1 Timóteo 1: Significado, Explicação e Devocional
1 Timóteo 1
A epístola de 1 Timóteo 1 inicia-se com um capítulo cuja função é estabelecer o tom teológico, pastoral e disciplinar de toda a carta. Trata-se de um documento escrito num momento em que a jovem comunidade cristã de Éfeso enfrentava tensões internas que ameaçavam tanto a integridade da doutrina quanto a saúde espiritual dos fiéis. Nesse sentido, o capítulo 1 desempenha um papel programático: define a autoridade de Paulo, legitima o ministério de Timóteo e apresenta o problema central que motivou a correspondência — o desvio de alguns mestres que, fascinados por especulações inúteis, abandonavam o coração do evangelho para mergulhar em debates estéreis e genealogias fantasiosas. A preocupação paulina, embora situada num contexto específico do século I, revela, já em seu primeiro capítulo, uma compreensão aguda do caráter sempre vulnerável da igreja quando sua mensagem se mistura com interesses pessoais, curiosidades infecundas ou leituras imprudentes das Escrituras.
A abordagem do apóstolo combina autoridade e ternura. Ele se apresenta como quem recebeu uma incumbência divina e, simultaneamente, se dirige a Timóteo como a um filho amado. Esse duplo movimento é decisivo para compreender o capítulo: o que está em jogo não é apenas a correção intelectual de falsos ensinamentos, mas a formação integral de um líder pastoral cuja vocação foi confirmada pela comunidade por meio de profecias. Paulo deposita sobre Timóteo uma responsabilidade que transcende o plano administrativo; trata-se de preservar a identidade do evangelho contra distorções que, embora revestidas de “zelo”, produzem apenas confusão e violência espiritual. O capítulo sugere que a primeira batalha a ser travada pelo jovem ministro não é contra perseguições externas, mas contra corrupções internas da doutrina, especialmente aquelas que se mascaram de piedade e erudição.
Um dos eixos temáticos mais densos do capítulo é a afirmação de que o “fim da instrução” é o amor que brota de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia. Essa síntese apresenta a ética cristã não como moralismo, mas como fruto natural da vida orientada corretamente. A consciência, palavra que Paulo repetirá com força, é apresentada como órgão espiritual indispensável; quando ferida ou rejeitada, ela conduz ao naufrágio da fé, imagem forte que o capítulo emprega para descrever o colapso interior daqueles que se afastam da verdade. A mensagem geral aponta para a inseparabilidade entre sã doutrina e sã vida: qualquer ensino que produza arrogância, discussões improdutivas ou contendas contínuas não procede do evangelho.
O capítulo também articula uma compreensão precisa do papel da Lei. Contra aqueles que a usavam indevidamente para alimentar debates intermináveis, Paulo insiste que a Lei é boa quando usada legitimamente, isto é, quando compreendida em sua função de revelar o pecado e de conter a injustiça. A longa lista de vícios e comportamentos ilícitos não pretende ser exaustiva, mas ilustrativa: o uso legítimo da Lei confronta o coração humano e impede que a comunidade se desvie de sua vocação ética. A Lei, portanto, não é instrumento de especulação, mas ferramenta de diagnóstico espiritual.
Outro ponto crucial do capítulo é seu caráter autobiográfico. Paulo relembra sua própria condição anterior de perseguidor e blasfemo, mas destaca que foi alvo da superabundante graça de Cristo. Essa confissão não é sentimental, mas programática: o evangelho que Timóteo deve defender é o evangelho que transforma o inimigo em apóstolo, o violento em testemunha, o indigno em ministro. A liderança cristã, à luz desse capítulo, deve ser profundamente moldada pela memória da misericórdia recebida.
O capítulo um encerra-se com uma doxologia e com a disciplina severa aplicada a dois indivíduos que naufragaram na fé. Essa justaposição — louvor sublime e correção rigorosa — sintetiza a visão paulina: a igreja vive para glorificar a Deus, mas essa glória exige vigilância contínua contra tudo o que destrói a verdade. Em seu contexto de mensagem geral, 1 Timóteo 1 se apresenta como manifesto pastoral que une doutrina, ética, disciplina e misericórdia numa só unidade, orientando qualquer liderança cristã que deseje permanecer fiel ao evangelho.
I. Esboço de 1 Timóteo 1
A. Saudação e estabelecimento da autoridade apostólica (1:1–2)
Remetente, legitimidade e relação pastoral
a. Paulo como apóstolo por mandato de Deus e de Cristo Jesus, nossa esperança (1:1)
b. Timóteo como “verdadeiro filho na fé”: identidade, relação e vocação pastoral (1:2a)
c. Concessão inicial de bênçãos: graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, o Senhor (1:2b)
B. Encargo pastoral e combate ao falso ensino (1:3–7)
Natureza do problema doutrinário e missão de Timóteo
a. Permanecer em Éfeso: a ordem de permanecer para enfrentar o desafio (1:3a)
b. Correção dos que ensinam doutrina diversa: delimitação do alvo da repreensão (1:3b)
c. Advertência contra fábulas e genealogias intermináveis: desvios que geram contendas e não edificação (1:4)
d. Uso ilegítimo da Lei por mestres que não compreendem nem o que dizem nem o que afirmam (1:6–7)
C. A finalidade da instrução apostólica: amor e integridade interior (1:5)
O centro ético da vida cristã
a. O fim do mandamento: amor procedente de coração puro (1:5a)
b. Boa consciência como fundamento da vida moral cristã (1:5b)
c. Fé não fingida como condição para uma comunidade saudável (1:5c)
D. Advertência sobre o mau uso da Lei e sua função legítima (1:8–11)
Parâmetros teológicos para o uso correto da Lei
a. A Lei é boa quando aplicada legitimamente (1:8)
b. A Lei não foi instituída para o justo, mas para os transgressores (1:9–10a)
c. Lista paradigmática dos comportamentos contrários à sã doutrina (1:10b)
d. Conformidade com o evangelho da glória do Deus bendito, confiado a Paulo (1:11)
E. Testemunho autobiográfico de Paulo: da violência à misericórdia (1:12–14)
A autoridade apostólica como fruto da graça
a. Ação de graças por ter sido fortalecido e considerado fiel para o ministério (1:12)
b. Recordação do passado: blasfemo, perseguidor e insolente (1:13a)
c. Misericórdia recebida por agir na ignorância e incredulidade (1:13b)
d. Superabundância da graça acompanhada de fé e amor em Cristo Jesus (1:14)
F. A máxima fidelíssima do evangelho e a confissão de Paulo (1:15–16)
Cristo como salvador de pecadores
a. Declaração confiável: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores (1:15a)
b. Paulo como “o primeiro” — a exemplificação máxima da misericórdia (1:15b)
c. Propósito pedagógico da misericórdia: Cristo demonstrando sua longanimidade em Paulo como modelo para os que hão de crer (1:16)
G. Doxologia à majestade divina (1:17)
Louvor que coroa a teologia do capítulo
a. Exaltação ao Rei dos séculos: incorruptível, invisível e único Deus (1:17a)
b. Atribuição de honra e glória pelos séculos dos séculos (1:17b)
c. Selo litúrgico da doxologia: Amém (1:17c)
H. Encargo renovado a Timóteo com base nas profecias (1:18)
A missão ministerial como continuação da vontade divina
a. A ordem confiada a Timóteo, fundamentada nas profecias que o precederam (1:18a)
b. Finalidade do encargo: militar o bom combate (1:18b)
I. Advertência final: fé, consciência e disciplina eclesiástica (1:19–20)
O risco da apostasia e a ação pastoral corretiva
a. Guardar a fé e a boa consciência como âncoras do ministério (1:19a)
b. A rejeição da consciência e o naufrágio na fé (1:19b)
c. Exemplos concretos: Himeneu e Alexandre, entregues ao Adversário para disciplina (1:20)
II. Versículo-Chave
1 Timóteo 1:5
“Ora, o fim da instrução é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida.”
Este versículo condensa o arco teológico-pastoral de 1 Timóteo 1 e funciona como sua tese programática. Ele revela que toda a parangelia (“instrução/ordem”) mencionada no versículo 1:3 — o encargo de permanecer em Éfeso, confrontar falsos mestres, corrigir o mau uso da Lei e preservar o evangelho — converge para um único telos (“fim, alvo, propósito”): o agapē (“amor”) como fruto maduro de uma interioridade ordenada. Ao articular “coração puro”, “boa consciência” e “fé não fingida”, o versículo estabelece o eixo triplo que o capítulo inteiro irá desenvolver: o coração (kardia) como centro afetivo-volitivo, purificado pela graça (ecoando a autobiografia de Paulo em 1:12–14), a syneidēsis (“consciência”) como órgão de discernimento moral que, quando rejeitado, conduz ao naufrágio na fé (1:19), e a pistis anypokritos (“fé sem hipocrisia”) como antítese da atuação dos falsos mestres, cuja fé é formal, mas não transformadora (1:6–7). Assim como Efésios 1:10 organiza a doxologia em torno da recapitulação de todas as coisas em Cristo, 1 Timóteo 1:5 organiza o capítulo em torno da finalidade ética e afetiva da doutrina: a sã instrução não visa curiosidades genealógicas, disputas verbais ou prestígio intelectual, mas a formação de um povo cuja vida seja tecido de amor.
