O Cânon do Novo Testamento
Ao Novo Testamento pertencem os 27 livros que foram analisados nesta Introdução. Desde o século IV é costume nas igrejas cristãs de todas as denominações chamar essa lista de escritos de cânon do Novo Testamento.
A palavra grega kanon significa vara, cano. Disso surgiu o significado régua ou medida-padrão dos carpinteiros. No sentido derivado, a palavra foi depois aplicada para se designar uma regra ou regulamento.
Quando no século IV a palavra passou a ser adotada para os escritos do Novo Testamento, tratava-se do padrão segundo o qual os escritos eram universalmente reconhecidos como apostólicos e poderiam, portanto, ser lidos nos cultos em todas as igrejas cristãs.
Hoje o termo é usado para designar a diferença entre os escritos que são fundamento para a fé, o ensino e a vida das igrejas cristãs, e os outros escritos dos primeiros tempos que servem simplesmente como documentos da história da igreja ou da história das heresias.
Em seguida queremos descrever os diversos estágios da formação do cânon e apresentar os critérios usados pela igreja antiga nas suas decisões. A última questão trata da importância que esse cânon concluído no século IV tem para as igrejas cristãs de hoje.
1. Sobre o surgimento do cânon do Novo Testamento
Já nos escritos dos pais da igreja Clemente de Roma, Inácio, Policarpo e Papias descobrimos que nas suas discussões se baseavam não somente no Senhor Jesus Cristo, mas também nas Escrituras. Com Escrituras denotavam não somente o AT, mas também os evangelhos. Os escritos do apóstolo Paulo também eram aceitos como autoridade reconhecida. Mas não havia nenhum indício de um cânon definido naquela época. Mesmo assim, já deve ter existido uma coletânea das cartas de Paulo, pois em 1 Clemente (95 d.C.) já há citações de Romanos e de 1 Coríntios. Possivelmente as cartas de Paulo já foram reunidas antes disso, como parece indicar a observação em 2Pedro 3.16.
Temos informações um pouco mais exatas nos anos 130-140 d.C. por meio de Policarpo e Clemente de Alexandria, que nos seus escritos fazem menção dos evangelhos de Mateus e de Lucas. Isso poderia ser uma indicação de que na metade do século II já havia uma coletânea dos quatro evangelhos, que vinham sendo cada vez mais reconhecidos nas igrejas da antiguidade, enquanto também evangelhos apócrifos e tradições orais sobre Jesus eram difundidos.
A primeira definição dos escritos-padrão para a igreja cristã vem de Marcion em 145 d.C. Ele era “paulinista” e por isso só reconhecia 10 cartas de Paulo (excluía as cartas pastorais) e uma versão do evangelho de Lucas purificada das influências vétero-testamentárias e judaizantes.
No final do século II começa a se delinear o cânon do Novo Testamento nos escritos de Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria. É um cânon em formação mas ainda não concluído, ao qual pertencem os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos, 13 cartas de Paulo, 1 Pedro e 1 João, como também o Apocalipse de João.
Nessa época surge também o documento que denominamos de Cânon Muratóri, segundo o bibliotecário L. A. Muratóri, que descobriu o fragmento em 1740 na Bibliotheca Ambrosiana de Mailand. Um desconhecido preparou um registro oficial das escrituras que deveriam ser aceitas e lidas publicamente na Igreja Católica. Infelizmente falta o início. Começa com as últimas palavras de Marcos e denota o Evangelho de Lucas como o terceiro e o de João como o quarto evangelho. Evidentemente o trecho sobre Mateus como primeiro evangelho se perdeu. Se comparamos a lista de livros desse Cânon com a lista do Novo Testamento de hoje, notamos que faltam 1 Pedro, Hebreus, Tiago e 3 João. Sobressai o fato de que falta 1 Pedro, que em geral era aceito naquela época. Além disso contém o escrito “Sapientia Salomonis” e o Apocalipse de Pedro, com a observação “… que alguns de nós não querem ler na igreja”.1
De grande valor nesse Cânon é que descobrimos os critérios usados para a delimitação do cânon. Um critério era a autoria apostólica; Marcos e Lucas são reconhecidos como discípulos de apóstolos e, por isso, aceitos. Hebreus não é aceito porque a autoria paulina é questionada. O que importa, portanto, é a proximidade com a revelação trazida ao mundo por meio de Jesus Cristo, que é garantida pelo testemunho ocular. Além disso, outro critério era se o livro era usado e aceito por todas as igrejas; mais tarde esse critério foi formulado explicitamente dessa forma por Orígenes. É surpreendente notar a importância que a igreja do século II dava ao aspecto de Jesus Cristo estar no centro da mensagem do escrito em consideração.
