Estudo sobre Apocalipse 13:5-8
Estudo sobre Apocalipse 13:5-8
Como o trecho anterior, esse bloco culmina na adoração da besta. Contudo, diferentemente do v. 4, o v. 8 fala de voz erguida, com reivindicação profética: hão de adorá-lo, a saber, numa forma ainda não conhecida na época da redação do Ap. Desde os seus primórdios a igreja precisou conviver com o culto a pessoas e a difamação de Deus, assim como, vez por outra, também com conflitos com Roma. Entretanto, ainda estava para suceder uma investida planejada e unânime de aniquilamento contra os santos. Esta é exatamente a situação de Ap 11.7-10, denominada ali de “três dias e meio”. O tempo escatológico de “três anos e meio” tem consciência destas condensações em “três dias e meio”. É disto que trata a nova seção.
O v. 5 repete mais uma vez a característica mais importante da besta: Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias (“grandes coisas” [RC]) e blasfêmias. Assim também Dn 7.8 descreve o anticristo. Não se trata de falar de grandes planos econômicos ou políticos. A palavrinha “grande” repetidamente faz parte das aclamações a deuses e pessoas endeusadas no culto.606 Ou seja, a besta se auto-apresenta como um deus, faz promessas como um deus e se excede em insolentes elogios de si mesmo. Neste sentido ela ofende a Deus.
Agora cabe detectar outra diferença, mais sutil e mais profunda, em relação ao trecho de Ap 13.1-4. Lá se dizia que o dragão dera tudo à besta. Aqui se diz quatro vezes (v. 5,7, e ainda nos v. 14,15), de forma velada, que à besta foi dada por Deus uma boca (como em Ap 6.2-8; 9.5; etc.). Que estranho: o próprio Deus concede caminho livre para essas blasfêmias e, conforme o próximo versículo, também para os assassinatos dos santos? Contudo, a origem dessas coisas reside no dragão. Não é possível dizê-lo com clareza maior que foi dito no cap. 12. Em Deus não há raiz de mal algum. Mas Deus concede a possibilidade espacial e temporal (v. 5b,7b). Tais fatos, portanto, não acontecem a partir de Deus, porém certamente sob Deus (cf. excurso 4d). A onipotência de Deus governa sobre a potência satânica e anticristã. Eles não grassam fora de sua soberania. Justamente esse bloco de terror está perpassado dessa certeza. Ainda que as vítimas não a entendam, elas podem confiar nela.
Por isso o dado numérico ressoa novamente nesse contexto. Foi-lhe dada… autoridade para agir assim (repercussão de Dn 11.36) durante quarenta e dois meses. A atuação do anticristo perpassa todo o fim dos tempos. Logo após a Ascensão e a expulsão de Satanás no cap. 12 a besta se arrasta para a terra, sendo lançada ao lago de fogo somente em Ap 19.20. Por isso, é bem possível que personagens históricos isolados tenham as suas características (há “muitos anticristos”, 1Jo 2.18), mas não conseguem ser o anticristo. Ele é um poder intelectual. Personagens isolados podem adicionar elementos, parte por parte, ao quadro da “besta”, até que uma última figura a complete. Com certeza, para João o imperador Domiciano foi uma dessas pessoas que adicionam elementos. Também é possível que instituições históricas, p. ex., o Império Romano, o culto ao imperador ou o papado sejam fatores que adicionam, da mesma forma como um certo tipo de pastores, pregadores ou leigos numa comunidade local. Nesse ponto cabe-nos ser verdadeiramente vigilantes. As explicações que causam maior confusão incluem aquela de que o anticristo ainda não estaria atuando e apareceria apenas num “tempo final” distante, bem longe, e em outro lugar que o nosso.
O fato de que Ap 13.1-8 deve evidentemente ser interpretado no sentido de exercício do poder político não deve ser entendida no sentido de que Ap 13 trata do Estado como tal e que por isso forma um contraste direto com Rm 13. Entender o Estado por princípio como besta talvez seja originário de Nietzsche.607 O NT não é hostil ao Estado, do contrário não poderia convocar para a intercessão em favor dos governantes. Esta intercessão, porém, exclui que eles sejam adorados. Em decorrência, Ap 13 decididamente complementa, de forma orgânica, textos como Rm 13. Sem dúvida alguma, porém, o NT é crítico em relação ao Estado. Como em todas as pessoas, o anticristo também está à espreita nos governantes. Se ele consegue agir, o governante não quer mais nem de longe ser “servo de Deus” de acordo com Rm 13, porém, nos termos de Dn 7 e Ap 13, faz de si mesmo um deus, em última instância também sobre fé e consciência e todas as coisas.
