Estudo sobre Atos 7:3-45

Estudo sobre Atos 7:3-45

No entanto, tudo isso são detalhes pequenos que permanecem sem importância para o entendimento do próprio discurso de Estêvão. São duas grandes verdades que Estêvão lança contra seus acusadores e o Sinédrio, e com as quais o acusado se torna acusador, exatamente como Pedro, a partir da Escritura. Como não pode deixar de acontecer num olhar tão intensivo para a Escritura, em primeiro lugar e acima de tudo está diante de nós Deus com toda a sua soberania e liberdade. Estêvão começa assim: “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”. Nenhum “mérito” moveu Deus para manifestar-se justamente a ele. Naquele tempo Abraão ainda estava “na Mesopotâmia”, ou seja, no mundo gentio. A livre escolha de Deus o separou, começando assim a história de Israel mediante sua própria graça. Logo não existe nenhum “orgulho” justificado do judeu. Com essa afirmação Estêvão acerta imediatamente o ponto mais profundamente vulnerável, a partir do qual explode toda a fúria contra ele: é o orgulho falso que se rebela contra o chamado ao arrependimento. Também nesse aspecto Estêvão traçou a linha que mais tarde Paulo (ouvinte desse discurso de Estêvão!) retoma em Rm 9-11. Toda a vasta história de Israel situa-se sob esse poder determinante de Deus, que continua sendo, por meio de suas promessas e prenúncios na admirável história de José e no magnífico envio de Moisés, aquele que age e salva por livre iniciativa. Não é Estêvão que “blasfema contra Deus”, e sim seus acusadores, quando negam ao Deus da glória essa liberdade e o poder de sua graça, pelos quais voltou a agir quando enviou Jesus.

Consequentemente, Estêvão de fato conduziu sua defesa “cheio do Espírito e de sabedoria” (At 6.10) à profundidade, destacando a questão realmente determinante. Não o fez com palavras próprias, mas inteiramente com a Bíblia, confiando que seus juízes versados na Escritura o entenderiam. Nisso ele necessária e involuntariamente passou para o ataque.

Na sequência se revela em toda a história de Israel, como segundo ponto, a mesma oposição antagônica à liberdade e graça de Deus que agora irrompe plenamente na rejeição a Jesus. Aqueles que veneramos como “patriarcas” tinham ciúme de José, do homem ao lado de quem Deus estava e por meio de quem Deus realizava feitos tão grandes que salvaram também Jacó e seus filhos. Somente na segunda vez que visitaram o Egito José foi reconhecido por seus irmãos.167

E Moisés, contra o qual Estêvão teria blasfemado, foi “negado” e “repelido” precisamente por seus irmãos.

“Ora, Moisés cuidava que seus irmãos entenderiam que Deus os queria salvar por intermédio dele; eles, porém, não compreenderam.”168 Assim os líderes do povo ignoram e “negam” (At 3.14) hoje a Jesus, que teve cuidado por seus irmãos e que lhes foi enviado por Deus como Redentor.169

O pretenso blasfemo contra Moisés mostra toda a grandeza de Moisés na impressionante expressão, cinco vezes repetida, “esse Moisés, esse, esse, esse, esse”. Ao mesmo tempo, porém, está revelando assim também toda a incompreensível e culposa teimosia de Israel, que no íntimo (“em seu coração”) “voltaram para o Egito” e que na grosseira idolatria de fato retorna para lá, sob o aspecto espiritual. Adversário de Moisés não é Estêvão, nem a igreja de Jesus, mas o próprio Israel! Também Estêvão (como Pedro em At 3.22s) recorda a palavra de Moisés sobre o “profeta vindouro como a mim”: a rebeldia de Israel torna-se novamente exacerbada por meio de sua hostilidade contra esse singular “profeta” que se apresenta diante deles na pessoa de Jesus.170


Em vista disso, Estêvão também confronta seus ouvintes com a história do “bezerro de ouro”. Israel experimentou a miraculosa libertação do Egito que a poderosa mão de Deus realizou por intermédio de Moisés. Israel acabou de ser testemunha, ao pé do Sinai, da avassaladora santidade e glória do Deus vivo. Israel concordou unanimemente com a aliança de Deus e sua lei. E instantes depois é capaz de solicitar a Arão “faze-nos deuses”, sacrificando para um “bezerro” depois ter feito a experiência do Deus verdadeiro. E isso não aconteceu com certo receio ou desespero, mas “alegraram-se com as obras de suas mãos”. Assim é Israel, que agora tenta fazer o papel de advogado de Deus e de Moisés contra Jesus e as testemunhas de sua verdade!171 Deus, porém, transforma sua culpa em castigo. Aquele a quem desprezam e rejeitam vira-lhes as costas172 e os abandona à idolatria, acorrentando-os a ela.173 Dessa maneira também agora virá o juízo de Deus sobre Israel, se esse povo rejeitar a seu Senhor Jesus na pessoa de Estêvão e, por sua vez, na pessoa dele, ao próprio Deus.

