Relevância do Antigo Testamento para o Novo Testamento
O Novo Testamento não é algo independente. Juntamente com o Antigo Testamento, constitui uma parte da Bíblia dos cristãos, originada no contexto da obra e dos ensinamentos de Jesus e da formação da igreja primitiva. Situa-se no início do desenvolvimento histórico da teologia sistemática ou dogmática. Resta agora considerarmos cada um desses aspectos e sua relevância para nosso estudo. Considerar o Novo Testamento como parte da Bíblia acarreta algumas questões importantes e inevitáveis, que por sua vez nos levam a duas ou três tarefas a elas relacionadas.
Em primeiro lugar, temos o fato de que os primeiros cristãos viam-se como herdeiros da religião retratada no Antigo Testamento, expressa sob a forma do judaísmo. Pensavam em si mesmos como uma continuação do povo que adorou o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, cuja expressão literária encontra-se no que vieram chamar de Antigo Testamento. [1] Portanto, uma questão essencial está em determinar-se a relação existente entre os dois Testamentos. Devemos nos perguntar especialmente: de que forma os autores do Novo Testamento viam o Antigo Testamento e como o utilizavam?
Em segundo lugar, gostaríamos de colocar a seguinte questão: não seria possível, ou mesmo preferível, a alternativa de se tentar escrever uma teologia de toda a Bíblia, em vez de simplesmente um estudo de um dos Testamentos? Isso seria uma tarefa monumental, ainda mais difícil em raizão dos próprios estudiosos do Novo Testamento.
Até bem pouco tempo, as duas divisões da Bíblia eram conhecidas entre os cristãos como o Antigo e o Novo Testamento. No entanto, muitos sentem que essa nomenclatura implica um veredicto sobre o primeiro Testamento, e que essa é uma postura insensível em relação aqueles que o aceitam como sendo as Escrituras Sagradas, embora não aceitem a fé cristã. Então, passou-se a usar um termo neutro, “Bíblia Hebraica”, que pode ser usado tanto por cristãos quanto por judeus. A nomenclatura não é inteiramente feliz, pois pode parecer que o contrário dela seja a “Bíblia Grega”, termo que de qualquer modo faz referencia à tradução da Bíblia Hebraica para o grego. Neste livro, que se preocupa com a ótica cristã em relação ao primeiro Testamento, vamos manter a nomenclatura tradicional.
Estudiosos do Antigo Testamento não apresentaram muito consenso sobre a forma de escrever uma teologia a respeito de seu objeto de estudo. Logo, essa tarefa apresentaria os mesmos problemas que encontramos ao lidar com um dos Testamentos apenas: o fato de termos que lidar com uma vasta quantidade de obras literárias, pertencentes a um intervalo de tempo demasiadamente amplo, com formas literárias bastante variadas e que abrangem uma imensa diversidade de conceitos, muitos dos quais podem parecem contraditórios, sendo alguns deles mais rudimentares e outros muito elaborados. Mesmo com todas essas dificuldades, podemos garantir que esse objetivo é louvável, já havendo no mínimo duas tentativas nesse sentido.
Em terceiro lugar, uma tarefa menos ambiciosa é sugerida pelos próprios títulos dos livros que tentam escrever uma teologia bíblica do Novo Testamento. Com isso queremos dizer que já se reconhece o fato de que as raizes do pensamento dos escritores neotestamentários encontram-se no Antigo Testamento (e na sua transmissão no âmbito da literatura do judaísmo). Assim, a tarefa do teólogo é desenterrar essas raízes e verificar a forma como determinaram o crescimento e os frutos delas resultantes. A obra de Hans Hibner é uma tentativa nesse sentido, bastante minuciosa por sinal. Porém, tem a tendência de se concentrar apenas nesse aspecto da teologia do Novo Testamento, deixando de lado outros tipos de material. Uma abordagem mais ampla e satisfatória foi adotada por Peter Stuhlmacher. Sua obra de dois volumes é dominada pelo princípio de que “a teologia neotestamentaria deve ser escrita sob a forma de uma teologia bíblica do Novo Testamento, que tem suas raízes no Antigo Testamento e está aberta a sua influência, e que deve ser vista como parte de uma teologia bíblica que toma em conjunto o Antigo e o Novo Testamentos”. Stuhlmacher esta certo: o estudo da teologia neotestamentiria deve se preocupar em traçar as características que brotam dos ingredientes utilizados para se chegar à sua forma atual.[2]
Talvez o que esteja em discussão seja uma questão de foco. Este livro, por exemplo, seria algo de proporções impossíveis e estaria muito além da competência de seu autor se tentasse escrever uma teologia de toda a Bíblia. No entanto, uma teologia neotestamentiria com toda certeza deve ser uma teologia bíblica, uma vez que não há como negar que o pensamento dos autores neotestamentirios foi influenciado pelo Antigo Testamento de duas diferentes maneiras. A primeira está no fato de que todos eram judeus por nascimento ou na maneira de pensar. Portanto, pensavam segundo as estruturas de um judaísmo formado no contexto do Antigo Testamento. A segunda refere-se as incursões particulares e deliberadas que eles faziam imprescindível que essa grande obra seja urgentemente traduzida!
