Estudo sobre Apocalipse 13:3-4

Estudo sobre Apocalipse 13:3-4



No entanto, o dragão deu à besta ainda algo bem especial, que de agora em diante se torna o centro do capítulo: e ele lhe deu598 uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada. Por causa do v. 14 deve-se descartar a interpretação da ferida como sendo uma enfermidade grave.599 Segundo aquele texto, ela foi causada por um golpe de espada. A expressão pressupõe que de fato tenha ocorrido a morte. É certo também que se pressupõe a cura já acontecida.600 A besta apareceu imediatamente com a cicatriz da ferida mortal sarada.

A maioria dos comentaristas601 aderem a uma interpretação antiga desse texto, a saber, recorrendo à lenda da volta de Nero. Em 9 de junho do ano 68 este famigerado imperador, estando politicamente acabado, ordenou que um escravo o matasse. No entanto, a morte deste homem terrível não obteve crédito em toda parte. Primeiramente dizia-se que na verdade ele teria apenas fugido à terra dos partos (cf. o comentário a Ap 6.2) e de lá retornaria à frente de hordas de partos para vingar-se, trazendo horrores ainda maiores. Depois que transcorreram décadas sem que Nero voltasse, sua morte forçosamente tinha de obter crédito. Mas, por volta da virada do século,602 a lenda havia adquirido um novo formato: Nero torna a viver e vem vindo! Essa expectativa está comprovada precisamente para a Ásia Menor. Será que João alude a ela? Seria Nero o anticristo?

Talvez os cristãos sentissem alívio logo depois da morte de Nero: o anticristo está morto! Contudo, é impossível imaginar que, gerações mais tarde, cristãos ainda fossem dessa opinião. Afinal, depois de Nero surgiram outros imperadores cruéis e blasfemos. Que motivos havia para que Nero retornasse? De qualquer modo o anticristianismo já estava florescendo. O golpe de espada do escravo de Nero não significava um golpe mortal para a causa do dragão.603 Introduzir a lenda de Nero na interpretação, na verdade, não deixa de dar a impressão de ser uma recurso precário.

Mais atrativa vem a ser a referência de Berkhof à relação profunda do cap. 13 com o cap. 12 (pág. 132). Lá constatávamos que o dragão foi derrotado por Miguel. Em termos figurados ele está morto. Mas ele revive nessa besta surgida do abismo. Seu poder mostra-se novamente e conquista uma vitória aparente, apesar de sua cicatriz. Esta leitura, porém, possui uma desvantagem em comum com todas as demais. Ao interpretar o v. 3a, ela insere um determinado acontecimento, agora não mais meramente histórico, mas ainda assim um evento celestial. Será que o texto realmente nos convida a isso? Cabe-nos perguntar e identificar: quem foi que desferiu o golpe de espada? Quando fez isso? etc. A besta desde já surge aos olhos de João como sacrificada, nitidamente marcada por uma ferida mortal cicatrizada. Segundo o v. 5 ela atua dessa maneira durante quarenta e dois meses, ou seja, ininterruptamente, durante todo o tempo escatológico. Nada indica a circunstância de que ela teria recebido essa ferida mortal durante o atual tempo final, desaparecendo por um certo período, de maneira que começasse uma época sem anticristo, até que ela voltasse a aparecer. Ela se apresenta para o mundo todo sob as características dos v. 1-3, inclusive a ferida mortal sarada.

Rissi faz justiça a todos esses aspectos, ao interpretar o sinal nos parâmetros do motivo da imitação. Essa besta é a simuladora perfeita do Cordeiro, até no que é decisivo. Assim como um trecho decisivo descreve o Cordeiro “como tendo sido morto” (Ap 5.6), assim lemos agora sobre a besta: “como golpeada de morte” (v. 3 [no grego, o mesmo verbo]). Comporta-se de modo diabólico como o Cristo perfeito, imitando até mesmo a mensagem da Sexta-Feira da Paixão. A besta tem capacidade para fazer soar os sons mais imponentes de morte, ressurreição, renovação e renascimento, prometendo responder às perguntas fundamentais da humanidade. Essa mensagem da ferida mortal evidencia-se como central para o cap. 13 (mencionada três vezes). Precisamente a ela refere-se também a adoração em dimensões universais.

E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta. “Maravilhar-se” significa repetidamente no AT o espanto diante do sobre-humano. Também João jamais utiliza o vocábulo para a admiração aberta e alegre604 por parte de um discípulo, mas para o susto que confunde e paralisa. As pessoas se ajoelham por causa do pavor indefeso, não de coração e por amor (v. 4). Aplauso tempestuoso sem entusiasmo! Em submissão total elas ficam olhando a besta, perplexas. Não ousam fazer nenhuma objeção enquanto ela desfila pelas suas fileiras em atitude senhoril, sem sequer voltar-se para elas. Tanto mais atentamente sua auxiliar (v. 16) controla a todos: faz com que “todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos” adorem a besta. Ninguém consegue eximir-se. A besta tem todos sob controle – a terra toda (cf. v. 7).


E adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta; também adoraram a besta. Dificilmente deve-se imaginar aqui duas genuflexões. Pelo contrário, a adoração visível da besta significa, de forma encoberta, servidão a Satanás. Afinal, foi o dragão que deu plenos poderes à besta. Somente quem discerne esse envio da besta e seu direcionamento por parte do dragão sabe: a terra está de joelhos diante de Satanás!

As ovações tempestuosas constituem endeusamento direto da besta. Quem é semelhante à besta? Ou seja, igual a ela em poder, como esclarece a segunda pergunta retórica: Quem pode pelejar contra ela? A besta é proclamada como Deus, porque só Deus é incomparavelmente poderoso.605 A blasfêmia que pode ser lida nos chifres e ouvida da boca da besta obtém eco no mundo inteiro.

Uma aclamação de teor idêntico também era bem conhecida no culto ao imperador daqueles dias (nota 10). O próprio nome no v. 1 sugeria essa correlação. A besta no cap. 13 representa um sistema estatal que a si mesmo se sobreleva. De acordo com a convicção da primeira igreja, de fato concedeu-se poder ao Estado (Rm 13), mas não onipotência. Ele possui meios, porém não para tudo. Ele também sabe disso e o experimenta repetidamente. Justamente o Estado romano chegou a uma situação em que a decadência moral, as crises econômicas, os apertos financeiros, a ruína social e política simplesmente não se deixavam mais governar. Foi nesse momento que Domiciano começou a fuga para frente (qi 4). Ordenou que com violência se celebrasse e jubilasse por sobre os problemas não solucionados. Mandou simplesmente que os fatos fossem narrados de forma diferente, que fosse aclamado salvador, invencível, e que se anunciassem evangelho e paz. Assim ele se sobrelevou, suspendendo-se nisso a si próprio.

No entanto, como esse processo curioso se explica com maior profundidade? A partir do medo! O cap. 12 falava da queda do dragão no medo e no constrangimento de quem já está derrotado. A partir daí ele se eleva à potência infinita e presunçosa (Ap 12.12). Por causa desse medo ele também gera uma besta do mar, e a sua “grande autoridade” no fundo é grande medo. Desta forma ela dissemina o medo, até que todos aclamem medrosamente ao medroso: quem é como tu!




Notas:
598. É preciso completar essa frase com um verbo. Lohmeyer e muitos outros buscam-no de grande distância, no v. 1, acrescentando: “e vi”. Zahn retorna de modo convincente à frase imediatamente anterior, no v. 2b: O dragão “deu”. Ocorre que também no texto a seguir continua acontecendo a dotação da besta por parte de Satanás, especificamente, agora, com a peça principal de seu equipamento, que a seguir terá a função mais importante.

599. Assim pensa, p. ex., Lohmeyer. Porém para “cura” ocorre no v. 14 o verbo grego ézésen, como também textualmente em Ap 2.8; 20.4 para ressurreição dentre os mortos (cf. Ez 37.10; Rm 14.9).

600. É por isso que na tradução entendemos a forma verbal como um aoristo de constatação, que precisa ser vertido para a forma do pretérito.

601. Outras interpretações: associação com a perigosa enfermidade do cruel imperador Calígula, da qual ele convalesceu surpreendentemente. Ou interpretação como declínio do poder romano e seu ressurgimento por intermédio do cristianismo (Hartenstein). Schlier pensa de forma genérica no poder romano indestrutível. Embora seguidamente morresse um imperador, sempre havia outro que conservava o império unido. Kobs opina que a Revolução Francesa quase pôs termo ao papado. Mas teria convalescido. Klumbies retorna (em: “Das Tier aus dem Meer”, Wort und Tat, ano 21, fasc. 8) a passagens do AT referentes a graves ferimentos (Na 3.19; Jr 30.12-16,17-24), relacionando-as com a perda de soberania política de Israel. A cura seria a restauração da nação no ano de 1948.

602. Bousset, pág. 419 e 475, cf. Zahn, pág. 492.

603. Para Schlatter era mais plausível recorrer à lenda de Nero, visto que supunha que o Ap foi escrito logo depois da morte de Nero. Contudo, naquele tempo ainda não havia a expectativa da ressurreição de Nero (Nero redivivus), mas apenas de seu retorno do exílio (Nero redux).

604. Contra Behm: “dobra-se voluntariamente”.

605. Êx 15.11; Sl 35.10; 89.7; 113.5; Is 40.25; 44.7; 46.5; Mq 7.18; cf. Ap 15.4.

10. Conforme Stauffer há documentação de expressões como: “Salve ao Senhor, vitória; Senhor da terra, invencível, poder, glória, honra, paz, segurança, santo, bendito, grande; Quem é igual a ti; Tu somente; Digno és tu; Ele é digno de tomar o reino; Vem, vem e não tarda; Retorna, Senhor dos Senhores; Altíssimo entre os altos; Deus de todas as coisas; Senhor eternamente; Senhor de eternidade a eternidade; Senhor sobre todas as eras”.