Em relação aos evangelhos, a formação do cânon estava concluída no final do século II. Nas cartas dos apóstolos há clareza em relação às cartas de Paulo. A discussão em relação às outras cartas ainda permanece aberta nessa época.
O processo da formação do cânon só chega ao seu final no século IV. A igreja do oriente declara como canônicos, por meio da 39ª carta pascal de Atanásio (367 d.C.), os 27 livros que hoje temos no Novo Testamento. Nessa carta, o termo cânon é usado pela primeira vez para denominar os critérios para os livros aceitos pela igreja. Pela intervenção de Jerônimo, essa definição é aceita pela igreja do ocidente nos sínodos de Hipona Régia (393) e de Cartago (397), ocasião em que a carta aos Hebreus não é colocada entre as cartas de Paulo.
Foram necessários alguns séculos para que se chegasse à definição do cânon que conhecemos hoje. Isso pode ser estranho, mas corresponde ao caráter da Bíblia, a Palavra de Deus transmitida a nós por meio de palavras humanas (2Pe 1.21).
2. Critérios para a formação do cânon.
Quem autorizou a igreja antiga a definir quais escritos seriam Escrituras Sagradas? A apresentação da formação do cânon já mostrou que não se tratou da ação arbitrária e autoritária de alguns concílios ou até do resultado de um conflito de poder da igreja antiga. O que aconteceu foi que, por meio de um processo de várias centenas de anos, se cristalizou em consenso de toda a igreja cristã o que deveria estar no cânon e o que não poderia. Esse é um fenômeno admirável, se levarmos em conta as discussões teológicas dificílimas que estavam sendo travadas na mesma época. Por isso, creio que D. A. Carson, D. J. Moo e L. Morris têm razão quando dizem: “It is not so much that the church selected the canon as that the canon selected itself.” (Não foi a igreja que fez a seleção dos livros que iriam para o cânon e dos que não, mas o cânon fez a sua própria seleção).2 No decorrer dos séculos se impuseram aqueles escritos que formavam a base da fé cristã. Devemos isso sobretudo à ação do Espírito Santo, de que Jesus já dissera que conduziria os discípulos a toda a verdade (Jo 16.13).
Quais critérios foram fundamentais nesse processo? A formação da opinião da igreja antiga deixa transparecer três critérios.
2.1 O critério da originalidade
O prólogo de 1 João explica o que isso quer dizer: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (1Jo 1.1-3). A revelação de Deus em Jesus não veio diretamente a nós. Nós dependemos do relato de testemunhas oculares. Elas fazem a ponte entre a revelação ocorrida e as gerações futuras. O relato das testemunhas oculares é único e insubstituível, porque a revelação de Deus aconteceu na história.
Por isso a igreja antiga adotou o critério da originalidade e com isso queria dizer a autoria apostólica. Além desse círculo de testemunhas oculares, só foram aceitos o apóstolo Paulo e alguns discípulos de apóstolos.
Entretanto, a simples indicação do autor não era suficiente. Muitos escritos que indicaram um apóstolo como seu autor foram rejeitados. A verificação do conteúdo aguçou a percepção da diferença entre o que era apostólico e o que era apócrifo. Todo aquele que lê os evangelhos apócrifos já se convence disso.3
2.2 A concordância com os fundamentos da fé (a ortodoxia)
Os primeiros séculos da igreja cristã são marcados pela batalha a favor da verdade das afirmações teológicas. As igrejas ameaçadas pelos ensinos dos falsos mestres (gnosticismo, Marcion) precisavam de uma regra de fé (grego: kanon tes pisteos; latim: regula fidei), por meio da qual pudessem diferenciar o “verdadeiro” do “falso”. Os movimentos pela profissão de fé são evidências disso.
