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MANDAMENTO

“Mandamento”, no uso bíblico, não é primeiro uma lista de itens, mas um ato de voz: algo é mandamento porque vem de uma autoridade que tem direito de ordenar. Por isso, a palavra pode aparecer em sentido secular, como uma “ordem” ou “decreto” ligado a circunstâncias administrativas e imediatas, sem necessariamente carregar o peso de aliança e culto, como em 2 Crônicas 35:10 e 2 Crônicas 35:16, ou em contextos de instrução e despacho em João 11:57 e Atos 17:15. No entanto, o relevo predominante é religioso: mandamento é “ordenança divina”, e o seu timbre não é o da arbitrariedade, mas o do senhorio moral de Deus, que governa a vida do seu povo por meio de palavra vinculante e pessoal, não por capricho nem por mero formalismo jurídico; esse deslocamento do “técnico” para o “relacional” é um eixo que a exegese moderna costuma localizar no coração da teologia de aliança. (BARMASH, The Afterlife of the Laws of Hammurabi, 2020).

No Antigo Testamento, o termo mais comum por trás de “mandamento” é miṣwâ (“mandamento”) que aparece cerca de 139x[1], e, no grego do Novo Testamento, o correlato mais frequente é entolē (“mandamento”), ocorrendo cerca de 32x [2]; a própria tradução grega do Antigo Testamento (a Septuaginta) consolidou esse campo, ainda que, em certos contextos, traduções antigas e modernas também escolham “mandamento/ordem” para outros vocábulos legais, como mišpāṭ (“juízo”, “decreto”), ḥōq (“estatuto”) e piqqûdîm (“preceitos”), e, no grego, epitagē (“ordem”, “determinação”). Essa variação não é mero detalhe lexicográfico: ela mostra que “mandamento” pode funcionar como uma lente que privilegia o polo da autoridade (quem manda) mais do que o polo do conteúdo (o que exatamente foi mandado), de modo que a ênfase recai sobre a vontade de Deus como fonte e sobre a obediência como resposta. Em Makkot 23b sobre o tema, tanto no âmbito do judaísmo do Segundo Templo quanto no uso cristão primitivo, explora exatamente como entolē e sua família verbal se tornam um vocabulário de “obrigação pessoal” e não apenas de “norma impessoal” (para observar o uso bíblico onde “mandamento/lei/preceito” se cruzam, com comparação textual: Sofonias 2:3; Amós 2:4; Salmos 103:18).

É por isso que Deuteronômio e a literatura deuteronomista (com destaque para Salmos 119) costumam ser apontados como a “melhor escola” para entender o mandamento em chave bíblica: ali, o vocabulário não serve apenas para etiquetar leis particulares, mas para descrever um modo de vida inteiro sob a aliança. Em Deuteronômio 8:1–20, por exemplo, “o mandamento” aparece de forma abrangente, como síntese do caminho inteiro de Israel diante de Deus; o mandamento tem função revelatória (ele mostra quem Deus é e quem o povo deve ser) e função formativa (ele modela um povo santo), e, por isso, a prosperidade e a permanência não são apresentadas como “prêmio mecânico”, mas como o fruto histórico de uma fidelidade de aliança. Leituras acadêmicas recentes insistem que, no deuteronomismo, lei e identidade se interpenetram: o mandamento não é apenas uma exigência externa, é a gramática pública do pertencimento (The Ten Commandments. (1985). G/C/T, 8(5), 26. https://doi.org/10.1177/107621758500800510; texto bíblico para conferência: Deuteronômio 8:1–20).

Nesse quadro, ganha peso a observação de que “mandamento” supõe uma dupla referência pessoal: Deus que ordena e a pessoa a quem o mandamento é dirigido. Uma formulação clássica desse ponto aparece em discussão acadêmica do século XX, ao notar que o mandamento, em Deuteronômio, não é concebido para produzir apenas conformidade externa, mas uma resposta total “do coração”, isto é, do centro de decisão e afeição, expresso pelo termo lēb (“coração”). Por isso, a aproximação entre “mandamento” e “palavra” não é acidente: quando Deuteronômio associa mandamento e “palavra” — dābār (“palavra”) e, em grego, logos (“palavra”) ou rhēma (“enunciado”, “palavra”) — o texto sugere que a lei não é um bloco morto, mas uma fala viva que cria relação e chama à confiança; “a palavra está muito perto de ti” em Deuteronômio 30:14, por exemplo, não descreve um código distante, mas uma proximidade que exige interiorização e lealdade (cf.  Deuteronômio 5:22; Ester 9:32).

