de Harã, após a morte de seu pai). A ordem da lista segue, portanto, um critério teológico e não cronológico, fenômeno comum nas genealogias bíblicas, como também se observa com Sem (Gênesis 5:32; 11:10) e Isaque (1 Crônicas 1:28).

A primeira aparição de Abrão é, portanto, genealógica, teológica e literária: ele aparece como elo-chave entre a descendência pós-diluviana de Noé e o início da história patriarcal. Ao lado de seus irmãos Naor e Harã — o pai de Ló — Abrão surge num cenário familiar marcado por idolatria caldeia (Josué 24:2) e profunda mudança divina: seu nome será transformado, sua terra será abandonada, e seu papel na história da salvação será inaugurado.

C. O chamado divino e a promessa tripla

Segundo a narrativa de Atos 7:2–4, a chamada de Deus a Abrão ocorre ainda em Ur dos caldeus, antes de sua estadia em Harã: “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, estando ele na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e dentre a tua parentela.” Essa ordem divina antecede a morte de Tera e foi o ponto de partida para o movimento patriarcal que, segundo Gênesis 11:31, envolveu Tera, Abrão, Sarai e Ló saindo juntos em direção a Canaã, mas detendo-se em Harã.

A chamada de Abrão é acompanhada da promessa tripla, registrada em Gênesis 12:1–3:

“Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E farei de ti uma grande nação, e te abençoarei, e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. E abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra.”
Esses versículos, de importância fundacional para a teologia bíblica, estabelecem três promessas centrais que percorrem toda a história da aliança:
  • Uma terra: “para a terra que eu te mostrarei”;
  • Uma descendência numerosa: “farei de ti uma grande nação”;
  • Uma bênção universal: “em ti serão benditas todas as famílias da terra”.

Com 75 anos de idade (Gênesis 12:4), Abrão obedece imediatamente, deixando Harã, cruzando o Eufrates (evento lembrado pela tradição judaica como um novo “êxodo”) e peregrinando em direção a Canaã, tornando-se estrangeiro na terra que seus descendentes herdariam. O caminho, segundo fontes arqueológicas, levou alguns estudiosos a propor que o caminho teria passado por Damasco e seguido até Siquém, onde ele constrói um altar ao Senhor sob os carvalhos de Moré (Gênesis 12:6–7). Ao longo de sua peregrinação, Abrão repete essa prática de levantar altares e invocar o nome de YHWH (cf. Gênesis 12:8–9; 13:4,18).

O chamado divino inaugura, portanto, uma jornada teológica, existencial e geográfica, na qual Abrão se torna “hebreu” (Gênesis 14:13) — termo que pode remeter tanto à sua origem étnica (descendente de Éber) quanto à ideia de “passar além” (do Eufrates), simbolizando sua ruptura com o mundo pagão e sua entrega exclusiva ao Deus único e verdadeiro.

D. O nome e sua autoridade

A mudança de nome de Abrão para Abraão ocorre em Gênesis 17:5, no contexto da renovação e ampliação da aliança, aos 99 anos de idade. Deus declara:

“Não se chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por pai de uma multidão de nações te tenho posto.”

O nome anterior, Abrão (אַבְרָם, ʾAḇrām), é geralmente entendido como “pai exaltado” ou “meu pai é elevado”, talvez refletindo uma designação nobre de linhagem ancestral. O novo nome, Abraão (אַבְרָהָם, ʾAḇrāhām), representa um jogo fonético e teológico: “pai de uma multidão (ou de muitos)” (ʾav hamon goyim, cf. Gênesis 17:5). Essa mudança está intimamente associada à aliança da circuncisão, instituída no mesmo capítulo (Gênesis 17:9–14), como sinal físico e perpétuo da relação especial entre YHWH e o patriarca e sua descendência.

A mudança de nome não é apenas simbólica, mas performativa: Deus declara o novo nome como fato consumado — “te tenho posto” (nĕṯattîḵā) — mesmo antes do nascimento de Isaque. Trata-se de um ato profético e jurídico. O nome “Abraão” passa a carregar autoridade fundacional: ele será não apenas pai de Isaque, mas de Ismael, dos filhos de Quetura e de uma verdadeira “multidão de nações”, cumprindo a promessa e formando os povos israelita, edomita, ismaelita, madianita e outros (Gênesis 25:1–6; 1Crônicas 1:28, 32, 34).

Além disso, o nome “Abraão” transcende a função genealógica, tornando-se um título honorífico de fé e aliança, como atestado nas tradições judaicas (“nosso pai Abraão”, cf. Isaías 51:2), cristãs (Romanos 4:11–17; Tiago 2:23) e posteriormente islâmicas.

E. A jornada de Abraão: fé, provas e aliança

O percurso de Abraão, delineado por bênçãos divinas, é uma saga de peregrinação, estabelecimento e legado.

1. Período de peregrinação

Abraão, abençoado com a promessa ilimitada de Javé, partiu de Harã com Ló, seu sobrinho, e toda a sua família, adentrando Canaã. Sua lenta jornada rumo ao sul foi marcada por paradas sucessivas em Siquém, Betel e o Neguebe. A fome o impeliu ao Egito, onde, apesar da acolhida hospitaleira, a honra de sua esposa foi comprometida, já que o Faraó a tratou conforme a conduta típica dos monarcas egípcios. Gressmann, op. cit., cita Meyer, Geschichte des Alterthums, 12, 142, a passagem de uma fórmula mágica na pirâmide de Unas, um faraó da Quinta Dinastia: “Então ele (ou seja, o faraó) tira as esposas de seus maridos para onde ele, se desejar, tomar seu coração.”

Abraão, Sara e Ló em sua jornada de Harã para Canaã e Egito, com rebanhos, conforme Gênesis 12
“Assim partiu Abrão como o Senhor lhe tinha dito.”
(Gênesis 12:4a ACF)

No retorno a Canaã, com um séquito ainda maior, Abraão e Ló reconheceram a necessidade de se separarem em Betel. Ló e seus dependentes escolheram residir na vasta Depressão do Jordão, enquanto Abraão seguiu a espinha dorsal da terra em direção ao sul, estabelecendo-se em Hebrom, não na cidade, mas “junto às grandes árvores” (Septuaginta sing., “carvalho”) de Manre, às portas da cidade.

2. Período de residência em Hebrom

A relação de Abraão com os líderes locais fortaleceu-se após uma breve campanha. Nela, todos uniram suas forças para resgatar Ló de um rei elamita e seus aliados da Babilônia, perseguindo-os até a região do Líbano. No regresso, foram recebidos por Melquisedeque, rei de Salém e sacerdote de ʾēl ʿelyōn, que os abençoou em sua função sacerdotal. Em reconhecimento, Abraão lhe ofertou o dízimo dos despojos.

A ansiedade de Abraão por um filho que fosse o herdeiro das promessas divinas, ainda não nascido, deveria ter sido apaziguada pela solene renovação de uma aliança formal, com especificações claras do propósito gracioso de Deus. Contudo, o desejo humano superou a sabedoria divina, e a egípcia Agar deu à luz Ismael. A existência de Ismael, desde o princípio, tornou-se uma fonte de desordem moral na família patriarcal.

O sinal da circuncisão e a mudança de nomes foram instituídos como confirmação da aliança futura, acompanhados da especificação do tempo e da pessoa que iniciaria sua realização. A teofania que simbolizava externamente esse ápice do favor divino também proporcionou um diálogo intercessório, no qual Abraão obteve a libertação de Ló na iminente destruição de Sodoma. Ló e sua família, salvos pela fidelidade humana e pela clemência divina, demonstraram, em sua fuga e vida posterior, a degeneração esperada de seu ambiente corrompido. Moabitas e amonitas são, em sua origem, descendentes desses primos de Jacó e Esaú.

3. Período de residência no Neguebe

A mudança para o sul não implicava uma residência fixa, mas uma série de locais de descanso temporários. O primeiro deles foi no distrito de Gerar, onde Abraão e sua esposa tiveram uma experiência semelhante à anterior com o Faraó, desta vez com o rei Abimeleque. O nascimento de Isaque foi seguido pela expulsão de Ismael e sua mãe, e pelo estabelecimento de relações pacíficas com os vizinhos através de uma aliança em Berseba.

No entanto, nem mesmo o nascimento de Isaque encerrou a disciplina da fé de Abraão na promessa. Uma ordem divina para sacrificar a vida de seu filho foi aceita de boa-fé, e apenas a súbita interposição de uma proibição divina impediu a execução obediente. A morte de Sara levou Abraão a adquirir sua primeira posse permanente de solo palestino, o cerne de sua herança prometida, e também indicou a provável aproximação de sua própria morte. Esse pensamento o levou a providenciar imediatamente uma futura descendência através de Isaque, concretizada no casamento de Isaque com Rebeca, neta de Naor, irmão de Abraão, e de Milca, irmã de Ló.

No entanto, uma numerosa progênie não associada à promessa cresceu na casa de Abraão: filhos de Quetura, uma mulher que parece ter assumido o posto de esposa após a morte de Sara, e de outras concubinas não nomeadas. Embora esse último período tenha sido no Neguebe, Abraão foi sepultado em Hebrom, em sua posse comprada, um local ao qual a tradição semítica continua a associá-lo até hoje.

4. Relação de aliança

Abraão deve ser considerado, além disso, como estando em uma relação federal ou de aliança, não apenas com sua descendência natural, mas especial e eminentemente com todos os crentes. “O Evangelho”, Paulo nos diz (Gálatas 3:8), “foi pregado a Abraão, dizendo: Em ti serão abençoadas todas as nações.” “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça”; em outras palavras, ele foi justificado (Gênesis 15:6). Uma aliança de justificação gratuita pela fé foi feita com ele e seus descendentes crentes; e o rito da circuncisão, que não se restringia à sua posteridade por Sara, mas foi estabelecido em cada ramo de sua família, era o sinal ou sacramento desta aliança da graça, e assim permaneceu até ser substituído pelos sacramentos instituídos por Cristo. Onde quer que esse sinal estivesse, ele declarava a doutrina e oferecia a graça dessa justificação pela fé, livre pela aliança, e seus gloriosos resultados — a todas as tribos que procederam de Abraão. Essa mesma graça nos é oferecida pelo Evangelho, nós que nos tornamos “descendência de Abraão”, seus filhos espirituais, com quem a aliança é estabelecida pela mesma fé, e assim somos feitos “herdeiros com ele da mesma promessa.”

Abraão também nos é exibido como o representante dos verdadeiros crentes; e nisso especialmente, que a verdadeira natureza da fé foi exibida nele. Este grande princípio foi marcado em Abraão com as seguintes características: uma crença inteira e inabalável na palavra de Deus; uma confiança inabalável em todas as suas promessas; uma consideração firme de seu poder todo-poderoso, levando-o a ignorar todas as dificuldades e impossibilidades aparentes em todo caso em que Deus havia prometido explicitamente; e obediência habitual, alegre e completa. O Apóstolo descreveu a fé em Hebreus 11:1, e essa fé é vista viva e agindo em toda a sua energia em Abraão.

5. Sacrifício de Isaque

A oferta pretendida de Isaque não deve ser suposta como vista por Abraão como um ato decorrente da prática pagã de sacrifício humano, embora isso possa ter diminuído um pouco o choque que a ordem teria causado aos seus sentimentos paternos. A imolação de vítimas humanas, particularmente daquela que era mais preciosa, o filho favorito e primogênito, parece ter sido um uso comum entre muitas nações antigas, especialmente as tribos pelas quais Abraão estava cercado. Era o rito distintivo entre os adoradores de Moloque; em um período posterior da história judaica, foi praticado por um rei de Moabe; e foi, sem dúvida, derivado pelos cartagineses de seus ancestrais fenícios nas costas da Síria. Onde era um uso comum, como na adoração de Moloque, estava em uníssono com o caráter da religião e de sua divindade.

Era o último ato de uma superstição sombria e sanguinária, que ascendeu por gradação regular a este triunfo completo sobre a natureza humana. O deus que era propiciado por essas ofertas havia sido saciado com vítimas mais baratas e vulgares; ele havia sido farto de sofrimento humano e de sangue humano. Em geral, era a marca final da subjugação da mente nacional a um sacerdócio desumano e dominador. Mas a religião mosaica abominava os sacrifícios humanos; e o Deus da família abraâmica, uniformemente beneficente, não havia imposto deveres que acarretassem sofrimento humano, não havia exigido ofertas que fossem repugnantes aos melhores sentimentos de nossa natureza.

O comando para oferecer Isaque como um “holocausto” foi, por essas razões, uma prova ainda mais severa para a fé de Abraão. Ele deve, portanto, ter tido plena certeza da ordem divina, e deixou o mistério para ser explicado pelo próprio Deus ao Seu tempo. O seu foi um simples ato de obediência inabalável ao comando de Deus; a última prova de perfeita confiança no cumprimento certo das promessas Divinas. Isaque, tão milagrosamente concedido, poderia ser tão milagrosamente restaurado; Abraão, como comenta o autor de Hebreus, “creu que Deus poderia até mesmo ressuscitá-lo dos mortos” (Hebreus 11:17).

III. Condições de Vida

A vida de Abraão, em suas características externas, pode ser analisada sob os seguintes aspectos: econômicos, sociais, políticos e culturais.

A. Condições econômicas

O modo de vida de Abraão pode ser mais bem descrito pelo adjetivo “seminômade” e ilustrado pelas condições de certa forma similares que prevalecem hoje nas comunidades de fronteira do Oriente, que margeiam os desertos sírio e árabe. A residência é em tendas, a riqueza consiste em rebanhos, gado e escravos, e não há propriedade da terra, apenas, no máximo, a posse de poços ou túmulos. Tudo isso em comum com o nômade. Mas há uma fixidez de habitação relativa, ou melhor, intermitente, diferente do beduíno puro, uma quantidade limitada de agricultura, e, finalmente, um senso de divergência do tipo Ismael — tudo o que tende a assimilar o seminômade Abraão à população cananeia estabelecida ao seu redor. Como seria naturalmente de se esperar, tal condição é um equilíbrio instável, que tende, na família de Abraão como na história de todas as tribos fronteiriças do deserto, a se estabilizar de uma forma ou de outra, ora na vida urbana de Ló, ora na vida desértica de Ismael.

B. Condições sociais

O chefe de uma família, nessas condições, torna-se ao mesmo tempo o chefe de uma tribo, que vivem juntos sob o governo patriarcal, embora de modo algum compartilhem, sem exceção, o laço de parentesco. As relações familiares descritas em Gênesis estão em conformidade com, e são iluminadas por, as características sociais do Código de Hamurabi. (Veja K. D. Macmillan, artigo “Marriage among the Early Babylonians and Hebrews,” Princeton Theological Review, April, 1908.) Há uma esposa legal, Sara, que, por ser persistentemente estéril, obtém a prole cobiçada entregando sua própria serva a Abraão para esse fim (compare Código de Hamurabi, seções 144, 146). O filho assim nascido, Ismael, é filho e herdeiro legal de Abraão. Quando Isaque é posteriormente nascido de Sara, o filho mais velho é deserdado por comando divino (Gênesis 21:10-12) contra a vontade de Abraão, que representava a lei e o costume prevalecentes (Código de Hamurabi, seções 168f). As “servas” mencionadas nos inventários da riqueza de Abraão (Gênesis 12:16; Gênesis 24:35) sem dúvida forneceram as “concubinas” mencionadas em Gênesis 25:6 como tendo tido filhos para ele.

Tanto mães quanto filhos eram escravos, mas tinham direito à liberdade, embora não à herança, na morte do pai (Código de Hamurabi, seção 171). Após a morte de Sara, outra mulher parece ter sucedido à posição de esposa legal, embora, se assim for, os filhos que ela teve foram deserdados como Ismael (Gênesis 25:5). Além dos filhos assim gerados por Abraão, os “homens de sua casa” (Gênesis 17:27) consistiam em duas classes, os escravos “nascidos em casa” (Gênesis 14:14; Gênesis 17:12, Gênesis 17:23, Gênesis 17:27) e os escravos “comprados” (ibid.). A extensão da tribo patriarcal pode ser estimada pelo número (318) de homens entre eles capazes de portar armas, perto do início da carreira de Abraão, ainda depois de sua separação de Ló, e recrutados aparentemente da classe “nascida em casa” exclusivamente (Gênesis 14:14). Sobre todo esse estabelecimento, Abraão governava com um poder mais, e não menos, absoluto do que o exibido em detalhes no Código de Hamurabi: mais absoluto, porque Abraão era independente de qualquer autoridade superior permanente, e assim combinava em sua própria pessoa os poderes do paterfamilias babilônico e do rei da cidade cananeia. As relações sociais fora da família-tribo podem ser melhor consideradas sob o próximo tópico.

C. Condições políticas

É natural que o chefe de um organismo tão considerável parecesse um aliado atraente e um inimigo formidável para qualquer uma das unidades políticas menores de seu ambiente. Que Canaã na época era composta justamente por tais unidades insignificantes, a saber, cidades-estados com pequenos reis, e fragmentos dispersos de populações mais antigas, é abundantemente claro da tradição bíblica e verificado por outras fontes. O Egito era a única grande potência com a qual Abraão entrou em contato político após deixar o Oriente. Na seção do Gênesis que descreve esse contato com o Faraó, Abraão é adequadamente representado como não desempenhando nenhum papel político, mas como lucrando com sua estadia no Egito apenas por meio de uma relação social incidental: quando esta termina, ele é prontamente expulso.

O papel de conquistador de Quedorlaomer, o invasor elamita, estaria bastante fora de lugar com o status político de Abraão em outros contextos, se fôssemos compelidos pela narrativa em Gênesis 14 a supor uma batalha campal entre as forças de Abraão e as dos exércitos babilônicos unidos. O que esse capítulo de fato descreve é nada mais do que uma surpresa noturna, realizada pelo grupo de Abraão (que incluía as forças dos chefes aliados), contra uma retaguarda ou o comboio de suprimentos dos babilônios, que estavam mal guarnecidos e protegidos.

É importante notar que o termo original hebraico hakkōth, que significa “golpear” ou “atingir”, sugere um ataque mais tático; a tradução “matança” (KJV) seria forte demais para descrever o que ocorreu em Gênesis 14:17. O respeito demonstrado a Abraão pelos reis de Salém (Gênesis 14:18), de Sodoma (Gênesis 14:21) e de Gerar (Gênesis 20:14-16) não foi mais do que se poderia esperar de seus graus relativos de importância política, embora uma precedência moral, assumida na tradição, possa ter contribuído para esse respeito.