A primeira e a terceira tarefas são complementares. A primeira investiga a forma como os autores neotestamentirios viam o Antigo Testamento, e a terceira investiga o modo como o Antigo Testamento influenciou o pensamento desses autores.
Os escritores neotestamentarios pensavam no Antigo Testamento a fim de desenvolver sua própria teologia. Logo, vemos que a influência do Antigo Testamento está mais para um tesouro explorado com entusiasmo do que para um contexto passivamente aceito.
A esta altura, convém que façamos referência a uma das menores obras que temos atualmente sobre o estudo do Novo Testamento, embora seja também uma das mais relevantes nesse campo. Trata-se de uma obra escrita por C. H. Dodd, intitulada According to the Scriptures. Nela, Dodd levanta duas questões. A primeira, bastante conhecida e debatida, refere-se a sua alegação de que os autores neotestamentirios, em lugar de recorrerem ao Antigo Testamento em busca de textos isolados, selecionando-os com o único propósito de confirmar as teses por eles defendidas, faziam justamente o contrário, ou seja, apelavam para o Antigo Testamento em busca de áreas que fossem produtivas, onde encontrassem material que pudesse ser compreendido de forma contextualizada. A segunda questão, que apenas recentemente vem recebendo o devido reconhecimento, reporta-se a alegação de Dodd sobre o fato da atividade desenvolvida pelos autores neotestamentarios responsável pela formação daquilo que ele denomina como “subestrutura” da teologia do Novo Testamento. Um conceito que para ele, segundo entendo, denota que o Antigo Testamento forneceu aos autores neotestamentarios as categorias chaves e o arcabouço geral de uma teologia cuja estrutura era dada pela história redentora — a qual eles interpretaram de modo a revelar seu significado inato. Essa subestrutura é reconhecidamente mais determinante em alguns livros do que em outros, sendo que também pode atuar de diferentes formas. No entanto, não resta dúvida alguma acerca de sua presença e importância. Portanto, é forçoso concluir que um estudo sobre a teologia neotestamentaria irá, inevitavelmente, oferecer-nos uma teologia bíblica, na qual não poderemos nos eximir de mostrar como a revelação em sua totalidade está relacionada aquele particular porção que chamamos Novo Testamento.
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NOTAS
1. Brevard S. Childs, Biblical Theology of the Old and New Testament: Theological Reflection on the Christian Bible (Minneapolis: Fortress, 1993); Charles H. H. Scobie, The Ways ofOur God: An Approach to Biblical Theology (Grand Rapids, Mich.: Eerdrnans, 2003).
2. Peter Stuhlmaeher, Biblische Theologie des Neuen Testaments, 2 v. (Güttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1992, 1999), 1:5.
Em primeiro lugar, temos o fato de que os primeiros cristãos viam-se como herdeiros da religião retratada no Antigo Testamento, expressa sob a forma do judaísmo. Pensavam em si mesmos como uma continuação do povo que adorou o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, cuja expressão literária encontra-se no que vieram chamar de Antigo Testamento. [1] Portanto, uma questão essencial está em determinar-se a relação existente entre os dois Testamentos. Devemos nos perguntar especialmente: de que forma os autores do Novo Testamento viam o Antigo Testamento e como o utilizavam?
Em segundo lugar, gostaríamos de colocar a seguinte questão: não seria possível, ou mesmo preferível, a alternativa de se tentar escrever uma teologia de toda a Bíblia, em vez de simplesmente um estudo de um dos Testamentos? Isso seria uma tarefa monumental, ainda mais difícil em raizão dos próprios estudiosos do Novo Testamento.
Até bem pouco tempo, as duas divisões da Bíblia eram conhecidas entre os cristãos como o Antigo e o Novo Testamento. No entanto, muitos sentem que essa nomenclatura implica um veredicto sobre o primeiro Testamento, e que essa é uma postura insensível em relação aqueles que o aceitam como sendo as Escrituras Sagradas, embora não aceitem a fé cristã. Então, passou-se a usar um termo neutro, “Bíblia Hebraica”, que pode ser usado tanto por cristãos quanto por judeus. A nomenclatura não é inteiramente feliz, pois pode parecer que o contrário dela seja a “Bíblia Grega”, termo que de qualquer modo faz referencia à tradução da Bíblia Hebraica para o grego. Neste livro, que se preocupa com a ótica cristã em relação ao primeiro Testamento, vamos manter a nomenclatura tradicional.
Estudiosos do Antigo Testamento não apresentaram muito consenso sobre a forma de escrever uma teologia a respeito de seu objeto de estudo. Logo, essa tarefa apresentaria os mesmos problemas que encontramos ao lidar com um dos Testamentos apenas: o fato de termos que lidar com uma vasta quantidade de obras literárias, pertencentes a um intervalo de tempo demasiadamente amplo, com formas literárias bastante variadas e que abrangem uma imensa diversidade de conceitos, muitos dos quais podem parecem contraditórios, sendo alguns deles mais rudimentares e outros muito elaborados. Mesmo com todas essas dificuldades, podemos garantir que esse objetivo é louvável, já havendo no mínimo duas tentativas nesse sentido.