Essa ênfase pessoal não elimina o conteúdo; antes, ordena o conteúdo ao seu centro. Por isso o Decálogo — as “Dez Palavras”, dəbārîm (“palavras”) — pode ser visto como a forma mais concentrada do que o mandamento pretende: preceitos abrangentes, de validade duradoura, dos quais aplicações cerimoniais e forenses derivam em situações transitórias. A tradição bíblica e teológica frequentemente lê Êxodo 20 e Deuteronômio 5 como um núcleo pedagógico: não porque todo o resto seja irrelevante, mas porque ali se enuncia uma arquitetura moral que estrutura os deveres para com Deus e para com o próximo. Estudos modernos, ao tratar do Decálogo como texto e como tradição, mostram como ele funciona como “memória normativa” que forma consciência e comunidade, e como sua recepção judaica e cristã não se limita a repetir palavras, mas a interpretá-las em situações novas. (BARMASH, The Oxford Handbook of Biblical Law, 2019, p. 335).

Significado de MANDAMENTO na Bíblia
Moisés recebendo os Dez Mandamentos, pintura de Gebhard Fugel, c. 1900.

Já no período helenístico, começam a aparecer, com maior clareza, reflexões explícitas sobre “por que” existem mandamentos — isto é, sobre seu sentido e sua finalidade, não apenas sobre sua obrigatoriedade. É nesse horizonte que se citam passagens como Carta de Aristeas 142–144 e 4 Macabeus 5:23–24, onde os mandamentos podem ser apresentados como caminho racional de fidelidade e como disciplina que orienta desejos e decisões; e é também nesse horizonte que, mais tarde, respostas judaicas passam a dialogar com críticas cristãs à Lei, deslocando o debate para o terreno das razões e da utilidade moral dos preceitos. (MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Tradução de M. Friedländer. [S. l.]: Christian Classics Ethereal Library, [20--?]. Parte 3, cap. XXVII.) Uma formulação medieval emblemática, vinculada a Maimônides, sustenta que todos os mandamentos têm causa e propósito útil, isto é, que a lei divina não é um enigma sem intenção, mas uma medicina ordenada para a vida humana (cf. Gênesis 26:5; Salmos 119).

A tradição judaica rabínica posterior cristaliza esse impulso de totalidade ao falar não apenas de “mandamentos” em geral, mas de um conjunto enumerável: 613 mandamentos (taryag miṣwōt — “613 mandamentos”), com a famosa atribuição a Rabi Simlai de 365 proibições e 248 prescrições, associadas simbolicamente aos dias do ano e aos membros do corpo, em b. Makkot 23b. Vemos um discussão detalhada sobre isso no livro de Meier em relação às discussões judaicas:

“A enumeração exata dos mandamentos na Lei parece ter estado em constante mudança durante o período tanaítico. Por exemplo, no comentário rabínico sobre Deuteronômio chamado Sipre (redigido no final do século III d.C.), Parashá Reeh, Piska §76, o Rabino Shimeon ben Azzai comenta sobre Deuteronômio 12:23, um texto que parece dar ênfase especial ao mandamento de não beber sangue. Ben Azzai pergunta retoricamente se não existem 300 mandamentos positivos na Torá. Este número contradiz a opinião que mais tarde se tornou universal, ou seja, que existem 613 mandamentos na Torá, compostos por 248 mandamentos positivos e 365 proibições. Hans Bietenhard (Sifre Deuteronomium [Judaica et Christiana 8; Berna: Peter Lang, 1984] 245 n. 4) pensa que Ben Azzai quer dizer que 300 deve ser tomado como um número redondo em vez de uma contagem exata. Reuven Hammer (Sifre. A Tannaitic Commentary on the Book of Deuteronomium [New Haven/Londres: Yale University, 1986] 426 n. 2) concorda, acrescentando, com base na autoridade de Louis Finkelstein, que “uma figura específica [de mandamentos na Torá] não existia durante os tempos tanaíticos ”. Na época do Talmude Babilônico, o número 613 (dividido em 248 e 365) parece ter adquirido status “canônico”; veja, por exemplo, b. Mak. 23b–24a. Para o texto hebraico de Sipre, veja Louis Finkelstein, Siphre ad Deuteronomium (Berlim: Jüdischer Kulturbund, 1939); o dito de Ben Azzai encontra-se na pág. 141, linha 5.” (MEIER, A Marginal Jew Rethinking the Historical Jesus, vol. 4, 2009, p. 610)