Por isso não devemos nos admirar do fato de que, na formação do cânon do Novo Testamento, a pergunta pela concordância com a regra de fé, ou seja, com a fé cristã reconhecida como ortodoxa pela maioria, tenha tido papel fundamental. O Evangelho de Tomé e o Evangelho Veritatis não foram aceitos porque são influenciados pelo gnosticismo.
2.3 Reconhecimento geral
E em terceiro lugar, somente se impuseram os escritos que durante os primeiros séculos tiveram aceitação geral nas igrejas. Na formação do cânon, o que importava não era a imposição de alguns grupos. O cânon do Novo Testamento deveria servir de fundamento para todo o cristianismo. A consideração pelas dúvidas e objeções fez com que se tornasse um processo longo de formação da opinião geral e foi marcado por muita paciência e respeito pelas opiniões uns dos outros.
3. O significado do cânon do Novo Testamento hoje
Na consideração do longo processo da formação do cânon surgem muitas perguntas: Por que a igreja de Jesus Cristo necessita de um cânon dos escritos autorizados? A igreja não está ligada diretamente ao seu Senhor por meio do Espírito Santo, que ainda hoje quer dirigir a igreja a toda a verdade?
Se o processo da formação do cânon levou tantos anos, por que deveria ter terminado com as decisões do século IV? Não seria necessário testar os 27 escritos novamente nos dias de hoje para verificar se são de fato canônicos?
Será o cânon dos escritos do Novo Testamento uma real ajuda para evitar desvios nos ensinos da igreja cristã? O ponto crucial não está na interpretação desses escritos?
Em uma Introdução e Síntese como esta, essas perguntas só podem receber um tratamento muito breve.
Se a igreja de Jesus Cristo não tivesse um cânon dos escritos aceitos, os visionários e profetas não poderiam ser provados. Qualquer um pode fazer a reivindicação de que está falando em nome do Espírito Santo. Os 27 livros canônicos do Novo Testamento têm comprovado serem um padrão confiável de discernimento entre revelação de Deus e inspiração humana por quase 2.000 anos de história da igreja. O Espírito de Deus que fala hoje é o mesmo Espírito que dirigiu os autores desses livros e que cuidou de todo o processo de formação do cânon. Ele faz a ligação entre a nossa fé e vida e aquilo que Deus, de uma vez por todas, nos revelou por meio de Jesus Cristo.
G. Maier4 se posicionou contra a tentativa de redefinir o cânon, na polêmica com E. Käsemann.5 Maier rejeita a tentativa de se redefinir os limites do cânon com os seguintes argumentos: “Em vista da situação descrita, exegetas e teólogos buscam há mais de 200 anos o cânon dentro do cânon, isto é, a palavra normativa de autoridade divina. Esse empreendimento de 200 anos foi a pique, já que ninguém está em condições de definir o cânon dentro do cânon com convicção e clareza. Visto que cada um define o cânon dentro do cânon de forma diferente e faz isso sem muita fundamentação (leia-se, por livre escolha), subjetividade desmesurada acabe se tornando autoridade sobre aquilo que deve possuir autoridade divina”.6 Por esses motivo, eu também considero desnecessária a discussão sobre os limites do cânon.
É verdade que muito depende da interpretação dos escritos canônicos. Por isso a hermenêutica merece atenção especial. Entretanto, ela seria impossível, se não estivesse definido antes pelo menos o que precisa ser interpretado. O cânon do Novo Testamento ajuda também a verificar se os métodos da hermenêutica são apropriados ou não.
Por isso só podemos agradecer a Deus porque mesmo nas igrejas cristãs tão divididas ainda temos hoje um cânon de 27 livros que servem de fundamento para a fé cristã. O objetivo dessa Síntese e Introdução é facilitar a compreensão desses livros. Por isso foi dada tanta atenção à questão da autoria, porque a originalidade, ou seja, a proximidade com a revelação, foi um critério decisivo para a confirmação dos livros como canônicos.