A blasfêmia inerente à natureza da besta agora se transforma em acontecimento. E abriu a boca em blasfêmias contra Deus. A longo prazo ela não consegue silenciar diante de Deus. Um dia a ofensa explodirá, enchendo com voz terrível a atmosfera do tempo. Pois o ser igual a Deus é constantemente barrado pelo fato de que Deus é Deus. Foi novamente Nietzsche que deu vazão a esta irritação (tradução de Eduardo Nunes Fonseca): “Se houvesse deuses como poderia eu admitir não ser um deles?! Por conseguinte, não há deuses” (Assim favava Zaratustra, pág. 64, cf. nota 607).
A blasfêmia contra Deus se desdobra em três partes. Ela ofende seu nome, como em Ap 16.9, mas também seu tabernáculo, o qual, de acordo com a terceira parte, os que habitam (“acampam”) no céu, aparentemente deve ser entendido como termo-chave para um grupo de pessoas,608 a saber, como aquela comunhão unida com Deus, como Moisés na “tenda do encontro”. Ela representa uma “cidadania celestial” (Fp 3.20) já hoje, sobre essa terra. Ela contém uma parcela de antecipação do futuro, o Espírito Santo. É esse cerne espiritual que o anticristo ataca. É esta presença de Deus manifesta na comunhão que o irrita.609
À blasfêmia segue-se a ação de violência contra a igreja. Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Com essa ação o dragão (de acordo com Ap 12.17) alcança seu alvo. O aniquilamento da descendência (“semente”) da mulher constitui a peça central de seus planos. Ele se inebria com o “sangue dos santos” (Ap 17.6). A honrosa designação dos cristãos como “santos” é profundamente significativa especialmente na presente passagem, bem como em Dn 7.21 (cf. o exposto sobre Ap 8.3). Sua vitória não estabelece uma contradição com a vitória deles conforme Ap 12.11. Ainda que os destrua fisicamente, eles continuam perseverantes na fé, cumprindo a promessa de Ap 3.10 (cf. o exposto sobre Ap 11.7). Ele pode fazer tudo com eles, exceto separá-los de Jesus. Eles são “mais que vencedores” (Rm 8.37) também sobre o seu próprio aniquilamento. Paulo não baseia isto em sua posição heróica, mas no amor de Cristo. João o faz com o “sangue do Cordeiro” (Ap 12.11).
Esse cálice de sofrimento é inevitável. Nessa questão a besta não tolera negociação. Afinal, ela é uma besta e não conhece misericórdia, ainda que temporariamente se vista de peles de ovelha. Tampouco faz sentido suplicar a Deus para ser dispensado dessa experiência, porque Deus mesmo foi quem “deu” tudo isso (cf. o comentário a Ap 13.5). Também esse tempo sombrio traz Sua marca de verificação. No passado o Pai concedeu uma autorização semelhante por ocasião da entrega de seu Filho, de modo que esse atestou a seus algozes: “Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas” (Lc 22.53). Agora ele repete a autorização em relação aos seus santos. É por isso que essa hora, quando chegar, terá de ser suportada.
Depois de liquidados os santos, a subjugação do resto é bem-sucedida. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação. Toda confusão e cisão é dissimulada na adoração unitária da besta por meio da população mundial: E adorá-lo-ão ([masculino] agora se pensa nitidamente como pessoa!) todos os que habitam sobre a terra. Diante do cenário dos martírios todos se apressarão em dobrar os joelhos. Correm até ele como água a ser bebida “a largos sorvos” (Sl 73.10). Como no v. 3, ninguém foi realmente conquistado. É uma reverência prestada com corações rígidos e amortecidos, o oposto da adoração a Jesus em Ap 5.9.
A adoração constitui o tema central do Ap (cf. qi 1). Adoração diante da besta ou diante do Cordeiro. Também no presente texto o Cordeiro aparece de imediato como o personagem de confrontação (cf. v. 11). O bloco das trombetas silencia sobre o Cordeiro desde Ap 8.2 (cf. a observação preliminar a Ap 8.2-6). Tanto mais marcante é a reintrodução desse conceito a partir do presente ponto, desconsiderando-se a antecipação em Ap 12.11.