Isso não significa que a tradição tenha abandonado o Decálogo; ao contrário, em autores e coleções, os mandamentos são frequentemente classificados como cardinais, resumidos ou ensinados sob as “dez cabeças” do Decálogo, como se as “dez palavras” funcionassem como mapa e os 613 como topografia detalhada. Esse modo de organizar o universo da obediência aparece tanto em discussões de matriz helenística, como Fílon (por exemplo, em sua exposição sobre o Decálogo), quanto em coleções midráshicas, como Números Rabá 13:15–16.

Chamar o Decálogo de “texto cardinal” no corpus da Bíblia Hebraica é reconhecer que ele funciona, simultaneamente, como condensação normativa e como emblema de identidade: não é apenas um conjunto de prescrições dispersas, mas um documento de aliança que demarca “as fronteiras de afiliação” entre o povo e o seu Deus, precisamente porque Êxodo e Deuteronômio o enquadram como palavras singulares do próprio Deus no evento constitutivo da relação de aliança. Nesse sentido, a força do Decálogo não deriva só do conteúdo moral, mas do estatuto retórico-teológico: ele aparece como núcleo performativo, capaz de estruturar pertença, memória e obediência como resposta a uma voz fundadora.

A afirmação de que ele acumulou uma “história interpretativa” longa e rica começa, de forma decisiva, dentro da própria Escritura, porque o texto já nasce em duplicidade literária (Êxodo 20 e Deuteronômio 5) e, com isso, instaura cedo o fenômeno de releitura e reapresentação: a repetição com diferenças (lexicais, formais e sobretudo argumentativas no mandamento do sábado) transforma o Decálogo num laboratório interno de recepção, no qual a tradição deuteronômica se oferece explicitamente como repetição interpretativa, e o restante do corpus bíblico (profetas, salmos) o alude e o reemprega de modos variados. Daí a pertinência de dizer que a “história da recepção” não é um apêndice tardio, mas uma dimensão intrínseca do próprio texto desde seus primeiros estágios.

O impacto religioso e social ao longo do tempo aponta para um segundo vetor de centralidade: a inserção cultual e pedagógica do Decálogo em práticas comunitárias que o aproximam de fórmulas confessionais e de oração. (REVENTLOW; HOFFMAN, The Decalogue in Jewish and Christian Tradition, (LHB/OTS 509), 2011) O argumento é que, no período do Segundo Templo, há evidências de uma aproximação intencional entre Deuteronômio 5 e Deuteronômio 6, refletida em artefatos e rotinas litúrgicas, e isso inclusive levanta a hipótese de que já em período anterior o Decálogo pudesse integrar uma espécie de declaração de fé vinculada ao culto cotidiano. Esse ponto ajuda a entender por que ele se torna “cardinal”: um texto que se recita, se memoriza e se coloca ao lado de confissões centrais tende a adquirir uma autoridade formadora que transborda o plano estritamente jurídico.

A mesma história interpretativa aparece, ainda, na pluralidade concreta das tradições: as evidências textuais antigas mostram tendências harmonizadoras entre Êxodo e Deuteronômio, e, no plano da recepção, as comunidades divergiram até mesmo na forma de contar e dividir os “dez”, com arranjos distintos em tradições judaicas e cristãs, além de variantes samaritana e outras. O próprio fato de se disputar a enumeração não é detalhe periférico: é sintoma de que o Decálogo opera como centro catequético e hermenêutico, no qual a forma de “ordenar” o texto já é um gesto interpretativo carregado de implicações teológicas e éticas.