A discussão sobre o uso legítimo da Lei (1:8–11) ganha, à luz deste versículo, seu enquadramento correto: a Lei é boa quando conduz ao reconhecimento do pecado e, em última instância, prepara o terreno para o amor que nasce da experiência do evangelho; é pervertida quando se torna combustível para controvérsias estéreis. A própria narrativa de Paulo, que passa de blasfemo e perseguidor a paradigma da misericórdia (1:12–16), ilustra concretamente o processo descrito em 1:5: a graça superabundante gera fé verdadeira, limpa a consciência e transforma o coração, transbordando em amor. Até mesmo a disciplina de Himeneu e Alexandre (1:20) pode ser lida a partir deste centro: ao entregar tais homens a uma disciplina severa, Paulo não abandona o ideal do amor, mas protege a comunidade para que não seja deformada por uma fé naufragada e por uma consciência cauterizada. Em suma, 1:5 é o nervo sensível do capítulo: ele explica por que a doutrina precisa ser “sã” (1:10–11), por que o passado de Paulo é narrado como testemunho e não como glória pessoal (1:13–16), e por que o capítulo desemboca em doxologia (1:17) e advertência (1:19–20). Onde este versículo é esquecido, a instrução cristã degenera em formalismo, polêmica ou moralismo; onde ele é recebido como centro, a teologia, a ética e a prática pastoral se curvam ao mesmo objetivo: produzir amor que nasce de dentro, inflamado pela graça e sustentado por uma fé verdadeira.
III. Explicação de 1 Timóteo 1
1 Timóteo 1:1
Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por ordem de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança (Gr.: Paulos apostolos Christou Iēsou kat’ epitagēn theou sōtēros hēmōn kai Christou Iēsou tēs elpidos hēmōn — Literalmente: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus segundo o mandado de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança”.) Ao aproximar o ouvido da primeira palavra, Παῦλος, percebe-se que o nome próprio traz ainda a sombra do latino Paulus (“pequeno”), ironicamente aplicado a quem se tornou gigantesco na história da fé. Χριστός, em “Christou Iēsou”, deriva de chriō (“ungir”) e é o equivalente grego de mašîaḥ (“ungido”), de onde a ideia de Messias, o Ungido esperado de Deus. Iēsou, transliterado Iēsous, vem do hebraico Yehōšuaʿ / Yēšûaʿ (“YHWH é salvação”), explicitando já no nome a identidade daquele cuja missão é salvar. O substantivo apostolos nasce do verbo apostellō (“enviar”) e, no uso helenístico, designava o emissário oficial, delegado de alguém maior, o que reforça a consciência de Paulo de não falar em nome próprio, mas como alguém enviado. Já epitagē é termo de tonalidade jurídica, “mandato”, “ordem autoritativa”, sugerindo um decreto soberano, não uma mera sugestão piedosa. O vocábulo sōtēr provém de sōzō (“salvar”) e, na cultura greco-romana, podia ser título de deuses e reis; aqui é arrebatado e reorientado para “Deus, nosso Salvador”, o Deus que liberta e preserva, enquanto elpis não é mera expectativa incerta, mas a “expectativa confiante do que é seguro”, uma esperança ancorada num futuro garantido.
No plano morfológico, o versículo é um magnífico período nominal, sem verbo finito expresso, sustentado por uma série de nomes que se equilibram como colunas de um pórtico. Paulos é substantivo próprio, masculino, singular, no caso nominativo, desempenhando a função de sujeito gramatical e apresentando o remetente. apostolos é substantivo comum, masculino, singular, também no nominativo, colocado em aposição a Paulos, funcionando como predicativo do sujeito, título que qualifica quem é esse Paulo: ele existe, por assim dizer, enquanto “apóstolo”. Christou Iēsou é sintagma no genitivo masculino singular, dependente de apostolos; o genitivo aqui é de relação ou, em sentido quase possessivo, indicando de quem Paulo é apóstolo, “apóstolo que pertence a Cristo Jesus”. kata, na forma elidida kat’, rege o acusativo epitagēn; é preposição que, com acusativo, exprime conformidade ou medida, “segundo, de acordo com”, e o acusativo epitagēn (substantivo feminino, singular, função de núcleo do complemento preposicionado) introduz a ideia de um mandato objetivo que estrutura o apostolado.
O substantivo theou é masculino, singular, no genitivo, núcleo substantivo que qualifica a origem dessa epitagē: não é um mandado da comunidade, mas “de Deus”; sōtēros, também substantivo masculino, singular, genitivo, está em aposição a theou e é complementado por hēmōn, pronome pessoal de primeira pessoa do plural, genitivo, que introduz a dimensão da posse relacional (“nosso Salvador”), transformando uma designação teológica em confissão comunitária. A conjunção coordenativa kai liga, em paridade, theou sōtēros hēmōn e Christou Iēsou tēs elpidos hēmōn; este último é um segundo sintagma genitivo composto, onde Christou Iēsou é novamente genitivo masculino singular e tēs elpidos, substantivo feminino singular no genitivo com artigo, recebe hēmōn como pronome possessivo; o genitivo é, aqui, melhor entendido como genitivo de aposição: Cristo Jesus é ele mesmo “a nossa esperança”. Não há verbo expresso, mas está subentendida a cópula estin, de modo que a estrutura global pode ser descrita como predicação nominal elíptica: “Paulo [é] apóstolo de Cristo Jesus segundo o mandado de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança”. Assim, Paulos é o sujeito; apostolos, o predicativo; os genitivos Christou Iēsou, theou sōtēros hēmōn e Christou Iēsou tēs elpidos hēmōn funcionam como complementos que especificam tanto o vínculo do apóstolo quanto a origem e a natureza do mandado que o estabelece.
Quando se coloca esse versículo diante de um espelho de traduções, surgem nuances preciosas. Em inglês, a KJV verte: “Paul, an apostle of Jesus Christ by the commandment of God our Saviour, and Lord Jesus Christ, which is our hope;” (“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela ordem de Deus, nosso Salvador, e do Senhor Jesus Cristo, que é a nossa esperança”). A ESV segue o texto crítico e afirma: “Paul, an apostle of Christ Jesus by command of God our Savior and of Christ Jesus our hope,” (“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por mandado de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança”). A ASV mantém a mesma estrutura: “Paul, an apostle of Christ Jesus according to the commandment of God our Saviour, and Christ Jesus our hope;” (“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, segundo o mandamento de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança”). A YLT, com seu estilo mais literal, escreve: “Paul, an apostle of Jesus Christ, according to a command of God our Saviour, and of the Lord Jesus Christ our hope,” (“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, conforme um mandado de Deus, nosso Salvador, e do Senhor Jesus Cristo, nossa esperança”). Em português, a NVI diz: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por ordem de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, a nossa esperança,” a ARC lê: “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, segundo o mandado de Deus, nosso Salvador, e do Senhor Jesus Cristo, esperança nossa,” e a NVT amplia levemente: “Eu, Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por ordem de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança,” (“Eu, Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por ordem de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança”). A oscilação entre “Jesus Cristo” e “Cristo Jesus”, bem como a presença ou ausência explícita de “Senhor” na segunda ocorrência, reflete tanto diferenças textuais entre o texto crítico e o texto recebido quanto escolhas estilísticas das versões, mas em todas permanece intocada a estrutura central: a identidade apostólica de Paulo é definida por um mandado divino e cristológico, e Cristo é apresentado não apenas como fonte, mas como conteúdo da esperança.
Na leitura exegética, esse versículo ergue um arco que vai da autoridade à esperança, passando pela soteriologia. Ao dizer “apóstolo de Cristo Jesus segundo o mandado de Deus, nosso Salvador”, Paulo insere sua missão na sequência de fórmulas com que, em outras cartas, se apresenta “segundo a vontade de Deus”, como em 2 Coríntios 1:1 (“Paul, an apostle of Christ Jesus by the will of God…”) (“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus…”). Aqui, o foco se desloca da “vontade” para o “mandado” (epitagē), termo que reaparece em Tito 1:3, onde Paulo afirma ter sido encarregado da proclamação “segundo o mandamento de Deus, nosso Salvador”. A mão que escreve a Timóteo não é a de um intelectual autônomo, mas de um emissário que se sabe portador de uma ordem real; o evangelho, portanto, não é uma opinião piedosa, e sim um decreto de Deus que irrompe na história e cria a própria comunidade que o recebe.
A expressão “Deus, nosso Salvador” aproxima esta abertura de 1 Timóteo da grande tradição bíblica que atribui a Deus, Pai, o título de Salvador, como já cantara Maria: “And my spirit hath rejoiced in God my Saviour” (“E o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador”) em Lucas 1:47, e como reaparece nas Pastorais (1 Timóteo 2:3; Tito 1:3; 3:4), onde Deus é o sujeito que quer salvar e que se manifesta em Cristo. Ao lado disso, a designação de Cristo como “nossa esperança” faz eco, no horizonte paulino mais amplo, à afirmação de Colossenses 1:27, em que o mistério é definido como “Christ in you, the hope of glory” (“Cristo em vós, a esperança da glória”). Assim, 1 Timóteo 1:1 reúne numa só linha duas afirmações de peso: o Pai é Salvador, fonte soberana do mandado apostólico, e o Filho é a esperança, presença viva da futura glória já antecipada na comunidade.