D. Condições culturais

Pesquisas arqueológicas recentes revolucionaram nossa concepção do grau de cultura que Abraão poderia ter possuído e, portanto, presumivelmente possuía. O alto nível que a literatura havia alcançado tanto na Babilônia quanto no Egito por volta de 2000 a.C. é testemunho suficiente das oportunidades abertas ao homem de nascimento e riqueza naqueles dias para o intercâmbio de pensamentos elevados. E, sem recorrer à juventude de Abraão na Babilônia, podemos afirmar, mesmo para as cenas da vida madura de Abraão, a presença da mesma cultura, com base em uma variedade de fatos, cujo testemunho converge neste ponto: que Canaã no segundo milênio a.C. estava no centro da vida intelectual do Oriente e não poderia deixar de oferecer, aos seus habitantes que optassem por aproveitá-la, todas as oportunidades para desfrutar dos frutos da cultura alheia e para registrar a substância de seus próprios pensamentos, emoções e atividades.

IV. Caráter

A vida interior de Abraão pode ser considerada sob os tópicos de religião, ética e traços pessoais.

A. Crenças religiosas

A religião de Abraão centrava-se em sua fé em um único Deus, que, por ser considerado por ele possuidor do céu e da terra (Gênesis 14:22; Gênesis 24:3), juiz soberano das nações (Gênesis 15:14) de toda a terra (Gênesis 18:25), controlador das forças da Natureza (Gênesis 18:14; Gênesis 19:24; Gênesis 20:17), exaltado (Gênesis 14:22) e eterno (Gênesis 21:33), era para Abraão, no mínimo, o único Deus. Pelo que a tradição bíblica indica, o monoteísmo de Abraão não era agressivo (diferente na tradição judaica posterior), e é teoricamente possível atribuir-lhe um tipo de monoteísmo meramente “monárquico” ou “henoteísta”, que admitiria a coexistência com sua divindade, digamos, dos “deuses que (seus) pais serviram” (Josué 24:14), ou a identidade com sua divindade do deus supremo de algum vizinho cananeu (Gênesis 14:18). No entanto, essa distinção de tipos de monoteísmo não pertence realmente à esfera da religião como tal, mas sim à do pensamento filosófico especulativo. Como religião, monoteísmo é apenas monoteísmo, e ele se afirma em corolários derivados pelo intelecto apenas na medida em que o escopo da vida intelectual do monoteísta o aplica. Para Abraão, Yahweh não era apenas o único Deus; Ele também era seu Deus pessoal em uma proximidade de comunhão (Gênesis 24:40; Gênesis 48:15) que o tornou para três religiões o tipo de homem piedoso (2 Crônicas 20:7; Isaías 41:8, Tiago 2:23, note o nome árabe de Hebrom El-Khalīl, i.e. o amigo (viz. de Deus)). A Yahweh, Abraão atribuiu os atributos morais de Justiça (Gênesis 18:25), retidão (Gênesis 18:19), fidelidade (Gênesis 24:27), sabedoria (Gênesis 20:6), bondade (Gênesis 19:19), misericórdia (Gênesis 20:6). Essas qualidades eram esperadas dos homens, e seus contrários nos homens eram punidos por Yahweh (Gênesis 18:19; Gênesis 20:11). Ele se manifestava em sonhos (Gênesis 20:3), visões (Gênesis 15:1) e teofanias (Gênesis 18:1), incluindo a voz ou aparição do mensageiro divino (malʾakh ou “anjo”) (Gênesis 16:7; Gênesis 22:11).

Por parte do homem, além da obediência aos requisitos morais e comandos especiais de Yahweh, a expressão de sua natureza religiosa era esperada no sacrifício. Essa prática de levar oferendas à divindade era diligentemente praticada por Abraão, como indicado pela menção de sua ereção de um altar em cada residência sucessiva. Ao lado desse ato de sacrifício, há às vezes a menção de um “invocar o nome” de Yahweh (compare 1 Reis 18:24; Salmos 116:13). Essa publicação de sua fé, sem dúvida na presença de cananeus, tinha sua contraparte também na estima pública em que era tido como um “profeta” ou porta-voz de Deus (Gênesis 20:7). Sua mediação também se manifestava em orações intercessórias (Gênesis 17:20 por Ismael; Gênesis 18:23-32; compare Gênesis 19:29 por Ló; Gênesis 20:17 por Abimeleque), o que era apenas uma fase de sua prática geral de oração. O acompanhamento usual do sacrifício, um sacerdócio profissional, não ocorre na família de Abraão, mas ele reconhece a prerrogativa sacerdotal na pessoa de Melquisedeque, sacerdote-rei de Salém (Gênesis 14:20). A sanção religiosa, é claro, cerca a tomada de juramentos (Gênesis 14:22; Gênesis 24:3) e o selamento de pactos (Gênesis 21:23). Outros costumes associados à religião são a circuncisão (Gênesis 17:10-14), dada a Abraão como o sinal da aliança perpétua; o dízimo (Gênesis 14:20), reconhecido como devido ao sacerdote; e o sacrifício de crianças (Gênesis 22:2, Gênesis 22:12), ordenado a Abraão apenas para ser expressamente proibido, aprovado por seu espírito, mas interditado em sua prática.

B. Moralidade

Conforme já indicado, os atributos éticos de Deus eram considerados por Abraão como o requisito ético do homem. Isso em teoria. Na esfera da ética aplicada e da casuística, a prática de Abraão, pelo menos, ficou aquém desse ideal, mesmo nos poucos incidentes de sua vida que nos foram preservados. É claro que essas falhas de virtude foram ofensivas ao senso moral do biógrafo de Abraão, mas ficamos na dúvida quanto ao senso de obliquidade moral de Abraão. (O “pó e cinza” de Gênesis 18:27 não tem implicação moral.) As exigências de franqueza e honra não são satisfatoriamente atendidas, certamente não na questão do relacionamento de Sara com ele (Gênesis 12:11-13; Gênesis 20:2; compare Gênesis 12:11-13), talvez não na questão do sacrifício pretendido de Isaque (Gênesis 22:5, Gênesis 22:8). Impor nosso próprio padrão monogâmico de casamento ao patriarca seria injusto, em vista do padrão diferente de sua época e terra. É para seu crédito que nenhum escândalo desse tipo é registrado em sua vida e família como os que mancham o registro de Ló (Gênesis 19:30-38), Rúben (Gênesis 35:22) e Judá (Gênesis 38:15-18). Da mesma forma, a história de Abraão mostra apenas respeito pela vida e pela propriedade, tanto ao respeitar os direitos dos outros quanto ao esperar o mesmo deles — os antípodas do caráter de Ismael (Gênesis 16:12).

C. Traços pessoais

Fora dos limites da exigência estritamente ética, a personalidade de Abraão exibia certas características que não apenas o destacam distintamente entre as figuras da história, mas também lhe conferem grande crédito como um caráter singularmente simétrico e atraente. De sua confiança e reverência já se falou o suficiente sob o título de religião. Mas esse amor que é “o cumprimento da lei”, manifestado em tal piedade para com Deus, mostrava-se para com os homens em excepcional generosidade (Gênesis 13:9; Gênesis 14:23; Gênesis 23:9, Gênesis 23:13; Gênesis 24:10; Gênesis 25:6), fidelidade (Gênesis 14:14, Gênesis 14:24; Gênesis 17:18; Gênesis 18:23-32; Gênesis 19:27; Gênesis 21:11; Gênesis 23:2), hospitalidade (Gênesis 18:2-8; Gênesis 21:8) e compaixão (Gênesis 16:6 e Gênesis 21:14 quando bem compreendido, Gênesis 18:23-32). Um sólido autorrespeito (Gênesis 14:23; Gênesis 16:6; Gênesis 21:25; Gênesis 23:9, Gênesis 23:13, Gênesis 23:16; Gênesis 24:4) e real coragem (Gênesis 14:14-16) foram, no entanto, manchados pela covardia que sacrificou Sara para comprar segurança pessoal onde ele tinha razões para considerar a vida insegura (Gênesis 20:11).

V. Abraão e a Aliança

A história de Abraão é inseparável do conceito de aliança — tanto como categoria teológica fundamental quanto como estrutura narrativa que sustenta toda a progressão das promessas divinas no Antigo Testamento. A aliança com Abraão constitui o primeiro pacto explícito entre Deus e um indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, personalista e universal, pois diz respeito à posteridade imediata de Abraão e, simultaneamente, a “todas as famílias da terra” (Gn 12:3). Tal aliança serve de modelo prototípico para todas as alianças subsequentes (com Israel, com Davi, e no Novo Testamento, com a Igreja). Ela também estrutura grande parte da teologia paulina e está na base das disputas inter-religiosas sobre eleição, pertença e identidade. Esta seção examina a natureza dessa aliança, seu sinal ritual (a circuncisão), e como as tradições judaica, cristã e islâmica a interpretaram e ressignificaram.

A. Natureza da aliança com Abraão

O conceito de “aliança” no contexto abraâmico é apresentado em três momentos distintos e progressivos: Gênesis 12, Gênesis 15 e Gênesis 17. Embora o termo hebraico בְּרִית (berît) apareça explicitamente apenas em Gênesis 15:18 e 17:2–21, as promessas feitas em Gênesis 12:1–3 já são prenunciadoras de um pacto que será desenvolvido e formalizado. A palavra berît, cuja etimologia permanece debatida, é geralmente entendida como “aliança”, “tratado” ou “pacto”. Embora tradicionalmente tenha sido relacionada à raiz brh (“comer junto”, ou “cortar”), hoje a maioria dos estudiosos vê berît como termo técnico semítico ocidental comum a tratados políticos e cerimoniais. A expressão “cortar uma aliança” (karat berît) — como ocorre em Gênesis 15:18 — remete a rituais de sangue e sacrifício, como o de partir animais ao meio para selar um compromisso irrevogável.

Em Gênesis 12:1–3, a promessa divina é tripla: (1) terra (“a terra que te mostrarei”), (2) descendência (“farei de ti uma grande nação”) e (3) bênção universal (“em ti serão benditas todas as famílias da terra”). Embora ainda não explicitada como aliança formal, essa promessa inaugura o relacionamento exclusivo entre YHWH e Abraão. A iniciativa é toda divina: Deus escolhe, ordena, promete. A resposta esperada de Abraão é obediência imediata e incondicional (“E partiu Abrão, como o Senhor lhe tinha dito”).

Em Gênesis 15, a aliança é ratificada por meio de ritual sangrento. Deus ordena que Abraão corte ao meio uma novilha, uma cabra, um carneiro, e coloque duas aves, conforme práticas de tratados do Antigo Oriente Próximo (cf. Jeremias 34:18). O versículo 17 narra: “E sucedeu que, posto o sol, houve escuridão, e eis um forno de fumaça, e uma tocha de fogo que passou por entre aqueles pedaços.” Esse gesto representa a passagem de Deus, tomando sozinho sobre si as obrigações do pacto, numa aliança unilateral — pois somente Deus passa entre os pedaços. O texto reforça a promessa da terra, agora com fronteiras definidas: “Desde o rio do Egito até ao grande rio, o Eufrates” (Gn 15:18–21).

Já em Gênesis 17, a aliança é formalizada com a instituição da circuncisão como seu sinal perpétuo. Aqui, o nome de Abrão é mudado para Abraão (“pai de uma multidão de nações”), e o de Sarai para Sara, e a aliança recebe contornos bilaterais e eternos (“Esta é a minha aliança, que guardareis”, Gn 17:10). A bênção é reafirmada como descendência numerosa, possessão perpétua da terra e a relação íntima com Deus: “Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti, e a tua descendência depois de ti, em suas gerações, como aliança perpétua, para ser o teu Deus e o de tua descendência” (Gn 17:7).

A análise desses três textos mostra um movimento dialético entre promessa e exigência, graça e responsabilidade, dom e resposta. Em Gênesis 15, o pacto é puramente promissório, enquanto em Gênesis 17 torna-se condicional à circuncisão. Isso gerará debates teológicos posteriores: Paulo, por exemplo, se apoia em Gênesis 15 para afirmar a justificação pela fé antes da circuncisão (Rm 4:9–11), enquanto a tradição judaica rabínica enfatiza Gênesis 17 como fundamento da identidade de Israel. A complexidade da aliança abraâmica reside, pois, em seu caráter multifásico, teocêntrico e universalizante.

B. A Circuncisão como Sinal da Aliança

A circuncisão (hebraico: מוּלָה mûlāh; verbo: מוּל mûl) é instituída como sinal físico da aliança entre Deus e Abraão em Gênesis 17:10–14. O texto estabelece a prática como obrigatória para todos os do sexo masculino, “ao oitavo dia” após o nascimento, como sinal eterno da aliança. A transgressão dessa norma acarretaria exclusão: “A alma que não for circuncidada será eliminada do seu povo, quebrou a minha aliança” (Gn 17:14). O gesto de cortar o prepúcio possui profundos significados rituais, teológicos e identitários. Ele marca a carne como lugar de pertença, grava o pacto no corpo e torna visível a submissão à palavra divina.

No judaísmo, a circuncisão (brit milah, בְּרִית מִילָה) é um dos rituais mais sagrados e irrevogáveis. Mesmo durante períodos de perseguição (como sob Antíoco Epifânio ou o Império Romano), judeus continuaram a praticá-la, sob risco de vida, reafirmando sua fidelidade à aliança abraâmica. O Talmude (Shabbat 137a) estabelece que a circuncisão antecede a própria Lei do Sinai e é condição indispensável para participação plena no povo de Israel. Abraão, segundo Gênesis 17:23–27, circuncidou-se com 99 anos, junto com Ismael e todos os homens de sua casa, servindo como paradigma de obediência absoluta.

No cristianismo, especialmente na teologia paulina, a circuncisão perde seu valor como exigência para pertença ao povo de Deus. Paulo argumenta, com base em Gênesis 15:6, que Abraão foi justificado antes de ser circuncidado — logo, “a circuncisão é selo da justiça da fé” (Rm 4:11), não a condição dela. Em Colossenses 2:11–12, Paulo fala de uma “circuncisão feita sem mãos”, associando-a ao batismo. A “circuncisão do coração” (cf. Rm 2:28–29) se torna a marca dos cristãos, deslocando o sinal externo para a interioridade ética e espiritual.

No islã, a circuncisão (khitān, ختان) não é mencionada explicitamente no Alcorão, mas é considerada sunnah do Profeta e vinculada diretamente à tradição de Ibrāhīm, que é descrito como “ḥanīf” e “musulmano” antes mesmo da revelação corânica. O ḥadīth sahih narra que Ibrāhīm se circuncidou com 80 anos. A prática é amplamente difundida no mundo islâmico, tanto por razões religiosas quanto de pureza ritual. Embora não seja obrigatória no nível corânico, é considerada uma “fitrah” — disposição natural do ser humano — e, portanto, fortemente recomendada. A circuncisão, no islã, simboliza a continuidade da submissão de Ibrāhīm a Allāh, sendo vista como um dos traços distintivos dos muçlim (submissos).

Em síntese, a circuncisão, originada como sinal da aliança de Gênesis 17, assume significados diferentes nas três tradições abraâmicas:

  • No judaísmo, é identidade física e pacto perene;
  • No cristianismo, é substituída por um sinal espiritual;
  • No islã, é uma prática profética que confirma a fidelidade à tradição de Ibrāhīm.

C. A permanência e reinterpretação da aliança nas tradições religiosas

A aliança de Deus com Abraão é um eixo teológico que percorre e molda as três grandes tradições abraâmicas — judaísmo, cristianismo e islã — mas cada uma a interpreta à sua maneira, enfatizando diferentes aspectos de continuidade, desdobramento ou superação. Se no texto bíblico a aliança é descrita como “perpétua” (Gn 17:7, 13, 19), a forma como tal perpetuidade se manifesta nas gerações subsequentes é objeto de profunda reflexão e, muitas vezes, de tensão teológica.

No judaísmo, a aliança abraâmica é concebida como base permanente da identidade de Israel, anterior à Torá e não anulada por ela. A berît de Gênesis 17 é lida como irrevogável, pois não depende da observância da Lei, ao contrário da aliança sinaítica, que é condicional. Por isso, mesmo judeus seculares ou não praticantes são considerados participantes dessa aliança nacional. O sinal da circuncisão marca a pertença à descendência física de Abraão e, portanto, à aliança. Rabinos clássicos como Rashi e Ramban afirmam que a aliança abraâmica continua válida independentemente da fidelidade do povo, pois foi jurada pelo próprio Deus. No entanto, essa aliança também exige, segundo a tradição, uma resposta ética e prática, especialmente a observância da justiça e da hospitalidade — virtudes exemplificadas por Abraão.

No cristianismo, a aliança com Abraão é reinterpretada como protoconceito do Evangelho. Paulo, especialmente, defende que a promessa feita a Abraão não foi anulada pela Lei mosaica (Gl 3:17), mas encontra seu cumprimento pleno em Cristo: “A promessa foi feita a Abraão e ao seu descendente [...] que é Cristo” (Gl 3:16). A fé em Cristo é a verdadeira descendência de Abraão: “Se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros segundo a promessa” (Gl 3:29). Assim, os gentios passam a ser incluídos na bênção da aliança por meio da fé, e não da linhagem étnica. A aliança se universaliza, mantendo-se fiel à promessa original: “Em ti serão benditas todas as nações da terra” (Gn 12:3). A teologia da Nova Aliança, especialmente em Hebreus 8–10, não é concebida como ruptura absoluta, mas como cumprimento e plenitude da aliança abraâmica em um novo estágio revelacional, selado pelo sangue de Cristo.

No islã, a aliança é vista como real e legítima, mas sua continuidade espiritual se dá por meio de Ismael e da submissão de Ibrāhīm a Allāh. O Alcorão afirma que Deus fez uma aliança com Abraão e seus descendentes, mas a adverte: “A minha aliança não se estende aos injustos” (Q 2:124 — lā yanālu ʿahdī al-ẓālimīn). Para a teologia islâmica, o critério de pertença à aliança é a justiça, ou seja, a retidão moral e a submissão plena a Deus (islām). A linhagem física é valorizada, mas não é determinante: a verdadeira descendência de Abraão é espiritual e ética, não apenas genealógica. Ao lado disso, a tradição vê na Kaaba (construída por Abraão e Ismael) e nas práticas do ḥajj a perpetuação da aliança divina iniciada com Ibrāhīm. O Islã reivindica continuidade e retificação: aceita as revelações anteriores, mas considera-se a expressão mais pura e final da aliança monoteísta.

Dessa forma, a aliança abraâmica permanece como categoria central em todas as três religiões, mas seu conteúdo, forma de transmissão e povo beneficiário são objeto de diferentes teologias. Enquanto o judaísmo enfatiza a continuidade genealógica e ritual, o cristianismo privilegia a fé universal em Cristo como verdadeira linhagem, e o islã reafirma a submissão ética como critério de pertença ao pacto divino. A figura de Abraão e sua aliança tornam-se, assim, o campo de articulação e também de tensão entre identidade, eleição e salvação.

