Azazel — Enciclopédia da Bíblia Online

AZAZEL

Começando pela etimologia, a forma hebraica usualmente vocalizada como ʿazāʾzēl (עֲזָאזֵל) foi explicada de modos concorrentes nas tradições exegéticas e filológicas. Muitos a derivam de ʿēz (“bode”) + ʾāzal (“ir-se, partir”), produzindo a leitura “bode que parte” ou “bode emissário”, base que explica a Vulgata (caper emissarius) e, na tradição grega, escolhas como apopompaíos (“de remoção/envio”) e paráfrases de Aquila e Símaco que significam “bode enviado/liberado” (cf. também a opção da Septuaginta por eis tēn apopompēn em Levítico 16:10). Outros propõem um abstrato ligado ao árabe ʿzl (“remover, afastar”), de onde “remoção completa” (BDB, p. 736). Uma terceira via propõe que a palavra designa um lugar áspero ou “penhasco escarpado”, entendimento que aparece no Sifra, Aḥare Mot 2:8; no Targum Pseudo-Jonatã a Levítico 16:10, 22; e em leituras como a de Driver (1956, pp. 97–98). Por fim, há a leitura onomástica: ʿazāʾzēl como epíteto de um ser pessoal demoníaco, hipótese reforçada por uma etimologia por metátese, ʿazz-ʾēl (“deus feroz/irado”), e por formas atestadas em Qumran como ʿzzʾl (11QTemple 26:13), que sugeririam um nome próprio (Tawil 1980; Loretz 1985: pp. 50–57; Delcor 1976: pp. 35–37; Grabbe 1987: p. 156). A ambivalência da preposição le- em Levítico 16:8 (“um sorteio para Yahweh e um sorteio para ʿazāʾzēl”) alimenta o debate: se “para Yahweh” identifica um ser pessoal, “para ʿazāʾzēl” tenderia, por paralelismo, a fazer o mesmo; mas é possível, como notado por intérpretes antigos e modernos, que o segundo membro não exija paralelismo pleno e funcione adjetivalmente (“o bode destinado a ir para muito longe”), preservando o sentido de “remoção” (cf. Êxodo 21:2 para o uso de le-; bem como as versões antigas e Josephus, Ant. 3.10.3).

No corpus bíblico, ʿazāʾzēl ocorre apenas na legislação do Dia da Expiação, quatro vezes em Levítico 16 (versículos 8, 10, 26, com o rito detalhado nos versículos 20–22 ainda que o termo não apareça aí). Dois bodes “da congregação” formam uma única oferta pelo pecado (Levítico 16:5): por sortes, um é “para Yahweh” e é sacrificado; o outro é “para ʿazāʾzēl”, mantido vivo, “posto perante Yahweh para fazer expiação por ele, a fim de enviá-lo ao deserto, para ʿazāʾzēl” (Levítico 16:7–10). Após a purificação do santuário, o sumo sacerdote impõe ambas as mãos sobre o bode vivo, confessa “todas as iniquidades” do povo, coloca-as sobre a cabeça do animal e o envia, pela mão de “um homem preparado”, a uma terra solitária; “o bode levará sobre si todas as iniquidades deles para uma terra de separação” (Levítico 16:20–22). Quem o conduz deve lavar as roupas e banhar-se (Levítico 16:26), sublinhando a separação do impuro. A lógica sacrificial que explica a eficácia expiatória do bode vivo é indicada por Levítico 17:11 (“a vida da carne está no sangue”): o valor de vida do bode imolado “para Yahweh” transfere-se ao bode vivo, que carrega, em figura, as culpas para fora do espaço da comunidade e do culto. O paralelismo ritual com Levítico 14:1–8, 49–53 (a ave viva mergulhada no sangue da ave morta, que então é solta) ilumina esse símbolo de transferência/remoção, e alguns intérpretes sintetizam os dois bodes como duas faces de um mesmo sacrifício — o segundo visualizando o que o primeiro, morto, já não pode representar, razão do apelido latino hircus redivivus em literatura posterior.