Isso significa que a vida e o ministério cristão não brotam de iniciativas privadas, mas de um chamado que vem “segundo o mandado” de Deus e de Cristo (McKNIGHT, S. “Commentary on 1 Timothy”. In: The Pastoral Epistles. 2023, pp. 18-125). A mesma autoridade que colocou Paulo como apóstolo é a que continua convocando a Igreja a servir, ensinar e guardar o depósito da fé (ERHMAN, Charles R. The Pastoral epistles of Paul, an exposition, 1923, pp. 10-13). Ao iniciar a carta a Timóteo com esse sublinhado da origem divina de seu apostolado, Paulo prepara o terreno para exortar um jovem pastor a permanecer fiel contra doutrinas estranhas: a autoridade pastoral verdadeira não repousa em carismas pessoais ou estruturas humanas, mas na fidelidade ao mandado daquele que é “Deus, nosso Salvador” e “Cristo Jesus, nossa esperança” (cf. 1:1-2 The first letter of Paul to Timothy – Introduction por Georf Thomas). Quando a comunidade lê esse versículo, é chamada a escutar, por detrás da voz de Paulo, a voz do próprio Deus que envia, salva e sustenta; e, ao ver Cristo designado simplesmente como “nossa esperança”, é convidada a deslocar o peso de suas expectativas — não para sistemas, líderes ou estratégias, mas para a pessoa viva de Cristo, cuja presença é já agora a antecipação do futuro que se aguarda.
1 Timóteo 1:2
...a Timóteo, verdadeiro filho na fé: Graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor (Gr.: Timotheō gnēsiō teknō en pistei, charis eleos eirēnē apo theou patros kai Christou Iēsou tou kyriou hēmōn — Literalmente: “a Timóteo, filho legítimo em fé, graça, misericórdia, paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, o Senhor nosso”.) Já no nível dos nomes, o versículo traça um arco de sentido: Timotheos (“aquele que honra a Deus”, de timē “honra” + theos “Deus”) indica uma existência marcada por honra prestada ao divino, não apenas nominal, mas biográfica, como atestam os léxicos que identificam o nome como “honrando a Deus” ou “precioso para Deus”; gnēsios (“legítimo”, “verdadeiro”), adjetivo derivado da ideia de nascer de modo legítimo, desloca-se do campo jurídico para o afetivo, passando a significar o filho autenticamente ligado a alguém, sem mistura, “não espúrio”; teknon (“filho”, “criança”, “descendente”), vocábulo que designa o nascido, o fruto de uma geração, e por extensão o discípulo que vive na dependência confiada de quem o gera na fé, é largamente usado para a filiação espiritual dos crentes em relação a Deus e dos cooperadores em relação a Paulo. No tríptico charis (“graça”), eleos (“misericórdia”) e eirēnē (“paz”), charis remete à “graça” como favor imerecido que provém da benevolência de Deus, vocábulo que se enraíza em chairō (“alegrar-se”) e designa, no Novo Testamento, a benevolência gratuita do Santo em favor do indigno; eleos traz o campo semântico da compaixão que se inclina sobre a miséria alheia, a piedade que suspende o juízo merecido, frequentemente associado à imagem de Deus que “não nos trata segundo os nossos pecados”; eirēnē, possivelmente ligado à ideia de “unir” e próximo do horizonte da šālōm veterotestamentária, descreve não apenas ausência de conflito, mas o estado de harmonia restabelecida entre Deus e a criatura, repercutindo nas relações humanas. Assim, já pela escolha lexical, a saudação combina filiação legítima, fé compartilhada e um fluxo de dom divino que vai da graça originária à paz como fruto último, passando pela misericórdia que perdoa e acolhe.
Trata-se de um versículo sem verbo finito expresso, construído como saudação epistolar em duas unidades: uma dativa de destinatário e uma fórmula nominativa de bênção, com cópula elíptica. A primeira unidade, Timotheō gnēsiō teknō en pistei (“a Timóteo, verdadeiro filho na fé”), organiza-se em torno de um dativo que acumula funções de destinatário e caracterização: Timotheō é substantivo, masculino, singular, caso dativo, designando o nome próprio de Timóteo e funcionando como termo principal da expressão dativa, “a Timóteo”, indicativo do destinatário da carta, em paralelo às outras epístolas que usam dativo para marcar a pessoa a quem se escreve (por exemplo, “a Tito, verdadeiro filho na fé comum” em Tito 1:4). Gnēsiō é adjetivo, masculino, singular, caso dativo, em concordância com teknō, qualificando-o como “legítimo”, “verdadeiro”, e enfatizando que esta filiação não é meramente funcional, mas autêntica, em contraste com obreiros espúrios ou inconstantes; os léxicos insistem em que o termo se aplica a pessoas “legitimamente nascidas” e, no Novo Testamento, a relações cuja autenticidade foi provada. Teknō é substantivo, neutro, singular, caso dativo, formando com Timotheō um dativo em aposição: Timóteo é descrito como “filho” de Paulo, em linguagem espiritual, e a forma dativa o mantém no mesmo regime de caso da construção de destinatário (“a Timóteo, filho legítimo em fé”), ecoando o modo como Paulo fala de Timóteo em Filipenses 2:22, “como filho ao pai, serviu comigo no evangelho”.
A expressão en pistei começa com en, preposição que rege o dativo e aqui indica esfera ou ambiente (“no âmbito da fé”), seguida de pistei, substantivo, feminino, singular, caso dativo, que funciona como complemento da preposição e determina a natureza desta filiação: não sangue, mas fé partilhada, o que aproxima o texto de Tito 1:4, onde o filho é “segundo a fé comum”. A segunda unidade do versículo, charis eleos eirēnē apo theou patros kai Christou Iēsou tou kyriou hēmōn, apresenta uma tríade nominativa em posição inicial: charis, eleos e eirēnē são substantivos, feminino, neutro e feminino respectivamente, todos singular, caso nominativo, coordenados entre si e funcionando como sujeito de uma cópula elíptica, com valor de benção (subentende-se algo como “sejam [a ti] graça, misericórdia e paz”), fórmula análoga à que Paulo usa em Romanos 1:7, ainda que lá sem o termo intermediário “misericórdia”. A seguir, apo é preposição que rege o genitivo e introduz a origem da benção (“da parte de”), exigindo que theou e patros apareçam no genitivo: theou é substantivo, masculino, singular, caso genitivo, designando “Deus”; patros é substantivo, masculino, singular, genitivo, em aposição explicativa (“Deus Pai”), de modo que o artigo omitido não impede a leitura de que se trata de uma só pessoa, Deus caracterizado como Pai.
A conjunção coordenativa kai liga esse primeiro termo de origem ao segundo, Christou Iēsou tou kyriou hēmōn: Christou é substantivo, masculino, singular, caso genitivo, título messiânico (“Ungido”); Iēsou é substantivo, masculino, singular, genitivo, nome próprio, formando com Christou uma unidade nominal “de Cristo Jesus”; tou kyriou traz o artigo tou (masculino, singular, genitivo) seguido de kyriou, substantivo, masculino, singular, genitivo, completando a identificação cristológica (“o Senhor”), ao passo que hēmōn é pronome pessoal de primeira pessoa do plural, genitivo (“nosso”), ligando a comunidade crente ao senhorio de Cristo. A cadeia genitiva inteira (apo theou patros kai Christou Iēsou tou kyriou hēmōn) funciona sintaticamente como complemento preposicional de origem, sugerindo uma única fonte de “graça, misericórdia e paz” no Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo, o que tem forte peso cristológico.
O versículo é um período nominado com elipse de verbo, típico das fórmulas epistolares paulinas. A estrutura de saudação apresenta, primeiro, um dativo de destinatário com predicação nominal implícita: “a Timóteo, verdadeiro filho na fé” assume uma cópula subentendida (“é”), de modo que gnēsiō teknō en pistei funciona como predicativo de Timóteo, qualificando a relação espiritual: é “filho” e é “verdadeiro”, e essa verdade se situa “na fé” como esfera. Em seguida, o bloco “graça, misericórdia e paz” estabelece uma oração nominal com valor desiderativo, nascida da elipse de um verbo como “sejam” ou “vos sejam multiplicadas”, como se vê claramente em saudações afins (por exemplo, “graça e paz vos sejam multiplicadas” em 1 Pedro 1:2). Aqui, a tríade nominativa atua como sujeito lógico, e o complemento introduzido por apo indica a procedência divina dessa bênção; a ausência de qualquer referência humana como canal sublinha que a saudação é mais do que cortesia epistolar, é ato litúrgico em forma de oração e bênção. Em termos de funções, portanto, “Timóteo” é destinatário em dativo; “filho verdadeiro na fé” é predicativo desse destinatário; “graça, misericórdia e paz” formam o núcleo do sujeito nominal elíptico; “da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor” é complemento de origem e, teologicamente, confissão abreviada da fé trinitária (aqui Pai e Filho, com o Espírito pressuposto na dinâmica da graça, da misericórdia e da paz).
Quando a saudação é colocada lado a lado com as versões, percebe-se como cada tradição verte nuances do grego. Em inglês, a King James Version reproduz: “Unto Timothy, my own son in the faith: Grace, mercy, and peace, from God our Father and Jesus Christ our Lord.” (“A Timóteo, meu próprio filho na fé: graça, misericórdia e paz, da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor.”), ressaltando o possessivo afetivo “my own son”. A English Standard Version prefere: “To Timothy, my true child in the faith: Grace, mercy, and peace from God the Father and Christ Jesus our Lord.” (“A Timóteo, meu verdadeiro filho na fé: graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor.”), onde “true child” traduz com precisão o campo de gnēsios, enfatizando autenticidade e legitimidade. A Young’s Literal Translation, sensível ao vocabulário, verte: “to Timotheus — genuine child in faith: Grace, kindness, peace, from God our Father, and Christ Jesus our Lord!” (“a Timóteo — filho genuíno em fé: graça, benignidade, paz, da parte de Deus nosso Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor!”), optando por “kindness” para eleos e conservando “genuine” para gnēsios.