D. A aliança e o tema da eleição

O vínculo entre aliança e eleição divina é uma das dimensões mais densas da narrativa de Abraão. A eleição — o fato de Deus ter escolhido Abraão entre todos os povos da terra — é apresentada sem explicação causal aparente. Gênesis 12 simplesmente afirma: “Ora, o Senhor disse a Abrão: sai da tua terra…” A teologia bíblica lê esse gesto como expressão da soberania divina, não da superioridade moral ou mérito humano. Abraão é eleito, não por ser justo, mas para se tornar instrumento de bênção universal.

Contudo, essa eleição não é isenta de exigência. Gênesis 18:19 explicita: “Porque o escolhi, para que ordene a seus filhos e à sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor, praticando justiça e juízo…” Aqui se vê a dimensão ética da eleição: ela visa formar uma comunidade que reflita os atributos de YHWH, especialmente a justiça (ṣĕḏāqāh) e o juízo (mišpāṭ). Abraão é, assim, paradigma do “eleito responsável”, não do “eleito privilegiado”. A eleição, longe de ser exclusivista, visa à inclusão: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3; 18:18).

Essa tensão entre eleição particular e missão universal percorre toda a teologia judaica posterior. O povo judeu é escolhido, mas para testemunhar entre as nações. No entanto, com o passar dos séculos, o conceito de eleição foi sendo cada vez mais associado a uma identidade étnica e ritual, sobretudo após o exílio e a separação dos povos gentílicos. A aliança de Abraão fornece o fundamento dessa identidade, que se expressa no pertencimento genealógico e no cumprimento de sinais como a circuncisão.

O cristianismo, por sua vez, radicaliza a reinterpretação: a eleição não é mais baseada na carne, mas no espírito. Paulo afirma que “nem todos os descendentes de Israel são Israel” (Rm 9:6), e que “os filhos da promessa são contados como descendência” (Rm 9:8). A eleição abraâmica continua, mas se redefine a partir de Cristo, em quem judeus e gentios são feitos um só povo. A teologia da eleição paulina busca resolver a tensão entre fidelidade de Deus às promessas e o aparente fracasso de Israel em reconhecer o Messias. O eleito agora é aquele que crê como Abraão creu.

No islã, a eleição também é presente, mas fortemente vinculada à retidão pessoal e obediência a Allāh. Ibrāhīm é eleito porque “não era dos idólatras” (Q 6:74–79), e sua eleição é validada por sua submissão total. Não há eleição étnica no islamismo: Deus escolhe quem é puro de coração e submisso à Sua vontade. A umma (comunidade muçulmana) é vista como herdeira da aliança não por sangue, mas por conduta.

Assim, a eleição ligada à aliança de Abraão constitui um núcleo de convergência e contraste entre as tradições. No judaísmo, ela é corporativa e ritual; no cristianismo, é espiritual e universalizante; no islã, é ética e baseada na submissão. Mas em todas, Abraão é o paradigma do eleito obediente, que escuta, caminha e crê — e, por isso, se torna o ponto onde Deus e humanidade se encontram em um pacto de eternidade.

VI. Origem Histórica e Contexto Cultural de Abraão

A figura de Abraão, embora central na tradição bíblica e nas três religiões abraâmicas, levanta amplas questões quando abordada sob a ótica da historiografia, da arqueologia e da crítica das religiões comparadas. Este tópico investiga as bases históricas possíveis para sua existência, os debates sobre sua origem geográfica, os contextos sociais e religiosos nos quais sua trajetória teria se inserido, bem como os paralelos e possíveis correspondências extrabíblicas nos registros e tradições do antigo Oriente Próximo. A partir de evidências textuais, arqueológicas e literárias, buscar-se-á compreender em que medida é possível situar Abraão como uma figura histórica, quais os cenários culturais disponíveis nos séculos segundo os quais sua história é ambientada, e como as religiões antigas podem ter moldado ou refletido elementos que aparecem na narrativa patriarcal do Gênesis.

A. A questão da historicidade de Abraão

A questão da historicidade de Abraão tem sido um ponto central em debates acadêmicos, perpassando desde as primeiras abordagens da crítica bíblica até as investigações arqueológicas contemporâneas. Inscrições reais, listas de reis ou correspondência diplomática, não apresentam até o presente momento, nenhuma evidência direta ou nominal de um indivíduo chamado Abrão ou Abraão (hebraico: אַבְרָהָם, ʾAvrāhāṁ), que permita identificá-lo com certeza como uma figura histórica documentada. Contudo, essa ausência de comprovação extrabíblica não obstou as tentativas de situá-lo em um contexto histórico plausível. Tais esforços são particularmente evidentes em estudos que interpretam os ciclos patriarcais de Gênesis 12–25 como uma memória literária de tradições tribais que remontam ao segundo milênio a.C.

A Eerdmans Dictionary of the Bible e a Anchor Yale Bible Dictionary enfatizam que a figura de Abraão, embora não confirmada perfeitamente por documentação histórica primária extra-bíblica, deve ser avaliada à luz de estruturas sociais, nomes, práticas e padrões de vida nômade ou seminômade, tal como registrados em documentos mesopotâmios, cananeus, egípcios e hurritas. A maioria dos eruditos adotam uma perspectiva mais focada na construção literária, destacando a moldura teológica da narrativa, enquanto os mais céticos sugerem a possibilidade de Abraão ser uma figura histórica reelaborada por gerações posteriores, especialmente durante o exílio babilônico.

No século XX, pesquisadores como William F. Albright, associados à “arqueologia bíblica”, interpretaram os dados de Gênesis como preservadores de memórias tribais do período médio do segundo milênio a.C., situando Abraão entre 2000 e 1700 a.C. Essa datação foi baseada em paralelos identificados em nomes, tratados e práticas legais documentadas em sítios como Mari, Nuzi e Alalakh, na Mesopotâmia. No entanto, essa perspectiva foi substancialmente reavaliada por acadêmicos como Thomas L. Thompson, cuja obra The Historicity of the Patriarchal Narratives: The Quest for the Historical Abraham (1974), e John Van Seters, autor de Abraham in History and Tradition (1975). Estes argumentam que os ciclos patriarcais são construções literárias dos períodos do exílio ou pós-exílio (séculos VI–V a.C.), concebidos para unificar a narrativa de origem do povo judeu disperso. Essa corrente crítica, por vezes rotulada de “minimalista”, entende Abraão mais como uma construção teológica e literária do que uma figura histórica verificável. Em resposta a essa crítica, destacam-se obras como A. R. Millard e D. J. Wiseman, eds., Essays on the Patriarchal Narratives, 2nd ed. (1983).

1. Relevância arqueológica e paralelos culturais

Apesar da incerteza sobre a figura histórica de Abraão, descobertas arqueológicas têm lançado luz sobre o contexto cultural da narrativa abraâmica (Gênesis 11–25). Leis e costumes praticados na época atribuída a Abraão oferecem insights sobre os padrões de comportamento descritos na Bíblia, fornecendo plausibilidade cultural para diversos aspectos narrativos dos patriarcas, mesmo que não haja confirmação factual de sua existência como indivíduo.

2. Leis de herança e adoção

As extensas leis de herança descobertas nas escavações de Nuzi, junto ao rio Tigre, localidade próxima à moderna Quircuque, explicam a preocupação de Abraão em assegurar um herdeiro. Segundo essas leis, um homem sem filhos poderia adotar um servo ou escravo como herdeiro legal. Esse filho adotivo seria responsável pelos cuidados com o mestre, seu sepultamento, herdaria a propriedade e daria continuidade ao nome da família. A consideração de Eliezer como herdeiro por Abraão (Gênesis 15:1–4) é consistente com tais costumes. Caso um filho biológico nascesse após tal arranjo, a adoção seria anulada em favor do novo herdeiro.

Outra forma de providenciar um herdeiro era através de uma esposa-escrava. A obtenção de Ismael por Sara, via Hagar, é coerente com essa prática (Gênesis 16). Humanamente, Ismael seria o provável herdeiro por treze anos, até que a promessa de um filho biológico a Abraão e Sara fosse mais especificamente revelada (Gênesis 17), ocasião em que o rito da circuncisão foi instituído como sinal da aliança divina.

O Código de Hamurabi estipulava que uma escrava-esposa ou serva que desse à luz um filho para seu senhor não substituía a esposa sem filhos no lar. Contudo, a esposa não tinha o direito de despedir a escrava-esposa e seu filho. Quando Hagar, agindo com desdém, foi maltratada por Sara e fugiu, retornando apenas após uma intervenção divina, o nascimento de Ismael ocorreu (Gênesis 16). A expulsão subsequente de Hagar e seu filho por Abraão (Gênesis 21:11–21), segundo a narrativa, ocorreu somente após uma ordem divina, pois, de acordo com os costumes da época, Abraão não teria o direito legal de fazê-lo.

As escavações em Nuzu,  realizadas entre 1925 e 1941, revelaram milhares de tabletes datados do século XV a.C. Estes documentos lançaram luz sobre diversos aspectos do direito e dos costumes mesopotâmicos, muitos dos quais ressoam com as narrativas de Gênesis:

a. Obtenção de herdeiro via concubina

A prática de obter um herdeiro por meio de uma concubina ou esposa-escrava era, de fato, um recurso socialmente aceito e documentado na Antiguidade. As escavações em Nuzu, realizadas entre 1925 e 1941, foram cruciais para revelar milhares de tabletes cuneiformes do século XV a.C., que detalham leis e costumes hurritas e mesopotâmicos.

Esses registros mostram que, em sociedades onde a linhagem familiar e a continuidade da herança eram primordiais, a esterilidade da esposa principal era uma questão séria. Para contornar isso, era comum que a esposa, especialmente se fosse de status elevado e sem filhos, providenciasse uma serva para seu marido. Os filhos nascidos dessa união eram legalmente considerados filhos da esposa principal e, consequentemente, herdeiros legítimos. Este arranjo não apenas garantia a sucessão, mas também mantinha a dignidade e a posição da esposa principal dentro do lar.

Este costume legal e social elucida perfeitamente o episódio bíblico de Hagar e Ismael (Gênesis 16). Sara, sendo estéril, oferece sua serva egípcia Hagar a Abraão para que ele possa ter um filho através dela. A atitude de Sara, que à primeira vista pode parecer estranha para a mentalidade moderna, é plenamente compreensível e encontra comprovação na exatidão histórica dessas práticas documentadas em Nuzu. Essa correspondência entre a narrativa bíblica e os registros extrabíblicos de Nuzu serve como um forte indício da plausibilidade cultural e do enraizamento das histórias patriarcais em contextos históricos reais da Idade do Bronze.

b. Status da concubina

As leis da época indicavam que, embora a concubina não pudesse usurpar o lugar da esposa principal na casa, a esposa também não possuía o direito unilateral de expulsá-la. Isso justifica a relutância inicial de Abraão em afastar Hagar, sendo sua expulsão motivada, segundo a narrativa bíblica, por uma ordem divina explícita (Gênesis 21:12-21).

c. Leis de matrimônio, primogenitura e terafins

As escavações em Nuzu revelaram uma vasta gama de tabletes cuneiformes que ilustram profundamente as leis e costumes mesopotâmicos e hurritas, fornecendo notáveis paralelos com as narrativas bíblicas dos patriarcas. Além das regras de adoção e herança, esses documentos lançam luz sobre:

(1) Leis de Matrimônio: Os registros de Nuzu detalham práticas de casamento que ressoam com as descrições de Gênesis. Por exemplo, eles incluem disposições sobre casamentos arranjados, a dotação (preço da noiva), e as responsabilidades da esposa e do marido, o que se alinha com as dinâmicas familiares retratadas, como no caso de Abraão e Sara envolvendo Hagar (Gênesis 16:1-16).

(2) Primogenitura: Os tabletes também documentam a importância da primogenitura e as complexidades legais que podiam surgir em torno dela. Em Nuzu, havia registros de vendas de direitos de primogenitura e acordos sobre heranças que podiam ser influenciados por atos específicos ou decisões familiares. Isso é especialmente relevante para o episódio bíblico de Esaú vendendo sua primogenitura a Jacó por um prato de lentilhas (Gênesis 25:27-34), um evento que, à luz das leis de Nuzu, adquire uma dimensão de plausibilidade legal e cultural que transcende a mera anedota familiar.

(3) Terafins: Outro aspecto cultural iluminado por Nuzu é o dos terafins. Esses eram objetos que podiam ser estatuetas de divindades domésticas ou símbolos de autoridade familiar e direitos de herança. A posse dos terafins muitas vezes estava ligada à liderança familiar e à transmissão de bens. O furto dos terafins de Labão por Raquel (Gênesis 31:34) pode ser compreendido de forma mais rica ao se considerar que, em Nuzu, a posse desses objetos podia, em certos contextos, conferir direitos de herança ou até mesmo a liderança do clã. A apreensão de Labão ao descobrir o desaparecimento dos seus terafins sugere que o ato de Raquel tinha implicações muito mais profundas do que um simples roubo de ídolos, podendo ser uma tentativa de assegurar a posição de Jacó ou de seus descendentes na linhagem familiar.

A riqueza dos detalhes fornecidos pelos arquivos de Nuzu demonstra como as narrativas abraâmicas estão inseridas em um contexto social e jurídico consistente com o que sabemos do Antigo Oriente Próximo. Embora não “comprovem” a existência de Abraão, esses achados validam a verossimilhança cultural dos eventos e costumes descritos em Gênesis, reforçando a ideia de que os autores bíblicos estavam familiarizados com as práticas de sua época ou de épocas anteriores.

d. Descobertas em Mari: nomes e contexto

As escavações em Mari, um importante sítio arqueológico localizado próximo à moderna Abou Kemal, no médio Eufrates, revelaram um vasto arquivo de mais de 20.000 tabletes cuneiformes datados principalmente do século XVIII a.C. Essas descobertas fornecem um panorama rico da vida, da política e dos costumes do Antigo Oriente Próximo, oferecendo paralelos contextuais às narrativas patriarcais.

Nesses registros, foram encontrados nomes pessoais que guardam similaridade fonética com “Abrão” (אַבְרָם, ʾAvram) ou “Abraão” (אַבְרָהָם, ʾAvrāhām). Embora nenhuma conexão direta e inequívoca com o personagem bíblico tenha sido estabelecida, a ocorrência desses nomes na onomástica da região e período demonstra que não eram nomes incomuns.

O nome 𒀀 𒁀 𒊏 𒈬 (Abram), também registrado como Abiramu ou Abaramu, aparece em textos acadianos cuneiformes de Mari, Alalaḫ e outras regiões da Síria e Mesopotâmia do II milênio a.C. O nome é composto de elementos semíticos ocidentais comuns e costuma ser escrito de duas formas principais nas tábuas cuneiformes:

1. Forma: A-ba-ra-mu

Esta é a transliteração silábica mais frequente. Em sinais cuneiformes acadianos, seria representada da seguinte maneira no cuneiforme silábico:

𒀀 𒁀 𒊏 𒈬

𒀀 (A) – sinal silábico para “a”

𒁀 (ba) – silábico “ba”

𒊏 (ra) – silábico “ra”

𒈬 (mu) – silábico “mu”

2. Forma: A-bi-ra-mu

Outra variante, que reflete o nome Abiramu (“meu pai é exaltado”), é escrita assim no cuneiforme silábico:

𒀀 𒁉 𒊏 𒈬

𒀀 (A) – “a”

𒁉 (bi) – “bi”

𒊏 (ra) – “ra”

𒈬 (mu) – “mu”

Essas formas são encontradas em textos do período paleo-babilônico (século XIX–XVIII a.C.), especialmente em cartas e documentos administrativos da cidade de Mari, no médio Eufrates. Elas demonstram que nomes compostos com o elemento ab (“pai”) e ramu (“elevado”, “amado”, “exaltado”) já circulavam como nomes teofóricos ou familiares antes da redação das tradições bíblicas.

Apesar da semelhança nominal, é crucial ressaltar que a mera ocorrência de um nome similar não constitui prova da historicidade do personagem bíblico. Contudo, ela reforça a plausibilidade cultural e onomástica das narrativas, mostrando que os nomes e o contexto social de Gênesis se encaixam no cenário geral da Idade do Bronze.

e. Transações imobiliárias

O código de leis hitita, descoberto na antiga capital hitita de Boğazköy (atual Boğazkale), na Ásia Menor, datado do século XIV a.C., mas que reflete práticas do século XIX a.C., oferece paralelos com a compra de um local de sepultura por Abraão de Efrom (Gênesis 23). Segundo essas leis, a venda de uma propriedade integral implicava obrigações feudais, diferentemente da venda de apenas uma parte da terra. A estipulação de Efrom de vender toda a propriedade, e não apenas a caverna, provavelmente transferia a Abraão a responsabilidade por certos serviços feudais. A menção das árvores na propriedade, comum em documentos comerciais hititas, também é um detalhe que ressoa com a narrativa bíblica (Gênesis 23:11–18).

f. Aspectos culturais e contexto geográfico na Idade do Bronze

As investigações arqueológicas e o estudo de códigos legais antigos fornecem um panorama mais robusto para a compreensão das narrativas patriarcais, evidenciando a plausibilidade cultural de muitos de seus elementos.

1. A circuncisão como sinal da aliança

Embora a circuncisão fosse uma prática observada em várias culturas do Antigo Oriente, sua representação na narrativa de Abraão adquire um significado particular. Ela é estabelecida como um sinal distintivo do pacto divino (Gênesis 17:9-14), ligando a descendência física à promessa de Deus. Sua intrínseca conexão com a geração e a continuidade da linhagem a torna um símbolo apropriado e poderoso dessa aliança.

2. Legislação hitita e transações de propriedade

O código legal hitita, descoberto na antiga capital de Boğazköy, na Ásia Menor, é uma fonte crucial para entender as transações imobiliárias do período. Suas leis esclarecem a aquisição do campo para sepultamento por Abraão. Os textos hititas revelam que a venda de uma propriedade rural completa frequentemente acarretava obrigações feudais específicas, diferentemente da simples compra de uma porção de terra.

Quando Abraão expressou o desejo de adquirir apenas a caverna de Macpela, Efrom, o proprietário, insistiu na venda da propriedade inteira. Essa exigência sugere que, ao comprar o campo, Abraão provavelmente assumiu também responsabilidades feudais associadas ao terreno. Além disso, a inclusão detalhada das árvores da propriedade no documento de venda (cf. Gênesis 23:17ss) é um elemento recorrente em documentos hititas de transação, reforçando a plausibilidade cultural e legal da descrição bíblica.

g. Canaã na Idade do Bronze Médio: Geopolítica e Assentamentos

A migração de Abraão de Harã para a terra de Canaã após a morte de Terá (Gênesis 12:4-5) encontra respaldo no cenário demográfico da Idade do Bronze Médio (c. 2000-1500 a.C.). As descrições em Gênesis, que retratam os patriarcas percorrendo as colinas da Palestina central e as terras áridas do sul, são coerentes com o registro arqueológico, que indica uma população esparsa nessas áreas durante o período. Essa baixa densidade populacional teria facilitado os movimentos dos grupos patriarcais, minimizando conflitos por território.

