Estudo sobre Romanos 1:3-4

Romanos 1:3-4

Paulo define a síntese do evangelho prometido no Antigo Testamento: Ele trata do seu Filho. Não uma doutrina é evangelho, nem mesmo a doutrina da justificação, mas o Filho. Todo o cristianismo primitivo concordava nesse ponto, que o centro da Escritura é o próprio Cristo[1]. Como Filho, ele é mais que Abraão, Moisés, Davi, Salomão ou qualquer profeta. Ele é a plenitude concreta de Deus.

No entanto, será que os judeus não tinham e não têm razão de se indignar com essa utilização cristológica de suas Escrituras, que não trazem nem mesmo o nome “Jesus Cristo”? O próprio Paulo, quando era rabino judeu, serviu de exemplo desse protesto. Contudo, recebeu o entendimento da verdadeira intenção comunicativa da Escritura graças a uma “revelação”, no sentido de 2Co 3.14-16. A partir desse momento, o Senhor vivo lhe explicava a Escritura, e a Escritura lhe testificava desse Senhor.

Como segunda testemunha, Paulo recorre a uma confissão de fé do cristianismo primitivo. Para elucidar esse procedimento, beneficiamo-nos de um resultado de pesquisa da mais recente. De forma crescente se impõe a constatação de que nessa e em tantas outras passagens Paulo não formula pessoalmente, mas cita uma antiga frase central da primeira igreja[2]. Também Rm 6.17 e 15.15 indicam que os cristãos em Roma haviam assumido, ao se tornarem cristãos, um acervo dessas declarações de fé, o qual os ligava de modo mais ou menos firme à cristandade toda. Ao fazer uso de uma peça de domínio geral entre os cristãos, Paulo integra com seus leitores uma comunhão de fé, e precisamente esse era o objetivo da carta.

Com ajuda dessa confissão, Paulo desdobra nos v. 3, 4a a história do evangelho do Filho, mais precisamente em dois trechos consecutivos. O primeiro refere-se a existência do Filho “segundo a carne”; o outro trecho, à sua existência “segundo o Espírito da santidade”. Esta sequência de “carne” e “Espírito” na história de Cristo ocorre de modo similar em 1Pe 3.18.

Quanto ao primeiro trecho: o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi: Como em 9.3, 5, 8, neste ponto “carne” designa de modo neutro a realidade de criatura, na qual a vida humana tem lugar. O Filho eterno tornou-se criatura humana. Mais precisamente: Tornou-se judeu (cf 9.4,5). Pode-se até indicar sua genealogia: da semente de Davi. Contudo, ao mesmo tempo, esse termo leva adiante. Sendo da linhagem de Davi, Jesus despertava, de acordo com 2Sm 7.10-16, a mais fervorosa expectativa pelo rei messiânico dos judeus.

Segue-se, agora, a segunda estação, conforme o v. 4a: foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade[3]. Uma intervenção do Deus justo transformou tudo. Ele elevou do mais profundo abismo para a esfera de Deus (cf Fp 2.6-11) o Filho manso, disposto a sofrer, aparentemente derrotado, e, segundo a lei, carregado de maldição (Gl 3.13). O final da frase acrescenta enfaticamente que se deve ter em mente a Páscoa: pela ressurreição dos mortos. É assim que do Filho na fraqueza se fez o Filho com poder[4].Falta nessa confissão a tão importante proclamação da morte de Jesus. Contudo, apesar de ouvirmos aqui apenas o tópico “nascimento”, seria um contra-senso terminar a história com o Natal. Era óbvio que entre nascimento (v. 3) e ressurreição (v. 4) também se estendia a sua trajetória de vida e sofrimento até a morte. Afinal, essa confissão era proferida por pessoas que, embora vivessem antes da redação dos nossos quatro evangelhos, tinham em mente a tradição sobre Jesus, do seu nascimento até a ressurreição. Essa tradição, no entanto, informa, digna de toda a fé, que sobre a cabeça do crucificado constava exatamente: “rei dos judeus”, filho de Davi! Portanto, esse primeiro trecho sobre o rei da salvação segundo a carne também abrangia o seu auto-esvaziamento, sua fraqueza, vergonha e abandono por Deus. Neste sentido, constitui o objeto da confissão de uma pessoa atingida.