A American Standard Version acompanha de perto: “unto Timothy, my true child in faith: Grace, mercy, peace, from God the Father and Christ Jesus our Lord.” (“a Timóteo, meu verdadeiro filho em fé: graça, misericórdia, paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor.”); a ausência do artigo em inglês antes de “faith” ecoa o grego, que diz literalmente “em fé”, sem qualificadores. Em português, a Nova Versão Internacional oferece: “A Timóteo, meu verdadeiro filho na fé: Graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, o nosso Senhor.”, mantendo a tríade completa e distinguindo “Deus Pai” de “Cristo Jesus, o nosso Senhor”; a Almeida Revista e Corrigida traz: “a Timóteo, meu verdadeiro filho na fé: graça, misericórdia e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e da de Cristo Jesus, nosso Senhor.”, onde a repetição da preposição “da de” acentua a dupla procedência, sem divisões ontológicas; a Nova Versão Transformadora, em sua forma contínua, diz: “a Timóteo, meu verdadeiro filho na fé. Que Deus Pai e Cristo Jesus, nosso Senhor, deem a você graça, misericórdia e paz.”, explicitando a cópula elíptica e trazendo à tona o valor oracional (“deem a você”), o que é teologicamente legítimo, já que a fórmula grega é, de fato, uma bênção pronunciada. Esses espelhos mostram que a sua tradução corrigida — “graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor” — capta bem o equilíbrio entre a literalidade e a fluência.
Na leitura exegética, o versículo condensa um retrato da relação entre Paulo e Timóteo e, ao mesmo tempo, uma síntese da economia da salvação aplicada ao indivíduo. A expressão Timotheō gnēsiō teknō en pistei sugere que a filiação de Timóteo não é mera conveniência missionária, mas fruto de uma geração espiritual profunda: ele foi “gerado” pela Palavra e pela fé, como se vê na biografia traçada em 2 Timóteo 1:5, onde Paulo rememora a fé que habitou primeiro em Lóide e Eunice, e depois em Timóteo; e em Filipenses 2:22, onde se afirma que ele serviu “como filho ao pai” ao lado do apóstolo. O adjetivo gnēsios afasta qualquer suspeita de oportunismo ou superficialidade; à luz de Tito 1:4, onde Tito é chamado de “verdadeiro filho segundo a fé comum”, percebe-se que Paulo reserva esse termo para aqueles em quem a fé não é episódica, mas provada, e cujas vidas se tornaram extensão confiável do próprio ministério apostólico. Desse modo, a relação pai–filho aqui descrita não é psicológica apenas, mas eclesial: configura uma linhagem de fé em que a Palavra gera filhos que, por sua vez, tornam-se mediadores da mesma graça.
A tríade charis eleos eirēnē alarga o horizonte dessa relação. Nas cartas anteriores, a fórmula habitual de saudação é “graça e paz” (por exemplo, Romanos 1:7, 1 Coríntios 1:3, Gálatas 1:3), ecoando o encontro entre o cumprimento cristão da bênção grega (charis) e a bênção hebraica (shalom); nas cartas pastorais, contudo, o termo eleos é inserido entre graça e paz (1 Timóteo 1:2, 2 Timóteo 1:2, Titus 1:4), como se o apóstolo, já em ambiente de comunidades consolidadas, quisesse destacar que a caminhada da igreja entre a graça inicial e a paz final é atravessada continuamente pela misericórdia. Essa leitura se harmoniza com os estudos lexicais que distinguem a graça como favor positivo e a misericórdia como compaixão que nos poupa do juízo devido. Em termos hermenêuticos, Paulo está dizendo a Timóteo que aquilo de que ele precisa, em meio às lutas doutrinárias e às tensões pastorais descritas no restante da carta, não é apenas um ponto de partida gracioso e um ideal de paz, mas uma corrente constante de misericórdia que o sustente quando falhar e quando se sentir esmagado pelas responsabilidades.
A origem dupla da bênção — “da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor” — funciona como confissão de fé condensada. Ao atribuir “graça, misericórdia e paz” conjuntamente ao Pai e ao Filho, Paulo apresenta Cristo não como mero intermediário neutro, mas como cofonto dessa bênção, em linha com outros textos em que a fonte última da graça é enunciada de forma binária: “graça e paz a vós, da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo” (Romanos 1:7; 1 Coríntios 1:3; Efésios 1:2). Isso implica que a esperança de Timóteo repousa no Deus que é Pai e no Cristo que é Senhor, não em sua própria capacidade ministerial. A saudação não é ornamento periférico, mas porta de entrada teológica para toda a epístola: o “verdadeiro filho na fé” é aquele que vive sob o fluxo permanente de graça, misericórdia e paz que brotam do Pai e do Filho, e cuja tarefa pastoral se enraíza nesse dom. As conexões entre filiação espiritual, tríplice bênção e dupla origem divina, tal como as articulei aqui, são inferências sistemáticas construídas a partir dos dados lexicais e intertextuais citados, e não se limitam a uma única fonte específica, mas emergem do conjunto do testemunho paulino.
1 Timóteo 1:3
...conforme eu te exortei a permanecer em Éfeso, indo eu para a Macedônia, para que ordenes a alguns que não ensinem doutrina diferente (Gr.: Kathōs parekalesa se prosmeinai en Ephesō poreuomenos eis Makedonian, hina parangeilēs tisin mē heterodidaskalein — Literalmente: “como te roguei que permanecesses em Éfeso, enquanto eu ia para a Macedônia, para que ordenes a alguns que não ensinem doutrina diferente”). O versículo é como um quadro em movimento: vê-se Paulo em marcha para a Macedônia, Timóteo ficando para trás em Éfeso, e entre os dois um fio de voz que continua ecoando — o rogo passado que se torna ordem presente. Na raiz de parekalesa (“exortei”, “roguei”) está parakaleō (“chamar para junto”, “consolar”, “animar”, “exortar”), verbo que une o gesto de chamar para perto ao ato de encorajar, de modo que o pedido de Paulo não é frio, mas carregado de proximidade afetiva, típico de quem chama um filho ao seu lado para lhe confiar uma missão pesada. Prosmeinai (“permanecer”) deriva de prosmenō (“permanecer junto”, “continuar com”, “ficar ainda”), um composto de pros (“junto, em direção”) + menō (“permanecer”), que intensifica a ideia de ficar, sugerindo não apenas “ficar”, mas “ficar ainda mais”, “persistir ali”, como quem finca raízes num solo difícil. O particípio poreuomenos (“indo”, “enquanto eu ia”) vem de poreuomai (“ir”, “caminhar”, “viajar”), verbo de caminho, de estrada; ele desenha o movimento do apóstolo que se afasta, deixando Timóteo na linha de frente. Ephesō (“Éfeso”) designa a cidade portuária, centro comercial e religioso onde Artemisa dominava o imaginário, mas onde agora o evangelho plantara uma igreja cercada por conflitos (basta lembrar o tumulto narrado em Atos 19). Makedonian (“Macedônia”) evoca a rota missionária setentrional, região onde Paulo já vira o “varão macedônio” em visão chamá-lo a pregar (Atos 16:9).
Na segunda metade, hina parangeilēs tisin mē heterodidaskalein condensa o propósito pastoral dessa geografia inteira. Parangeilēs (“ordenares”) vem de parangellō (“transmitir uma ordem”, “intimar”), formado de para (“ao lado”) + angellō (“anunciar”); é o vocabulário dos mensageiros que passam adiante uma ordem superior, muitas vezes em contexto militar, como quem entrega um comando que não nasceu de si. Heterodidaskalein (“ensinar doutrina diferente”) junta heteros (“outro de natureza diversa”) e didaskaleō (ligado a didaskalos, “mestre”), de modo que não se trata apenas de falar sobre outros assuntos, mas de ministrar um ensinamento de outra natureza, estranho e alheio à fé cristã. Léxicos observam que o verbo descreve o ato de ensinar uma doutrina “diferente”, “estranha”, “falsa”, algo que não se coaduna com o padrão apostólico e com as “sãs palavras” de Cristo. Tisin (“a alguns”) é o pronome indefinido em forma dativa, deixando os destinatários da ordem no anonimato: são “certas pessoas”, um pequeno foco de infecção doutrinária no meio da igreja. Kathōs (“assim como”, “conforme”) faz a ponte entre o que Paulo dissera no passado e o que agora reafirma por escrito; a partícula negativa mē (“não”) finca, diante do infinitivo heterodidaskalein, um portão fechado: há ensinamentos que simplesmente não podem ser tolerados, por mais sedutores que pareçam.
O versículo se organiza em uma longa oração introdutória condicionante, seguida da oração final que já havíamos examinado. Kathōs é conjunção comparativa, introduzindo uma oração adverbial que retoma um ato passado de Paulo e o usa como medida para o que está dizendo agora: “conforme eu te exortei…”; ela prepara a mente do leitor para receber a ordem presente como continuação coerente daquele pedido anterior. Parekalesa é verbo, aoristo, indicativo, voz ativa, primeira pessoa do singular, núcleo verbal dessa oração; o aoristo o apresenta como um fato pontual: em certo momento da viagem, Paulo tomou Timóteo, o chamou para perto e o exortou. Se é pronome pessoal, acusativo, segunda pessoa do singular, objeto direto de parekalesa, o Timóteo a quem o rogo foi dirigido. Prosmeinai é verbo, aoristo, infinitivo, voz ativa, de prosmenō; funciona como infinitivo complementar de parekalesa, explicando o conteúdo do pedido: “te exortei a permanecer”. En é preposição que rege o dativo, introduzindo Ephesō, substantivo próprio, dativo singular, que funciona como complemento locativo da preposição: o lugar onde Timóteo deveria continuar. Poreuomenos é particípio presente, voz média (deponente), masculino singular, nominativo, de poreuomai, concordando com o sujeito oculto de parekalesa (“eu, Paulo”) e funcionando como particípio circunstancial temporal: “enquanto eu ia para a Macedônia”. Eis é preposição com acusativo, indicando direção, governando Makedonian, substantivo próprio, acusativo singular, que marca o destino da viagem.