Adicionalmente, as cidades mencionadas nas narrativas patriarcais como locais habitados na época — incluindo Mispa, Gibeá, Siquém, Betel, Dotã, Gerar, Jerusalém (Salém) e Beerseba — foram todas identificadas em escavações arqueológicas. A história desses assentamentos antigos, revelada pelos achados arqueológicos, corrobora o contexto geográfico e demográfico geral no qual as narrativas bíblicas situam os patriarcas.

B. Local de origem: Ur dos Caldeus ou Harã?

A localização da origem de Abraão é descrita em Gênesis 11:28, 31 como “Ur dos Caldeus” (אוּר כַּשְׂדִּים, ʾUr Kaśdîm), mas esta identificação geográfica tem sido objeto de debates prolongados na exegese e na arqueologia bíblica. Tradicionalmente, Ur Kaśdîm foi identificada com a célebre cidade suméria de Ur, localizada no sul da Mesopotâmia, próximo ao golfo Pérsico, escavada por Sir Leonard Woolley nos anos 1920–30. Essa cidade apresenta monumentalidade, registros literários e práticas religiosas complexas, como o culto à deusa lunar Nanna/Sîn, o que reforça a ambientação urbana do início da narrativa. A New Catholic Encyclopedia e a Anchor Yale reiteram essa identificação tradicional, ainda que com cautela quanto à cronologia.

No entanto, essa associação enfrenta dois problemas principais. Primeiro, o anacronismo do termo “Caldeus” (כַּשְׂדִּים, Kaśdîm), que historicamente só aparece na região da Babilônia por volta do século IX a.C., levanta dúvidas sobre a autenticidade ou origem tardia dessa expressão no texto. Segundo, a rota migratória apresentada em Gênesis 11:31–12:4 indica que Terá e Abrão partiram de Ur em direção ao norte, mas pararam e se estabeleceram em Harã, no Alto Eufrates — uma localização mais coerente com os padrões de movimentação tribal e caravaneira.

Alguns estudiosos, como Cyrus H. Gordon e mais recentemente Kenneth Kitchen, sugerem que a “Ur” mencionada pode se referir a uma cidade no norte da Mesopotâmia, como Urfa (moderna Şanlıurfa, na Turquia), mais próxima de Harã e conectada ao mundo aramaico e hurrita. A hipótese de uma Ur setentrional evita o anacronismo caldeu e se harmoniza com as rotas comerciais e os movimentos de migração semita documentados nos arquivos de Mari e nas listas topográficas egípcias.

A cidade de Harã, por sua vez, é atestada como centro de culto lunar e sede de caravanas desde o segundo milênio a.C. Era importante rota entre o sul da Mesopotâmia, o Levante e a Anatólia, figurando como ponto de parada natural para tribos nômades em movimento. A Eerdmans Dictionary observa que o assentamento prolongado da família de Terá em Harã (Gn 11:31–32) pode indicar uma residência principal antes da migração definitiva de Abraão para Canaã.

Embora a localização exata de “Ur Kaśdîm” permaneça incerta, o texto bíblico parece apresentar um movimento do sul para o norte (Ur → Harã) e então para o sudoeste (Harã → Canaã), refletindo possivelmente uma tradição oral de longa migração, posteriormente sistematizada em uma sequência linear na redação final do Pentateuco.

C. O ambiente religioso e cultural da mesopotâmia

Abraão surge, segundo o relato bíblico, de um ambiente profundamente marcado pelas práticas religiosas mesopotâmicas. Ur e Harã eram centros de culto à divindade lunar Nanna/Sîn, um deus masculino associado à fertilidade, ao ciclo do tempo e à justiça. O templo principal de Nanna em Ur, o E-gish-nu-gal, e o templo de Harã, o Ehulhul, estavam entre os mais importantes santuários da religião suméria e acadiana. A prática de astrologia, divinação por fígado (hepatoscopia), encantamentos e ritos funerários complexos eram difundidos, e a família de Terá — cujo nome pode ser derivado de uma forma teofórica (Tirhu/Terah ligado a Nanna) — pode ter sido integrada a esse contexto devocional.

O livro de Josué 24:2 ecoa essa realidade ao afirmar: “No tempo antigo, os vossos pais… habitavam da lém do Eufrates e serviam a outros deuses”. A crítica tradicional interpreta isso como evidência de que Terá e seus filhos participaram dos cultos politeístas da Mesopotâmia. Essa ideia é reforçada nas tradições judaicas rabínicas posteriores, como no Midrash Bereshit Rabbah 38:13, que descreve Terá como fabricante de ídolos.

A cultura suméria e acadiana da época de Ur incluía uma rica literatura religiosa, com hinos, lamentações e mitos cosmogônicos, como a Epopéia de Gilgámesh, que apresenta paralelos formais com os ciclos de Gênesis, especialmente nos temas de longevidade, dilúvio, cidade e civilização. A Enciclopédia Judaica observa que a figura de Abraão emerge como uma antítese ética e teológica desse mundo: ao invés de permanecer no ciclo de culto aos astros e às cidades, ele se torna nômade, adere ao monoteísmo e caminha em direção a uma promessa divina que transcende os sistemas cultuais estabelecidos.

Ainda que a Bíblia não descreva diretamente a religião de Ur, o pano de fundo sumério-acadiano parece ser deliberadamente contrastado na figura de Abraão como “aquele que saiu” (cf. Gênesis 12:1), simbolizando ruptura com a cosmovisão mítica e o politeísmo astrológico, em direção a uma relação direta com o Deus Único.

D. As possíveis conexões com tradições extrabíblicas

Várias tradições extrabíblicas — provenientes da Mesopotâmia, da literatura hurrita, dos mitos cananeus e das culturas do Antigo Oriente Próximo — foram evocadas em estudos que tentam compreender os ciclos patriarcais à luz de um horizonte cultural mais amplo. Ainda que nenhuma delas mencione o nome de Abrão ou Abraão diretamente, diversas estruturas narrativas, temas simbólicos e nomes pessoais documentados em registros arqueológicos ecoam aspectos dos relatos bíblicos.

O primeiro grupo de tradições a ser considerado provém da literatura sumério-acadiana, que inclui os Textos de Nippur, os códigos legais de Ešnunna e Lipit-Ištar, e os textos de Mari, este último mencionado anteriormente. Nesses documentos, como vimos, especialmente os arquivos de Mari (século XVIII a.C.), aparecem nomes pessoais semíticos ocidentais (amoritas), com estruturas semelhantes a Abrão e Saraí. Além disso, há registros de contratos legais envolvendo figuras patriarcais, adoção de herdeiros, disposições matrimoniais e heranças que refletem práticas similares às descritas em Gênesis — como a entrega de uma serva à esposa estéril, a adoção de um sobrinho como herdeiro, ou o uso de juramentos solenes entre clãs nômades.

Ainda mais sugestivas são as tradições hurritas, presentes especialmente nos arquivos de Nuzi (século XV a.C.). Ali, a prática de adoção de escravos como herdeiros, os contratos que envolvem esposas estéreis cedendo servas a seus maridos, e os arranjos de primogenitura e herança por meio de testamentos tribais, fornecem paralelos notáveis à relação entre Abraão, Sara e Agar. Embora não haja qualquer evidência de que os autores de Gênesis tenham consultado diretamente esses documentos, a presença de estruturas semelhantes sugere que tais práticas estavam amplamente difundidas no ambiente semítico do segundo milênio a.C., sendo absorvidas nas tradições orais que alimentaram os ciclos patriarcais.

Outros estudos têm observado possíveis ecos de Abraão em tradições míticas da literatura ugarítica. Embora o nome Abraão não apareça em nenhum dos textos de Ras Shamra (século XIII a.C.), os mitos ugaríticos apresentam figuras como Danel e Keret, reis justos, pais de famílias numerosas, e personagens que interagem com deuses por meio de promessas, votos e bênçãos herdadas, elementos que ressoam com os temas de aliança e descendência presentes em Gênesis 12–22. Os paralelos não indicam dependência textual, mas um pano de fundo narrativo comum, partilhado por povos semitas do Levante setentrional.

Na tradição egípcia, embora não haja alusão direta a Abraão, há menções em textos administrativos a grupos de nômades semitas — chamados Shasu, Habiru ou ‘Apiru — que se moviam pelas fronteiras orientais do delta do Nilo e do Sinai, especialmente nas fontes do Império Novo. Alguns autores consideram possível que Abraão tenha pertencido a uma dessas confederações tribais. O termo Habiru, registrado nas Cartas de Amarna (século XIV a.C.), refere-se a grupos marginalizados, muitas vezes envolvidos em alianças locais ou migrações. Embora a relação entre Habiru e os hebreus seja altamente debatida, a semelhança terminológica e a condição itinerante podem oferecer pistas quanto à matriz social de Abraão.

Por fim, nas tradições siriaco-aramaicas posteriores, como os Targumim e o Midrashim, há o esforço contínuo de conectar Abraão a outras figuras lendárias da antiguidade oriental. Um exemplo significativo é a tentativa de associá-lo ao rei Nimrode (נִמְרוֹד), apresentado como seu adversário ideológico — defensor da idolatria, da astrologia e do poder político centralizador. Essas narrativas, embora muito posteriores, demonstram a tentativa judaica de inserir Abraão num quadro mais amplo de confrontos entre o verdadeiro conhecimento de Deus e os falsos sistemas religiosos dos povos antigos.

A ausência de menção explícita a Abraão nos registros extrabíblicos contemporâneos, portanto, não equivale a ausência de material relevante. Em vez disso, os paralelos formais, temáticos e legais encontrados nessas tradições oferecem um ambiente cultural plausível para o surgimento e preservação das tradições patriarcais, mesmo que a identificação histórica direta permaneça inacessível.

E. O papel de Abraão na crítica histórico-literária moderna

Na crítica histórico-literária moderna, a figura de Abraão é abordada como resultado de um processo redacional e composicional que abrange diversos estágios do desenvolvimento do Pentateuco. Esse processo é geralmente compreendido por meio da hipótese das fontes, que identifica camadas textuais distintas dentro do material de Gênesis — como a fonte javista (J), a eloísta (E) e a sacerdotal (P). Cada uma dessas fontes teria oferecido versões diferentes ou complementares da narrativa de Abraão, posteriormente harmonizadas pelos compiladores finais.

Na tradição javista, que privilegia um estilo narrativo fluido e antropomórfico, Abraão aparece como o homem da fé, que dialoga com Deus em termos íntimos (como no episódio de Sodoma, Gn 18). Na tradição eloísta, a figura de Abraão é caracterizada por sua obediência e temor reverente, sendo ressaltadas as visões e a ação do “Anjo do Senhor”. Já a fonte sacerdotal reorganiza a narrativa, incorporando genealogias precisas, datas e instituições como a circuncisão (Gn 17), destacando Abraão como o portador da aliança eterna com Deus e o iniciador da identidade étnico-religiosa de Israel.

A crítica moderna também analisa Abraão à luz dos gêneros literários que compõem os ciclos patriarcais: lendas etiológicas, narrativas de promessas, testamentos e contos familiares. Tais gêneros não visam relatar uma biografia histórica no sentido moderno, mas construir um protótipo ancestral a partir do qual o povo de Israel compreende sua origem, sua relação com a terra e com o Deus da aliança. Nesse sentido, Abraão representa menos um indivíduo documentável e mais um símbolo literário de eleição, fidelidade e bênção.

Diversos estudiosos apontam que a composição final dos ciclos patriarcais, tal como os lemos hoje, teria ocorrido no exílio babilônico ou no pós-exílio (século VI–V a.C.), quando os autores sacerdotais buscaram construir uma narrativa unificada de origem para o povo disperso. A seleção de temas como migração, esterilidade, promessa divina, e conflito com reis estrangeiros reflete as angústias e esperanças de um povo em reconstrução. Abraão é, nesse contexto, o paradigma de ruptura com o passado e adesão ao Deus único, projetando sobre ele os valores fundacionais da fé israelita.

A crítica literária também se ocupa das duplicações e tensões internas nos relatos de Abraão, como os dois episódios em que ele apresenta Sara como sua irmã (Gn 12 e Gn 20), ou a coexistência de duas tradições sobre a aliança (Gn 15 e Gn 17). Tais duplicações são entendidas como vestígios de fontes distintas, que foram preservadas em razão de sua autoridade religiosa ou seu valor teológico complementar. Em vez de eliminá-las, os redatores finais preferiram mantê-las lado a lado, compondo um retrato multifacetado do patriarca.

Assim, na crítica histórico-literária moderna, Abraão é simultaneamente um personagem composto, um símbolo teológico e uma memória cultural viva — cuja trajetória literária reflete as diversas etapas da autocompreensão de Israel ao longo dos séculos.

VII. Interpretações da História

Existem escritores, tanto na antiguidade quanto nos tempos modernos, que, sob diversas perspectivas, interpretaram a pessoa e a trajetória de Abraão de forma diferente do que ela se apresenta: como as experiências reais de uma pessoa humana chamada Abraão. Essas diversas visões podem ser classificadas de acordo com o motivo ou impulso que, segundo eles, levou à criação dessa história na mente de seu(s) autor(es).

A. A interpretação alegórica

O tratado de Fílon sobre Abraão possui títulos alternativos como “Sobre a Vida do Homem Sábio Aperfeiçoado pela Instrução, ou, Sobre a Lei Não Escrita”. Para Fílon, a vida de Abraão não é uma história que serve para ilustrar essas coisas, mas sim uma alegoria pela qual essas coisas são corporificadas. O uso que Paulo faz do episódio de Sara-Agar em Gálatas 4:21-31 pertence a esse tipo de exposição (veja allēgoroúmena, Gálatas 4:24), do qual há também alguns outros exemplos em suas epístolas; contudo, inferir disso que Paulo compartilhava da atitude geral de Fílon em relação à narrativa patriarcal seria injustificado, uma vez que seu uso desse método é incidental, excepcional e meramente corroborativo de pontos já estabelecidos por sólida razão.

B. A teoria da personificação

Assim como para Fílon Abraão é a personificação de um certo tipo de humanidade, para alguns escritores modernos ele é a personificação da nação hebraica ou de uma tribo pertencente ao grupo hebraico. Essa visão, que de fato é muito difundida em relação às figuras patriarcais em geral, apresenta muito mais dificuldades em sua aplicação específica a Abraão do que aos outros, a ponto de ter sido rejeitada no caso de Abraão mesmo por alguns que a adotaram para figuras como Isaque, Ismael e Jacó.

Assim, Meyer (Die Israeliten und ihre Nachbarstamme, p. 250; compare também a nota na p. 251), falando de sua opinião anterior, reconhece que, na época em que ele “considerava provada a afirmação de Stade de que Jacó e Isaque eram tribos”, mesmo então ele “ainda reconhecia Abraão como uma figura mítica e originalmente um deus.” Uma diferenciação similar de Abraão em relação aos demais é verdadeira para a maioria dos outros aderentes das visões que serão mencionadas. Daí também Wellhausen dizer (Prolegomena 6, 317): “Apenas Abraão certamente não é um nome de um povo, como Isaque e Ló; ele é, de qualquer forma, ambíguo. Não nos atrevemos, é claro, por essa razão, a considerá-lo neste contexto como uma personagem histórica; em vez disso, ele poderia ser uma criação livre da ficção inconsciente. Ele é provavelmente a figura mais jovem nesta companhia e parece ter sido colocado apenas em uma data relativamente tardia antes de seu filho Isaque.”

C. A teoria mítica

Popularizada por Nöldeke (Im neuen Reich (1871), I, 508ss) e adotada por outros estudiosos, especialmente no caso de Abraão, a visão de que os patriarcas eram antigas divindades ganhou aceitação geral entre aqueles que negavam a historicidade do Gênesis. Desse estado relativamente elevado, argumentava-se, eles teriam decaído para o plano de meros mortais (embora com resquícios de herói ou mesmo semideus visíveis aqui e ali) no qual aparecem em Gênesis.

Uma nova fase dessa teoria mítica foi desenvolvida na elaboração por Winckler e outros de sua astroteologia do mundo babilônico, na qual a adoração de Abraão como o deus-lua pelos semitas da Palestina desempenha um papel. A origem tradicional de Abraão o conecta a Ur e Harã, centros importantes do culto lunar. Além desse fato, os argumentos utilizados para estabelecer essa identificação de Abraão com Sīn podem ser julgados pelos seguintes exemplos: “Quando a consorte de Abraão tem o nome Sara, e uma das mulheres entre suas relações mais próximas o nome Milca, isso dá o que pensar, pois esses nomes correspondem precisamente aos títulos das divindades femininas adoradas em Harã ao lado do deus-lua Sīn. Acima de tudo, porém, o número 318, que aparece em Gênesis 14:14 em conexão com a figura de Abraão, é convincente porque esse número, que certamente não tem valor histórico, só pode ser explicado satisfatoriamente a partir do círculo de ideias da religião lunar, visto que no ano lunar de 354 dias há exatamente 318 dias em que a lua é visível – deduzindo 36 dias, ou três para cada um dos doze meses, em que a lua é invisível” (Baentsch, Monotheismus, p. 60s). Apesar dessa certeza, no entanto, nada superaria o escárnio com que essas combinações e conjecturas de Winckler, A. Jeremias e outros dessa escola são recebidas por aqueles que, na verdade, diferem deles em relação a Abraão em pouco, exceto na resposta à pergunta: qual divindade era Abraão (veja, por exemplo, Meyer, op. cit., p. 252s, p. 256s).

D. A Teoria da “Saga”

Gunkel (1964), ao insistir na semelhança da narrativa patriarcal com as “sagas” de outros povos primitivos, chama a atenção tanto para os traços humanos de figuras como Abraão quanto para a origem muito antiga do material incorporado em nosso livro atual de Gênesis. Primeiramente como histórias circuladas oralmente, depois como histórias registradas por escrito, e finalmente como várias coleções ou grupos de tais histórias formadas em um ciclo, as narrativas de Abraão, assim como as narrativas de Jacó e as narrativas de José, cresceram através de uma longa e complexa história literária.

Gressmann (op. cit, p. 9-34) aprimora os resultados de Gunkel, aplicando a eles os princípios de desenvolvimento literário primitivo estabelecidos pelo Professor Wundt em sua Völkerpsychologie. Ele sustenta que o cerne das narrativas de Abraão é uma série de contos de fadas, de difusão internacional e origem desconhecida, aos quais foi dada “uma habitação e um nome local” ao associá-los ao nome (ex hypothesi) então comum de Abraão (similarmente Ló, etc.) e ligá-los à região mais próxima do deserto da Judeia, o lar de seus autores, ou seja, em torno de Hebrom e do Mar Morto (Veja MAR MORTO). Uma alta antiguidade (1300-1100 a.C.) é afirmada para essas histórias, sua precisão surpreendente em detalhes, onde quer que possam ser testadas por tradições extrabíblicas, é concedida, assim como a probabilidade de que, “embora muitos enigmas ainda permaneçam sem solução, muitas outras tradições serão esclarecidas por novas descobertas” da arqueologia.