No entanto, Estêvão teria falado contra o templo. Também nessa questão as opiniões pessoais não podem ser o critério decisivo. Somente a Escritura pode decidir. Por isso Estêvão passa a falar também do “tabernáculo” do testemunho – ó, Israel amou muito mais o “tabernáculo de Moloque”! – e do templo. Sim, Israel tinha de fato um “tabernáculo”, confeccionado por Moisés de acordo com um molde celestial, levando-o também na travessia para a terra prometida. E assim ele é preservado durante todo o tempo do crescimento e da ascensão até Davi. Na realidade esse “lhe suplicou encontrar uma morada para a casa de Jacó”.174 Porém, para Estêvão justamente o fato de Deus negar-lhe este pedido pode ter feito parte da “graça” que Davi obteve diante de Deus. Por mais sincero que tenha sido o sentimento de Davi: “Olha, eu moro em casa de cedros, e a arca de Deus se acha numa tenda.” (2Sm 7.2), inegavelmente havia nele um desconhecimento profundo de Deus: “Que casa me edificareis?”, “Ou qual é o lugar do meu repouso?” (v. 49). Deus preservou Davi da obra inútil. Porque “não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos humanas”. Quem tenta acorrentar Deus ao templo desconhece quem Deus é e o que Deus afirmou sobre si mesmo. Se nos grandes tempos com Moisés e Davi Deus se contentou em ter como local de sua revelação o “tabernáculo do testemunho”, então não é “blasfemo” quem dá pouco valor ao templo.



Notas:
167 Vários comentaristas viram nessa observação de Estêvão um indício de que também Jesus que, ao vir pela primeira vez, não foi reconhecido por Israel, será reconhecido quando vier outra vez.

168 É possível e admissível ler relatos bíblicos de diversos lados. Podemos notar no modo de agir de Moisés daquele tempo o agir autocrático e não-divino, que também o levou a desistir e fugir tão rapidamente. Porém Estêvão tinha muita razão ao salientar nos concidadãos de Moisés a incompreensão contra o homem que os socorria dessa forma e que também era destinado por Deus para ser seu libertador.

169 Embora Estêvão não o diga com palavra alguma, é bem possível que ele entenda e apresente sobretudo José, como também Moisés, como “exemplos” de Jesus. “Depois que o futuro salvador foi inicialmente salvo da aflição causada por seus irmãos, ele passa a salvá-los da aflição enviada por Deus. Escapando dela, os que serão salvos são enviados a seu salvador – no caso de Moisés e Jesus o processo é inverso. Ademais o autor enfatiza as duas vindas dos irmãos, às quais correspondem as duas vindas de Moisés (cf. v. 23ss,34s) e o duplo envio de Jesus (cf. At 3.20 com v. 26). Somente na segunda vez o salvador se torna manifesto aos salvos, e esses se tornam manifestos ao mundo (cf. 1 Jo 3.2; também Ap 22.4; Lc 21.27; Jo 8.28; etc.).” G. Stählin, op. cit., p. 107.

170 Por isso o próprio Jesus já chamou, em Jo 5.45, Moisés de verdadeiro acusador de Israel, aquele Moisés com o qual os judeus querem apelar contra Jesus. Talvez Estêvão tenha conhecido essa palavra de Jesus e refletiu sobre ela ao estudar o AT.

171 Assim cada ser humano é, por natureza, em sua essência!

172 Por consequência, o ateu é castigado com a circunstância de que ele agora precisa viver sem Deus nesse terrível mundo da morte e sem esperança. Ef 2.12.

173 A esse respeito cf. as considerações de Paulo em Rm 1.18-32; Deus castiga nosso pecado, “entregando-nos” ao pecado.

174 Talvez se deva de fato acompanhar os manuscritos do “texto imperial” e ler em lugar “to oiko” “to theo”, ou seja, “para o Deus de Jacó”.