Na sequência, a conjunção hina abre a oração de finalidade, dependente de todo o segmento anterior: “para que…”. Hina é conjunção subordinativa final; o verbo parangeilēs é a forma aoristo, subjuntivo, voz ativa, segunda pessoa do singular de parangellō, e funciona como núcleo verbal da oração final: é o ato que Paulo quer ver realizado como fruto daquela permanência em Éfeso. Tisin é pronome indefinido, dativo plural, atuando como objeto indireto de pessoa — “a alguns” que precisam ser formalmente intimados. Mē é partícula negativa que nega o infinitivo subsequente. Heterodidaskalein é verbo no tempo presente, infinitivo, voz ativa; como infinitivo complementar de parangeilēs, exprime o conteúdo da ordem: “não continuar a ensinar doutrina diferente”. O presente do infinitivo sugere uma atividade em curso, habitual; não se trata de uma possibilidade remota, mas de um processo de ensino desviante já em andamento, que Timóteo deve frear.
Do ponto de vista sintático, o verso inteiro é uma longa construção em que a oração comparativa-temporal introduzida por kathōs (“como, conforme”) estabelece o cenário: no passado recente, num ponto da jornada rumo à Macedônia, Paulo rogou a Timóteo que permanecesse em Éfeso. Essa oração é, em certo sentido, pendente: o verbo principal da frase está apenas implicado, pois o peso sintático recai sobre a oração final introduzida por hina: “para que ordenes a alguns que não ensinem doutrina diferente”. Assim, o sujeito implícito em parekalesa e expresso em parangeilēs é o mesmo “eu/tu” da relação Paulo–Timóteo; o predicado da oração de finalidade é o verbo parangeilēs, com tisin como complemento indireto e o grupo mē heterodidaskalein como objeto de conteúdo (um infinitivo complementado pela partícula negativa). A relação entre as duas metades do versículo pode ser descrita assim: o rogo passado fundamenta a ordem presente; a permanência geográfica em Éfeso está a serviço da permanência doutrinária da igreja.
Quando colocamos essa frase sob o prisma das traduções, a cena se torna ainda mais nítida. A King James Version diz: “As I besought thee to abide still at Ephesus, when I went into Macedonia, that thou mightest charge some that they teach no other doctrine” (“Como te roguei que permanecesses ainda em Éfeso, quando fui para a Macedônia, para que ordenasses a alguns que não ensinassem outra doutrina”). A American Standard Version verte: “As I exhorted thee to tarry at Ephesus, when I was going into Macedonia, that thou mightest charge certain men not to teach a different doctrine” (“Como te exortei a ficar em Éfeso, quando eu ia para a Macedônia, para que intimasses certos homens a não ensinar doutrina diferente”). A New International Version afirma: “As I urged you when I went into Macedonia, stay there in Ephesus so that you may command certain people not to teach false doctrines any longer” (“Como o exhortei quando fui para a Macedônia, permaneça em Éfeso, para ordenar a certas pessoas que não mais ensinem falsas doutrinas”). Em português, a Almeida Revista e Corrigida traduz: “Como te roguei, quando parti para a Macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinem outra doutrina”, enquanto a NVI ecoa: “Conforme o exhortei quando estive a caminho da Macedônia, permaneça em Éfeso para ordenar a certos homens que não mais ensinem doutrinas falsas”. Todas preservam o encadeamento básico: um rogo feito no momento da partida, uma permanência ordenada em Éfeso, uma missão clara de confrontar mestres desviados.
Exegética e pastoralmente, esta linha é o retrato de uma vocação que se desenrola entre caminhos abertos e permanências dolorosas. Paulo continua a sua rota rumo à Macedônia, mas Timóteo é chamado a ficar, a “pros-permanecer” num lugar difícil, justamente porque ali o ensino começava a se corromper. A combinação de parekalesa e prosmeinai mostra que o encorajamento de Paulo não é simplesmente emocional, é vocacional: ele chama Timóteo a perseverar num posto estratégico para o bem da igreja. Comentários notam como a escolha de prosmenō sugere não apenas permanecer, mas permanecer “a mais”, continuar quando seria mais fácil ir embora. Ao mesmo tempo, heterodidaskalein liga esse versículo a 1 Timóteo 6:3, onde o mesmo verbo é usado para denunciar quem “ensina doutrina diferente” e não se conforma às “sãs palavras” de Cristo, e ao drama de Gálatas 1:6–9, em que “outro evangelho” é anátema.
O quadro do versículo aqui analisado é de uma igreja sempre tentada a trocar o evangelho simples por elaborações brilhantes, genealogias de ideias, combinações de lei e misticismo, e de um pastor jovem chamado a dizer “não” com a autoridade de um “sim” mais profundo: o “sim” à sã doutrina que salva. O movimento do versículo sugere que toda geografia cristã é teológica: Éfeso não é apenas um ponto no mapa, é o lugar onde alguém foi colocado por Deus para guardar a verdade; a Macedônia não é apenas destino missionário, é o fundo de tela que realça o fato de que o apóstolo se ausenta, e agora outros precisam ficar. O discípulo que lê 1 Timóteo 1:3, vendo essa cena, é convidado a reconhecer, na sua própria vida, os lugares de Éfeso onde Deus o mandou “pros-permanecer” e as doutrinas estranhas que precisa, com amor e firmeza, mandar calar, não por zelo de opinião, mas por amor ao evangelho que gera fé.
1 Timóteo 1:4
...nem dês atenção a fábulas e genealogias intermináveis, que mais geram discussões do que a obra de Deus, que é pela fé... (Gr.: mēde prosechein mythois kai genealogiais aperantois, haitines ekzētēseis parechousin mallon ē oikonomian theou tēn en pistei — Literalmente: “nem te ocupes em dar ouvidos a mitos e genealogias sem termo, as quais oferecem investigações em vez da economia de Deus, aquela que se realiza na esfera da fé”.) Aqui o vocabulário abre um cenário quase apocalíptico da palavra: mythois (“mitos, fábulas”) remete a narrativas lendárias, muitas vezes religiosas, carregadas de símbolo mas destituídas de ancoragem no evento histórico de Cristo, enquanto genealogiais (“genealogias”) evoca listas de ascendência, árvores de nomes que podiam ser usadas de modo especulativo, tanto em ambientes judaicos quanto helenísticos. O adjetivo aperantois (“intermináveis, sem limite”) sublinha que o problema não é toda genealogia em si, mas aquelas que se estendem indefinidamente, girando em torno de si mesmas, que, como observa Thayer, não podem “ser percorridas até o fim”, tornando-se labirintos textuais que jamais chegam ao centro da vontade de Deus. O substantivo ekzētēseis (“investigações, especulações intensas”) deriva de ekzēteō (“procurar até o fim, pesquisar a fundo”) e aponta para debates infindáveis, discussões que, embora pareçam profundas, não produzem obediência nem transformação. Em contraste, oikonomian theou (“administração/economia de Deus”) vem de oikos (“casa”) + nomos (“lei, regra, administração”) e designa a gestão da casa de Deus, o plano divino que se desenrola na história e é apropriado “na fé” (tēn en pistei), não por curiosidade intelectual, mas por confiança obediente.
O quadro é rico e coeso. Mēde (“nem”) é conjunção coordenativa negativa que une esta proibição à anterior: Timóteo não só deve impedir o ensino de doutrina diferente, mas também impedir que esses mestres se entreguem a um tipo de piedade curiosa e estéril. O verbo prosechein (“dar atenção”) está no tempo presente, infinitivo, voz ativa, funcionando, assim como heterodidaskalein no versículo anterior, como infinitivo complementar de parangeilēs: Timóteo deve ordenar que não continuem no hábito de “dar atenção” a tais coisas, um presente durativo que sugere envolvimento contínuo, quase uma fixação. Mythois é substantivo, masculino, plural, caso dativo, funcionando como complemento do verbo “dar atenção”: são os objetos aos quais se presta ouvido; genealogiais é substantivo, feminino, plural, também dativo, em coordenação por kai (“e”), ampliado por aperantois, adjetivo, feminino, plural, dativo, que qualifica as genealogias (e, possivelmente, também os mitos) como “sem fim”, intermináveis. Em seguida, haitines é pronome relativo, nominativo, feminino, plural, retomando “mitos e genealogias intermináveis” como um conjunto, e introduz a oração relativa explicativa.
Dentro dela, ekzētēseis é substantivo, feminino, plural, acusativo, funcionando como objeto direto do verbo parechousin (“proporcionam, oferecem”), que se encontra no tempo presente, modo indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural, com as “fábulas e genealogias” como sujeito implícito. A locução comparativa mallon ē (“mais… do que…”) estabelece o contraste entre o que essas coisas produzem — especulações — e o que deveria ser produzido, a oikonomian theou (“administração/obra de Deus”), substantivo, feminino, singular, acusativo, complemento de parechousin, em construção contrastiva. O genitivo theou (“de Deus”) indica o agente e o dono dessa economia; e a expressão tēn en pistei é um sintagma articular preposicionado, procedendo como aposição restritiva: é a “administração de Deus, a que é na esfera da fé”, isto é, o modo como Deus governa a sua casa é conhecido e acolhido somente na confiança nele.