VIII. A Morte de Abraão

A morte de Abraão é narrada em Gênesis 25:7–10, e constitui não apenas o encerramento biográfico de um dos patriarcas fundacionais da tradição bíblica, mas também uma transição teológica significativa na narrativa do Pentateuco. O texto declara: “Estes, pois, são os dias dos anos da vida de Abraão: cento e setenta e cinco anos. Expirou Abraão, morrendo em boa velhice, ancião e farto de dias; e foi reunido ao seu povo. Sepultaram-no Isaque e Ismael, seus filhos, na caverna de Macpela, no campo de Efrom, filho de Zôar, o heteu, que está em frente de Manre, o campo que Abraão comprara dos filhos de Hete; ali foi sepultado Abraão, e Sara, sua mulher” (Gn 25:7–10).

A expressão hebraica וַיִּגְוַע וַיָּמָת בְּשֵׂיבָה טוֹבָה זָקֵן וְשָׂבֵעַ (vayyigvaʿ vayyāmōt bəśēvāh ṭōvāh zāqēn wəśāvēaʿ) — “e expirou, e morreu em boa velhice, idoso e satisfeito” — é uma fórmula tradicional hebraica de óbito, que aparece também nas mortes de Isaque (Gn 35:29) e Davi (1Cr 29:28). O termo וַיִּגְוַע (vayyigvaʿ, “expirou”) deriva da raiz גָּוַע (gāvaʿ), que é distinta de morrer fisicamente (מוּת, mût), pois frequentemente indica a partida do espírito ou a transição para a condição dos mortos, reforçada pela expressão subsequente וַיֵּאָסֶף אֶל־עַמָּיו (vayyēʾāsēf ʾel-ʿammāw, “foi reunido ao seu povo”), o que, embora algumas vezes lido como um eufemismo, carrega no hebraico antigo uma dimensão teológica de continuidade com os ancestrais (cf. Gn 15:15; Nm 20:24; Dt 32:50). A frase não implica sepultamento comum, visto que Abraão foi enterrado separadamente dos seus antepassados físicos, mas sim aponta para a ideia de que ele compartilhou o mesmo destino post mortem, sugerindo uma concepção inicial de existência pós-vida ou comunhão espiritual.

O local da sepultura — a caverna de Macpela, diante de Manre, também chamada Hebrom — é consistentemente enfatizado em Gênesis (cf. Gn 23:17–20; 49:29–32). Trata-se do primeiro local de terra oficialmente adquirido por Abraão em Canaã, comprado de Efrom, o heteu, por 400 siclos de prata (Gn 23:16), o que marca um momento importante tanto na teologia da promessa da terra quanto na antropologia bíblica da morte. O verbo hebraico usado para “comprar” em Gn 23:16–20 é קָנָה (qanāh), que remete não apenas a aquisição comercial, mas à posse legítima e legal perante testemunhas, o que reforça a noção de Canaã como herança perene prometida por Deus (Gn 15:7). O campo de Macpela torna-se, portanto, o primeiro marco tangível da realização parcial da promessa divina da terra, e ao mesmo tempo o símbolo de que, embora Abraão não tenha visto o cumprimento total da promessa em vida, sua morte está enraizada na fé na fidelidade de YHWH (cf. Hb 11:8–13).

Do ponto de vista literário, é notável que Ismael comparece junto a Isaque no sepultamento (Gn 25:9), restaurando simbolicamente a unidade familiar, embora com implicações distintas na tradição posterior (cf. Gn 21:10–21). Tal detalhe prefigura o reconhecimento mútuo entre os descendentes dos dois filhos, e lança luz sobre a complexa genealogia espiritual de Abraão como “pai de muitas nações” (Gn 17:5), cuja influência ultrapassa os limites de uma linhagem étnica única.

A morte de Abraão, portanto, longe de ser apenas uma nota biográfica, insere-se em um contexto mais amplo de teologia da aliança, da fé e da herança escatológica. Ele morre “satisfeito”, não por ter recebido tudo, mas por ter confiado em tudo (cf. Rm 4:18–22), tornando-se, na tradição paulina, “pai de todos os que creem” (Rm 4:11). A localização da sua sepultura em Hebrom ainda hoje é um ponto de convergência sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos — testemunho vivo da permanência da memória de Abraão como arquétipo do fiel obediente.

IX. Abraão no Novo Testamento

A figura de Abraão ocupa lugar de destaque em todo o Novo Testamento, onde aparece como um paradigma da fé, da obediência e da justificação. Sua menção não é periférica, mas estruturante da teologia apostólica — especialmente nas epístolas de Paulo, na carta aos Hebreus, nos Evangelhos e até em textos apocalípticos como Lucas 16. O nome “Abraão” (Ἀβραάμ [Abraám]) aparece mais de 70 vezes no Novo Testamento, sendo constantemente invocado como fundamento de autoridade, símbolo da eleição, referência genealógica e arquétipo espiritual. A teologia do Novo Testamento reconfigura a descendência de Abraão à luz de Cristo, convertendo-a de uma questão étnica para uma realidade pneumatológica e escatológica.

Na teologia paulina, sobretudo em Romanos 4 e Gálatas 3, Abraão se torna a figura central da justificação pela fé. Paulo afirma que Abraão foi considerado justo não pelas obras da Lei, mas por ter crido na promessa: “Pois o que diz a Escritura? ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça’” (Rm 4:3, citando Gn 15:6). Essa afirmação constitui o cerne da doutrina da salvação em Paulo. A justiça, segundo ele, não depende de etnia, de Lei ou de obras, mas da fé que segue o modelo abraâmico. Em Romanos 4:11, Paulo o chama de “pai de todos os que creem, mesmo não sendo circuncidados”. O versículo seguinte amplia: “E também pai da circuncisão, para os que não somente são da circuncisão, mas também andam nas pisadas daquela fé que nosso pai Abraão teve antes de ser circuncidado” (Rm 4:12). A herança de Abraão, portanto, não é transmitida pela carne, mas pela fé — um tema reiterado em Gálatas 3:7: “Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de Abraão.”
Esse reposicionamento é teologicamente revolucionário, pois redefine a identidade do povo de Deus: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: ‘e às descendências’, como falando de muitas, mas como de uma só: ‘e à tua descendência’, que é Cristo” (Gl 3:16). Em outras palavras, Cristo é o verdadeiro descendente de Abraão, e aqueles que estão em Cristo são herdeiros da promessa. Isso culmina em Gálatas 3:29: “E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros segundo a promessa.”

Esse ensino tem também um aspecto escatológico. Em Hebreus 11, Abraão é citado entre os heróis da fé: “Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu” (Hb 11:8). O texto enfatiza que ele partiu sem saber para onde ia, habitou em tendas, e “esperava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador” (Hb 11:10). Assim, o patriarca se torna modelo de esperança escatológica — um peregrino que não busca o que é terreno, mas o eterno. A fé de Abraão é descrita como dinâmica, operante e confiada, uma fé que não se limitou ao momento, mas esperou contra toda esperança (cf. Rm 4:18).

Nos Evangelhos, Abraão aparece como o ponto de referência para o povo judeu, especialmente em termos de identidade e pertencimento. Os fariseus e os líderes religiosos se referem a ele como “nosso pai” (Jo 8:39), mas Jesus os contesta: “Se fôsseis filhos de Abraão, praticaríeis as obras de Abraão” (Jo 8:39b), implicando que a verdadeira filiação é espiritual, não meramente genealógica. Em João 8:56, Jesus declara: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia; e viu-o, e alegrou-se”, sugerindo que a fé de Abraão já vislumbrava, em algum nível, a vinda messiânica. Essa afirmação escandaliza os ouvintes: “Ainda não tens cinquenta anos, e viste Abraão?” — ao que Jesus responde: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8:58), unindo a eternidade de Cristo à figura do patriarca.

Outro episódio relevante é a parábola do rico e Lázaro (Lc 16:19–31), na qual Lázaro, ao morrer, é levado para o “seio de Abraão” (κόλπος Ἀβραάμ [kolpos Abraám]), uma expressão que denota o descanso escatológico dos justos. O rico, por sua vez, sofre tormentos e roga a Abraão que envie Lázaro para aliviar sua dor — sem sucesso. O texto mostra Abraão como intercessor, mas também como juiz e porta-voz da justiça divina. A imagem do “seio de Abraão” influenciou fortemente a teologia judaica e cristã sobre o pós-morte.

Por fim, em Mateus 3:9 e Lucas 3:8, João Batista adverte os judeus: “Não presumais, dizendo em vós mesmos: ‘Temos por pai a Abraão’, porque eu vos digo que até destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” Aqui, novamente, vemos o deslocamento da descendência carnal para uma filiação segundo a fé e a obediência. O mesmo ensino é retomado por Jesus em Mateus 8:11: “Muitos virão do oriente e do ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no Reino dos céus”, contrastando com os “filhos do Reino” que serão lançados fora.

Em suma, no Novo Testamento, Abraão é:

  • Pai da fé, modelo de justificação;
  • Prototipo da obediência escatológica;
  • Figura escatológica no Reino;
  • Sinal da filiação espiritual que transcende a carne;
  • E antecipação da revelação cristológica.
Sua presença percorre o NT como fio condutor entre as promessas do AT e a plenitude do Evangelho.

X. Abraão na Tradição Cristã

A figura de Abraão ocupa lugar central e multifacetado na tradição cristã, sendo considerado não apenas o patriarca histórico dos israelitas, mas o arquétipo da fé salvífica que antecede a Lei, ultrapassa os limites do sangue e antecipa a promessa de Cristo. Em sua vida, a teologia cristã identificou elementos que apontam tipologicamente para o evangelho: a confiança absoluta em Deus, o abandono de tudo para seguir o chamado, o recebimento da promessa em meio à impossibilidade, e sobretudo o episódio do sacrifício de Isaque (Gn 22), amplamente interpretado como prenúncio do sacrifício de Jesus Cristo. Essa leitura não se restringe à teologia paulina — que apresenta Abraão como pai da fé antes da circuncisão (Rm 4; Gl 3) —, mas perpassa toda a exegese patrística, medieval e reformada. Para os teólogos da Antiguidade cristã, Abraão é símbolo da obediência que brota da fé, da justificação gratuita pela confiança, e do início de uma nova humanidade. Sua memória está presente na liturgia, na arte cristã, nos credos eclesiais e nos escritos místicos, sendo frequentemente invocado como o “pai dos crentes” (pater credentium). Esta seção explorará os principais eixos da recepção cristã da figura de Abraão: como tipo de Cristo, como testemunha da fé, como presença viva na tradição dos Padres da Igreja e como figura escatológica acolhedora da bem-aventurança final.

A. Abraão como tipo de Cristo e precursor da fé cristã

Desde os primeiros séculos do cristianismo, a figura de Abraão foi vista como um tipo cristológico e eclesiológico, antecipando a fé no Messias e prefigurando aspectos centrais do evangelho. A leitura tipológica do Antigo Testamento — isto é, a interpretação de personagens, eventos e instituições como prefigurações das realidades de Cristo — encontra em Abraão um dos seus expoentes mais claros.

A narrativa da ʿAqedah (o “sacrifício” de Isaque, Gn 22) ocupa lugar de destaque nesse processo. Para os primeiros cristãos, o gesto de Abraão, que não hesita em oferecer seu “único filho, a quem amas” (Gn 22:2), espelha de maneira poderosa o gesto do Pai celeste, que entrega o seu Filho unigênito por amor ao mundo (cf. Jo 3:16). O paralelo entre Isaque carregando a lenha e Cristo carregando a cruz foi amplamente explorado na literatura patrística. Já no século II, Melitão de Sardes e Irineu de Lião leem a subida de Abraão e Isaque ao monte Moriá como figura do Gólgota, sendo Isaque o tipo do Cristo obediente e Abraão o tipo do Pai que entrega o Filho por fidelidade ao desígnio divino.

Essa leitura se aprofunda em Orígenes, que em suas Homilias sobre o Gênesis associa o silêncio de Isaque ao silêncio de Jesus diante dos seus acusadores (cf. Is 53:7). Orígenes vê na disposição de Abraão não apenas um ato de fé, mas uma participação mística na própria Paixão divina: “Abraão, erguendo a faca, tornou-se, por um momento, figura do próprio Deus que oferece o sacrifício mais puro e voluntário.”

Tertuliano, em sua Adversus Marcionem, também destaca que Abraão, ao oferecer seu filho, antecipa o modo como Deus salva: não por obras da Lei, mas pela entrega total no amor obediente.

Além disso, o ato de Abraão deixar sua terra e parentela (Gn 12:1) é visto como modelo do seguimento radical de Cristo. Assim como ele deixou tudo para seguir o chamado de Deus, também o cristão é chamado a abandonar suas seguranças para seguir o caminho da cruz.

Finalmente, os cristãos viram em Abraão o início da justificação pela fé, argumento que se tornará central em Paulo (cf. Rm 4; Gl 3), mas que também foi desenvolvido tipologicamente: se Abraão foi justificado antes da Lei e da circuncisão, então a graça de Deus precede as obras e está acessível a todos os que crerem, judeus e gentios. Essa teologia torna Abraão uma ponte entre Antigo e Novo Testamento, entre Israel e a Igreja, entre a promessa e o cumprimento.

B. Abraão nos Pais da Igreja e na Teologia Patrística

A recepção de Abraão na literatura patrística é vasta, complexa e profundamente influente na formação da teologia cristã. Ele é citado extensivamente por autores de todas as regiões e escolas teológicas da Antiguidade cristã — do Ocidente latino ao Oriente grego e siríaco —, sendo retratado ora como modelo de fé, ora como exemplo de obediência absoluta, ora como amigo íntimo de Deus (cf. Is 41:8; Tg 2:23).

Para Irineu de Lião (Contra Heresias), Abraão é prova de que a aliança e a justificação pela fé são anteriores à Lei mosaica e não exclusivas do judaísmo. Ele é apresentado como alguém que ouviu a voz de Deus sem mediadores e creu na promessa do impossível — o nascimento de um filho na velhice —, tornando-se assim paradigma da salvação pela graça. Irineu o contrapõe às heresias gnósticas para mostrar que a fé concreta, vivida na história, é o caminho da redenção.

Orígenes, em sua exegese alegórica, interpreta Abraão como modelo do progresso espiritual. Em sua Homilia sobre Gênesis 2, ensina que a jornada de Abraão de Ur a Canaã representa a ascensão da alma das realidades inferiores às celestes. Cada etapa da vida do patriarca — o chamado, a peregrinação, a promessa, o teste — é um estágio do caminho místico, e sua hospitalidade aos três anjos (Gn 18) torna-se imagem da contemplação trinitária.

Agostinho de Hipona, por sua vez, desenvolve uma leitura profundamente eclesiológica. Em sua obra A Cidade de Deus (livros XV–XVI), ele contrapõe os filhos segundo a carne (Ismael) aos filhos segundo a promessa (Isaque), identificando a Igreja como descendência espiritual de Abraão. Para Agostinho, Abraão é “o homem interior” que crê contra toda esperança (cf. Rm 4:18) e cuja fé é transplantada do judaísmo para o corpo de Cristo. Ao mesmo tempo, ele enfatiza a presença de Abraão no escaton, como aquele que acolhe os justos no seio da paz (cf. Lc 16:22).

Nos homens do deserto e místicos da tradição cristã oriental, como Evágrio Pôntico e os mestres da Filocalia, Abraão é citado como aquele que ouviu, obedeceu e permaneceu no deserto, tornando-se símbolo do hesicasta — o praticante da oração silenciosa, da escuta e da purificação interior.

João Crisóstomo, em suas Homilias sobre Gênesis e Romanos, retoma o tema paulino da justificação pela fé, mas o insere num discurso moral: Abraão é justo porque crê, mas também porque age com retidão. A fé para Crisóstomo nunca é estéril; ela é o princípio da vida virtuosa. O mesmo será ecoado por Gregório de Nissa, para quem a fé de Abraão é o início da transformação do ser humano segundo a imagem de Deus.

Essa presença constante de Abraão na patrística moldou os credos, a liturgia e a doutrina cristã. Na oração eucarística I (Cânon Romano), por exemplo, ainda hoje se invoca “o sacrifício do nosso pai Abraão”, reafirmando sua centralidade como modelo de culto, de fé e de amizade com Deus.

C. Abraão na teologia paulina e reformada

A figura de Abraão exerce papel absolutamente central na teologia paulina, sendo o vértice a partir do qual Paulo articula sua doutrina da justificação pela fé. Em Romanos 4, o apóstolo apresenta Abraão como paradigma da justificação sem obras da Lei, salientando que “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça” (Rm 4:3; cf. Gn 15:6). O argumento paulino fundamenta-se no fato de que a fé de Abraão antecedeu tanto o recebimento da circuncisão (Gn 17) quanto a entrega da Torá (Ex 20), o que o torna pai não apenas dos circuncisos, mas também de todos os que creem, judeus e gentios.

Paulo reforça esse ponto em Gálatas 3, declarando que “os da fé é que são filhos de Abraão” (Gl 3:7), e que “a Escritura, prevendo que Deus justificaria os gentios pela fé, anunciou primeiro a boa nova a Abraão: ‘Em ti serão abençoadas todas as nações’” (Gl 3:8; cf. Gn 12:3). Com isso, a descendência de Abraão não é determinada pela linhagem carnal, mas pela união com Cristo, a quem Paulo chama de “semente” (σπέρμα, sperma) prometida (Gl 3:16). Cristo é, assim, o herdeiro legítimo da promessa abraâmica, e todos os que estão em Cristo participam da bênção de Abraão, “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios” (Gl 3:14). A relação entre Lei e promessa é cuidadosamente trabalhada, com Paulo argumentando que a Lei não anula a promessa (Gl 3:17) e que, portanto, a fé que justifica é a mesma de Abraão, anterior à economia mosaica.

Essa releitura de Abraão como modelo de fé e justificação reverbera poderosamente na teologia reformada do século XVI, especialmente em Martinho Lutero e João Calvino. Lutero, em sua Lectura in Epistolam ad Romanos, afirma que “Abraão é o primeiro a ser justificado unicamente pela fé”, e sua interpretação de Rm 4 sustenta a doutrina sola fide, segundo a qual a salvação é dom gratuito recebido pela confiança na promessa, não por mérito ou obra. Para Lutero, a fé de Abraão é “nuda fides” — fé nua —, sem aparato cerimonial, sem mediação sacerdotal, apenas assentimento interior à Palavra de Deus.

João Calvino, por sua vez, na Instituição da Religião Cristã (III, xi–xviii), desenvolve com vigor a continuidade entre o pacto feito com Abraão e a aliança da graça em Cristo. Embora reconheça diferenças formais entre os testamentos, insiste na unidade substancial da aliança. A circuncisão, segundo Calvino, é antecipação do batismo, e o povo cristão é o verdadeiro Israel espiritual, herdeiro das promessas de Gênesis 12 e 17. Abraão é o protótipo do eleito pela graça, justificado pela fé e santificado pela obediência.

