História da Interpretação do Livro de Apocalipse

História da Interpretação do Livro de Apocalipse



Interpretação

A interpretação de Apocalipse é difícil e incerta, ou seja, não há dois intérpretes que concordem exatamente em todos os detalhes. O caráter simbólico da linguagem e a obscuridade de muitas de suas alusões não permitem que se alcance um dogmatismo em todos os pontos do livro. Em geral, existem quatro tipos principais de interpretação nas tentativas históricas de explicar este livro. A primeira delas é a interpretação preterista, que considera o Apocalipse como uma descrição do contexto histórico vivido pelas igrejas asiáticas no final do 1° século. Todo o simbolismo, portanto, deve ser entendido em termos das circunstâncias contemporâneas à escrita do livro e, de forma alguma, como uma predição do futuro. A Babilônia e as bestas referem-se ao Estado Romano; a mulher do capítulo 12 representa a Igreja perseguida; os diversos julgamentos são representações bastante pitorescas de calamidades naturais que aconteceram durante a vida do vidente.


Esse ponto de vista, defendido por muitos comentaristas da atualidade, tem a vantagem de examinar o Apocalipse à luz da época em que foi escrito e de reproduzir a provável reação inicial que os leitores tiveram diante dos ensinos contidos no livro. A interpretação preterista, porém, não faz jus ao elemento profético presente em Apocalipse. O segundo tipo de interpretação é a posição historicista, que pressupõe que o livro de Apocalipse descreva toda a história cristã, desde a época de seu escritor até a consumação dos séculos. Os diversos selos, as trombetas e os flagelos são considerados estágios importantes, cronologicamente sucessivos e marcantes no desenvolvimento da Igreja Cristã, particularmente no ocidente.


Visto que Apocalipse começa com a condição das igrejas da Ásia, que obviamente eram contemporâneas à data da escrita, e termina com o conflito final com o mal e o estabelecimento da Cidade de Deus no futuro indefinido, parece razoável concluir que o material entre esses dois extremos deve tratar do processo histórico intermediário. A principal dificuldade com esse ponto de vista é que o período intermediário tem duração indefinida e a identificação de qualquer dos símbolos com um evento histórico específico é necessariamente incerta. Embora seja possível estabelecer uma ligação entre cada símbolo e determinados eventos históricos conhecidos, o decorrer da história pode provar que tal identificação estava equivocada. Além do mais, o historicista que tenta interpretar Apocalipse através do desenvolvimento da igreja nos últimos dezenove séculos, raramente, se é que o faz, reporta-se à igreja fora da Europa. Preocupa-se basicamente com o período da Idade Média e da Reforma e diz relativamente muito pouco sobre o desenvolvimento da igreja após 1500 d.C.


Se Apocalipse, de fato, pretende fornecer um quadro simbólico do desenvolvimento da Igreja entre o 1° século e a Parousia de Cristo, seria de se esperar que todo esse período estivesse representado no livro. A terceira interpretação, chamada futurista, atribui todo o Apocalipse, a partir do terceiro capítulo, ao final da história da Igreja. As cartas às igrejas da Ásia, assim, passam a ser representações de sete tipos distintos de igrejas que existirão no período que antecederá à vinda de Cristo, ou representações de sete períodos da história da igreja, nesse mesmo intervalo. De acordo com esse esquema, nenhum dos eventos ilustrados em Apocalipse 4—22 é aplicável ao presente; na verdade, trata-se de uma previsão do fim.


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Os selos, as trombetas e os flagelos são uma descrição literal da tribulação final que acometerá os ímpios habitantes da terra, antes da volta de Cristo, e a visão da Cidade de Deus refere-se ao estado eterno dos justos. A quarta interpretação é a idealista, que presume que as visões de Apocalipse não são literais. Elas simplesmente representam o conflito geral entre o bem e o mal a partir de figuras apocalípticas que eram familiares aos judeus e cristãos do 1° século. Por essa razão, Apocalipse pode ser igualmente aplicado a todas as épocas da Igreja, visto que não pertence exclusivamente a nenhuma. Conquanto divergentes entre si, cada um desses pontos de vista contém elementos de verdade.


A interpretação preterista afirma com propriedade que Apocalipse deve ter alguma relação com os eventos contemporâneos à sua produção, de outro modo, todo o imaginário do livro seria estranho a seus leitores e os ensinos nele contidos seriam considerados irrelevantes. Indubitavelmente, eles conseguiam identificar a perseguição do Estado Romano e a sedução do paganismo, prevalecente, representadas nas figuras das bestas e da meretriz dos capítulos 13 e capítulo 17. Por outro lado, a Cidade de Deus não foi estabelecida no mundo, tampouco o paganismo foi abolido no 1° século. Os defensores do historicismo podem argumentar com certa plausibilidade que, se o Apocalipse começa com “as coisas que são” (1.19), concernentes ao período em que o escritor viveu, e termina com uma descrição de um estado eternal, os símbolos intermediários devem estar relacionados ao desenvolvimento histórico contido entre esses dois pontos.