Do ponto de vista sintático, a cláusula inteira funciona como desdobramento do propósito estabelecido no versículo anterior: Timóteo é exortado a permanecer em Éfeso “para” (finalidade) ordenar a alguns que não ensinem doutrina diferente nem se dêem a essa atmosfera de mitos e genealogias. A estrutura haitines ekzētēseis parechousin mallon ē oikonomian theou tēn en pistei cria um contraste dramático: em vez de cooperar com o plano de Deus para edificar a fé da comunidade, essas narrativas produzem apenas questões, debates, polêmicas. O vocabulário é reforçado pelos paralelos em Tito 3:9 (“tolas discussões, genealogias, contendas e debates sobre a lei”) e 1 Timóteo 4:7 (“rejeita as fábulas profanas e de velhas caducas”), onde a mesma raiz “mitos” aparece ligada a ensinamentos que desviam da piedade concreta. Em 2 Timóteo 4:4, Paulo fala de pessoas que “desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas”, mostrando que há um movimento espiritual: ou a mente se curva à verdade revelada, ou ela busca refúgio em mitos que alimentam a imaginação, mas esvaziam a obediência.
Na comparação de versões, vê-se como as diversas traduções tentam captar essa tensão entre curiosidade e mordomia. A KJV traz: “Neither give heed to fables and endless genealogies, which minister questions, rather than godly edifying which is in faith: so do” (“nem deem ouvidos a fábulas e genealogias intermináveis, que produzem questões, em vez de edificação piedosa, que é na fé: assim o faço”). A ASV diz: “neither to give heed to fables and endless genealogies, which minister questionings, rather than a dispensation of God which is in faith” (“nem dar atenção a fábulas e genealogias intermináveis, que promovem questionamentos, em vez de uma dispensação de Deus que é em fé”). A YLT fala em “the building up of God that is in faith” (“a edificação de Deus que é na fé”), deixando ecoar a variante textual que lê oikodomian (“edificação”) em vez de oikonomian (“administração”).
A ESV, seguindo o texto crítico, lê: “nor to devote themselves to myths and endless genealogies, which promote speculations rather than the stewardship from God that is by faith” (“nem que se dediquem a mitos e intermináveis genealogias, que promovem especulações em vez da mordomia [ou administração] da parte de Deus que é pela fé”). Em português, a ARC registra: “nem se deem a fábulas ou a genealogias intermináveis, que mais produzem questões do que edificação de Deus, que consiste na fé”, enquanto a NVI, seguindo a leitura oikonomia, traduz: “que causam controvérsias em vez de promoverem a obra de Deus, que é pela fé”, e a NVT ainda mais explicita: “que só levam a especulações sem sentido em vez de promover o propósito de Deus, que é realizado pela fé”. As traduções mais recentes, portanto, tendem a ouvir oikonomia como “plano, propósito, administração” de Deus, e não simplesmente como “edificação” da igreja, embora o efeito prático seja o mesmo: as fábulas não constroem, apenas dispersam.
Este versículo é um alerta contra um tipo específico de espiritualidade: uma piedade entregue a narrativas sedutoras, genealogias simbólicas, especulações quase esotéricas, que dão a sensação de profundidade, mas afastam do centro simples e poderoso do evangelho (SANDMEL, “Myths, Genealogies, and Jewish Myths and the Writing of Gospels”, Hebrew Union College Annual, vol. 27, 1956, pp. 201–11). Em 1 Timóteo 6:4, Paulo descreve os falsos mestres como gente “envaidecida, nada entendendo, mas tendo mania por questões e contendas de palavras”, e em Tito 3:9 manda evitar “discussões tolas e genealogias, contendas e debates sobre a lei, porque são inúteis e vãs”. O contraste com oikonomia theou tēn en pistei é luminoso: enquanto os mitos convidam à curiosidade, o plano de Deus convida à confiança; enquanto as genealogias intermináveis mandam o leitor cavar para dentro de si mesmo e de tradições humanas, a economia de Deus manda olhar para Cristo e, pela fé, entrar na casa onde o Pai governa (JOHNSON, Oikonomia Theou: the Theological Voice of 1 Timothy From the Perspective of Pauline Authorship. 1999, pp. 87-104). Assim, a correção discreta da tradução, substituindo “edificação de Deus, que está na fé” por “obra/propósito de Deus, que é pela fé”, não é mera preciosidade técnica: ela ajuda o leitor a perceber que Paulo não está apenas pensando em uma “sensação de edificação” subjetiva, mas no grande plano objetivo de Deus para a sua igreja, plano que se realiza cada vez que a fé se ancora na Palavra verdadeira, e não em histórias bonitas, porém vazias.
1 Timóteo 1:5
O objetivo desta instrução é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera (Gr.: to de telos tēs parangelias estin agapē ek katharas kardias kai syneidēseōs agathēs kai pisteōs anypokritou — “O objetivo desta instrução é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera” e, de forma mais literal, “mas o fim da ordem é amor a partir de coração puro, e de consciência boa, e de fé sem hipocrisia”). No início, a combinação to telos coloca em foco não apenas um término, mas a meta, o alvo para o qual a “ordem” tende; os léxicos destacam que telos pode significar tanto a conclusão de um processo quanto o objetivo que dá sentido a esse processo, “a finalidade à qual todas as coisas se orientam”. A palavra parangelia (“ordem”, “mandato”, “instrução”) designa um comando autorizado, um encargo que é transmitido de uma autoridade a quem deve obedecê-la, usada no Novo Testamento para ordens apostólicas e instruções vinculantes (Atos 5:28; 1 Tessalonicenses 4:2; 1 Timóteo 1:5, 18). No centro da frase está agapē (“amor”), termo que, na tradição cristã, passou a designar o amor sacrificial, de preferência moral, ligado à vontade de Deus, distinto de afetos meramente naturais ou passionais; léxicos e estudos de vocabulário destacam que agapē se tornou, no Novo Testamento, o vocábulo por excelência para o amor que Deus é, mostra e produz em seus filhos.
A fonte desse amor é descrita por três imagens interiores. A expressão ek katharas kardias apresenta katharas (“puro”, “limpo”) como adjetivo de campo moral e cultual, usado para aquilo que está livre de impureza, mistura ou duplicidade; kardia (“coração”) é na linguagem bíblica o centro da pessoa, do pensar, querer e sentir, não apenas a sede das emoções. Em seguida vem syneidēseōs agathēs: syneidēsis é literalmente uma “co-percepção”, um “saber com”, a consciência que julga moralmente, distinguindo e aprovando o bem, condenando o mal, uma faculdade dada por Deus a todos, mas que pode ser purificada ou corrompida. O adjetivo agathēs (“boa”) enfatiza uma consciência saudável, alinhada com o bem de Deus, em contraste com a “má consciência” que Hebreus denuncia. Por fim, pisteōs anypokritou combina pistis (“fé”, “confiança”, “fidelidade”) com anypokritos (“sem hipocrisia”, “genuíno”), termo formado de um prefixo negativo e do verbo que está por trás de “hipocrisia”, indicando algo sem “representação teatral”, sem fachada, sem duplicidade: uma fé que não é máscara, mas transparência entre interior e exterior.
A oração é nominal, com um verbo de ligação. O sintagma to telos traz o artigo neutro singular to ligado ao substantivo neutro singular nominativo telos, funcionando como núcleo do sujeito gramatical: “o fim / o objetivo”. Tēs parangelias é substantivo feminino singular genitivo, dependente de telos numa relação de posse ou especificação: “o fim da ordem / da instrução”, de modo que a construção inteira to telos tēs parangelias forma o sujeito lógico “o objetivo da instrução”. O verbo estin é forma de “ser/estar” no presente do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, funcionando como cópula que iguala sujeito e predicativo: “é”. O predicativo do sujeito é agapē, substantivo feminino singular nominativo, que, ligado a estin, afirma que o que caracteriza ou consuma a ordem apostólica é o amor. A preposição ek rege genitivo e introduz o primeiro sintagma preposicionado ek katharas kardias; katharas é adjetivo feminino singular genitivo concordando com kardias, substantivo feminino singular genitivo, e o conjunto indica origem ou fonte: “proveniente de um coração puro”. Em sequência, syneidēseōs agathēs traz outro par substantivo–adjetivo no feminino singular genitivo, syneidēseōs com seu adjetivo atributivo agathēs, ainda dependentes de ek por coordenação, dando “de uma boa consciência”. Finalmente, pisteōs anypokritou exibe pisteōs como substantivo feminino singular genitivo, núcleo do terceiro membro coordenado, qualificado por anypokritou, adjetivo feminino singular genitivo: “de uma fé sem hipocrisia / sincera”. Assim, todos os substantivos e adjetivos principais aparecem no genitivo feminino singular sob o domínio de ek (expresso uma vez, mas subentendido nos demais membros), descrevendo três nascentes internas de onde irrompe a corrente do amor.
A estrutura organiza-se em torno da cópula: sujeito complexo “o objetivo da instrução” ligado ao predicativo “amor”, qualificado pelos três grupos genitivos de fonte introduzidos por ek e coordenados por kai. O de pós-positivo em to de telos funciona como partícula conectiva, retomando e contrastando com o tema das falsas doutrinas e genealogias em 1 Timóteo 1:3–4: em vez de especulações que produzem disputas, a ordem apostólica visa produzir amor. O segmento ek katharas kardias apresenta o coração como primeira fonte: o amor visado pela parangelia não é mero comportamento externo, mas brota de um interior purificado. A segunda expressão, syneidēseōs agathēs, desloca o foco para a faculdade moral que julga e aprova, a consciência que, quando boa, sustenta a coerência entre o que se crê e o que se faz. A terceira, pisteōs anypokritou, completa o quadro: a fé é a base relacional do crente com Cristo, e, se essa fé é “sem hipocrisia”, o amor que dela sai não é teatral nem utilitário, mas consistente com a verdade confessada. O versículo, portanto, é uma definição densa: tudo o que Paulo está prestes a ordenar a Timóteo tem este contorno sintático e teológico — uma instrução cujo fim, em última análise, é amor proveniente de interioridades curadas.