A palavra grega kanon significa vara, cano. Disso surgiu o significado régua ou medida-padrão dos carpinteiros. No sentido derivado, a palavra foi depois aplicada para se designar uma regra ou regulamento.
Quando no século IV a palavra passou a ser adotada para os escritos do Novo Testamento, tratava-se do padrão segundo o qual os escritos eram universalmente reconhecidos como apostólicos e poderiam, portanto, ser lidos nos cultos em todas as igrejas cristãs.
Hoje o termo é usado para designar a diferença entre os escritos que são fundamento para a fé, o ensino e a vida das igrejas cristãs, e os outros escritos dos primeiros tempos que servem simplesmente como documentos da história da igreja ou da história das heresias.
Em seguida queremos descrever os diversos estágios da formação do cânon e apresentar os critérios usados pela igreja antiga nas suas decisões. A última questão trata da importância que esse cânon concluído no século IV tem para as igrejas cristãs de hoje.
1. Sobre o surgimento do cânon do Novo Testamento
Já nos escritos dos pais da igreja Clemente de Roma, Inácio, Policarpo e Papias descobrimos que nas suas discussões se baseavam não somente no Senhor Jesus Cristo, mas também nas Escrituras. Com Escrituras denotavam não somente o AT, mas também os evangelhos. Os escritos do apóstolo Paulo também eram aceitos como autoridade reconhecida. Mas não havia nenhum indício de um cânon definido naquela época. Mesmo assim, já deve ter existido uma coletânea das cartas de Paulo, pois em 1 Clemente (95 d.C.) já há citações de Romanos e de 1 Coríntios. Possivelmente as cartas de Paulo já foram reunidas antes disso, como parece indicar a observação em 2Pedro 3.16.
Temos informações um pouco mais exatas nos anos 130-140 d.C. por meio de Policarpo e Clemente de Alexandria, que nos seus escritos fazem menção dos evangelhos de Mateus e de Lucas. Isso poderia ser uma indicação de que na metade do século II já havia uma coletânea dos quatro evangelhos, que vinham sendo cada vez mais reconhecidos nas igrejas da antiguidade, enquanto também evangelhos apócrifos e tradições orais sobre Jesus eram difundidos.
A primeira definição dos escritos-padrão para a igreja cristã vem de Marcion em 145 d.C. Ele era “paulinista” e por isso só reconhecia 10 cartas de Paulo (excluía as cartas pastorais) e uma versão do evangelho de Lucas purificada das influências vétero-testamentárias e judaizantes.
No final do século II começa a se delinear o cânon do Novo Testamento nos escritos de Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria. É um cânon em formação mas ainda não concluído, ao qual pertencem os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos, 13 cartas de Paulo, 1 Pedro e 1 João, como também o Apocalipse de João.
Nessa época surge também o documento que denominamos de Cânon Muratóri, segundo o bibliotecário L. A. Muratóri, que descobriu o fragmento em 1740 na Bibliotheca Ambrosiana de Mailand. Um desconhecido preparou um registro oficial das escrituras que deveriam ser aceitas e lidas publicamente na Igreja Católica. Infelizmente falta o início. Começa com as últimas palavras de Marcos e denota o Evangelho de Lucas como o terceiro e o de João como o quarto evangelho. Evidentemente o trecho sobre Mateus como primeiro evangelho se perdeu. Se comparamos a lista de livros desse Cânon com a lista do Novo Testamento de hoje, notamos que faltam 1 Pedro, Hebreus, Tiago e 3 João. Sobressai o fato de que falta 1 Pedro, que em geral era aceito naquela época. Além disso contém o escrito “Sapientia Salomonis” e o Apocalipse de Pedro, com a observação “… que alguns de nós não querem ler na igreja”.1
De grande valor nesse Cânon é que descobrimos os critérios usados para a delimitação do cânon. Um critério era a autoria apostólica; Marcos e Lucas são reconhecidos como discípulos de apóstolos e, por isso, aceitos. Hebreus não é aceito porque a autoria paulina é questionada. O que importa, portanto, é a proximidade com a revelação trazida ao mundo por meio de Jesus Cristo, que é garantida pelo testemunho ocular. Além disso, outro critério era se o livro era usado e aceito por todas as igrejas; mais tarde esse critério foi formulado explicitamente dessa forma por Orígenes. É surpreendente notar a importância que a igreja do século II dava ao aspecto de Jesus Cristo estar no centro da mensagem do escrito em consideração.
