Estudo sobre Apocalipse 13:9-12

Estudo sobre Apocalipse 13:9-12


Nos cap. 2,3 havia ditos de gravação que impeliam os leitores para a atualidade imediata, dos próprios ouvintes, daquilo que ouviram: “Atenção! Sim, vocês são atingidos!” Consideremos a situação que se aguça na província da Ásia daquele tempo. O novo decreto de Domiciano, de que todos o tinham de tratar como “senhor e deus”, com certeza assustou os círculos cristãos. Contudo, a natureza humana tende a repetir frases feitas: “Vai dar tudo certo novamente. Não se come nada tão quente como foi cozido.” Muitas vezes, mas nem sempre, as palavras de apaziguamento têm razão. Na verdade, até poderiam ser ópio para o povo cristão. Nesse caso, os fiéis trotam ingenuamente em direção ao futuro e acordam tarde demais. Por isso ressoa aqui o chamado profético para acordarmos: “Não vai dar tudo certo novamente!”

O v. 10 contém um problema genuíno, até paradigmático, de crítica textual. Os próprios manuscritos mais antigos divergem entre si e se equilibram em importância, de modo que não se pode decidir facilmente qual é a formulação que merece a preferência. Podemos expor a situação aqui apenas de forma simplificada.

A alternativa a é utilizada em traduções como, p. ex., a de Lutero e RA: “Se alguém leva outros à prisão, irá ele próprio para a prisão. Se alguém matar à espada, terá de ser morto à espada”.612

Essa forma textual poderia ser uma repercussão de Mt 26.52 e Gn 9.6, e seu sentido seria inequívoco: os cristãos são alertados contra uma resistência armada. No curso da história da igreja não foram poucas as vezes em que os fiéis foram tentados a revidar com recursos do mundo e conduzir uma assim chamada guerra “santa”. Por mais justificados e compreensíveis que possam ser tais intentos, eles não são abençoados.613

Sem dúvida uma exortação assim mereceria nossa consideração. No entanto, será de fato que João a emitiu aqui? Será que combina com a situação daqueles destinatários? Acaso os cristãos tinham a possibilidade de levar seus adversários à prisão? Principalmente numa época de acirramento, como é pressuposta por Ap 13.1-8? Isso é inimaginável! Por isso essa versão, de resto tão clara e compreensível, não deve ser a original. Dificuldades aplanadas são sempre evidência de um trabalho posterior, mas ninguém corrige com o intuito de dificultar a compreensão. Por isso, com boas razões, acompanhamos a alternativa b,614 conforme está impressa entre parênteses no início do presente trecho.

Esta alternativa contém asperezas idiomáticas. Ela é proferida, martelada com brevidade inaudita, como um lema militar. Contudo, essa é também a forma pela qual se descobre um fundo convincente do at: “O que é para a morte, para a morte (irá); o que é para a espada, para a espada; o que é para a fome, para a fome; e o que é para o cativeiro, para o cativeiro” (Jr 15.2). É flagrante a semelhança na forma e no conteúdo.

João profetiza uma trajetória incontornável em direção do martírio para seus leitores daquele tempo. Teria sido falsa consideração deixá-los sem clareza a esse respeito. Quando a noite da perseguição chegou mais tarde, muitos cristãos, auxiliados por esse escrito, estavam em condições de trilhar o caminho do Cordeiro sem gesto de defesa, sem perturbação. A intenção pastoral de João estava em plena consonância com Jo 16.1-4.

Entretanto, suportar calado o que “deve” (Ap 1.1) vir, ainda não compreende toda a sabedoria desse conselheiro pastoral. Os cristãos não devem suportar para dentro do vazio, mas para dentro do futuro de Jesus. O que João recomenda a uma igreja que quer persistir é a perseverança penetrante e implacável (cf. o comentário a Ap 1.9 e 2.1). Ademais, João nunca esquece de incutir a fidelidade de testemunha (cf. o exposto sobre Ap 12.11). Para ele, suportar calado não significa simplesmente ficar quieto. Aqui está (“é necessária”) a perseverança e a fidelidade dos santos.