Quando se comparam as versões, percebe-se como cada língua tenta fazer justiça a telos e parangelia. O inglês clássico da KJV traz: “Now the end of the commandment is charity out of a pure heart, and of a good conscience, and of faith unfeigned” (“Agora o fim do mandamento é caridade [amor] que procede de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida”). A ASV verte: “But the end of the charge is love out of a pure heart and a good conscience and faith unfeigned” (“Mas o fim da incumbência é amor que procede de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida”). A ESV prefere sublinhar o aspecto teleológico: “The aim of our charge is love that issues from a pure heart and a good conscience and a sincere faith” (“O alvo da nossa incumbência é amor que brota de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera”), enquanto YLT ecoa a ASV: “And the end of the charge is love out of a pure heart, and of a good conscience, and of faith unfeigned” (“E o fim da incumbência é amor procedente de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida”). Em português, a ARC diz: “Ora, o fim do mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida”, enquanto a NVT atualiza com outra escolha lexical: “O alvo de minha instrução é o amor que vem de um coração puro, de uma consciência limpa e de uma fé sincera”. Versões modernas em português tendem a optar por “objetivo”, “alvo” ou “fim” para telos (“objetivo desta instrução”, “alvo de minha instrução”), mostrando que não se trata apenas de um ponto de chegada cronológico, mas da finalidade intrínseca do ensino apostólico.
Do ponto de vista exegético, Paulo declara aqui que toda a batalha contra as fábulas e genealogias (1 Timóteo 1:3–4) só faz sentido se estiver orientada para esse “fim”: amor. Alguns comentaristas notam a proximidade dessa formulação com a confissão de que “o amor é o cumprimento da lei” em Romanos 13:10, onde se afirma que o amor não faz mal ao próximo e, por isso, “é o cumprimento da lei”; o campo semântico de telos como “alvo” e “cumprimento” ajuda a ligar os dois textos. A “ordem” que Timóteo deve fazer cumprir não é mero policiamento doutrinário, mas cuidado pastoral que preserva a comunidade de ensinos que não desembocam em amor. Quando a instrução apostólica é recebida corretamente, gera um tipo de amor qualificado pela tríade: coração purificado, consciência boa, fé sem hipocrisia. Essa tríade conversa com outras passagens em que o interior do crente é descrito como locus de purificação: Hebreus 10:22 fala de um “coração sincero” e de corações “aspergidos para nos purificar de uma má consciência”, ligando fé, purificação interior e acesso confiante a Deus. Paulo também ecoa, ainda que em registro diferente, a exortação de 1 Pedro 1:22, onde a purificação da alma leva a uma “amor fraternal não fingido” e o apelo é para amar “ardentemente, de coração puro”; ali também o adjetivo “não fingido” está associado ao amor, e o “coração puro” aparece como ambiente desse amor.
No pano de fundo teológico, 1 Timóteo 1:5 funciona como uma espécie de janela que deixa ver o coração da ética paulina: o conteúdo da fé cristã não é um sistema de curiosidades religiosas, mas uma mensagem cuja finalidade prática é conformar pessoas a um amor que reflita o próprio amor de Deus. A agapē que constitui o fim da instrução é, como vários estudos lembram a partir de 1 Coríntios 13 e da tradição joanina, um amor ativo, sacrificial, que se recusa a fazer mal ao próximo, que persevera mesmo quando não é correspondido, e que só pode ser vivido em profundidade quando enraizado na iniciativa graciosa de Deus em Cristo. Por isso, a ordem apostólica tem como matriz uma fé anypokritos, livre de duplicidade: a mesma integridade que aparece em Romanos 12:9 (“seja o amor sem hipocrisia”) reaparece aqui como requisito da fé, e em 1 Pedro 1:22 como qualidade do amor fraternal. Quando a fé é genuína, o coração é purificado, a consciência é tornada boa, e o amor que nasce desse interior torna visível, em gestos concretos, a própria graça que salvou. É esse desenho delicado que Paulo traça diante de Timóteo: não basta extirpar o ensino falso, é preciso preservar o fio de ouro — uma vida em que doutrina e amor se pertencem mutuamente, como raiz e fruto, origem e telos.
1 Timóteo 1:6
...da qual alguns, desviando-se, se entregaram a conversas vãs (Gr.: hōn tines astochēsantes exetrapēsan eis mataiologian — Tradução: “dos quais [elementos] alguns, tendo errado o alvo, foram desviados para conversa vã”; de forma ainda mais literal: “dos quais coisas alguns, tendo falhado o alvo, foram afastados para tagarelice vazia”.) O coração da cláusula pulsa em três palavras: astochēsantes (“tendo errado o alvo”), exetrapēsan (“foram desviados”) e mataiologian (“fala vazia”). Astochēsantes vem de astocheō, formado por a- (“sem”) + stochos (“alvo”, “ponto a atingir”), e descreve quem erra a mira, como flecha que não alcança o centro do alvo; o verbo é usado também em 1 Timóteo 6:21 e 2 Timóteo 2:18 para o desvio em relação à fé e à verdade, sempre com a ideia de afastar-se da linha reta doutrinária. Exetrapēsan deriva de ektrepō (“desviar, fazer sair do caminho”), termo que pode indicar tanto desvio físico quanto moral, como em Hebreus 12:13, onde um caminho torto pode fazer o coxo “desviar-se” mais ainda; a forma aqui, aoristo indicativo, voz passiva, terceira pessoa do plural, sugere o resultado consumado: eles já se encontram fora da trilha segura. Mataiologian une mataios (“vão, inútil”) a logia/logos (“palavra, discurso”), formando a ideia de “discurso vazio”, “papo infrutífero”, expressão rara que aponta para conversas que soam religiosas, mas nada produzem em termos de verdade ou amor.
O pronome hōn é relativo, genitivo neutro plural, retomando o antecedente implícito nas três fontes do amor do versículo anterior — o “coração puro”, a “boa consciência” e a “fé sem hipocrisia” de 1 Timóteo 1:5, de onde alguns se afastaram; tines é pronome indefinido, nominativo masculino plural, funcionando como sujeito tanto do particípio astochēsantes quanto do verbo finito exetrapēsan, e descreve aqueles “certos” indivíduos indefinidos que se projetam como tipo, não apenas como caso pontual. Astochēsantes é particípio aoristo, voz ativa, nominativo masculino plural, de astocheō, com valor circunstancial, exprimindo a ação anterior ao desvio: primeiro erram o alvo da verdadeira instrução, depois são empurrados para longe; exetrapēsan é verbo, aoristo, indicativo, voz passiva (com sentido médio/deponente), terceira pessoa do plural, núcleo do predicado verbal que descreve a mudança de rota desses mestres, como se a própria correnteza das suas opções doutrinárias os arrancasse da via principal. Mataiologian é substantivo, feminino, singular, acusativo, objeto da preposição eis, que governa acusativo e indica direção: eles “foram desviados para dentro de” discurso vazio, mergulhando em um espaço de conversa religiosa que não edifica.
A cláusula se organiza como uma oração relativa em que hōn (“dos quais”) amarra o versículo 6 ao 5, mostrando que o desvio não é apenas moral, mas especificamente afastamento da “instrução” cujo fim é o amor; tines é o sujeito explícito; astochēsantes funciona como particípio circunstancial de causa ou de modo (“por terem errado o alvo”, “ao falharem o alvo”), e exetrapēsan eis mataiologian compõe o predicado, com eis + acusativo descrevendo o campo para o qual esse desvio os projeta. As traduções inglesas realçam matizes diferentes: a KJV verte “From which some having swerved have turned aside unto vain jangling;” (“Dessas coisas alguns, tendo-se desviado, se voltaram para tagarelice vã”), enquanto a ESV traz “Certain persons, by swerving from these, have wandered away into vain discussion,” (“Certas pessoas, por se afastarem destas coisas, se extraviaram para discussões vãs”), e a YLT, insistindo no literalismo, apresenta “from which certain, having swerved, did turn aside to vain discourse,” (“de que alguns, tendo-se desviado, se voltaram para discurso vão”). Em português, a NVI afirma: “Alguns se desviaram dessas coisas, voltando-se para discussões inúteis”, a ARC: “Do que desviando-se alguns, se entregaram a vãs contendas”, e a NVT: “Alguns, porém, se desviaram dessas coisas e passam o tempo em discussões inúteis”, convergindo na imagem de quem abandona o conteúdo vital da fé para gastar tempo em debates estéreis.
Paulo descreve aqui o itinerário do falso ensino: não começa em heresias gritantes, mas em uma dériva quase imperceptível do alvo — o amor que nasce do coração purificado e da boa consciência — e desemboca em conversa vazia, semelhante aos “faladores vãos e enganadores” de Tito 1:10 e às “conversas profanas e vãs” que promovem mais impiedade em 2 Timóteo 2:16, em contraste com a “palavra saudável” que deve edificar a fé (compare também 1 Timóteo 6:20–21). O versículo, assim, adverte contra uma espiritualidade que troca o calor da caridade e da consciência limpa pela excitação intelectual de debates intermináveis, lembrando que todo ministério que se afasta do telos do amor acaba transformando a teologia em ruído — um eco distante da verdade que já não toca nem cura.