Indiretamente o v. 8 aponta para os outros adoradores, os adoradores do Cordeiro. Unicamente eles podem permanecer perseverantes na provação de alcance mundial, pois o nome de cada um deles está anotado no Livro da Vida. O conceito foi explicado quando comentamos Ap 3.5. De acordo com aquela referência e conforme Ap 21.27, poder-se-ia imaginar que alguém pudesse ser riscado desse livro. Como data da anotação do nome610 informa-se: desde a (“antes da” [BLH]) fundação do mundo.611
Portanto, uma eleição anterior à existência do mundo? É preciso que numa sentença doutrinária assim (cf. Mt 25.34; Ef 1.4) detectemos onde vibra o coração e que demos ouvidos a esta linguagem do pulso do coração, mas não depreender com rigor extremado toda espécie de ensinamentos destas palavras. O versículo nos anuncia: o amor de Deus a seu povo tem uma vantagem absoluta diante de todos os poderes e forças que possam acercar-se de nós durante a nossa existência. Ele é o fundamento mais profundo que não pode ser abalado por nada. O interesse deste dogma reside, portanto, em preservar puro o nosso falar sobre o amor de Deus. Não pode ser turbado por nosso orgulho, que presume que conquistamos de Deus o seu amor por meio de nosso comportamento. Não – antes que pudéssemos ter um comportamento, ele já existia em estado perfeito. Quem se aprofunda nessa mensagem, considera absurdo que, a partir da doutrina da eleição, se conclua o eterno desamor de Deus para com uma parte da humanidade. Isso é viável dentro de uma mera lógica, mas também é possível deixar de chegar a essa conclusão. Parte alguma da Bíblia registra esta conclusão. Do mesmo modo, seria incompreensível uma despreocupada segurança de salvação mediante apelação ao eterno amor de Deus. Sobre os que agem assim, Paulo declara: “A condenação destes é justa” (Rm 3.8). Dos malabarismos destes com o “amor de Deus” Paulo depreende uma linguagem da mais profunda perdição.
Em consequência, de nada adianta equipar-se com uma boa teologia para enfrentar a besta, formar uma irmandade fechada ou treinar ferrenhamente a capacidade de sofrer. Tudo isso poderá ter um aspecto bom, porém evidencia-se como ineficaz diante da autoridade da besta. Então valerá unicamente o amor de Deus, estar anotado ou não no livro da vida.
Este livro, no entanto, não representa um conceito geral do amor de Deus, mas, enfaticamente, aquele amor que se revela em Jesus. O livro é o livro do Cordeiro sacrificado. Na situação decisiva, portanto, somos remetidos ao evangelho. Fixemos os pensamentos firmemente na cruz e em nada mais. Então também estará tudo em ordem com o livro. Não há um livro que esteja acima ou depois da morte expiatória de Jesus. Pelo contrário, acima de tudo encontra-se o Cordeiro sacrificado. A afirmação do presente versículo coincide com a declaração de Ap 12.11: “Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro”.
Notas:
606. Conforme Grundmann, Ki-ThW vol. iv, pág. 545-546, “grande“ constitui uma parte preferida da aclamação de praticamente todos os deuses nos cultos do helenismo. Para ela existem também comprovações no AT. No NT, cf. At 8.10; 19.27,28,34. Da magnitude de Deus falam At 2.11 e Tt 2.13, cf. Ap 15.3.
607. “Denomina-se Estado o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira surge da sua boca: ‘Eu, o Estado, sou o Povo’. […] Porém o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem usurpou-o. Tudo nele é falso; morde com dentes furtados. Até as suas entranhas são falsas. Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Realmente, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os apregoadores da morte. Vêm ao mundo homens demais; para os dispensáveis inventou-se o Estado! Vede como ele atrai os dispensáveis! Como os engole, como os mastiga e rumina! ‘Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus’ – assim grita o monstro. E não são apenas os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos!” (Assim falava Zaratustra, tradução de Eduardo Nunes Fonseca, São Paulo: Hemus, 1977, pág. 37-38).
608. Cf. o que dissemos sobre Ap 11.1. Também At 15.16 usa esse modo de falar.
609. Bousset iguala “tabernáculo” com templo, como expressão para o céu. Assim, além de Deus, a besta ofende também os habitantes do céu, a saber, os anjos. Contudo, no Ap “tabernáculo”, “acampar” refere-se constantemente à igreja (nota 576). Afinal, que sentido faria, depois dos acontecimentos de Ap 12.7,8,12, uma inimizade do dragão e de seu porta-voz contra os anjos?
610. Em grego katabolé, “lançamento para baixo”, significa: a. expulsar com ira, no sentido de um ato judicial, ou b. lançar a semente ou deitar os fundamentos de uma casa, i. é, um ato de fundação. As dez ocorrências no NT do “lançamento do cosmos” não denotam em momento algum o sentido judicial. A Bíblia não traz vestígio algum de um ato de ira contra o cosmos anterior à história.
611. A data citada realmente refere-se à inscrição dos nomes no livro, exatamente como em Ap 17.8, não à execução do Cordeiro, cf BLH.