Estudo sobre Apocalipse 1:19-20

Estudo sobre Apocalipse 1:19-20



Escreve, pois, as coisas que viste,169 tanto as que são, e as que hão de acontecer depois destas. Essa ordem de escrever completa a ordem do v. 11, que depositava a ênfase nos destinatários, no tocante ao conteúdo. O conteúdo é desmembrado em presente (cap. 2 e 3) e futuro (cap. 4-22). Em Ap 4.1 começa claramente a segunda parte, concernente ao futuro, e Ap 21.6 anuncia o alvo a que ele chegará. De acordo com Ap 1.1, a ênfase maior está neste desenvolvimento futuro, contado a partir daqueles dias. Contudo não pode faltar o escrutínio da atualidade da igreja, porque ela já contém o gérmen do futuro. “O mistério da iniquidade já opera” (2Ts 2.7). Sob este enfoque as igrejas têm de reconhecer aquilo que é, para serem aprovadas naquilo que virá.

Ao contrário do apocalipsismo judaico, o passado é desconsiderado (qi 38-40). João não tem interesse em enquadrar toda a história da salvação (e toda a Bíblia) num só esquema. À auto-explicação de Jesus Cristo ainda segue-se no último versículo uma interpretação de dois objetos que contêm um mistério importante: o mistério das sete estrelas que viste na minha mão direita e aos sete candeeiros de ouro. Pelo que se evidencia, essas duas coisas significam algo diferente do que se poderia deduzir delas. Qual é o seu sentido oculto?


Naquele tempo se interpretavam os sete candeeiros dourados como sendo o judaísmo (cf. o exposto sobre o v. 12). Leitores de hoje dificilmente podem compreender o desafio que residia na frase: os sete candeeiros são as sete igrejas, a saber as igrejas compostas na grande maioria de gentios cristãos na província da Ásia. Precisamente naquele tempo elas eram intimidadas por um forte grupo judaico (Ap 2.9; 3.9), e a intervenção das autoridades contra elas no contexto deste conflito era iminente (Ap 2.10). Pois o conflito com os judeus significava para as comunidades cristãs a perda do suporte jurídico diante do estado (qi 6). Diante dessas perspectivas os cristãos realmente podiam tornar-se inseguros. Será que não deveriam, enfim, recuar em sua reivindicação, estabelecendo assim a paz entre judeus e gentios? Diante de uma fuga desse tipo o Apocalipse constata por princípio que “vocês são o candeeiro de ouro, vocês são o povo messiânico, vocês foram eleitos, libertados e transformados em sacerdotes de Deus no mundo” (Ap 1.5,6)!

Para a explicação das sete estrelas não existe nenhuma interpretação que seja satisfatória em todos os aspectos: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas.

Quem são os “anjos das igrejas”? Seriam eles determinados membros da igreja?170 Originalmente “anjo” designa o mensageiro, e justamente também o mensageiro humano (Ag 1.13; Is 44.26; 2Cr 30.15; Ml 2.7; Mc 1.2; Mt 11.10; Lc 9.52; 7.24; Tg 2.25). Na sinagoga judaica havia um líder ou dirigente para cada celebração, chamado de “mensageiro da congregação”, o qual ficava diante da comunidade, como está pressuposto em Ap 1.3. Ou deveríamos pensar no dirigente permanente ou em outra personalidade com autoridade espiritual? Dn 12.3 por acaso não compara os “mestres” com estrelas fulgurantes?