Nas confissões reformadas, Abraão é constantemente invocado como testemunho da fé autêntica. A Confissão de Westminster (1647), por exemplo, declara que “a aliança feita com Abraão foi a mesma que Cristo veio confirmar”. O seu nome tornou-se, assim, símbolo de continuidade entre Antigo e Novo Testamento, ponte entre Israel e a Igreja, entre a promessa e sua consumação.

D. Abraão no imaginário devocional e na arte cristã

Para além da teologia sistemática e da exegese bíblica, a figura de Abraão permeia o imaginário devocional cristão desde os primeiros séculos, alimentando a iconografia, a liturgia, os hinos, as representações artísticas e a espiritualidade dos fiéis.

Uma das imagens mais duradouras é a do “seio de Abraão” (κόλπος Ἀβραάμ, kolpos Abraám), expressão presente em Lucas 16:22, onde o pobre Lázaro é levado pelos anjos ao seio do patriarca. Esta imagem, amplamente difundida na tradição patrística, foi associada ao lugar de repouso dos justos após a morte, antes da ressurreição final. Em mosaicos paleocristãos, como os de Ravenna, e em manuscritos iluminados, Abraão aparece sentado com Lázaro em seus braços, sinal de acolhimento escatológico e beatitude.

Na liturgia eucarística romana, especialmente na Oração Eucarística I (Cânon Romano), evoca-se a oferta de “Abraão, nosso pai na fé” como paradigma do sacrifício perfeito, ao lado de Abel e Melquisedeque. Na liturgia bizantina, o troparion da festa dos Patriarcas refere-se a Abraão como “o servo obediente, o pai das multidões, aquele que viu de longe o dia do Senhor e se alegrou” (cf. Jo 8:56).

Abraão também figura de modo proeminente na iconografia medieval, especialmente na cena da hospitalidade dos três anjos (Gn 18), que na tradição oriental se tornou símbolo da Trindade. A mais célebre representação é a Trindade de Rublev, em que os três visitantes sentados à mesa representam a unidade trinitária e a hospitalidade do patriarca.

Na mística cristã, particularmente na tradição carmelita e na espiritualidade do deserto, Abraão é o exemplo do homem que escuta, responde e caminha na fé, sem mapa, sustentado apenas pela voz de Deus. Ele é invocado como intercessor, como modelo de entrega radical e como símbolo da peregrinação interior rumo à terra prometida do coração puro.

Até mesmo em obras literárias e devocionais tardias, como A Divina Comédia de Dante, Abraão aparece no “Paraíso” entre os bem-aventurados, e em inúmeros relatos visionários medievais sua figura é associada ao descanso eterno dos justos. Na arte renascentista, do sacrifício de Isaque de Caravaggio ao Abraão e os anjos de Rembrandt, o patriarca continua a ser retratado como homem de fé, drama e esperança escatológica.

XI. Abraão no Judaísmo Posterior

Na tradição judaica pós-bíblica, Abraão não apenas mantém sua posição de patriarca fundador, mas adquire uma aura de justiça, sabedoria, coragem e mérito que ultrapassa o que se encontra no relato canônico. O Abraão do judaísmo rabínico é o homem perfeito, o monoteísta por excelência, o executor da vontade divina, e o antepassado cujo mérito (זְכוּת אָבוֹת, zekhut ʾavot) protege seus descendentes. A Jewish Encyclopedia diz:

Há uma profunda subjetividade de sua verdadeira humanidade em todas as lendas sobre Abraão. “Até a época de Abraão, o Senhor era conhecido apenas como o Deus do céu. Quando Ele apareceu a Abraão, tornou-se o Deus da terra e também do céu, pois O aproximou do homem” (Midr. R. a Gen. 24, 3).

Nos midrashim e na Mishná, Abraão é retratado como alguém que descobriu Deus por meio da razão. Um dos textos clássicos (Bereshit Rabbah 39:1) narra que ele, ao observar os astros e constelações, rejeitou cada um como divindade, até concluir que existe um só Deus invisível e soberano. Em outros relatos, ele desafia abertamente os reis e sacerdotes pagãos. Essa imagem se encontra também no Livro dos Jubileus, onde ele aparece como reformador que destrói ídolos e reintroduz a observância da Torá esquecida. Nos Targumim, sua figura é ainda mais engrandecida: ele é o “amado de Deus”, “o piedoso”, e o primeiro que cumpriu toda a Lei antes mesmo de ela ser dada (cf. Gênesis 26:5).

A circuncisão, instituída em Gênesis 17, se torna o principal sinal da aliança abraâmica e recebe uma importância central no pensamento rabínico. A tradição afirma que Abraão a cumpriu com precisão absoluta, e que esse ato selou definitivamente sua aliança com Deus. Em alguns textos (cf. Pirkei Avot), ele é descrito como tendo passado dez provações (nisyonot), das quais a mais elevada foi o sacrifício de Isaque. Sua prontidão em cumprir a vontade divina é vista como um modelo ético e espiritual.

Abraão é também considerado modelo de hospitalidade (הַכְנָסַת אוֹרְחִים, hakhnasat orḥim), a partir de Gênesis 18, onde ele acolhe três viajantes. Essa virtude é tão valorizada que, em textos rabínicos, a hospitalidade de Abraão é vista como superior à própria contemplação da presença divina.

No pensamento judaico medieval, autores como Maimônides o tratam como o primeiro filósofo e teólogo da humanidade. Em sua obra Mishné Torá, Maimônides afirma que Abraão chegou à existência de Deus por meio da razão e combateu a idolatria por convicção intelectual. Já os cabalistas, como os do Zohar, interpretam sua figura segundo a simbologia das sefirot, associando Abraão à sefirah de ḥesed (חֶסֶד, “graça”, “amor”).

O judaísmo posterior também desenvolve a doutrina do mérito ancestral (zekhut ʾavot), segundo a qual Deus continua a abençoar Israel por causa da fidelidade de Abraão. Suas orações são consideradas eficazes, e ele é visto como um intercessor cósmico em favor de sua descendência.

Em síntese, no judaísmo pós-bíblico, Abraão é:

  • O primeiro monoteísta racional;
  • O iniciador da Torá pela intuição moral;
  • O símbolo da circuncisão e da aliança;
  • O campeão da hospitalidade e da justiça;
  • E o portador de mérito perene sobre Israel.

A. Abraão na tradição interpretativa judaica

A figura de Abraão tornou-se, ao longo da história judaica pós-bíblica, objeto de intensa releitura hermenêutica, expandida por meio de narrativas midráshicas, ensinamentos da Mishná, debates talmúdicos, reflexões filosóficas e formulações místicas da Cabala. Essa tradição interpretativa não visa apenas recontar eventos, mas extrair padrões éticos, legais, escatológicos e cosmológicos que projetam sobre o patriarca os valores e aspirações da posteridade de Israel. Nessa literatura, Abraão deixa de ser apenas o primeiro dos patriarcas e torna-se protagonista de façanhas sobrenaturais, símbolo da luta contra a idolatria, modelo de razão e fé, intercessor cósmico e, por vezes, figura angelificada. Cada camada exegética projeta sobre ele o espelho de sua própria época, moldando-o como arquétipo espiritual e ancestral fundacional.

1. O Abraão dos Midrashim e da Mishná

A tradição midráshica expandiu profundamente o relato bíblico sobre Abraão, preenchendo lacunas narrativas e interpretando cada detalhe de sua trajetória com intenção pedagógica, teológica e homilética. Um dos exemplos mais célebres está em Beresith Rabá 38–39, que narra os episódios da infância e juventude de Abraão — totalmente ausentes do texto bíblico, mas fundamentais para o imaginário judaico. Nessa tradição, Abraão, ainda criança, observa os astros e tenta identificar o verdadeiro Deus: primeiro adora o sol, depois a lua, mas, ao perceber que ambos desaparecem, reconhece que há um Deus superior que rege todas as coisas. Esse processo racional e progressivo culmina na sua rejeição da idolatria e descoberta do monoteísmo, servindo como exemplo de busca filosófica e teológica por excelência.

Outro episódio lendário amplamente difundido encontra-se no Midrash Tanḥuma (Lekh Lekha 6) e em Pirqei de-Rabbi Eliezer 26: Abraão destrói os ídolos da loja de seu pai Terá. Após esse ato iconoclasta, ele é levado diante do rei Nimrode, que o desafia a adorar o fogo, símbolo do poder real. Quando se recusa, é lançado numa fornalha ardente — mas milagrosamente sai ileso, como prova da proteção divina. Esse episódio, aludido também no Talmude babilônico (Bava Batra 91a), tornou-se emblema da coragem profética de Abraão diante da tirania e da idolatria, uma prévia do que será o martírio de Israel ao longo da história.

A Mishná (Avot 5:3) destaca que Abraão foi provado em dez testes, e passou por todos, demonstrando sua fé inabalável e confiança em Deus. Embora o texto não enumere quais foram os testes, tradições posteriores identificam-nos com eventos como: sair de Ur, a fome em Canaã, o sequestro de Sara, a guerra contra os reis, o pacto entre as partes, o nascimento de Ismael, a ordem de circuncisão, o banimento de Hagar, o nascimento de Isaque e, por fim, a ʿAqedah (sacrifício de Isaque). Essa estrutura de provas reforça a tipologia do patriarca como fiel até o limite extremo, imagem depois amplamente retomada pela exegese cristã e islâmica.

Outro aspecto enfatizado nos midrashim é o de Abraão como intercessor universal. Em Gênesis 18, a súplica de Abraão em favor de Sodoma é lida como exemplo paradigmático de compaixão profética. Midrash Tanhuma (Vayera 11) afirma que Abraão “implorou por ímpios desconhecidos, como se fossem seus filhos”, sendo modelo de advocacia profética. Além disso, sua hospitalidade para com os três anjos (Gn 18:1–8) é considerada a origem da mitzvát hakhnasát orḥim (preceito de acolher hóspedes), uma das virtudes mais louvadas da tradição judaica.

Portanto, os midrashim e a Mishná delineiam um Abraão muito mais vasto que o da narrativa bíblica: ele é filósofo natural, mártir da fé, destruidor de ídolos, intercessor profético e símbolo da hospitalidade messiânica.

2. Abraão na literatura rabínica e no talmude

Na vasta literatura do Talmude, a figura de Abraão é recorrente e aparece tanto em discussões legais (halakhá) quanto em contextos narrativos e teológicos (aggadá). Ele é mencionado em centenas de passagens, frequentemente como modelo de conduta ou como autoridade espiritual invocada para ilustrar princípios de justiça, piedade, pureza e mérito intergeracional.

Um conceito chave é o de זְכוּת אָבוֹת (zekhut ʾavot), o “mérito dos pais”, segundo o qual os descendentes de Abraão (e dos outros patriarcas) são abençoados não apenas por sua própria justiça, mas também em virtude da retidão acumulada de seus antepassados. Conforme o Talmude (Shabat 55a), a oração do povo de Israel muitas vezes é ouvida por causa do mérito de Abraão, Isaac e Jacó. A eleição de Israel não se baseia apenas na aliança formal, mas na continuidade espiritual do caráter patriarcal.

Abraão é descrito também como alguém que observava a Torá antes mesmo de ela ser revelada: “Abraão nosso pai guardava toda a Torá antes que ela fosse dada” (Yoma 28b), uma ideia que fortalece o elo entre patriarcalidade e observância, e que fundamenta a ligação entre moralidade natural e revelação. Tal leitura o transforma num prototipo do justo universal, alguém que intuiu a Lei por inspiração divina, sem necessidade da mediação sinaítica.

Além disso, a literatura rabínica expande o papel de Abraão no além-mundo. Em algumas tradições, ele é visto como protetor das almas dos justos e até como juiz espiritual. Segundo Eruvin 19a, ele permanece à entrada do Gehinnom (inferno) para impedir que os incircuncisos que sejam seus descendentes entrem ali, a menos que tenham renegado completamente a aliança. Essa representação reforça a função escatológica e pastoral do patriarca, algo que ressurge também no Novo Testamento, no conceito do “seio de Abraão” (Lc 16:22).

Não menos relevante é a associação entre Abraão e as qualidades espirituais fundamentais: ele é identificado com a sefirah de ḥesed (bondade amorosa) na tradição mística posterior, mas essa ideia já aparece implicitamente no Talmude, onde ele é descrito como o homem da generosidade extrema, da justiça ativa e do amor desinteressado — atributos que formam a base ética da vida judaica.

Em suma, a tradição rabínica apresenta Abraão não apenas como figura histórica ou literária, mas como paradigma normativo de santidade, justiça, sabedoria e misericórdia, cuja presença transcende o texto e continua moldando a identidade espiritual e haláchica do povo judeu.

3. Abraão na filosofia judaica medieval

Na tradição filosófica judaica medieval, Abraão foi reinterpretado como o modelo do pensador racional, ético e iluminado, que descobre Deus não apenas por revelação, mas por investigação lógica, observação do mundo e meditação filosófica. Essa leitura — fortemente moldada pela interação com o aristotelismo, o neoplatonismo e as escolas muçulmanas — propôs uma reconstrução do patriarca como precursor do pensamento racional monoteísta.

Filon de Alexandria (séc. I EC), embora anterior à era medieval e de expressão helenística, já antecipava essa tendência ao descrever Abraão como o “filósofo da fé”, alguém que transcende o conhecimento sensível e busca o Logos. Em suas obras (como De Migratione Abrahami e De Abrahamo), Filon entende a saída de Abraão de Ur como metáfora da alma que abandona o mundo dos sentidos em direção à contemplação divina. A peregrinação de Abraão torna-se, então, símbolo da ascensão intelectual da psique.

Saadia Gaon (séc. X), o primeiro grande sistematizador da teologia racional judaica, também apresenta Abraão como modelo do ser humano que, por meio da razão, rejeita a idolatria e reconhece a unicidade divina. Na obra Emunot ve-Deot, ele afirma que Abraão chegou ao conhecimento de Deus independentemente de qualquer tradição anterior, apenas guiado pelo raciocínio e pela contemplação da ordem do cosmos. Saadia o apresenta como alguém que deduziu a existência de um Criador ao observar a cadência dos astros e a organização da natureza.

No Maimônides (1135–1204), essa concepção atinge seu auge. Em sua monumental obra Mishnê Torá (especialmente no Hilchot Avodah Zarah 1:3), Maimônides afirma que, ainda criança, Abraão começou a refletir sobre o mundo e deduziu a existência de um Deus único, refutando os cultos politeístas de sua época. Aos 40 anos, já havia alcançado a verdade absoluta, tornando-se o primeiro verdadeiro monoteísta. Maimônides escreve:

“Começou a compreender por sua própria reflexão que há um único Deus que move a esfera e criou tudo, e que, em toda a existência, não há outro Deus além d’Ele.”

Essa racionalização da fé patriarcal servia ao projeto maimonidiano de demonstrar que Torá e razão não são rivais, mas aliadas — e que o ideal do judeu é justamente o de Abraão: unir o pensamento filosófico à obediência prática à Lei. Abraão passa a representar o homem perfeito, cuja intelectualidade culmina em amor e temor de Deus, as duas faces complementares do serviço divino.

Além disso, os filósofos judeus medievais projetaram sobre Abraão conceitos éticos universais. Em Bahya ibn Paquda (século XI), por exemplo, ele encarna a ḥovát ha-levavot (“obrigação dos corações”), sendo apresentado como o modelo daquele que purifica a intenção e age não por recompensa, mas por dever e amor. Assim, a fé de Abraão é interiorizada como serviço puro e sincero a Deus, fundado em sabedoria, disciplina e consciência moral.

4. Abraão na cabala e no misticismo judaico

Na tradição mística judaica, especialmente a partir da Cabala medieval e renascentista, Abraão não é apenas o patriarca terreno, mas uma força espiritual arquetípica, presente no cosmos, nas sefirot e na estrutura da alma.

Na Cabala clássica, especialmente no Sefer ha-Bahir e no Zôhar, Abraão é identificado com a sefirah de Ḥesed (חסד) — a bondade expansiva e generosa de Deus. Ele não representa apenas o atributo divino, mas também canaliza esse fluxo de misericórdia ao mundo. Sua hospitalidade (Gn 18), sua disposição de salvar Sodoma e sua compaixão geral são lidas como expressões cósmicas dessa sefirá. No Zôhar (I, 101b), lê-se:

Ḥesed é o braço direito de Deus, e Abraão é esse braço manifestado no mundo.”
Esse vínculo ontológico com Ḥesed faz de Abraão uma figura luminosa que equilibra as forças mais duras da justiça (Din), representadas por Isaque e a sefirah de Gevurah. Na visão cabalística, Abraão “estende” o amor divino até as realidades inferiores, tornando-se o meio pelo qual a luz infinita penetra no mundo finito.

O Sefer Yetsirá, atribuído esotericamente a Abraão, é outro elemento central da tradição mística. Embora sua autoria seja fictícia, o fato de o texto lhe ser atribuído mostra como os místicos viam Abraão como iniciado nos segredos da criação, do alfabeto hebraico e das dez sefirot. Ele não apenas recebe revelações, mas participa ativamente da economia divina como “amigo de Deus” (cf. Is 41:8).

Na Cabala de Isaac Luria (séc. XVI), Abraão continua a desempenhar um papel ativo na reparação do mundo (tikkun olam). A sua ʿAqedah, por exemplo, é interpretada como gesto de elevação dos mundos inferiores, e seu mérito é invocado em orações cabalísticas como veículo de proteção e purificação. Ele não apenas vive na história — ele transcende-a e atua no presente como força espiritual viva.

Nos círculos místicos mais tardios, como no ḥasidismo, Abraão também assume função exemplar como tzadik primordial, cujas atitudes e estados de alma são reproduzíveis nas gerações futuras. Sua escuta da voz divina, sua disposição de sair sem saber o destino (Gn 12:1) e sua prontidão para o sacrifício são vistos como modos de devoção que devem ser internalizados pelo ḥassid moderno.

Assim, a tradição mística não apenas interpreta Abraão — ela o incorpora como estrutura espiritual do mundo, vetor de misericórdia divina, protótipo do iniciado e eixo da interação entre o finito e o infinito.

XII. Abraão como Figura Universal de Fé e Obediência

Abraão é, de todas as figuras bíblicas, a que mais notavelmente transpassa os limites confessionais, sendo reconhecido como patriarca comum das três maiores religiões monoteístas do mundo: o judaísmo, o cristianismo e o islã. Cada uma dessas tradições o interpreta segundo seus próprios cânones, mas todas convergem na atribuição de fé, obediência radical, justiça e aliança a sua pessoa. Essa universalidade não é apenas simbólica ou histórica: ela funda concepções teológicas, configura paradigmas espirituais e serve como ponto de diálogo inter-religioso.