Em termos de importância, essa segunda besta não se situa ao lado da primeira,616 mas é serva dela. De que consiste esse serviço? Quem é ela? Seguramente sua origem será mais uma vez esclarecedora: Vi ainda outra besta emergir da terra. Na maioria das vezes, a “terra” é identificada, no presente caso, com a Ásia Menor, a “terra clássica do culto ao imperador” (Deissmann), enquanto o “mar”, do qual havia emergido, conforme o v. 1, a primeira besta, é interpretado como sendo Roma na Itália, a origem do poder imperial. De acordo com essa leitura, João primeiramente volta a cabeça na direção Oeste, vendo a efígie da potência política imperial, para agora vislumbrar a imagem do culto ao imperador, vinda do Leste. Contudo, não encontramos no texto essa guinada na perspectiva de João, e inferir os pontos cardeais para os quais João dirigia o olhar dos dados fornecidos é tão problemático aqui quanto o foi na apreciação de Ap 10.1.617

Talvez se esteja procurando demais por um contraste mar – terra, ao invés de contar com uma dupla de conceitos, que ilumina a mesma realidade de duas maneiras. A favor deste paralelismo depõe o emergir, tanto aqui como no v. 1. A segunda besta não vivia antes na superfície da terra, mas nas profundezas dela, subindo agora de baixo, do submundo,618 do “poço (‘garganta’) do abismo”, de Ap 9.1. Desse modo, ambas as bestas estão, por princípio, coordenadas com a mesma origem demoníaca. A expressão dupla talvez expresse: no fim dos tempos abrem-se todos os abismos da história, e a força anticristã se aperfeiçoa em ambas as direções. À ênfase política dos v. 1-8 agrega-se agora a religiosa e social. Agora a humanidade está em sua mão como a argila na mão do oleiro. Disso decorre a mais sombria época de sofrimento para a igreja.

A besta surgida da terra tinha dois chifres, parecendo cordeiro. Os chifres não significam força de choque agressiva, não retratando poderes políticos, mas servem para caracterizar expressamente a imagem de um cordeiro.619 Não se deveria ler a palavra “cordeiro” sem ponderar que no Ap ela ocorre 28 vezes como título de Cristo. É por isso que ela não serve como imagem genérica de mansidão. É uma figura de Cristo, e a segunda besta vem imbuída, como a primeira, do motivo da imitação.

Sua apresentação enfaticamente imitadora de Cristo é a mais puída imaginável, porque falava como dragão. Por detrás da máscara de cordeiro ressoa a voz de dragão,620 de maneira que também no presente caso: “Tua fala te trai!” Ao invés da voz do Bom Pastor, à qual a porta se deveria abrir de imediato (Ap 3.20), são emitidas as inspirações de Satanás. Um lobo em pele de ovelha (Mt 7.15)!

Este personagem, portanto, é uma criação direta de Satanás, assim como foi a primeira besta. Dessa forma essas três figuras se reúnem numa trindade satânica,621 para um simulacro da Trindade divina. O dragão é o antideus, a besta vinda do mar é o anticristo e a besta vinda da terra é o anti-espírito. Essa interpretação do terceiro personagem é largamente corroborada pelo que se segue. Assim como o Espírito Santo conduz à adoração de Cristo, assim essa besta conduz adoradores ao anticristo. No v. 15 encontra-se também uma referência singular a “espírito” [rc, bj].

O v. 12 sintetiza a incumbência da segunda besta. Exerce toda a autoridade (“todo o poder” [RC]) da primeira besta na sua presença. Nos v. 12-16 encontra-se oito vezes o vocábulo “fazer”, “praticar”, que costuma ocorrer com tanta frequência no AT para a ação criadora de Deus. Aqui se pratica a contra-criação, projetando magicamente um mundo anticristão. Uma admirável eficácia, que ninguém pode impedir!

A primeira besta não se torna ativa em seu próprio favor, mas leva a outra besta a fazer propaganda dela. Isso é sistema! A atividade da outra besta acontece na sua presença (“perante ela”),622 para a glorificação do anticristo. Ela dirige os holofotes sobre o anticristo, que permanece imóvel sob essa luz. Elucidando, o texto prossegue assim: Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. É nisso que culmina a intenção do “profeta de mentira”, como essa segunda besta é chamada em outro local: celebração de proporções universais diante da besta, de modo que o dragão, depois de ter perdido o céu, conquiste pelo menos a terra.


