Estudo sobre Atos 7:1-2

Estudo sobre Atos 7:1-2

Se quisermos compreender bem todo esse capítulo, precisamos nos conscientizar de que nesse terceiro processo contra os cristãos a situação é completamente diferente. Nas duas primeiras detenções os apóstolos haviam sido detidos pela própria autoridade. Depois do interstício da noite a própria autoridade podia conduzir a negociação. Tudo transcorreu de maneira relativamente calma e objetiva. Os pontos de acusação eram de natureza formal: agir e falar não-autorizados no templo, transgressão da proibição de falar. A fúria dos saduceus voltou-se contra o incessante discurso sobre Jesus. A importância desse Jesus executado por eles estava sendo discutida de maneira bem geral. Agora, porém, o acusado foi arrastado para frente do Sinédrio por uma multidão alvoroçada, as acusações mais graves são levantadas diante do Sinédrio (e nem sequer por ele!), e afirmações de testemunhas confirmam as arguições. No entanto, a acusação trazida ao Sinédrio possui um conteúdo bem definido: blasfêmia contra Deus, contra Moisés, rejeição do templo, rejeição da lei. Todos conheciam a determinação de Lv 24.16: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará; tanto o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do Senhor, será morto.” Imediatamente estão em jogo vida e morte! E dessa vez o Sinédrio tampouco precisa temer “o povo”. Homens do povo apresentam-se como apaixonados acusadores de Estêvão diante do Sinédrio. O sumo sacerdote, porém, pode exercer o papel do mero presidente: “Então lhe perguntou o sumo sacerdote: Porventura, é isto assim?”

Estêvão responde. Também para ele a situação é completamente diferente do que para os apóstolos. Por isso não consegue refutar, como Pedro, determinadas acusações específicas com afirmações sintéticas, justificando sua ação com um breve testemunho dos feitos divinos através de Jesus. A mera afirmação “Eu não blasfemei” não levaria Estêvão a lugar algum em vista das declarações das testemunhas.

Começa dizendo: “Vós homens, irmãos e pais, ouvi!”. Desde o vocativo ele garante pertencer firmemente a Israel (“irmãos”), bem como sua respeitosa atitude frente aos que eram os “pais” no povo. Seu pedido para ser ouvido os prepara para um longo discurso.

Na sequência acontece uma exaustiva exposição da história de Israel com base em muitas palavras da Escritura. Exegetas ficaram admirados “de que os juízes não interromperam o orador após as primeiras frases, chamando-o de volta ao assunto em pauta”.165 Mas isso seria introduzir um sentimento moderno num mundo totalmente diferente! O oriental tem tempo. Todo israelita ouvia com devoção e alegria a um relato da sagrada história de seu povo, até mesmo numa hora dessas. “Senhor Estêvão, tudo isso são histórias antigas e conhecidas! Queira retornar ao tema!” Nenhum sumo sacerdote, nenhum fariseu, nenhum israelita era capaz de falar assim.


Mas tampouco é verdade que Estêvão não se refere à acusação contra ele. Novamente não devemos pensar apenas no pleito de modernos juristas. A acusação era “blasfêmia contra Deus, blasfêmia contra Moisés, rejeição da lei”. Estêvão responde “O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai”. É assim que me situo em relação a Deus, assim me situo em relação aos pais, assim me situo em relação à Escritura! Temos de levar em conta que a palavra “lei” pode ter um sentido muito mais amplo. A “Torá”, “a lei”, eram os cinco livros de Moisés (e os livros históricos que lhe dão sequência). Os cinco livros de Moisés, porém, não continham apenas determinações legais, mas narravam a história de Israel e testemunhavam a revelação de Deus. Nesse sentido “a lei” era simplesmente “a Bíblia”. “Eu estaria ensinando ao arrepio da Escritura, desprezando a Bíblia? Tão somente trago a Escritura, nada mais que a Escritura, eu vivo na Bíblia”, respondeu Estêvão, demonstrando isso justamente por seu discurso detalhado. Por essa razão ele não expõe raciocínios teológicos próprios, e tampouco aponta como Pedro para uma nova ação de Deus através de Jesus, mas lhe apresenta, começando por Abraão, um testemunho da Escritura após o outro. Não deseja ser outra coisa senão apenas teólogo da Escritura.

O leitor já notou, a partir das referências bíblicas no texto, de que copiosidade de passagens da Escritura se trata. Quem se dá o trabalho de verificar todas as passagens no AT obviamente nem sempre encontrará ali exatamente o teor daquilo que Estêvão afirma. Por um lado, a razão para isso é que o helenista Estêvão citava de acordo com a “Septuaginta”, que ademais não tinha em mãos para verificação, mas reproduzia de memória (obviamente bem treinada). Por outro lado, Estêvão sintetizou aqui e acolá tradição doutrinária e interpretação judaica diretamente com o texto.

Em Gn 46.27 e Êx 1.5 lemos a respeito de setenta almas que vieram com Jacó ao Egito, enquanto no v. 14 Estêvão cita setenta e cinco. Porém já a Septuaginta acrescentara os nove filhos de José às sessenta e seis almas citadas em Gn 46.26, chegando a um número de setenta e cinco. No v. 16 o local de sepulcro comprado por Abraão em Manre para sepultar Sara, e no qual ele próprio foi sepultado, foi agregado à terra comprada por Jacó em Siquém aos filhos de Hamor (Gn 23.16-18; 33.18s). Aqui pode ter acontecido uma falha de memória no orador, visto que falava de Jacó. Contudo também pode ter havido uma tradição doutrinária que por razões que ignoramos realizou essa junção. No v. 19 os dados de Êx 1.22 foram interpretados de outro modo ao que nós o entendemos; naturalmente a construção da frase grega é complicada, motivo pelo qual sua tradução não é unívoca. Ademais, o fato de que Moisés teria sido instruído com toda a ciência dos egípcios é uma conclusão plausível, visto que cresceu como filho da filha do faraó, mas isso não é afirmado em Êx 2. E o dado de que Moisés era “poderoso em palavras” parece contradizer a informação de Êx 4.10; no entanto, “poderoso em palavras” não precisa em absoluto significar “eloquente”! Também um homem “pesado de língua” pode ter o “poder” da palavra de que falou o centurião de Cafarnaum (Mt 8.8s). Por isso também são imediatamente acrescentadas as “obras”.

A questão mais difícil é a citação de Amós 5.25-27 e v. 42s. Em nossa Bíblia lemos nessa passagem de Amós: “Sim, levastes Sicute, vosso rei, Quium, vossa imagem, e o vosso deus-estrela, que fizestes para vós mesmos.” A Septuaginta leu o nome “Sicute” como “skené” = “tenda” e a palavra “rei” = “melek” como “Moloque”. O nome do ídolo “Renfã” já ocorre nos manuscritos de Atos dos Apóstolos nas mais diversas formas. Não sabemos como se originaram todas essas formas do nome a partir do original “Quium”. Em Am 5.27 Amós fala do castigo de Deus como ser deportado “para além de Damasco”. Israel estava convicto de que também as dez tribos do reino do Norte não poderiam estar perdidas. Contudo, como não puderam ser localizadas na Babilônia, devem estar num local de desterro além da Babilônia. Assim a Bíblia grega já alterara o texto hebraico.


Notas:
165 Cf. Haenchen, op. cit., p. 240, com uma referência a Zahn.