No judaísmo, como já analisado, Abraão é o primeiro a reconhecer e adorar o Deus único, o fundador da aliança e da circuncisão, o intercessor por excelência e modelo de ḥesed (graça) e ʾemunah (fé). Sua fé é compreendida não apenas como crença, mas como fidelidade ativa à vontade divina, capaz de sustentar gerações futuras pela força do mérito (zekhut ʾavot). Ele não é apenas o ancestral físico de Israel, mas também o arquétipo do tsadiq (justo) que, mesmo antes da revelação do Sinai, já caminhava segundo a vontade de Deus. Sua imagem é revivida em rituais, textos litúrgicos, obras midráshicas e na mística judaica como figura de luz e intercessão.

No cristianismo, Abraão é “pai dos que creem”, não só dos judeus, mas dos gentios que são justificados pela fé em Jesus Cristo. Sua obediência em Gênesis 15 e 22 é retomada como figura do Evangelho: ele crê na promessa, e oferece seu filho — antecipando a entrega do Filho único de Deus. A teologia paulina faz dele o emblema da salvação pela fé e da justificação sem obras, estabelecendo-o como elo entre a Antiga e a Nova Aliança. Em Hebreus, sua esperança escatológica se une à visão da “cidade eterna”, e em João, sua percepção messiânica antecipa a revelação do Logos. Abraão se torna, assim, a ponte entre promessa e cumprimento, entre Antigo Testamento e Reino de Deus, entre semente física e descendência espiritual.

No islã, Ibrāhīm (إبراهيم) é celebrado como ḥanīf (حنيف, “monoteísta puro”), amigo íntimo de Deus (khalīl Allāh خليل الله), e modelo de submissão incondicional (islām) à vontade divina. Ele não é apenas ancestral do povo muçulmano por meio de Ismael, mas o primeiro muçulmano (Qurʾān 2:131: “أسلمت لرب العالمين” [aslamtu li-rabbi l-ʿālamīn], “Eu me submeto ao Senhor dos mundos”). Suas orações, construção da Kaaba com Ismael (Qurʾān 2:125–129), sua recusa da idolatria (Qurʾān 6:74–79) e o sacrifício (Qurʾān 37:102–107) fazem dele a mais completa expressão de fé ativa na tradição islâmica. O Alcorão o define como uma umma wāḥida (أمة واحدة, “nação por si mesmo”, 16:120), destacando sua singularidade moral e religiosa. Ele é citado dezenas de vezes no Alcorão, como já mencionado, sendo o personagem veterotestamentário mais presente na tradição islâmica. Sua memória é evocada anualmente no ḥajj (peregrinação) e no ʿĪd al-Aḍḥā (festa do sacrifício).

Assim, Abraão é figura universal não por abstração, mas por síntese teológica: ele encarna a resposta radical à voz divina, seja como ouvinte, caminhante, intercessor ou oferente. Sua jornada, marcada por escuta, deslocamento, fé e promessa, estrutura a identidade religiosa de bilhões de pessoas em todos os continentes. Ele é o “homem da tenda”, do altar e da confiança. Em cada tradição, seu gesto de fé é interpretado à luz de revelações distintas, mas sempre como expressão da mais alta forma de obediência espiritual.

Seu legado, portanto, não é apenas genealógico ou narrativo, mas teológico, espiritual e antropológico. Como símbolo de fé universal, Abraão se coloca não como ponto de divisão, mas como convite ao diálogo entre as tradições que dele derivam: fé que escuta, fé que caminha, fé que entrega — uma fé que transcende a história sem abandoná-la, porque é nela que Deus se revela.

XIII. Abraão no Islã

No Islã, Abraão é conhecido como Ibrāhīm (إبراهيم), um dos profetas mais exaltados do Alcorão e modelo ideal de submissão à vontade de Deus. O nome Ibrāhīm ocorre 69 vezes no Alcorão, distribuídas por 25 suras, e sua figura está intrinsecamente ligada à doutrina da pureza monoteísta (tawḥīd) e ao conceito de religião primordial (dīn ḥanīf), livre de idolatria e superstição. A tradição islâmica considera Abraão não apenas o ancestral dos árabes por meio de Ismael (Ismāʿīl), mas também fundador espiritual do Islã, uma fé que se pretende a restauração da aliança original entre Deus e a humanidade, de que ele foi o portador original.

Abraão é descrito no Alcorão como o primeiro ḥanīf (حنيف), isto é, um homem inclinado unicamente para Deus, afastado de qualquer forma de shirk (associação idolátrica). O versículo Sura 3:67 afirma categoricamente:

مَا كَانَ إِبْرَاهِيمُ يَهُودِيّٗا وَلَا نَصْرَانِيّٗا وَلَٰكِن كَانَ حَنِيفٗا مُّسْلِمٗا وَمَا كَانَ مِنَ ٱلْمُشْرِكِينَ
(mā kāna ʾIbrāhīmu yahūdiyyan wa-lā naṣrāniyyan wa-lākin kāna ḥanīfan musliman wa-mā kāna mina al-mushrikīn)
“Abraão não era judeu, nem cristão, mas era ḥanīf e muçulmano submisso [à vontade de Deus]; e jamais foi dos idólatras”.
Essa afirmação estabelece o monopólio espiritual do Islã sobre a figura patriarcal de Abraão, como aquele que precedeu e transcendeu os sistemas religiosos posteriores, sendo ele próprio um muçulmano primordial (مُسْلِم, muslim) no sentido etimológico de “submisso”.

A teologia corânica enfatiza o papel de Abraão como profeta (نَبِيّ, nabiyy), amigo de Deus (خَلِيل, khalīl) e modelo de fé (uswa ḥasana, “excelente exemplo”, cf. Sura 60:4). Em Sura 4:125, o Alcorão proclama:

وَٱتَّخَذَ ٱللَّهُ إِبْرَٰهِيمَ خَلِيلٗا
(wa-ttakhadha Allāhu ʾIbrāhīma khalīlan)
“E Allah tomou Abraão como amigo íntimo”.

A raiz خ ل ل (kh-l-l) em árabe transmite a ideia de intimidade profunda, sugerindo que Abraão ocupa um status especial e exclusivo na relação com Deus, assim como a tradição judaica já havia insinuado em Isaías 41:8 (“meu amigo Abraão”) e como Tiago 2:23 o reafirma: “E foi chamado amigo de Deus”.

O chamado de Abraão também é mencionado no Alcorão, com forte ênfase em sua ruptura com o paganismo de sua comunidade. Ele desafia a idolatria de seu pai (chamado Āzar, آزَرَ, no Islã), o qual se recusa a abandonar os ídolos. Isso aparece em Sura 6:74:

وَإِذۡ قَالَ إِبۡرَٰهِيمُ لِأَبِيهِ ءَازَرَ أَتَتَّخِذُ أَصۡنَامًا ءَالِهَةً إِنِّيٓ أَرَىٰكَ وَقَوۡمَكَ فِي ضَلَٰلٖ مُّبِينٖ
(wa-idh qāla ʾIbrāhīmu li-ʾabīhi ʾĀzara ʾatattakhidhu ʾaṣnāman ʾālihatan ʾinnī ʾarāka wa-qawmaka fī ḍalālin mubīn)
“Quando Abraão disse a seu pai Āzar: ‘Tomas ídolos por deuses? Vejo-te a ti e a teu povo em evidente erro.’”
A crítica à idolatria e o monoteísmo de Abraão são temas repetidos em outras passagens (Sura 19:41–48; 21:51–70), nas quais ele destrói os ídolos de sua tribo e enfrenta as represálias da elite religiosa. Na sura 21:68–69, Deus intervém miraculosamente para salvá-lo da fornalha em que fora lançado, em narrativa que ecoa os temas do livro de Daniel, mas adaptados à moldura abrahâmica.

A principal função de Abraão no Islã, no entanto, é a de restaurador do culto monoteísta e construtor da Kaʿba, o santuário sagrado em Meca. Junto com seu filho Ismāʿīl (Ismael), ele purifica o templo de qualquer impureza e o consagra como lugar de adoração exclusiva a Deus. Isso é narrado em Sura 2:125–127:

وَإِذْ جَعَلْنَا ٱلْبَيْتَ مَثَابَةٗ لِّلنَّاسِ وَأَمْنٗا... وَإِذْ يَرْفَعُ إِبْرَٰهِيمُ ٱلْقَوَاعِدَ مِنَ ٱلْبَيْتِ وَإِسْمَٰعِيلُ
(wa-idh jaʿalnā al-bayta mathābatan li-nnās wa-amnan... wa-idh yarfaʿu ʾIbrāhīmu al-qawāʿida mina al-bayti wa-ʾIsmāʿīlu)
“E quando fizemos da Casa [Kaʿba] um lugar de retorno para os homens e refúgio… E quando Abraão e Ismael ergueram os alicerces da Casa…”
Na sequência, pai e filho oram juntos:
رَبَّنَا تَقَبَّلْ مِنَّاۤ إِنَّكَ أَنتَ ٱلسَّمِيعُ ٱلْعَلِيمُ
(rabbanā taqabbal minnā ʾinnaka ʾanta as-samīʿu al-ʿalīm)
“Ó nosso Senhor, aceita [este serviço] de nós; verdadeiramente, Tu és o que tudo ouve e tudo sabe.”
Abraão é também modelo de intercessor e profeta que roga pelo perdão de sua descendência. Em Sura 14:35–41, ele ora:
رَبِّ ٱجْعَلْنِي مُقِيمَ ٱلصَّلَوٰةِ وَمِن ذُرِّيَّتِي رَبَّنَا وَتَقَبَّلْ دُعَآءِ
(rabbi-jʿalnī muqīma aṣ-ṣalāti wa-min dhurriyyatī rabbanā wa-taqabbal duʿāʾ)
“Senhor meu, faze de mim alguém que observa a oração, e de minha descendência também; Senhor nosso, aceita a minha súplica”).

A teologia islâmica vê em Abraão o pai espiritual não apenas dos judeus e cristãos, mas também dos árabes e de toda a humanidade que se submete ao Deus Único. Ele é chamado de ʾimām (líder espiritual) em Sura 2:124:

إِنِّي جَاعِلُكَ لِلنَّاسِ إِمَامٗا
(ʾinnī jāʿiluka li-nnās ʾimāman)
“Eu te farei um líder para a humanidade”).

A tradição islâmica posterior, tanto no ḥadīth quanto nos comentários clássicos (tafsīr), vê em Abraão o paradigma do crente puro e racional, que busca a verdade por reflexão e fé, não por imposição cultural. Seu sacrifício — que no Islã é atribuído a Ismael — é lembrado anualmente na festividade do ʿĪd al-Aḍḥā (عيد الأضحى), quando os muçulmanos em todo o mundo imolam animais em memória da entrega de Ibrāhīm ao mandado divino (Sura 37:99–111).

Assim, Abraão no Islã não é apenas uma figura ancestral, mas um modelo escatológico e universal de fé, submissão, adoração e pureza doutrinária, sendo o único personagem bíblico cuja trajetória inteira é absorvida, reformulada e elevada como base de identidade religiosa para a comunidade muçulmana global (ʾummah).

A. Abraão na Teologia Islâmica Comparada

A figura de Abraão ocupa lugar privilegiado na teologia islâmica como modelo de monoteísmo puro, submissão à vontade divina, pai dos profetas e iniciador de uma linhagem espiritual que culmina no islã. O Alcorão menciona-o frequentemente, destacando-o como ummatan qānitan li-llāhi ḥanīfan (أُمَّةً قَانِتًا لِلَّهِ حَنِيفًا) — “uma comunidade devotada a Deus, hanīf” (Surata 16:120). Esta tradição se estrutura em torno de três eixos principais: a pureza do monoteísmo (ḥanīfīya), a prova suprema da fé com o sacrifício do filho, e as promessas divinas de aliança e descendência.

B. Abraão como ḥanīf e modelo de monoteísmo puro

A tradição islâmica considera Abraão não apenas como profeta (نَبِيْ, nabiyy), mas como ḥanīf, termo que designa aquele que se inclina para a verdade e rejeita o politeísmo. A palavra حنيف (ḥanīf) provém da raiz حَنَف (ḥ-n-f), que originalmente descrevia uma inclinação, posteriormente teologizada como “inclinação natural para o monoteísmo”. O Alcorão insiste que Abraão “não era dos idólatras” (وَمَا كَانَ مِنَ الْمُشْرِكِينَ, wa-mā kāna mina l-mushrikīn) (Surata 16:120). Em Surata 3:67, diz-se claramente: “Abraão não era judeu nem cristão, mas ḥanīf e muçulmano” (مَا كَانَ إِبْرَاهِيمُ يَهُوُدِيًا وَلَا نَصْرَانِيًا وَلَكِنْ كَانَ حَنِيفًا مُّسْلِمًا, mā kāna Ibrāhīmu yahūdiyyan wa-lā naṣrāniyyan wa-lākin kāna ḥanįan musliman). Essa declaração tem profundos efeitos teológicos: Abraão é o paradigma original da submissão a Deus, anterior a Moisés e Jesus, e por isso o islã se entende como a religião que mais fielmente retoma sua fé primordial.

O conceito de fitḥra (فِطْرَة), ou disposição natural para Deus, também se vincula a Abraão. Surata 30:30 diz: “Volta teu rosto para a religião monoteísta, como ḥanīf, conforme a fitḥra de Deus com que criou os humanos” (فَأَقِمْ وَجْهَكَ لِلْدِيْنِ حَنِيفًا فِطْرَتَ اللهِ الَّتِي فَطَرَ النَّاسَ عَلَيْهَا). Assim, a identidade de Abraão como ḥanīf se torna modelo do muçulmano ideal.

C. A prova de fé: o sacrifício do filho

A narrativa do sacrifício no Alcorão aparece na Surata 37:99–111. Diferentemente do Gênesis, o texto corânico não nomeia o filho. Após mencionar que Abraão orou a Deus por um filho justo (v. 100), o texto afirma: “Quando este alcançou a idade de acompanhá-lo, Abraão disse: Ó meu filho, vi em sonho que te imolava” (فَلَمَّا بَلَغَ مَعَهُ السَّعْيَ قَالَ يَا بُنَيَّ إِنِّيْ أَرَى فِي المَنَامِ أَنّيْ أَذْبَحُكَ). O filho responde: “Faz o que te foi ordenado; achar-me-ás, se Deus quiser, entre os pacientes” (سَتَجِدُنِي إِنْ شَاءَ اللهُ مِنِ الصَّابِرِينَ).

Ambos se submetem ao desígnio divino, e quando Abraão está prestes a cumprir a ordem, Deus o interrompe e envia um cordeiro em resgate. “Resgatamo-lo com um sacrifício grandioso” (وَفَدَيْنَاهُ بِذِبْحِ عَظِيمٍ). O texto enfatiza que esse gesto foi a “prova manifesta” (الْبَلَاءُ الْمُبْلَيْ وَقَدْ صَدَّقَ الرُّؤْيَا). A identidade do filho (Isaque ou Ismael) é tema debatido entre exegetas islâmicos, com muitas correntes considerando Ismael como o filho oferecido, fundamentando assim a genealogia espiritual árabe e o vínculo com Maomé.

A teologia islâmica interpreta esse evento como modelo supremo de islām (submissão total a Deus). Abraão é o profeta que entrega tudo, inclusive seu filho, com confiança absoluta. Tal gesto é celebrado na festa de ʻīd al-aḥā (عِيْدُ الْأَضْحَى), que reproduz o sacrifício do cordeiro.

Essa narrativa dialoga com Gênesis 22 e a leitura cristã do sacrifício como prefiguração do Calvário. Mas no islã, o foco é a submissão e a obediência, mais do que o valor redentor do sacrifício. O cordeiro substituto simboliza a misericórdia divina, e não um pagamento expiatório.

D. Aliança, descendência e promessa

No centro da narrativa abrahâmica estão as promessas divinas que estruturam sua relação com Deus: a concessão de uma terra, a geração de uma descendência numerosa e a bênção para todas as nações da terra. Essa tríade aparece em Gênesis 12:1–3, Gênesis 15:5–21 e Gênesis 17, onde o termo hebraico para “aliança”, בְּרִית (berīt), indica uma relação formal de compromisso.

No Alcorão, essas promessas também são centrais, mas o foco desloca-se para a dimensão espiritual e universal da eleição. Em Surata 2:124, Deus promete tornar Abraão “imã (إِمَامًا) das pessoas”, mas com uma condição: “Minha promessa não alcança os injustos” (لَا يَنَالُ عَهْدِي الْظَّالِمِينَ). Isso indica que a descendência espiritual de Abraão está condicionada à retidão moral, não apenas ao sangue. Essa é uma diferença significativa em relação à tradição judaica, que enfatiza a linhagem patriarcal por meio de Isaque, e à cristã, que espiritualiza a descendência pela fé (cf. Gl 3:7–29).

No islã, a linhagem de Abraão se bifurca em Isaque e Ismael, com ambos os filhos portando bênçãos. Isaque é reconhecido como portador da continuidade profética (Surata 6:84: “Concedemos-lhe Isaque e Jacó, e todos guiamos”), enquanto Ismael é celebrado por sua submissão (صٞادِقَ الْوَعِدِ ṣādiqa l-waʿdi, Surata 19:54) e por erigir, junto a seu pai, a Caaba em Meca (Surata 2:125–129). A oração de Abraão pedindo uma comunidade justa e o envio de um mensageiro (Surata 2:129) é vista pelos comentadores como profecia sobre Maomé.

Nas três tradições, portanto, a descendência de Abraão assume significados distintos: etno-nacional para o judaísmo (com foco na descendência de Isaque), cristológico e espiritual para o cristianismo (com base na fé em Jesus como Messias), e universal-espiritual para o islã (com foco na retidão e submissão à vontade divina).

Assim, Abraão torna-se pai de muitos povos não por uma descendência exclusiva, mas por sua fé, que transcende linhas genealógicas e fundamenta a inclusividade das promessas divinas.

E. Abraão como figura escatológica e universal

A figura de Abraão também transcende a história e adentra o campo escatológico. Em todas as três religiões abraâmicas, ele aparece como referência no tempo do fim, sinal de pertença espiritual e modelo de julgamento justo.

No cristianismo, Lucas 16:22–31 apresenta Abraão como figura celestial que acolhe os justos no “seio de Abraão” (κόλπον ἀβραάμ), um estado intermediário de paz, contraste com o tormento do rico. Ele é também mencionado em Mateus 8:11 como anfitrião de um banquete escatológico junto a Isaque e Jacó. Em João 8:56, Jesus afirma: “Abraão viu meu dia e se alegrou”, conferindo ao patriarca uma visão profética do Cristo futuro.

Na escatologia judaica, textos como os Ḥēqālōt Rabbati descrevem Abraão como figura elevada que habita os céus superiores, acolhe almas e intercede por Israel. A tradição do zekhut ʿavot (mérito dos patriarcas) também concede a ele papel de defensor dos justos no juízo divino.