A questão que surge, então, é se os símbolos tratam de eventos ou de princípios. Se referem-se a eventos, qual regra será usada para distinguir os eventos importantes daqueles de menor relevância, e como determinar quais de fato já se cumpriram e quais ainda se concretizarão? Sequer entre os historicistas há uma concordância completa quanto a relação entre os símbolos e os eventos da história; de fato, algumas de suas interpretações parecem forçadas a ponto de serem ridículas. A posição futurista tem a vantagem da coerência, por conectar os principais eventos de Apocalipse com a vinda de Cristo.


Visto que a Segunda Vinda ainda não aconteceu, pode haver pouca controvérsia quanto ao cumprimento do livro, já que nada ainda se cumpriu, exceto pela existência das sete igrejas. Sem dúvida, uma grande parte de Apocalipse pretendia descrever o futuro, já que a voz do céu que falou ao apóstolo disse: “Sobe para aqui, e te mostrarei o que deve acontecer depois destas coisas” (4.1). Por outro lado, a expressão “depois destas coisas” é dúbia, visto que “estas coisas” pode referir-se ao período da Igreja descrito nos três primeiros capítulos ou poderia simplesmente significar “o presente momento”. O termo “depois” é ambíguo, porque pode ser uma menção ao futuro em relação ao momento vivido pelo escritor do livro, que incluiria o “presente”, ou poderia significar os eventos escatológicos que acompanharão a Segunda Vinda de Cristo.


A interpretação idealista enfatiza o conflito espiritual que permeia Apocalipse, tomando o livro relevante para todos os períodos da Igreja Cristã. É inquestionável que Apocalipse não seja um mero mapa da história traçado com antecedência; ao contrário, é uma filosofia da história escrita a partir do ponto de vista do céu. Não obstante, se a posição idealista for levada ao seu extremo, pode-se argumentar que Apocalipse não passa de uma coletânea de mitos que incorporam ensino espiritual, mas que não têm nenhuma relação com fatos e eventos reais, tanto no céu como na terra. Assim, o livro transforma-se em um conjunto maleável de símbolos que podem ser ajustados de acordo com a circunstância e ao bel-prazer do leitor de qualquer época.


Talvez a solução mais satisfatória para esse problema seria dizer que todos os elementos podem ser incorporados em uma exegese final de Apocalipse. Indubitavelmente, seu pensamento, muitas vezes, é expresso por meio de termos simbólicos que se originaram nas Escrituras do AT e no imaginário presente no final do 1° século. O objetivo do livro era cultivar a vida espiritual e lançar princípios para a conduta, e não predizer acontecimentos históricos específicos. No entanto, o livro também aponta as tendências da história à medida que o plano redentor de Deus caminha para o seu clímax e consumação futura. O aspecto profético de Apocalipse não pode ser negado sem que o impacto real de sua mensagem seja prejudicado.


História da interpretação

Embora Melito de Sardes (c. 170), Irineu (c. 180) e Hipólito (c. 220) sejam reconhecidos por seus escritos sobre Apocalipse, o primeiro comentário exaustivo foi elaborado por Vitorino (falecido em 303). E um texto mais homilético do que técnico e, de certa forma, fantasioso em suas interpretações. A exposição de Vitorino não foi sistemática, mas indicava que o Apocalipse deve ter sido usado extensivamente na Igreja Ocidental durante o 32 século. E possível que a obra atribuída a Vitorino tenha sido corrigida amplamente por algum discípulo de Agostinho, que a editou em conformidade com o conceito de seu mestre. Nesse caso, o Comentário não é uma testemunha confiável do ensino real de Vitorino. O texto, na tradução dos Pais Ante-Nicenos, segue um padrão simbólico e amilenar semelhante ao de Agostinho, mas Jerônimo (De Viribus Illustris 19) classificou Vitorino como um quiliasta, juntamente com Tertuliano e Lactânio. Ticônio, um líder da igreja africana (c. 390), escreveu um comentário sobre Apocalipse que seguia a tradição “espiritualizante”. Sua obra não mais está disponível, exceto quando citada em outros escritos, mas a ampla gama de autores que o citam, dentre eles Agostinho da África, Primásio da Espanha e Bede da Inglaterra, demonstra o grau de sua influência.