Em relação aos evangelhos, a formação do cânon estava concluída no final do século II. Nas cartas dos apóstolos há clareza em relação às cartas de Paulo. A discussão em relação às outras cartas ainda permanece aberta nessa época.
O processo da formação do cânon só chega ao seu final no século IV. A igreja do oriente declara como canônicos, por meio da 39ª carta pascal de Atanásio (367 d.C.), os 27 livros que hoje temos no Novo Testamento. Nessa carta, o termo cânon é usado pela primeira vez para denominar os critérios para os livros aceitos pela igreja. Pela intervenção de Jerônimo, essa definição é aceita pela igreja do ocidente nos sínodos de Hipona Régia (393) e de Cartago (397), ocasião em que a carta aos Hebreus não é colocada entre as cartas de Paulo.
Foram necessários alguns séculos para que se chegasse à definição do cânon que conhecemos hoje. Isso pode ser estranho, mas corresponde ao caráter da Bíblia, a Palavra de Deus transmitida a nós por meio de palavras humanas (2Pe 1.21).
2. Critérios para a formação do cânon.
Quem autorizou a igreja antiga a definir quais escritos seriam Escrituras Sagradas? A apresentação da formação do cânon já mostrou que não se tratou da ação arbitrária e autoritária de alguns concílios ou até do resultado de um conflito de poder da igreja antiga. O que aconteceu foi que, por meio de um processo de várias centenas de anos, se cristalizou em consenso de toda a igreja cristã o que deveria estar no cânon e o que não poderia. Esse é um fenômeno admirável, se levarmos em conta as discussões teológicas dificílimas que estavam sendo travadas na mesma época. Por isso, creio que D. A. Carson, D. J. Moo e L. Morris têm razão quando dizem: “It is not so much that the church selected the canon as that the canon selected itself.” (Não foi a igreja que fez a seleção dos livros que iriam para o cânon e dos que não, mas o cânon fez a sua própria seleção).2 No decorrer dos séculos se impuseram aqueles escritos que formavam a base da fé cristã. Devemos isso sobretudo à ação do Espírito Santo, de que Jesus já dissera que conduziria os discípulos a toda a verdade (Jo 16.13).
Quais critérios foram fundamentais nesse processo? A formação da opinião da igreja antiga deixa transparecer três critérios.
2.1 O critério da originalidade
O prólogo de 1 João explica o que isso quer dizer: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (1Jo 1.1-3). A revelação de Deus em Jesus não veio diretamente a nós. Nós dependemos do relato de testemunhas oculares. Elas fazem a ponte entre a revelação ocorrida e as gerações futuras. O relato das testemunhas oculares é único e insubstituível, porque a revelação de Deus aconteceu na história.
Por isso a igreja antiga adotou o critério da originalidade e com isso queria dizer a autoria apostólica. Além desse círculo de testemunhas oculares, só foram aceitos o apóstolo Paulo e alguns discípulos de apóstolos.
Entretanto, a simples indicação do autor não era suficiente. Muitos escritos que indicaram um apóstolo como seu autor foram rejeitados. A verificação do conteúdo aguçou a percepção da diferença entre o que era apostólico e o que era apócrifo. Todo aquele que lê os evangelhos apócrifos já se convence disso.3
2.2 A concordância com os fundamentos da fé (a ortodoxia)
Os primeiros séculos da igreja cristã são marcados pela batalha a favor da verdade das afirmações teológicas. As igrejas ameaçadas pelos ensinos dos falsos mestres (gnosticismo, Marcion) precisavam de uma regra de fé (grego: kanon tes pisteos; latim: regula fidei), por meio da qual pudessem diferenciar o “verdadeiro” do “falso”. Os movimentos pela profissão de fé são evidências disso.