O impacto religioso e social dos mandamentos indica que a trajetória posterior do Decálogo não pode ser descrita apenas como exegese intracomunitária, porque ele passa a ser lido como conjunto de princípios teológico-morais com “status premier” sobre outros códigos legais bíblicos, frequentemente tratados como elaborações e especificações do próprio Decálogo; e, ao mesmo tempo, seus valores são descritos como posteriormente adaptados pela cultura ocidental, sobretudo através de mediações cristãs. (COLLINS, “Ten Commandments.” In The Anchor Bible Dictionary, vol. 6, pp. 383–387; MARKL, The Decalogue and Its Cultural Influence, 2013.) Nesse quadro, a tradição cristã tende a enfatizar uma mensagem moral de alcance universal, cuja linhagem interpretativa é vinculada à patrística e ganha novo impulso após a Reforma, com a leitura do Decálogo em chave de lei natural em Lutero. Como inferência controlada a partir desse enquadramento, pode-se dizer que a “dimensão social” aqui visada não se limita à vida religiosa interna, mas inclui a capacidade do Decálogo de fornecer linguagem pública para educação moral, delineamento de virtudes e legitimação de discursos normativos em diferentes épocas — razão pela qual o próprio capítulo remete a uma bibliografia específica para tratar desse impacto como tema autônomo.

Essa amplitude ajuda a perceber por que o vocabulário de mandamento, quando chega ao Novo Testamento, não chega “vazio”: ele traz consigo a densidade de aliança, a linguagem do coração e a tradição de totalidade moral. Por isso, quando aparecem, no horizonte sinótico, debates sobre o conjunto dos mandamentos e sua síntese, ou quando, no mundo joanino e paulino, “mandamento” se liga de modo decisivo à identidade do povo de Deus e à forma do amor, a discussão não começa do zero; ela se apoia em um chão já preparado por Deuteronômio, por Salmos 119 e pela longa meditação judaica sobre obediência e sentido.

No horizonte do Novo Testamento, “mandamento” não é apenas uma peça de legislação religiosa, mas um modo de falar da autoridade e da voz de Deus: o grego entolē (“mandamento”) aparece, nos Sinóticos, como linguagem de aliança e de resposta pessoal, quando Jesus reúne toda a obrigação da Torá na dupla ordem do amor em Mateus 22:34–40, paralela em Marcos 12:28–34 e ecoada em Lucas 10:25–28, de modo que a “dependência” de “Lei e Profetas” se torna uma gramática de unidade orgânica, não um atalho retórico. Essa condensação não surge no vácuo: ela conversa com formas judaicas de raciocinar por analogia verbal, a gĕzērāh šāwāh (“analogia por termo comum”), isto é, a leitura em que a repetição de uma mesma palavra em duas passagens autoriza que uma ilumine a outra, o que ajuda a explicar por que a presença de agapan (“amar”) nas duas citações pode funcionar como ponte hermenêutica na versão mateana do episódio.

A tradição judaica, por sua vez, tensiona o sentido de “mandamento” entre o conjunto e o detalhe: de um lado, o hebraico miṣwâ (“mandamento”) pode designar prescrições concretas; de outro, em passagens parenéticas deuteronomistas como Deuteronômio 8:1–20, o termo passa a abranger o todo da Lei, e essa passagem ao “todo” ajuda a entender por que “mandamento” pode ser quase sinônimo de “palavra”, aproximando miṣwâ (“mandamento”) de dābār (“palavra”) e, no grego, entolē (“mandamento”) de logos (“palavra”) ou rhēma (“enunciado”), como o próprio entrelaçamento de textos sugere em Deuteronômio 30:14 e no modo como a nova aliança é descrita em Hebreus 10:16. A ideia de uma “dupla referência pessoal” — o Deus que ordena e o destinatário chamado a responder “do coração”, lēb (“coração”) — foi formulada de modo clássico por Matthew J. O’Connell ao tratar do conceito veterotestamentário de mandamento. (O’CONNELL, The Concept of Commandment in the Old Testament, 1960, pp. 351-403)

