Estudo sobre Apocalipse 1:10-11

Comentário de Apocalipse 1:10-11


         As duas visões principais do livro são destacadas desde já pela introdução especialmente minuciosa e solene (aqui e em Ap 4.2): Achei-me em espírito.149 No presente texto, o Filho do Homem, que é o Senhor e Juiz da igreja, está prestes a aparecer. Em Ap 4.2 começa a contemplação de Deus, o Senhor e Juiz de todo o mundo.
O que acontece com o profeta não é descrito em parâmetros psicológicos. Neste caso deveriam ocorrer conceitos muito diferentes. Deve-se partir do pressuposto de que João estava para ser capacitado para efetuar olhares perspicazes sobre o sentido da história, ou seja, o “devem” de Ap 1.1. Como ser humano de carne e sangue, ele não depreendia nenhum sentido da história. Pessoas estão continuamente passando por experiências cujo sentido não conhecem ou sobre cujo sentido se enganam. Um acontecimento, do qual elas desfrutam com prazer, poderia ser parte de uma história de desgraça, ou outro, no qual sofrem imensamente, poderia na verdade ser integrante de uma história de salvação. Também neste contexto vigora a regra de que carne e sangue não podem ver o reino de Deus. Por isso o profeta experimenta que está sendo arrancado de todas as inibições e percalços pessoais para dentro da esfera do Espírito de Deus, muito acima de sensações subjetivas. Do alto se vê mais. “O Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus” (1Co 2.10).
Isso aconteceu com João em Patmos no dia do Senhor.150 Na Bíblia é somente no presente versículo que aparece essa designação de dia, ao passo que é cada vez mais freqüente na literatura cristã imediatamente posterior ao nt. É usada unanimemente como designação cristã do primeiro dia da semana, como recordação da ressurreição do Senhor.151 Como dia da ressurreição e como oitavo dia ele na verdade também aponta para a nova criação no grande dia vindouro de Deus. Seguramente uma mera indicação de calendário não teria tido importância suficiente para João. Ao citar o domingo ele destacou uma dupla relação. Por um lado era o dia da reunião, no qual sabia que as igrejas do continente estavam reunidas para adorar o Ressuscitado. Por outro lado era o dia da esperança, que dirigia seus sentidos para a consumação e a renovação do mundo.
E ouvi, por detrás de mim, grande voz. A visão começa com uma audição (experiência auditiva). De trás (cf. Ez 3.12) surpreende-o uma voz. Ela não tem nada a ver com suas próprias vozes, expectativas e esforços. O profeta é arrancado da sua realidade própria e colocado dentro do que Deus é. “O Senhor… desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos” (Is 50.4). A voz tem uma potência como de trombeta.152 O som – trata-se de um instrumento para dar sinais, com um ou no máximo dois tons – deve ter sido mais volumoso que belo: áspero, penetrante, estrondoso. Ele foi comparado ao trovão, ao berro de um burro ou ao rugido de um leão. Trata-se de um som difícil de descrever, sobrenatural e assustador.153
          A voz celestial desconhecida154 falou: O que vês escreve em livro. João não podia transmitir as visões oralmente aos destinatários. Contudo, essa justificativa para a ordem de escrever ainda não é suficiente. Ocasionalmente profetas do at já haviam anotado a sua mensagem por escrito, a fim de assinalar sua importância singular (p. ex., Jr 36; Hc 2.2). Dando sua palavra por escrito, Deus se compromete. Ele compromete os ouvintes: Eu te dei tudo por escrito! Essa palavra vale. Ela vigora além do instante. Ela também vale para outros que não estão presentes aqui e agora. Ela compromete de forma geral.
Cabe abordar aqui a diferença entre a profecia cristã em geral e essa palavra profética. Já em Ap 1.1 transpareceu, e será sublinhado em Ap 11.1-13, que João podia considerar toda a comunidade como profética. Apesar disso, conforme Ap 1.3, reservou para o seu livro uma posição singular. Essa reivindicação é justificada por sua vocação peculiar em Patmos. Ela foi iniciada de imediato com uma ordem de escrever (v. 11) e, em seu ponto culminante, foi mais uma vez coroada por intermédio desta ordem de escrever (v. 19). Essa ordem repercute em todo o livro (Ap 2.1,8,12; 3.1,7,14; 10.4; 14.13; 19.9; 21.5). Corresponde-lhe a menção enfática de que essa profecia tem o formato de um livro (Ap 1.11; 22.7,9,10,18,19). Portanto, o ato de escrever ocupa de tal modo o centro que evidentemente possui importância teológica. Eleva esta profecia a uma categoria normativa para todo a profecia cristã no futuro. É preciso que de agora em diante nos movamos nos parâmetros aqui delineados, i. é, todos os profetas depois deste profeta encontram-se na tradição dele. Ele próprio, porém, funda tradição. Neste sentido é que vigora a sua incumbência: escreve! Obviamente também profetas cristãos posteriores e mesmo atuais poderão anotar suas palavras por razões práticas, mas jamais se tornarão profetas da Escritura em sentido teológico através disso.