Esta antiga confissão de fé escora de modo excelente a ideia condutora de Paulo: o poderoso senhorio do Filho em escala mundial. Por isso ele profere, em alto e bom som, no final do versículo: O evangelho trata de Jesus Cristo[5], nosso Senhor. A alternância de “Filho” para “Senhor” acontece intencionalmente. “Filho” é Jesus em relação a Deus, “Senhor” ele é em relação ao mundo e a todas as pessoas e poderes. Pois era exatamente sobre essa plenitude pascal de poder do Exaltado “sobre tudo” (Rm 9.5), da forma como se torna agora palpável na missão aos gentios[6], que Paulo queria falar.

Eis os principais temas e implicações:

1. A Identidade de Jesus: Paulo começa referindo-se a “seu Filho”, indicando que ele está prestes a expor a identidade de Jesus Cristo. Este é um tema central na fé cristã.

2. Descendente de Davi: Paulo enfatiza que Jesus era “descendente de Davi segundo a carne”. Isto destaca a linhagem humana de Jesus, remontando-a ao Rei David. Nas expectativas messiânicas judaicas, muitas vezes se esperava que o Messias fosse um descendente de Davi, portanto este é um ponto crucial para Paulo estabelecer.

3. Declarado Filho de Deus: Paulo então muda para a natureza divina de Jesus, declarando que ele foi “declarado Filho de Deus”. Esta declaração é uma referência à identidade divina de Jesus, que foi confirmada e manifestada de várias maneiras durante o Seu ministério terreno.

4. Em Poder Segundo o Espírito de Santidade: Paulo observa que Jesus foi declarado Filho de Deus “em poder”. Isto enfatiza a natureza milagrosa e poderosa do ministério de Jesus, que incluiu curas, exorcismos e outros sinais e maravilhas. O “Espírito de santidade” provavelmente se refere ao papel do Espírito Santo em capacitar Jesus para o Seu ministério.

5. Pela Sua Ressurreição dentre os Mortos: A declaração final da identidade de Jesus veio através de Sua ressurreição dentre os mortos. Este evento marcou Jesus como o Filho vitorioso de Deus, vencendo o pecado e a morte e validando Suas reivindicações à divindade.

6. Jesus Cristo Nosso Senhor: Paulo conclui esta passagem afirmando os títulos de Jesus como “Jesus Cristo nosso Senhor”. “Jesus” é Seu nome de batismo, “Cristo” significa o Ungido (Messias) e “Senhor” significa Sua autoridade e soberania divinas.

Em resumo, Romanos 1:3-4 resume aspectos-chave da teologia cristã. Combina a humanidade e a divindade de Jesus, destacando Sua linhagem de Davi, Sua natureza divina como Filho de Deus, Seu ministério poderoso capacitado pelo Espírito Santo e a confirmação final de Sua identidade por meio de Sua ressurreição. Esses versículos estabelecem uma base sólida para o discurso teológico de Paulo no restante da carta aos Romanos, abordando temas de justiça, fé e salvação.

Índice:
Romanos 1:3-4

Notas:

[1] At 2.36; 13.33; Fp 2.8,9; Rm 14.9

[2] Esta conclusão está fundamentada na métrica homogênea das frases (três partes no v. 3 correspondem a três partes no v. 4), no estilo de hino, na terminologia que não é paulina e está ambientada no mundo antigo, e na comparação com o paralelo de 1Tm 3.16, onde também está claro que foi utilizado um hino.

[3] Uma expressão do AT para “Espírito Santo”: Is 63.14; Sl 51.11 no texto hebraico.

[4] Com frequência consta no nt “poder” na vinculação com a ressurreição: Mc 12.24,25; Rm 15.19; 1Co 6.14; 15.43; 2Co 13.4; Ef 1.19-21; Fp 3.10; Cl 2.12.

[5] O nome próprio “Jesus” pertence à esfera da língua hebraica (Jehoshu’a, “Deus socorre”), enquanto o título de função “Cristo” é uma palavra grega (o rei de salvação “ungido”). Logo, a dupla designação descreve o “caminho de Deus” de Israel aos gregos, i. é, ao mundo inteiro.

[6] Rm 1.16; 1Co 1.18,24; Gl 2.8; At 15.12; Mt 28.18-20.