Quando se menciona que reflexões sobre as razões dos mandamentos começam a aparecer no período helenístico (por exemplo, Let. Aris. 142–144; 4 Macc 5:23–24), o ponto não é apenas cronológico: é teológico-cultural. A pergunta “por que Deus manda?” desloca o mandamento de mero decreto para pedagogia moral e formação de identidade, algo que se torna visível tanto em debates judaicos posteriores (incluindo o argumento de finalidade e utilidade) quanto em leituras cristãs do papel da Lei. A enumeração rabínica dos “613 mandamentos”, taryag miṣwōt (“613 mandamentos”), atribuída a Rabi Simlai em b. Mak. 23b — 365 proibições e 248 prescrições — traduz, em forma memorizável, uma visão totalizante da vida sob aliança. O texto talmúdico pode ser conferido diretamente em b. Makkot 23b, e a discussão moderna sobre a recepção e sistematização dessa tradição (incluindo a associação com correntes ligadas à escola de Rabi Akiva) aparece em literatura acadêmica que examina a história do número e sua função identitária.

Esse pano de fundo ajuda a ler por que algumas perícopes sinópticas — sobretudo em suas formas mateanas — podem estar dialogando com o “mundo” da categorização e hierarquização dos mandamentos: Mateus 5:17–20, Mateus 19:16–22 (paralelos em Marcos 10:17–22 e Lucas 18:18–23), e Mateus 22:34–40 (paralelo em Marcos 12:28–34; relação com Lucas 10:25–28). Nesse conjunto, “mandamento” não se reduz a casuística: torna-se chave de leitura da unidade da revelação, o que a pesquisa recente sobre a dupla ordem do amor em Mateus explora como eixo hermenêutico e catequético.

O quarto Evangelho, porém, desloca o centro de gravidade: em João, entolē (“mandamento”) não descreve somente a Lei recebida, mas a missão do Filho “sob ordem” do Pai e a autoridade com que ela é realizada, como se vê em João 10:18 e João 12:49–50, e, ao mesmo tempo, passa a designar “meus mandamentos” como forma concreta de amor obediente (João 14:15, 21, João 15:10). A “nova ordem” do amor em João 13:34 e João 15:12 é “nova” não por ser inédita como conteúdo moral, mas por ser cristologicamente fundada (“como eu vos amei”), e isso reaparece na tensão “antiga e nova” de 1 João 2:7–8, que a bibliografia especializada discute tanto no Evangelho quanto nas epístolas joaninas (du RAND, STRUCTURE AND MESSAGE OF 2 JOHN, 1979, pp. 101–120)

Em Paulo, a unidade dos mandamentos se deixa ver de modo incisivo quando Romanos 13:8–10 coloca o amor ao próximo como cumprimento da Lei, citando Levítico 19:18 como síntese operacional de preceitos do Decálogo; aqui, entolē (“mandamento”) não desaparece, mas é como se o mandamento respirasse por dentro da caridade, e não apenas por fora como constrangimento. Esse ponto, inclusive, tem sido trabalhado em estudos que relacionam a ética paulina à lógica de cumprimento, não de mera substituição, explorando a coerência entre amor, lei e formação comunitária. (Von WAHLDE, The Johannine Commandments. 1990, p. 33)

Mas o mesmo Paulo oferece o diagnóstico mais sombrio do “mandamento” quando descreve como o poder do pecado, hamartia (“pecado”), pode instrumentalizar a ordem santa para produzir morte: em Romanos 7:7–13, o mandamento revela o pecado como pecado e, paradoxalmente, torna-se ocasião para sua intensificação, sem que a culpa recaia sobre a Lei. A relevância do trecho não está apenas na psicologia moral do “eu”, mas na teologia do poder: o mandamento é bom, e exatamente por ser bom ele expõe a doença, como luz que denuncia a poeira; por isso o texto pode dizer, sem contradição, que o mandamento é “santo, justo e bom” e, ainda assim, foi usado pelo pecado como arma. A leitura acadêmica do argumento de Romanos 7:7–12, por exemplo, enfatiza o papel do mandamento como catalisador revelatório dentro da retórica paulina sobre Lei e pecado (MOO, Israel and Paul in Romans 7.7–12, 1986, pp. 122-135).