No islã, a memória escatológica de Abraão se manifesta na صَلَاة (ṣalāt) sobre ele, recitada em todas as orações canônicas: “Ó Deus, abençoe Muhammad e a família de Muhammad como abençoaste Abraão e a família de Abraão” (اللَّهُمَّ صَلِّ عَلَى مُحَمَّدٍ وَعَلَى آلِ مُحَمَّدٍ كَمَا صَلَّيْتَ عَلَى إِبْرَاهِيمَ وَعَلَى آلِ إِبْرَاهِيمَ). Tal prática revela que Abraão permanece vivo na intercessão e na esperança da comunidade muçulmana.

Ademais, os traços de hospitalidade, justiça e intercessão associados a Abraão (Gn 18; Heb 13:2; Midrash Bērēʿēš Rabbāh 48:10) fizeram dele um arquétipo moral universal. A tradição o recorda como aquele que acolheu anjos, defendeu Sodoma e viveu segundo a justiça.

Assim, Abraão, mesmo situado num passado remoto, projeta-se como figura escatológica, juíz, intercessor, e herói da esperança escatológica comum às três religiões que dele derivam.

XIV. Outras Versões de Abraão na Antiguidade

Os povos do Oriente, além dos já mencionados cristãos e muçulmanos, preservaram algum conhecimento de Abraão e elogiam muito seu caráter. De fato, seria fácil compilar uma história de sua vida a partir de suas tradições, embora ela fosse bastante fantasiosa.

Relatos árabes nomeiam seu pai como Azar (Abulfeda, Hist. Anteisl. p. 21), com o qual alguns compararam o contemporâneo Adores, rei de Damasco (Justin. 36, 2; veja Josefo, Ant. 1, 7, 2; Bertheau, Israel. Gesch. p. 217). O nome de sua mãe é dado como Adna (Herbelot, Bib. Orient. s.v. Abraham).

Os magos persas acreditavam que ele era o mesmo que seu fundador, Zerdoust, ou Zoroastro; enquanto os sabeus, seus rivais e oponentes, reivindicam honra similar (Hyde, Bel. Persar. p. 28 sq.). Alguns afirmaram que ele reinou em Damasco (Nicol. Damasc. apud Josefo, Ant. 1, 7, 2; Justin. 36), que viveu muito tempo no Egito (Artapan. et Lupolem. apud Eusébio, Praepar. 9, 17, 18), que ensinou aos egípcios astronomia e aritmética (Josefo, Ant. 1, 8, 2), que inventou as letras e a língua hebraica (Suidas em Abraão), ou os caracteres dos sírios e caldeus (Isidor. Hispal. Orig. 1, 3), que foi autor de várias obras, entre elas o famoso livro intitulado Jezira, ou a Criação — uma obra mencionada no Talmude e muito valorizada por alguns rabinos; mas aqueles que a examinaram sem preconceito falam dela com desprezo.

Nos primeiros séculos do Cristianismo, os heréticos chamados setianos publicaram “Revelações de Abraão”, quando Epifânio diz:

...ἄλλην δὲ ἐξ ὀνόματος Ἀβραάμ, ἣν καὶ ἀποκάλυψιν φάσκουσιν εἶναι, πάσης κακίας ἔμπλεον.

“...e outro em nome de Abraão, que eles também chamam de Apocalipse [ou Revelação], cheio de toda malícia.”
(Epifânio, Haeres. 39, 5).

Atanásio, em sua Synopsis, fala da “Assunção de Abraão”, como outros livros:
Ἐνὼχ, Πατριάρχαι, Προσευχὴ Ἰωσὴφ, ∆ια θήκη Μωϋσέως, Ἀνάληψις Μωϋσέως, Ἀβραὰµ, Ἐλδὰδ καὶ Μωδὰδ, Ἡλίου προφήτου, Σοφονίου προφήτου, Ζαχαρίου πατρὸς Ἰωάννου, Βαροὺχ, Ἀµβακοὺµ, Ἐζεχιὴλ, καὶ ∆ανιὴλ ψευδεπίγραφα.

“Enoque, Patriarcas, Oração de José, Testamento de Moisés, Assunção de Moisés, Abraão, Eldade e Medade, [Livro] do profeta Elias, [Livro] do profeta Sofonias, [Livro] de Zacarias pai de João, Baruque, Habacuque, Ezequiel, e Daniel são [obras] pseudepígrafas.”
(Atanásio, Synopsis Scripturae Sacrae, linha: 02753)

Orígenes diz o mesmo em Luc. Homil. 35, onde nota um livro apócrifo de Abraão, no qual dois anjos, um bom e outro mau, disputam sobre sua condenação ou salvação. Os judeus (Rab. Selem, em Baba Bathra, c. 1) atribuem a ele a Oração da Manhã, o Salmo 89, um Tratado sobre Idolatria e outras obras. As autoridades sobre todos esses pontos, e para outras tradições ainda a respeito de Abraão, podem ser encontradas coletadas em Fabricii Cod. Pseudepigr. V. T. 1, 344 sq.; Eisenmenger, Entd. Judenth. 1, 490; Otho, Lex. Rabb. p. 2 sq.; Stanley, Jewish Church, p. 2 sq.

XV. Abraão na Arte, na Cultura e na Liturgia

A figura de Abraão transcende o texto escritural para habitar o universo simbólico, litúrgico e artístico das três religiões que dele derivam. Sua imagem, seus atos e sua fé são constantemente retratados e celebrados em diversas expressões culturais: da arte visual à poesia, do ritual à liturgia, da arquitetura sagrada à literatura popular. Este tópico examina a presença de Abraão como elemento estruturador na tradição imagética e religiosa de judeus, cristãos e muçulmanos.

A. Representações de Abraão na arte judaica, cristã e islâmica

Na tradição judaica, embora a representação figurativa tenha sido historicamente restringida por motivos anicônicos (cf. Êxodo 20:4), registros visuais de Abraão surgem sobretudo em manuscritos iluminados, como os do “Hagadá de Sarajevo” ou o “Machzor de Worms”, onde o patriarca é retratado no momento do sacrifício de Isaque (ʿAqēdāh). Também aparecem em relevos de sinagogas antigas, como na sinagoga de Dura Europos (séc. III), onde é representado de maneira hierática.

Na arte cristã, Abraão tornou-se tema recorrente desde as catacumbas romanas. Ele aparece no “Sacrifício de Isaque”, representado como prefiguração do Calvário, com destaque para o anjo que detém sua mão. A tipologia visual se estende ao longo dos séculos: Giotto, Rembrandt, Caravaggio e Marc Chagall todos retrataram o momento da prova. A representação do “Seio de Abraão” também era comum em portais românicos e iluminuras medievais.

No islã, por sua tradição iconoclasta, raramente há representações figurativas de Abraão. Contudo, miniaturas persas e otomano-mongólicas (como as do Jāmiʿ al-Tawārīkh) ocasionalmente ilustram Ibrāhīm em cenas do sacrifício ou da reconstrução da Caaba com Ismael. Estas imagens costumam cobrir os rostos com um véu branco ou luz para evitar idolatria. Mais comum, porém, é o recurso a elementos arquitetônicos: a maqām Ibrāhīm em Meca e as gravuras geométricas em mesquitas que evocam a figura do patriarca.

B. Abraão na liturgia e nos ritos religiosos

Na liturgia judaica, Abraão é evocado em vários momentos. No Rosh Hashaná, a leitura da ʿAqēdāh (Gn 22) lembra o mérito de Abraão e Isaque, servindo de intercessão pelos pecados do povo. Durante o Pessach, sua condição de forasteiro e patriarca do povo liberto é relembrada como ícone da esperança redentora. A oração central da Amidá inicia com a invocação dos patriarcas: “Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó” (ʿElōhē Avrāhām, ʿElōhē Yiṣḥāq, ʿElōhē Yaʿaqōv).

No cristianismo, a memória litúrgica de Abraão comparece especialmente na Vigília Pascal, onde é proclamado como “nosso pai na fé”. O Sacrificium Abrahae é lido como prenúncio do sacrifício pascal de Cristo. Ele também aparece nas orações eucarísticas, especialmente na tradição romana antiga: “Olhai com bondade esta oferenda como olhastes o sacrifício de vosso servo Abraão”.

No islã, o patriarca é homenageado na solenidade de ʿĪd al-Aḍḥā (Festa do Sacrifício), que relembra sua entrega ao decreto divino. Também é mencionado diariamente nas orações (ṣalāt) e invocado na tashahhud final. O ṣalāt Ibrāhīmiyya (صَلَاة إِبْرَاهِيمِيَّة) é recitado: “Ó Deus, abençoe Muhammad e sua família como abençoaste Abraão e sua família”.

A presença litúrgica de Abraão reforça sua centralidade espiritual nas três fés. Ele é invocado como intercessor, modelo de entrega, e elo vivo entre o humano e o divino. Sua figura se perpetua não apenas nas Escrituras, mas na prática viva da oração e da memória religiosa.

C. Abraão na cultura popular e na literatura

A figura de Abraão ultrapassou as fronteiras das Escrituras e da teologia institucionalizada para tornar-se um arquétipo recorrente na cultura popular, na literatura universal e no pensamento filosófico-religioso. Sua imagem ressoa em obras poéticas, narrativas literárias, peças teatrais, filmes, reflexões éticas e discursos públicos, servindo como símbolo de fé, obediência, coragem moral e paternidade espiritual. A sua presença se destaca especialmente nas culturas moldadas pelas tradições judaica, cristã e islâmica — mas também inspira artistas e pensadores seculares, que veem em sua história um espelho da condição humana diante do mistério da obediência e do sofrimento.

Na tradição judaica, Abraão aparece com frequência em aggadot e relatos éticos transmitidos oralmente, muitos dos quais penetraram na literatura hebraica moderna. Escritores como S. Y. Agnon e Elie Wiesel evocaram Abraão como símbolo da memória ancestral e da luta interior da fé judaica diante das tragédias históricas. No contexto cristão, ele surge não apenas como personagem bíblico, mas também como metáfora teológica e moral. Kierkegaard, por exemplo, dedica a ele a obra Temor e Tremor (Frygt og Bæven, 1843), onde o patriarca é elevado à categoria de “cavaleiro da fé” por sua disposição em sacrificar Isaque sem compreender a lógica divina — gesto que transcende a ética universal e inaugura uma fé paradoxal, absoluta.

A literatura islâmica também celebra Ibrāhīm como paradigma de submissão e firmeza espiritual. Poetas persas como Rūmī e Ḥāfiẓ mencionam sua fé inabalável, enquanto histórias populares o apresentam como destruidor dos ídolos, símbolo do triunfo do monoteísmo sobre a ignorância (jāhilīyya). O folclore e a tradição oral reforçam esses elementos com riqueza narrativa, ampliando os aspectos de coragem e compaixão.

No teatro e na dramaturgia ocidental, Abraão e o episódio do sacrifício de Isaque têm inspirado desde os autos medievais até peças modernas. Dramatizações do Sacrificium Abrahae foram comuns na Europa medieval como parte das representações litúrgicas. No século XX, autores como Michel de Ghelderode e Wole Soyinka revisitaram a história para explorar tensões éticas, políticas e existenciais. No cinema, versões variadas do episódio do sacrifício aparecem em filmes bíblicos, como The Bible: In the Beginning (1966) de John Huston, ou em obras mais recentes que usam Abraão como referência simbólica em contextos de conflito moral e espiritual.

A cultura popular moderna também recorre ao patriarca como imagem de autoridade moral e ancestralidade. Ele é lembrado em discursos religiosos interconfessionais, é citado em debates sobre fé e razão, e invocado como símbolo de unidade entre as religiões monoteístas. A própria expressão “religiões abraâmicas” já revela sua centralidade como ponto de convergência histórica e espiritual.

Portanto, a presença de Abraão na cultura popular e na literatura revela a vitalidade de seu legado como personagem transcendente — que, mesmo milênios depois, continua a mobilizar imaginação, linguagem e consciência em diferentes culturas e contextos. Sua história, longe de se restringir a um passado sagrado, permanece viva nas metáforas com que interpretamos o presente e buscamos compreender o absoluto.

XVI. Abraão como Pai da Fé

Ao longo das tradições judaica, cristã e islâmica, nenhuma figura humana é tão amplamente reconhecida como o pai espiritual da fé quanto Abraão, como analisamos detalhadamente em cada uma das seções anteriores. Seu caminho não é descrito apenas como o de um ancestral biológico ou fundador de uma linhagem, mas como o de um homem cuja confiança na palavra divina inaugura um modelo de relacionamento com Deus baseado na obediência, na escuta e na entrega. A imagem de Abraão como “pai dos crentes” (πατὴρ πάντων τῶν πιστευόντων [patēr pantōn tōn pisteuontōn], Rm 4:11) transcende os limites da genealogia e se torna um arquétipo da fé diante da incerteza. No relato bíblico, ele crê na promessa de uma descendência impossível (Gn 15:6), parte para uma terra desconhecida (Gn 12:1), e está disposto a oferecer em sacrifício seu próprio filho (Gn 22), demonstrando um tipo de confiança que se tornou referência para múltiplas gerações. O presente tópico examina essa configuração da fé abraâmica sob vários ângulos: a resposta às promessas divinas, sua ruptura com o politeísmo do ambiente original, e sua recepção nas tradições religiosas posteriores.

A. A fé como resposta à promessa

A primeira característica da fé de Abraão, conforme enfatizada nos relatos de Gênesis, é seu caráter de resposta obediente a uma promessa divina, cuja realização escapava a qualquer expectativa humana plausível. Logo em Gênesis 12:1–3, o chamado de Deus é expresso de forma abrupta, sem introdução prévia: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei”. A promessa está estruturada em três camadas: terra, descendência e bênção universal. Abraão responde com ação imediata, partindo de Harã com 75 anos (Gn 12:4), sem saber para onde ia, como ecoará Hebreus 11:8: “Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu”.

Essa confiança inicial se repete e se aprofunda em Gênesis 15, onde Deus reafirma a promessa de descendência, apesar da esterilidade de Sara. No momento em que Abraão questiona como tal promessa se realizará — “Soberano Senhor, que me haverás de dar, visto que continuo sem filhos?” (Gn 15:2) —, Deus o leva para fora e lhe mostra as estrelas: “Assim será a tua descendência” (Gn 15:5). O versículo seguinte se torna um dos mais significativos de toda a tradição bíblica: “Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado como justiça” (Gn 15:6). Esse ato de fé, fora de qualquer comprovação empírica, se tornou fundamento da doutrina paulina da justificação pela fé (Rm 4:3; Gl 3:6), bem como inspiração para a reflexão judaica sobre tsedaqah (צְדָקָה, “justiça”).

Representação de um vasto céu noturno, simbolizando a promessa divina a Abraão: 'Assim será a tua descendência' (Gênesis 15:5).
“Assim será a tua descendência.”
(Gênesis 15:5).

Em Gênesis 17, a promessa é ratificada e vinculada a uma aliança formal, selada pelo sinal da circuncisão. Aqui, Deus muda o nome do patriarca de Abrão (“pai exaltado”) para Abraão (אַבְרָהָם, ʾaḇrāhām), interpretado no texto como “pai de uma multidão de nações” (Gn 17:5). Mesmo diante do riso de Sara (Gn 18:12), a promessa continua: um filho nascerá, Isaque, o herdeiro da aliança.

A culminação da fé de Abraão, segundo a narrativa bíblica, ocorre em Gênesis 22, o famoso episódio da ʿAqēdāh (עֲקֵדָה), o “amarração” ou “sacrifício” de Isaque. Deus pede aquilo que havia prometido — o filho — e Abraão se dispõe a devolvê-lo, sem hesitação, acreditando que, se necessário, Deus poderia ressuscitá-lo (cf. Hb 11:19). Esse gesto é interpretado como o ponto mais alto da fé obediente, da confiança sem reservas. A tradição rabínica irá considerá-lo o gesto meritório supremo de toda a história de Israel, enquanto os autores cristãos verão ali uma figura da entrega do Filho por Deus Pai.

Assim, Abraão se torna, em todos os sentidos, o prototipo da fé: não uma fé irracional, mas uma confiança radicalmente enraizada na fidelidade do Deus que promete.

B. A fé de Abraão em contraste com o ambiente idólatra

A fé de Abraão não nasce no vazio, mas em ruptura com o contexto religioso politeísta da Mesopotâmia, como já observamos. Segundo as tradições judaicas posteriores, especialmente os Midrashim e o Talmude, essa ruptura foi dramática, explícita e radical. Abraão é descrito como alguém que, ainda jovem, já rejeitava os ídolos do pai, Terá (תֶּרַח, Teraḥ), comerciante de imagens pagãs em Ur dos Caldeus. Um dos episódios midráshicos mais conhecidos (o já citado Bereshit Rabbah 38:13) conta que Abraão quebrou os ídolos da loja de seu pai e colocou o bastão nas mãos da maior estátua. Quando Terá exigiu explicações, Abraão respondeu: “O maior quebrou os outros.” Terá retruca: “Mas isso é impossível!” — ao que Abraão responde: “Então por que você os adora, se nem isso eles podem fazer?”

Essas tradições, embora não estejam no texto bíblico, explicitam o elemento monoteísta fundacional da fé abraâmica. Em Josué 24:2, há uma referência direta ao politeísmo da família de Abraão: “Antigamente, os vossos pais, incluindo Terá, pai de Abraão e de Naor, habitavam além do Eufrates e serviam a outros deuses.” A decisão de Abraão de obedecer a um único Deus (YHWH) marca uma revolução espiritual silenciosa, pois ele abandona não apenas uma geografia, mas uma cosmologia.

A crítica moderna observa que o relato bíblico de Gênesis 12–22 não enfatiza diretamente essa ruptura religiosa, mas seu pano de fundo está implícito: Abraão ouve uma voz única, responde a um chamado exclusivo, e constrói altares apenas ao Deus que lhe aparece (Gn 12:7; 13:18). Em meio a um mundo de deuses locais e deuses familiares, sua resposta a uma divindade transcendente e não territorial revela a origem de uma nova forma de fé.

O contraste é ampliado no Livro de Jubileus (século II a.C.), que apresenta Abraão como um reformador religioso que instrui seus filhos a não se contaminarem com os ídolos das nações. Nos Targumim aramaicos, o nome do Deus que chama Abraão é “o Senhor do Céu e da Terra”, uma fórmula que acentua a universalidade e soberania de YHWH diante dos deuses tribais.

Portanto, a fé de Abraão não é apenas um assentimento interior, mas uma decisão teológica histórica: o abandono das divindades familiares e regionais e a adesão ao Deus único, que é ao mesmo tempo pessoal e absoluto. Essa decisão configura toda a teologia da eleição, da aliança e do monoteísmo ético que marcará o restante da revelação bíblica, e o coloca como figura máxima de fé a obediência.

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