As interpretações do referente de ʿazāʾzēl distribuem-se em quatro famílias. A leitura onomástica demoníaca nota que, em Levítico 16:8, o sorteio “para Yahweh” é paralelo ao sorteio “para ʿazāʾzēl”, o que favorece um ser pessoal; que o bode “para ʿazāʾzēl” é enviado ao deserto, local que a Escritura associa a seres hostis (Isaías 13:21–22; Isaías 34:11–15; possivelmente Levítico 17:7; Tobias 8:3; Mateus 12:43); e que a literatura do Segundo Templo e posterior conhece Azazel como entidade demoníaca de relevo (1 Enoque 8:1; 9:6; 10:4–8; 13:1; 54:5–6; 55:4; 69:2; Apocalipse de Abraão 13:6–14; 14:4–6; 20:5–7; 22:5; 23:11; 29:6–7; 31:5), embora haja problemas de tradição e desenvolvimento nesses textos (Hanson 1977: 220–33; Nickelsburg 1977: 397–404; Grabbe 1987: 153–55). Alguns filólogos reforçam a onomástica com a etimologia metatética ʿazz-ʾēl (“deus feroz/irado”), e o atestado qumrânico ʿzzʾl (11QTemple 26:13) é frequentemente citado nessa linha. Essa leitura, porém, convive com uma restrição teológica: no próprio rito sacerdotal, Azazel não recebe sacrifícios nem preces, não ataca Israel e não é a quem se dirige a expiação; a figura é tratada de modo lacônico, periférico, quase como um “marcador” do destino geográfico do bode, coerente com a monoteística contenção de poderes concorrentes a Yahweh e com a parcimônia do corpus sacerdotal quanto a demônios (Levítico 17:7; cf. Deuteronômio 32:17; Salmos 106:37). À luz de ritos de eliminação do Antigo Oriente Próximo (hititas e mesopotâmios), em que deidades ofensivas são apaziguadas por oferendas, incantações e substitutos, a sobriedade de Levítico 16 contrasta fortemente: não há propiciação a Azazel, nem “alimento” enviado, nem litania; o bode “para ʿazāʾzēl” não é sacrifício, mas veículo simbólico de remoção (Wright 1987: pp. 31–74, com exemplos como o ritual hitita de Ashella; e o de Ambazzi, no qual um mal é transferido para um rato, despedido para “altas montanhas” e “vales profundos”, enquanto um deus custodiante é invocado). Essa comparação sustenta o retrato de Azazel como um nome presente por força de tradição anterior, porém “despotenciado” pela redação sacerdotal (Wright 1987: pp. 21–25; Duhm 1904: pp. 28, 32).

A leitura geográfica, antiga no judaísmo (Sifra; Tg. Ps.-J.; Mishna, Yoma 6, sobre o “lugar difícil”), identifica ʿazāʾzēl ao penhasco para onde se levava o bode, hipótese variada por propostas que o situam nas vizinhanças do Sinai (Aben Ezra, cit.) ou o tomam como designativo genérico de “lugares desérticos” (Bochart), embora esta última esbarre no fato de o plural “quebrado” árabe não ter paralelo em hebraico e na redundância de dizer “enviar a ʿazāʾzēl no deserto”. A leitura abstrata (“remoção total”, “desaparecimento”), sustentada por Gesenius, Tholuck e Bahr entre outros, harmoniza-se com as traduções gregas de campo semântico “liberar/enviar/remover” e resolve a gramática de Levítico 16:8 como não rigorosamente paralela: “um lote para Yahweh e um lote para o bode destinado à remoção completa”, o que também dialoga com o uso ritual de “soltar” o portador das impurezas (Levítico 14). Por fim, a leitura “o bode que parte” mantém plausibilidade linguística e tradição, mas encontra objeção direta no texto: em Levítico 16:10 e 16:26, ʿazāʾzēl aparece como aquilo “para” (ou “a quem”) o bode é enviado, e não como nome do próprio bode; além disso, seria estranho que a mesma preposição le- expressasse, na mesma frase, sentidos diferentes se ambos os referentes fossem “seres” paralelos.

A recepção judaica e cristã antiga multiplicou as leituras. Em 1 Enoque, Azazel figura entre os anjos caídos, instrutor de artes bélicas e luxos, revelador de segredos, preso no deserto até o juízo — amplificação que muitos consideram tributária de Levítico 16 (cf. também a tradição que o identifica a Satanás em autores judaicos e cristãos, como Orígenes). Entre eruditos modernos que perfilham o entendimento demoníaco estão Spencer, Rosenmüller, Ammon, Von Cölln e Hengstenberg, este último negando qualquer sacrifício “ao Diabo” e lendo o envio do bode, carregado de pecados perdoados, como escárnio simbólico do inimigo em seu “habitat” desértico. Objeções clássicas a essa via apontam a ausência, no próprio rito, de qualquer gesto propiciatório a poderes espirituais rivais (proibido em Levítico 17:7; reforçado por Deuteronômio 32:17; 2 Crônicas 11:15; Salmos 106:37) e o risco de projetar no texto uma demonologia exterior ao Pentateuco. Em contrapartida, intérpretes que evitam a onomástica mantêm o foco no ato de “remoção” como eixo semântico-ritual, em consonância com as versões antigas, com Josephus e com a lógica de que “ambos os bodes” constituem uma só oferta (Levítico 16:5), dois momentos pedagógicos da mesma expiação: morte expiatória “para Yahweh” e expurgação visual pela condução até a terra de ninguém (cf. Levítico 16:14–15; 16:20–22; 17:11).

Azazel — Enciclopédia da Bíblia Online

A tradição litúrgica judaica posterior (Talmude, Yoma) detalhou o rito: as sortes (tardiamente em ouro), a marca preta na cabeça do bode “para o deserto” e outra na nuca do “para Yahweh”, o percurso Jerusalém-deserto com abrigos pelo caminho, sinais de pano enviados de posto em posto, e o despenhadeiro chamado Beth-Hadûdû, cerca de doze milhas a leste de Jerusalém, de onde se atirava o animal para garantir que não retornasse. Tais acréscimos, inexistentes em Levítico 16, acentuam a dimensão prática da “remoção absoluta” e a impossibilidade do retorno da culpa (cf. a mesma ideia já presente na forma bíblica, conforme a lavagem do condutor em Levítico 16:26). Ao nível teológico, o gesto realiza a promessa de que Deus afasta as transgressões “tão longe como o nascente do poente” (Salmos 103:12).