Esse quadro ajuda a compreender por que, nas cartas paulinas, entolē (“mandamento”) quase sempre aponta para os mandamentos bíblicos, com menções relevantes em Hebreus 7:5, Hebreus 7:16, Hebreus 7:18 e Hebreus 9:19 (na recepção canônica em que o termo aparece), e por que a linguagem “mandamento do Senhor”, Kyriou entolē (“mandamento do Senhor”), em 1 Coríntios 14:37, se aproxima de “ordem do Senhor”, Kyriou epitagē (“ordem do Senhor”), em 1 Coríntios 7:25: aqui, epitagē (“ordem”) não descreve apenas preceito moral, mas autoridade normativa ligada à instrução apostólica e à economia pastoral do evangelho.

Quando o termo epitagē (“ordem”) em Paulo e no deutero-paulino aparece em lugares como Romanos 16:26, 1 Timóteo 1:1 e Tito 1:3, com possível conotação “abrangente” e “salvífica”, o ponto hermenêutico é que “mandamento” pode funcionar como linguagem de missão e de governo divino da história, não apenas como regra de conduta individual: o mandamento aqui tem peso de envio, de autorização, de instalação de um anúncio que exige fé obediente. A literatura de apoio lexicográfico e teológico indicada (TWAT 4: 1085–95; EWNT 1: 1121–25; TDNT 2:545–56). 


NOTAS

[1]KJV: Gn 26:5; Ex 15:26; 16:28; 20:6; 24:12; 34:28; Lv 4:2; 13; 22; 27; 5:17; 22:31; 26:3; 14; 15; 27:34; Num 15:22; 39; 40; 36:13; Deu 4:2; Deu 4:13; Deu 4:40; Deu 5:10; Deu 5:29; Deu 5:31; Deu 6:1; Deu 6:2; Deu 6:17; Deu 6:25; Deu 7:9; Deu 7:11; Deu 8:1; Deu 8:2; Deu 8:6; Deu 8:11; Deu 10:4; Deu 10:13; Deu 11:1; Deu 11:8; Deu 11:13; Deu 11:22; Deu 11:27; Deu 11:28; Deu 13:4; Deu 13:18; 15:5; 19:9; 26:13; 17; 18; 27:1; 10; 28:1; 9; 13; 15; 45; 30:8; 10; 16; 31:5; Js 22:5; Jz 2:17; 3:4; 1Sm 15:11; 1Rs 2:3; 3:14; 6:12; 8:58; 61; 9:6; 11:34; 38; 14:8; 18:18; 2Rs 17:13; 16; 19; 18:6; 23:3; 1Cr 28:7; 8; 29:19; 2Cr 7:19; 17:4; 24:20; 31:21; 34:31; Es 7:11; 9:10; 14; Ne 1:5; 7; 1:9; 13; 16; 29; 34; 10:29; Sl 78:7; 89:31; 103:18; 20; Sl 111:7; 10; 112:1; 119:6; 10; 19; 21; 32; 35; 47; 48; 60; 66; 73; 86; 98; 115; 127; 131; 143; 151; 166; 172; 176; Pv 2:1; 3:1; 4:4; 7:1; 2; 10:8; Ec 12:13; Is 48:18; Dn 9:4; Amo 2:4. Voltar ↩

[2] Mat 5:19; 15:9; 19:17; 22:40; Mc 7:7; 10:19; 12:29; Lc 1:6; 18:20; Jo 14:15; 21; 15:10; At 1:2; 1Co 7:19; 14:37; Ef 2:15; Cl 2:22; 4:10; 1Ts 4:2; Tit 1:14; 1Jo 2:3; 4; 3:22; 24; 5:2; 3; 2Jo 1:6; Ap 12:17; 14:12; 22:14. Voltar ↩

Bibliografia

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GALVÃO, Eduardo. Mandamento. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], 17 dez. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano].

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