O fato de que no texto a besta vinda da terra aparece depois da besta do mar não nos deve levar a depreender que a primeira besta atua sozinha durante uma parte do tempo escatológico. P. ex., não devemos presumir que as venerações à besta nos v. 4,8 se concretizaram sem a ação do batedor e instigador dos v. 11-17. É mais plausível supor que o anticristo jamais aparece desacompanhado de seu ajudante. Eles atuam em conjunto, sendo que nesse capítulo apenas foram apresentados um após o outro, primeiro o anticristo como personagem principal, e depois o profeta de mentira como seu servo.

Visto que a segunda besta está conjugada dessa maneira com a primeira, ela representa igualmente uma grandeza supra-histórica e satânica, que obviamente se concretiza passo a passo dentro da história.623 É com extrema facilidade que o abuso do poder político se alia ao abuso do poder religioso. O Estado degenerado tem sua pseudo-igreja, que lhe é submissa.

Naquele tempo o poderio imperial fazia uso do culto ao imperador. O seu centro e, consequentemente, um forte contingente de sacerdotes imperiais estavam situados na província da Ásia. Está provado que essa província se destacou singularmente nas perseguições aos cristãos. À sua frente estava um sumo sacerdote. Ele organizava a devida veneração do imperador na província inteira. O comentário dos versículos seguintes não deixará de ponderar onde determinados traços desse personagem poderiam estar espelhados no texto. Nesta abordagem, porém, está longe de nós identificar a besta vinda da terra com esse sumo sacerdote (qi 60).



Notas:
612. No mesmo sentido reproduzem: versão de Elberfeld, Schlachter, Weizsäcker, tradução de Zurique, New English Bible, Menge, Knoch, Bruns, Albrecht, Schlatter, Hadorn, Bousset, Bengel, Frey.

613. Lindenbein e Volkmar compreendem essa palavra como tranqüilização dos perseguidos com vistas aos perseguidores: Tudo o que estão fazendo a vocês eles próprios colherão.

614. Com Tillmann, J. Zink, Lilje, Rissi, Lohmeyer, Lohse, Behm, Wikenhauser [teb, bj, bv, cf. nota na Bíblia de Estudo Almeida, SBB 2000].

615. Nas demais ocorrências o Ap sempre diz : “moradores sobre (epí) a terra”, aqui usa “na (en) terra”.

616. Essa primeira besta é nomeada mais tarde simplesmente de “a besta“: Ap 13.14,15,17,18; 14.9,11; 15.2; 16.2,10,13; 19.19,20; 20.4,10. Evidentemente é ela que desempenha o papel principal.

617. Outras interpretações: Kobs não considera a “terra” tão beligerante quanto o “mar”, motivo pelo qual interpreta a “besta-cordeiro”, como a denomina, como sendo o novo mundo da América, que começou tão devoto e cristão com os pais peregrinos, mas depois auxiliou o catolicismo (a primeira besta) a obter poder crescente, desenvolvendo-se por fim até a criação da bomba atômica (v. 13). Contudo, o jeito de cordeiro e a voz de dragão não surgem, no texto, um após o outro. Em momento algum a segunda besta serve para amenizar, mas para aguçar. Langenberg entende por “terra” o “território” da Palestina, enquanto segundo ele a primeira besta surge do “mar” dos povos. Contudo, nesse texto “terra” constitui um conceito global, como revela desde logo a comparação de “terra” no v. 8 com o v. 7. Segundo de Wette, a segunda besta pertence à “terra” enquanto mundo humano, não ao mundo além do perceptível, como a primeira besta, que procede do abismo. Entretanto, cf. o comentário seguinte (trindade satânica!).

618. De modo similar em 1Sm 28.13: “Estou vendo um espírito subindo da terra!” (blh).

619. “Cordeiro” pode designar tanto o carneiro macho com chifres quanto também a ovelha fêmea. Em ambos os casos, no entanto, trata-se do animal jovem. Para o serviço sacrificial a prescrição era de carneiros machos (cf. Áries) de um ano de idade.

620. A contraposição de aspecto e voz é característica de João: Jo 5.37. Voz como sinal de reconhecimento: Jo 10.27; 20.16.

621. Em passagens importantes eles aparecem entre três: Ap 16.13; 20.10. Segundo Ap 19.20, a segunda besta é um profeta de mentira.

622. Cf. os sinais milagrosos que os magos faziam “diante de Faraó”: Êx 7.11,22.

623. Em 1Rs 22.22 existe, p. ex., um só espírito mentiroso nos lábios de muitos profetas.