Por isso não devemos nos admirar do fato de que, na formação do cânon do Novo Testamento, a pergunta pela concordância com a regra de fé, ou seja, com a fé cristã reconhecida como ortodoxa pela maioria, tenha tido papel fundamental. O Evangelho de Tomé e o Evangelho Veritatis não foram aceitos porque são influenciados pelo gnosticismo.
2.3 Reconhecimento geral
E em terceiro lugar, somente se impuseram os escritos que durante os primeiros séculos tiveram aceitação geral nas igrejas. Na formação do cânon, o que importava não era a imposição de alguns grupos. O cânon do Novo Testamento deveria servir de fundamento para todo o cristianismo. A consideração pelas dúvidas e objeções fez com que se tornasse um processo longo de formação da opinião geral e foi marcado por muita paciência e respeito pelas opiniões uns dos outros.
3. O significado do cânon do Novo Testamento hoje
Na consideração do longo processo da formação do cânon surgem muitas perguntas: Por que a igreja de Jesus Cristo necessita de um cânon dos escritos autorizados? A igreja não está ligada diretamente ao seu Senhor por meio do Espírito Santo, que ainda hoje quer dirigir a igreja a toda a verdade?
Se o processo da formação do cânon levou tantos anos, por que deveria ter terminado com as decisões do século IV? Não seria necessário testar os 27 escritos novamente nos dias de hoje para verificar se são de fato canônicos?
Será o cânon dos escritos do Novo Testamento uma real ajuda para evitar desvios nos ensinos da igreja cristã? O ponto crucial não está na interpretação desses escritos?
Em uma Introdução e Síntese como esta, essas perguntas só podem receber um tratamento muito breve.
Se a igreja de Jesus Cristo não tivesse um cânon dos escritos aceitos, os visionários e profetas não poderiam ser provados. Qualquer um pode fazer a reivindicação de que está falando em nome do Espírito Santo. Os 27 livros canônicos do Novo Testamento têm comprovado serem um padrão confiável de discernimento entre revelação de Deus e inspiração humana por quase 2.000 anos de história da igreja. O Espírito de Deus que fala hoje é o mesmo Espírito que dirigiu os autores desses livros e que cuidou de todo o processo de formação do cânon. Ele faz a ligação entre a nossa fé e vida e aquilo que Deus, de uma vez por todas, nos revelou por meio de Jesus Cristo.
G. Maier4 se posicionou contra a tentativa de redefinir o cânon, na polêmica com E. Käsemann.5 Maier rejeita a tentativa de se redefinir os limites do cânon com os seguintes argumentos: “Em vista da situação descrita, exegetas e teólogos buscam há mais de 200 anos o cânon dentro do cânon, isto é, a palavra normativa de autoridade divina. Esse empreendimento de 200 anos foi a pique, já que ninguém está em condições de definir o cânon dentro do cânon com convicção e clareza. Visto que cada um define o cânon dentro do cânon de forma diferente e faz isso sem muita fundamentação (leia-se, por livre escolha), subjetividade desmesurada acabe se tornando autoridade sobre aquilo que deve possuir autoridade divina”.6 Por esses motivo, eu também considero desnecessária a discussão sobre os limites do cânon.
É verdade que muito depende da interpretação dos escritos canônicos. Por isso a hermenêutica merece atenção especial. Entretanto, ela seria impossível, se não estivesse definido antes pelo menos o que precisa ser interpretado. O cânon do Novo Testamento ajuda também a verificar se os métodos da hermenêutica são apropriados ou não.
Por isso só podemos agradecer a Deus porque mesmo nas igrejas cristãs tão divididas ainda temos hoje um cânon de 27 livros que servem de fundamento para a fé cristã. O objetivo dessa Síntese e Introdução é facilitar a compreensão desses livros. Por isso foi dada tanta atenção à questão da autoria, porque a originalidade, ou seja, a proximidade com a revelação, foi um critério decisivo para a confirmação dos livros como canônicos.