 

A metodologia de Ticônio foi seguida por inúmeros comentaristas subsequentes, o principal dentre eles foi Agostinho. Seu tratado De Civitate Dei identificava o reino de Deus e a Cidade de Deus com a Igreja visível e invisível, e promovia uma interpretação alegórica de Apocalipse. Na Igreja Ocidental, os ensinos de Agostinho fortaleceram o crescimento do papado, que se apropriou da autoridade política com base no argumento de que o reino de Deus deveria governar o mundo. Primásio (c. 550) adotou o método alegórico de Ticônio. Ele foi seguido por Autpertus (c.775), um monge beneditino do sul da França, que fez uma condenação de Vitorino, Ticônio e Primásio. Alcuíno (735-800), inglês de nascimento e grande mestre da corte de Carlos Magno, perpetuou o método alegórico de seus predecessores. Rabanus Maurus (775-836), aluno de Alcuíno, e seu discípulo Walafrid Strabo (807-849) mantiveram a mesma tradição. Walafrid introduziu a Glossa Ordinaria, uma série de notas marginais ou interlineares, incorporadas com freqüência nas Bíblias da Idade Média. Não houve grandes mudanças no método ou conteúdo de Ticônio e seus sucessores durante a Idade Média. Nos escritos de Anselmo de Havelberg (1129-1155) a ampla interpretação alegórica foi modificada para um historicismo mais concreto. Rupert de Deutz (1111 -1129) fez uma tentativa de interpretar Apocalipse tendo como base a história bíblica.


Embora grande parte de suas explicações pareçam exageradas, ele tentou estabelecer uma ligação entre a profecia e a história secular, a fim de que uma certa continuidade pudesse ser preservada. Seu procedimento foi usado mais tarde, de forma significativa, por Joaquim de Flóris. Joaquim de Flóris (1130-1201) introduziu um novo conceito na interpretação de Apocalipse. Em vez da abordagem predominantemente mística e alegórica, ele enfatizou uma divisão cronológica do livro. Joaquim traçou um paralelo entre os sete selos e as sete divisões da era cristã, terminando na consumação que se daria imediatamente após sua própria época. Ele afastou-se do sistema de Ticônio e tomou-se o protagonista de uma nova tendência na interpretação. Joaquim sugeriu que a história deveria ser dividida em três eras: a era do Pai, que se estendia desde a criação até Cristo; a era do Filho, desde o nascimento de Cristo até os seus dias e a era do Espírito, de duração indefinida, terminando com o dia do juízo.


Assim, ele introduziu um tipo de dispensacionalismo que indicava que a era do Filho, em que a igreja medieval floresceu, não era a última. Esse conceito contribuiu para o surgimento da Reforma. O interesse renovado no Apocalipse foi estimulado pela atmosfera polêmica da Reforma. Os conceitos da besta anticristo (Apocalipse 13) e da meretriz (Apocalipse 17, Apocalipse 18) foram aplicados ao papado e à Roma. Embora nem Lutero nem Calvino tenham escrito comentários sobre Apocalipse, seus textos polêmicos empregavam as acusações apocalípticas contra o mal no conflito com o poder papal. Ao fazê-lo, eles passavam a impressão de que o anticristo ou a besta simbolizava o papado, e que, com a queda do mesmo, a consumação do reino de Deus seria alcançada.


A Igreja Romana respondeu a essa abordagem com uma contra-interpretação. Em 1591, Francisco Ribera (1537-1591), um erudito jesuíta de Salamanca, publicou um comentário de 500 páginas sobre o Apocalipse, que mais tarde foi reproduzido em diversas edições revisadas. Ele defendia que o anticristo não era o papado romano, mas um indivíduo que seria governante, cuja aparição aconteceria no futuro. Belarmino, o mais conhecido apologista do Catolicismo durante a Reforma (1542-1621), mantinha basicamente a mesma posição, compartilhada por muitos outros apologistas. Luís de Alcazar (1554-1613), um jesuíta espanhol de Sevilha, advogou a posição preterista e afirmou que o Apocalipse aplicava-se principalmente aos eventos que antecederam a queda de Roma, em 476. As controvérsias da Reforma solidificaram esses três principais sistemas de interpretação. Na teologia protestante subsequente, o sistema futurista foi amplamente desenvolvido pelos homens da Quinta Monarquia, no século 17. Seus excessos, porém, fizeram com que a interpretação futurista caísse em descrédito, sendo renovada no século 19 pelos ensinos da Irmandade de Plymouth e pelo movimento da Conferência Bíblica nos séculos 19 e 20.


A Igreja Romana, de modo geral, acompanhou Agostinho, identificando a Igreja com o reino de Deus e afirmando que o milênio é o intervalo entre a ascensão de Cristo e sua vinda futura. Os comentários sobre Apocalipse escritos pela igreja protestante nos séculos 19 e 20 se dividem entre alguns poucos preteristas, como Moses Stuart, do século 19 e James Snowden, do século 20; historicistas, representados por E. B. Elliott e A. J. Gordon e futuristas como J. A. Seiss, cuja obra Lectures on the Apocalypse (Palestras sobre o Apocalipse) foi uma das primeiras apresentações desse conceito e uma das mais influentes. Para uma lista mais completa de autores mais recentes, consulte a bibliografia no final do artigo, que apresenta os diferentes períodos e escolas de pensamento da era moderna.