E manda(-o) às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Essas cidades eram sedes administrativas e já por isso áreas de concentração do culto ao imperador. A listagem segue o roteiro postal da capital Éfeso para o Norte até Pérgamo, depois para o interior e novamente para o Sul, um trajeto de aproximadamente 400 km.155 Já abordamos no comentário a Ap 1.4 o sentido simbólico do número sete: além das comunidades locais arroladas, João reivindica atenção de todas as igrejas de todos os lugares e épocas.




149 A expressão deve ser diferenciada de “estar no Espírito” conforme Rm 8,9, uma condição permanente do cristão. Aqui se trata de um estado extraordinário (E. Lohse, op. cit. pág. 16: “enlevo”) com a finalidade da transmissão de revelação. Ele foi desencadeado pela voz forte do anjo. Essa situação fica peculiarmente evidente em Ap 4.2. O conceito do “êxtase” (estar fora de si) é sugerido por: At 10.10; 22.17; 11.5; (12.11); 2Co 5.13; 2Co 12.2; Mc 3.21.
150 É muito disseminada a interpretação de que João não somente teria sido transportado ao nível mais alto do Espírito de Deus, mas simultaneamente também ao momento futuro do “dia do Senhor”, ou seja, ao tempo final do juízo e da redenção prometido pelos profetas. É assim que se chega à interpretação “escatológica” das visões subseqüentes (qi 61). Essa leitura, no entanto, tropeça no texto, que não diz “dia do Senhor”, mas literalmente “dia senhoril” (kyriaké heméra, cf. a formação de adjetivos como “real”, “imperial” etc.), portanto um dia dedicado e pertencente ao Senhor, um dia senhoril. Na província da Ásia este adjetivo derivado de “senhor” era corrente (comprovado a partir do ano 68). Seu uso está documentado quando se fala de serviços senhoris, finanças, caixas etc. Nestes contextos, “senhor” era o imperador de Roma venerado como deus. Em honra dele também havia regularmente “dias imperiais”. Note-se bem que neste contexto os cristãos passaram a chamar de dia dominical “o dia” que os fazia lembrar a ressurreição de seu Salvador. É plausível considerar também essa circunstância como uma resposta ao culto ao imperador (cf. também “ceia do Senhor”, 1Co 11.20).
151 P. ex., no Didaquê 14.1, escrito provavelmente na primeira década do segundo século, além da carta de Inácio dirigida à comunidade em Magnésia antes do ano 110, Mag. 9,1, e da carta chamada de carta de Barnabé, redigida algumas décadas depois, Barn. 15.2.
152 Quanto ao próprio instrumento e à tradução por “trombeta” cf. o comentário a Ap 8.2.
153 Neste ponto chegamos à primeira das 70 vezes em que ocorre o “como” apocalíptico. Ao lado dele o Apocalipse ainda faz uso do sonoro e solene “igual”, “igualmente”, “de igual forma” (45 vezes). Ambas as expressões introduzem um momento de desvio e pendência no relato das visões. Como não há nada realmente comparável para o objeto das mesmas, as visões não podem ser descritas de modo exato no sentido das ciências naturais. Isso vale também nas ocasiões em que “como” está ausente. Em Ap 5.6 consta: “um Cordeiro como tendo sido morto”; em Ap 5.12; 13.8, porém, simplesmente: “o Cordeiro que foi morto”. Em Ap 15.2 lê-se primeiro: “como que um mar de vidro”, e na segunda metade do versículo, porém: “se achavam em pé no mar de vidro”.
154 Cf. Ap 4.1; 6.6; 7.4; 9.13,16. De acordo com a antiga versão de Lutero (anterior à revisão de 1956) tratava-se nesta ocasião da voz de Jesus. Uma tradição textual melhor e também motivos objetivos depõem a favor da tradução que propusemos acima.
155 Sobre a importância econômica e política das referidas cidades, cf. W. Barclay, Das sagt der Auferstandene, Kassel 1967.