No entanto, essa explicação de que seriam personagens isolados nas igrejas locais suscita dúvidas. Apesar da grande frequência com que o Apocalipse fala de anjos (67 vezes!), em nenhuma ocorrência anjos são entendidos como seres humanos. Este uso terminológico na verdade é alheio à literatura apocalíptica. Além disso, as missivas às igrejas seriam reinterpretadas contra seus versículos introdutórios e contra os ditos regulares de gravação (“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas”), bem como contra a apostrofação com “vós” em Ap 2.24,25, para se tornarem interpelações pastorais a pessoas individuais. Isso levaria a exegese a dificuldades que não são de pequena monta. P. ex., que significaria, então, em Ap 2.5, a ameaça a determinado membro da igreja em Éfeso: “venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas”? De acordo com Ap 1.20 não há dúvida de que este candeeiro é a igreja em Éfeso. No caso, a impenitência do bispo seria castigada com a rejeição da igreja toda. Poderia ser este o sentido? Um peso especialmente grande, porém, possui o argumento que A. Schlatter destacou: simplesmente não condiz com o nt que tamanha responsabilidade pelo padrão espiritual da igreja seja depositada sobre uma pessoa isolada, como ocorreria, neste caso, nos cap. 2 e 3. Será mesmo que se pode encarregar um único membro de tudo: pregação, serviço diaconal, discernimento dos espíritos, fazer penitência, exercer disciplina na igreja, permanecer fiel?

Outros intérpretes identificam o “anjo da igreja” com um verdadeiro ente angelical.171 Nesta acepção, a ideia do anjo da guarda vem em socorro da explicação. Daniel fala de “guardiães” ou “(anjos) príncipes” para povos inteiros (Dn 12.1; 10.13,20,21; cf. Dn 4.13,17,23). Em consonância, imaginar-se-ia aqui anjos que seriam responsáveis cada um por uma comunidade local, comunicando elogio, crítica ou promessa. Devido à situação séria, as igrejas não estariam sendo interpeladas diretamente. Afinal, não se trata de um apelo a energias humanas. É necessário que se movam forças celestiais.

Mesmo quando, apesar de certas dificuldades na exegese de detalhes, nos imbuirmos desta tentativa de explicação, não desvanece um mal-estar, pois desta maneira resultaria que o Senhor celestial dirigiria uma mensagem a entes celestiais. Essa mensagem, porém, ele estaria ditando a um ser humano na terra, com a medida de que a remetesse às sete cidades. Falta lógica a este raciocínio. Além disso, tanto no judaísmo como também no cristianismo não há comprovações de anjos incumbidos de igrejas locais.

Qualquer explicação satisfatória de “anjo da igreja” tem de fazer justiça a dois fatos: em primeiro lugar, os “anjos” são destinatários da mensagem, endereçados por João e interpelados pelo Senhor e pelo Espírito. O texto não os expõe como porta-vozes espirituais. Interpretações que invertem essa realidade já começam pelo avesso. Em segundo lugar, o texto obriga a pressupor que os destinatários dos cap. 2 e 3 são idênticos aos destinatários do livro todo e devem ser situados nas sete igrejas da província da Ásia. É assim que o declaram os v. 4,11. Também os ditos de gravação e o oráculo do vencedor o pressupõem. É o que se depreende de um sem-número de detalhes. Os cap. 2 e 3 não contêm nem conselho pastoral individualizado nem cartas celestiais, e sim mensagens a igrejas.

Por essa razão o presente comentário se alinha a um terceiro grupo de exegetas:172 os “anjos” são figuras puramente simbólicas, como aliás também os candeeiros na visão de Cristo em Ap 1.12-16 ou as bestas, os objetos e personagens em outras visões. Como muitas vezes no AT e nas demais religiões, eles aparecem como estrelas (cf. o comentário a Ap 9.1). Em consequência, não se deve encontrar a explicação do v. 20 na tese de que as estrelas são explicadas como sendo anjos – isso era comum e não constituía “mistério” – mas no sentido de que estes anjos-estrela representavam igrejas.173