Em terceiro lugar, uma tarefa menos ambiciosa é sugerida pelos próprios títulos dos livros que tentam escrever uma teologia bíblica do Novo Testamento. Com isso queremos dizer que já se reconhece o fato de que as raizes do pensamento dos escritores neotestamentários encontram-se no Antigo Testamento (e na sua transmissão no âmbito da literatura do judaísmo). Assim, a tarefa do teólogo é desenterrar essas raízes e verificar a forma como determinaram o crescimento e os frutos delas resultantes. A obra de Hans Hibner é uma tentativa nesse sentido, bastante minuciosa por sinal. Porém, tem a tendência de se concentrar apenas nesse aspecto da teologia do Novo Testamento, deixando de lado outros tipos de material. Uma abordagem mais ampla e satisfatória foi adotada por Peter Stuhlmacher. Sua obra de dois volumes é dominada pelo princípio de que “a teologia neotestamentaria deve ser escrita sob a forma de uma teologia bíblica do Novo Testamento, que tem suas raízes no Antigo Testamento e está aberta a sua influência, e que deve ser vista como parte de uma teologia bíblica que toma em conjunto o Antigo e o Novo Testamentos”. Stuhlmacher esta certo: o estudo da teologia neotestamentiria deve se preocupar em traçar as características que brotam dos ingredientes utilizados para se chegar à sua forma atual.[2]
Talvez o que esteja em discussão seja uma questão de foco. Este livro, por exemplo, seria algo de proporções impossíveis e estaria muito além da competência de seu autor se tentasse escrever uma teologia de toda a Bíblia. No entanto, uma teologia neotestamentiria com toda certeza deve ser uma teologia bíblica, uma vez que não há como negar que o pensamento dos autores neotestamentirios foi influenciado pelo Antigo Testamento de duas diferentes maneiras. A primeira está no fato de que todos eram judeus por nascimento ou na maneira de pensar. Portanto, pensavam segundo as estruturas de um judaísmo formado no contexto do Antigo Testamento. A segunda refere-se as incursões particulares e deliberadas que eles faziam imprescindível que essa grande obra seja urgentemente traduzida!
A primeira e a terceira tarefas são complementares. A primeira investiga a forma como os autores neotestamentirios viam o Antigo Testamento, e a terceira investiga o modo como o Antigo Testamento influenciou o pensamento desses autores.
Os escritores neotestamentarios pensavam no Antigo Testamento a fim de desenvolver sua própria teologia. Logo, vemos que a influência do Antigo Testamento está mais para um tesouro explorado com entusiasmo do que para um contexto passivamente aceito.
A esta altura, convém que façamos referência a uma das menores obras que temos atualmente sobre o estudo do Novo Testamento, embora seja também uma das mais relevantes nesse campo. Trata-se de uma obra escrita por C. H. Dodd, intitulada According to the Scriptures. Nela, Dodd levanta duas questões. A primeira, bastante conhecida e debatida, refere-se a sua alegação de que os autores neotestamentirios, em lugar de recorrerem ao Antigo Testamento em busca de textos isolados, selecionando-os com o único propósito de confirmar as teses por eles defendidas, faziam justamente o contrário, ou seja, apelavam para o Antigo Testamento em busca de áreas que fossem produtivas, onde encontrassem material que pudesse ser compreendido de forma contextualizada. A segunda questão, que apenas recentemente vem recebendo o devido reconhecimento, reporta-se a alegação de Dodd sobre o fato da atividade desenvolvida pelos autores neotestamentarios responsável pela formação daquilo que ele denomina como “subestrutura” da teologia do Novo Testamento. Um conceito que para ele, segundo entendo, denota que o Antigo Testamento forneceu aos autores neotestamentarios as categorias chaves e o arcabouço geral de uma teologia cuja estrutura era dada pela história redentora — a qual eles interpretaram de modo a revelar seu significado inato. Essa subestrutura é reconhecidamente mais determinante em alguns livros do que em outros, sendo que também pode atuar de diferentes formas. No entanto, não resta dúvida alguma acerca de sua presença e importância. Portanto, é forçoso concluir que um estudo sobre a teologia neotestamentaria irá, inevitavelmente, oferecer-nos uma teologia bíblica, na qual não poderemos nos eximir de mostrar como a revelação em sua totalidade está relacionada aquele particular porção que chamamos Novo Testamento.
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NOTAS
1. Brevard S. Childs, Biblical Theology of the Old and New Testament: Theological Reflection on the Christian Bible (Minneapolis: Fortress, 1993); Charles H. H. Scobie, The Ways ofOur God: An Approach to Biblical Theology (Grand Rapids, Mich.: Eerdrnans, 2003).
2. Peter Stuhlmaeher, Biblische Theologie des Neuen Testaments, 2 v. (Güttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1992, 1999), 1:5.