Quanto à proveniência histórica do Dia da Expiação, debates críticos o situaram em contexto pós-exílico, admitindo a incorporação de ritos antigos, inclusive um envio “a Azazel”. Contudo, argumenta-se ser improvável uma importação exílica deliberada de um conceito pagão específico; e paralelos babilônios e ugaríticos em festivais de Ano-Novo, hoje conhecidos, sugerem que elementos de “eliminação” já circulavam em ambientes rituais do período mosaico e foram ressignificados no culto israelita (R. de Vaux, Ancient Israel [1961], pp. 507–510; D. P. Wright, The Disposal of Impurity [1987]). Nessa chave, Levítico 17:7 impede ler o bode como “sacrifício” dado a Azazel; trata-se, antes, do “expulsar” simbólico do pecado para a esfera da morte/ausência social.

Na leitura cristã tipológica, o pareamento dos bodes encontra sua realização em Cristo. O sangue de touros e bodes “não pode tirar pecados” de modo definitivo (Hebreus 10:4, 11–12), mas a oferta única do Filho cumpre e supera a figura: ele “levou sobre si as nossas doenças” e “foi traspassado pelas nossas transgressões” (Isaías 53:4–5), aplicação recebida já no Novo Testamento (Mateus 8:17) e na catequese apostólica (1 Pedro 2:24). Assim, o “bode para ʿazāʾzēl” figura a remoção plena do pecado operada por Jesus, que “leva” a culpa para fora da comunidade, faz expiação e demonstra a provisão divina de extinção da iniquidade, enquanto o bode imolado prefigura sua morte vicária. A dupla pedagogia do rito — morte expiatória e remoção visível — converge na obra única do Messias.

Em síntese exegética, ʿazāʾzēl permanece um termo de etimologia e referente debatidos. As quatro leituras — demônio pessoal, topônimo desértico, abstrato de “remoção”, e designação do bode que parte — estão todas representadas na tradição judaica e cristã e na erudição moderna. A leitura onomástica encontra apoio no paralelismo de Levítico 16:8, no cenário do deserto e nas tradições do Segundo Templo; mas o próprio rito, em sua economia sacerdotal, recusa qualquer propiciação a poderes rivais e emprega Azazel, no máximo, como polo de destino para um gesto de expulsão. A leitura “remoção” explica satisfatoriamente o conjunto das ações e harmoniza-se com as versões antigas e com os paralelos de eliminação do Antigo Oriente; a leitura geográfica preserva a concretude do envio e tem eco talmúdico; a leitura “bode que parte” acompanha a história da tradução que nos legou “bode expiatório”. O texto de Levítico 16, no entanto, impõe duas âncoras incontornáveis: “ambos os bodes” compõem uma única oferta pelo pecado (Levítico 16:5) e o bode vivo não é sacrifício a outrem, mas veículo simbólico que carrega, para longe, culpas já tratadas sacrificialmente “para Yahweh”, expressão máxima da graça que “afasta” o pecado do seu povo (Levítico 16:20–22; 17:11; Salmos 103:12).

Bibliografia

DELCOR, M. 1976. Le mythe de la chute des anges. RHR 190: 3–53.
DRIVER, G. R. 1956. Three Technical Terms in the Pentateuch. JSS 1: 97–105.
DUHM, H. 1904. Die bösen Geister im Alten Testament. Tübingen and Leipzig.
GRABBE, L. L. 1987. The Scapegoat: A Study in Early Jewish Interpretation. JSJ 18: 152–67.
HANSON, P. D. 1977. Rebellion in Heaven, Azazel, and Euhemeristic Heroes in 1 Enoch 6–11. JBL 96: 195–233.
LORETZz, O. 1985. Leberschau, Sündenbock, Asasel in Ugarit und Israel. Ugaritisch-Biblische Literatur. Soest.
NICKELSBURG, G. W. E. 1977. Apocalyptic and Myth in 1 Enoch 6–11. JBL 96: 383–405.
TAWIL, H. 1980. ˓Azazel the Prince of the Steepe [sic]: A Comparative Study. ZAW 92: 43–59.
VAUX, Roland de. Ancient Israel: Its life and institutions. 1961.
WRIGHT, David P. The disposal of impurity: elimination rites in the Bible and in Hittite and Mesopotamian literature. Atlanta: Scholars Press, 1987.
WRIGHT, D. P. 1987. The Disposal of Impurity: Elimination Rites in the Bible and in Hittite and Mesopotamian Literature. Schorlars Press, 1987.

Quer citar este artigo? Siga as normas da ABNT:

GALVÃO, Eduardo. Azazel. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

Pesquisar mais estudos