Portanto, na visão de Ap 1.12-16 a questão é duas vezes a igreja,174 tanto nas estrelas quanto nos candeeiros. Duas vezes sete pontos de luz representam as comunidades. Era como uma pintura que desde já se mostra duas vezes. Na figura dos candeeiros as igrejas aparecem como as que Cristo mantém brilhando enquanto doador do óleo (cf. Zc 4.2,3; Ap 11.4) e que estão diante dele como objetos de seu cuidado e amor (Ap 1.5,6). Essa é a igreja em sua maneira de ser voltada para Cristo, como oradora e na comunhão com Cristo: ele anda no meio delas (Ap 2.1). Na figura das estrelas, afixadas no firmamento do cosmos, a igreja está voltada para o mundo ao seu redor. “Resplandeceis como luzeiros (estrelas) no mundo” (Fp 2.15; Mt 5.14; Ef 5.8). Essas estrelas aparecem dentro (Ap 1.16; 2.1) ou sobre (Ap 1.20) a mão de Jesus. Ele age através delas. Estão à disposição dele e lhe servem como mensageiros e testemunhas.

Assim a visão está explicada: como também sugere o teor da frase, o “mistério” do v. 20 é um único mistério. Ele é a realidade única da igreja sob dois aspectos, diante de uma só realidade do Senhor. Ele é a igreja sob o indicativo (afirmação) e o imperativo (incumbência) de seu Senhor, recebendo e agindo, em figuras da esfera do ambiente do santuário e do firmamento cósmico. Representa o mistério do fim dos tempos essa igreja que ora e confessa a sua fé, na relação com seu Senhor, ou inversamente: este Senhor universal crucificado e ressuscitado e que está vindo, na relação com sua igreja de judeus e gentios. Ele a preservará para si naquilo que há de acontecer e a enviará para si ao mundo. A proporção com que é levada a sério repetidamente causará surpresa à igreja e, um dia, igualmente surpreenderá o mundo inteiro.175

Neste quadro, aparecem em primeiro plano o Senhor enquanto Juiz e a igreja enquanto julgada. Ela é a parte da humanidade na qual o juízo começa mais cedo (1Pe 4.17). Naturalmente trata-se de um juízo de clemência (Ap 3.19) que protege da ira vindoura.



Notas:

169. Essa forma no passado engloba, da mesma forma que “atestou” em Ap 1.2, todas as visões do livro, não apenas os v. 12-16.

170. Assim já pensou primeiro em 1705 Vitringa, depois dele, p. ex., Bengel, T. Beck, e atualmente a Bíblia do Jubileu, Menge, Hadorn, Stauffer, Brinke, Frey, Langenberg e, aliás, também K. Barth.

171. Assim já pensava a igreja antiga. Dentre os mais recentes, opinam assim Bousset, Schlatter, Hartenstein, Lilje, Bietenhard, Rissi, Halver, G. Bornkamm e também C. Westermann.

172. De modo semelhante pensam, p. ex., Behm, Goppelt, Holtz, Satake, Foerster, Schnackenburg, E. Schweizer, Stokmann.

173. Na locução “anjos das igrejas” não se trata de um genitivo de propriedade (não: um anjo que está encarregado da igreja), mas de definição mais exata: um anjo, mais precisamente um que simboliza a igreja, de modo que a igreja é apresentada como anjo (mensageiro). Da mesma forma, o “templo do seu corpo” (Jo 2.21 [rc]) tampouco é um templo que o seu corpo tem, mas um templo que o corpo é = templo de corpo. Aqui é este o uso de anjo da igreja. Há muitos exemplos deste “genitivus appositivus” (genitivo do conteúdo, cf. Blass-Debrunner, Grammatik des ntst Griechisch, 12ª ed., Göttingen 1965, § 167, pág. 110).

174. Essa estreita justaposição de duas metáforas para igreja, que ademais também se aproximam das figuras dos candeeiros e das estrelas, ocorre ainda em Ap 11.1,3: A igreja como povo que adora no templo e como testemunhas que profetizam perante o mundo.

175. Paulo já chamara a igreja de mistério, da qual faziam parte também gentios, cf. Rm 16.25,26.