1 Timóteo 1:7
...querendo ser mestres da lei, não entendendo nem o que dizem, nem o que afirmam... (Gr.: thelontes einai nomodidaskaloi, mē noountes mēte ha legousin mēte peri tinōn diabebaiountai — “querendo ser mestres da lei, não compreendendo nem o que dizem nem as coisas acerca das quais fazem firmes afirmações”; de forma mais literal: “desejando ser instrutores da lei, não entendendo nem as coisas que falam, nem os assuntos sobre os quais asseguram com firmeza”). O vocábulo central nomodidaskaloi nasce da junção de nomos (“lei”) com didaskalos (“mestre”), designando os especialistas que interpretavam e ensinavam a lei mosaica, como os mestres mencionados em Lucas 5:17; o termo aparece ainda em Lucas 5:17 e Atos 5:34, sempre para figuras com autoridade exegética sobre a Torá. Thelontes deriva de thelō (“querer, desejar, ter vontade de”) e revela um impulso voluntarioso, uma ambição de status: não apenas ensinam, querem “ser” reconhecidos como mestres. Noountes vem de noeō (“perceber, compreender, raciocinar”), ligado ao nous, o “intelecto” que discerne; aqui, o particípio com negação (mē noountes) aponta para incapacidade de captar o conteúdo do que proferem. Diabebaiountai procede de diabebaioomai, verbo que indica afirmar com intensidade, “garantir com ênfase”, usado, por exemplo, em Tito 3:8 para “afirmar com firmeza” a confiabilidade da mensagem; em 1 Timóteo 1:7, a ironia é cortante: afirmam com toda a segurança justamente aquilo que não entendem.
No plano morfológico, thelontes é particípio presente, voz ativa, nominativo masculino plural, de thelō, funcionando em aposição a tines (do versículo anterior) e descrevendo uma ação contínua: eles vivem na postura permanente de “aspirar a ser” mestres. Einai é infinitivo presente, de eimi (“ser”), atuando como complemento verbal do particípio, formando a perífrase “desejando ser”. Nomodidaskaloi é substantivo composto, masculino, plural, nominativo, predicativo ligado à aspiração desses homens: não se contentam em ser simples aprendizes, almejam o status de intérpretes autorizados da lei. A sequência negativa mē noountes mēte ha legousin mēte peri tinōn diabebaiountai se organiza em cadeia: noountes (particípio presente, voz ativa, nominativo masculino plural) descreve o estado cognitivo contínuo de não compreensão; ha é pronome relativo, acusativo neutro plural, objeto direto de legousin; legousin é verbo, presente, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural, “o que dizem”; tinōn é pronome interrogativo ou indefinido, genitivo plural, referindo-se aos “assuntos” ou “temas” sobre os quais fazem suas declarações; diabebaiountai é verbo, presente, indicativo, voz média/deponente, terceira pessoa do plural, descrevendo o ato de “asseverar enfaticamente” essas mesmas coisas.
Sintaticamente, a cláusula prolonga o quadro de 1 Timóteo 1:6: os mesmos “alguns” que se desviaram para discussões inúteis são agora descritos sob o ângulo da ambição e da ignorância. O particípio thelontes funciona de maneira concessiva: “embora desejem ser mestres da lei”, o que se segue — mē noountes... — revela o paradoxo: quanto mais aspiram ao magistério, menos entendem o conteúdo do que proferem. As traduções inglesas sublinham esse contraste: a KJV diz “Desiring to be teachers of the law; understanding neither what they say, nor whereof they affirm.” (“Desejando ser mestres da lei, não entendendo nem o que dizem, nem o que afirmam.”), a ESV traz “desiring to be teachers of the law, without understanding either what they are saying or the things about which they make confident assertions.” (“desejando ser mestres da lei, sem compreender nem o que estão dizendo nem as coisas acerca das quais fazem afirmações confiantes.”), a YLT verte “willing to be teachers of law, not understanding either the things they say, nor concerning what they asseverate,” (“querendo ser instrutores da lei, não entendendo nem as coisas que dizem, nem as coisas sobre as quais asseveram.”), enquanto a ASV mantém o paralelismo: “desiring to be teachers of the law, though they understand neither what they say, nor whereof they confidently affirm.” (“desejando ser mestres da lei, embora não entendam nem o que dizem nem acerca do que afirmam com confiança.”). Em português, a NVI declara: “querendo ser mestres da lei, quando não compreendem nem o que dizem nem as coisas acerca das quais fazem afirmações tão categóricas”, a ARC: “querendo ser doutores da lei e não entendendo nem o que dizem nem o que afirmam”, e a NVT: “Querem ser conhecidos como mestres da lei, mas não sabem do que estão falando, embora o façam com tanta confiança.”
Paulo descreve aqui a síndrome do mestre sem entendimento: a lei, que foi dada para conduzir à justiça e à fé (Romanos 3:31; Gálatas 3:24), é convertida em palco para exibições retóricas e disputas sofisticadas, mas destituídas de compreensão espiritual. Esses “mestres da lei” são contraponto a figuras como Esdras, que “tinha preparado o coração para buscar a lei do Senhor, e para a cumprir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e juízos” (Esdras 7:10), e diferem radicalmente dos que, em Romanos 2:20, são chamados de “instrutores dos insensatos” apenas se de fato praticam o que ensinam. A crítica de Paulo ressoa de modo quase profético sobre qualquer contexto eclesial em que o desejo de título, de cátedra ou de visibilidade suplanta a reverência humilde ao conteúdo da mensagem: o problema não está em ser mestre da lei, mas em fazê-lo sem entendimento, proferindo fórmulas sobre as quais não se tem consciência nem experiência. O versículo avisa a Timóteo que discernir vocações de ensino implica observar não apenas o brilho da fala, mas a profundidade da compreensão e a coerência entre boca, consciência e vida.
1 Timóteo 1:8
...e sabemos que a lei é boa, se alguém a usa legitimamente... (Gr.: Oidamen de hoti kalos ho nomos, ean tis autō nomimōs chrētai — “sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém a utiliza de modo legítimo”; de forma ainda mais literal: “sabemos, contudo, que boa é a lei, se alguém dela faz uso de maneira conforme à lei”). O verbo Oidamen é perfeito de oida (“saber, conhecer”), com valor de presente resultante: trata-se de um saber estabelecido, uma convicção comunitária partilhada pela igreja (“nós sabemos”), ecoando outros lugares em que o perfeito de oida exprime certeza consolidada, como em 1 João 5:18 (“sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive pecando”). Nomos (“lei”) remete, em primeiro plano, à Torá mosaica, mas em Paulo pode abranger tanto o corpo legal quanto a Escritura como norma de Deus, e sua etimologia está ligada a nemein (“distribuir, atribuir”), sugerindo algo “distribuído” por Deus como ordem reguladora da vida; em Romanos 7:12, essa lei é chamada de “santa, justa e boa”, em ressonância com o “kalos” de 1 Timóteo 1:8. Kalos (“bom”, “belo”, “nobre”) não indica apenas funcionalidade, mas qualidade moral e estética: a lei é boa em seu caráter e finalidade. Nomimōs deriva de nomimos (“legal, legítimo”), de mesma raiz de nomos, e significa “de modo conforme à lei”, “legitimamente”; chrētai é forma de chraomai, verbo médio/deponente que significa “usar, fazer uso de”, muito frequente em contextos de uso apropriado ou indevido de algo.
O verbo Oidamen está no perfeito, indicativo, voz ativa, primeira pessoa do plural, atuando como núcleo do predicado verbal e marcando o “nós” pastoral de Paulo, que inclui Timóteo numa confissão comum de fé. De é partícula coordenativa adversativa ou continuativa suave (“porém”, “ora”), ligando o versículo 8 ao contraste com os “mestres da lei” do versículo 7: enquanto eles falam sem entender, Paulo e a igreja sabem, de fato, o que a lei é. Hoti introduz a oração subordinada nominal (“que a lei é boa”); kalos funciona como predicativo do sujeito ho nomos, adjetivo, masculino, singular, nominativo; ho nomos é substantivo, masculino, singular, nominativo, sujeito da oração interna, representando a lei como entidade personificada. Na cláusula condicional, ean introduz condição de possibilidade (“se, sempre que”), seguida de chrētai no subjuntivo: ean tis autō nomimōs chrētai. Tis é pronome indefinido, nominativo masculino singular, sujeito da condição (“se alguém”); autō é pronome pessoal, dativo singular (“a ela”, “à lei”), dativo de instrumento ou de referência; nomimōs é advérbio formado sobre o adjetivo nomimos, qualificando o modo de uso; chrētai é verbo, presente, subjuntivo, voz média/deponente, terceira pessoa do singular, indicando um uso contínuo e responsável da lei.
O v. 8 forma uma construção condicional de sentido geral: a lei, em si mesma, é “kalos” — boa, bela, nobre — sob a condição de ser usada nomimōs, em harmonia com sua intenção divina. As versões inglesas convergem nesse ponto: a KJV diz “But we know that the law is good, if a man use it lawfully;” (“Mas sabemos que a lei é boa, se alguém a usar legitimamente”), a ESV: “Now we know that the law is good, if one uses it lawfully,” (“Sabemos, agora, que a lei é boa, se alguém a usa de modo legítimo”), e a YLT: “and we have known that the law is good, if any one may use it lawfully;” (“e temos sabido que a lei é boa, se alguém a utiliza de modo legítimo”). Em português, a NVI afirma: “Sabemos que a Lei é boa, se alguém a usa de maneira adequada”, a ARC: “Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa legitimamente”, e a NVT: “Sabemos que a lei é boa quando usada corretamente.” Todas ressaltam que o problema não é a lei em si, mas o modo de manipulá-la — tema que Paulo desenvolve em Romanos 7, onde a lei “santa e boa” se torna ocasião de pecado por causa da carne, e em Gálatas 3, onde a lei é pedagogo que conduz a Cristo, não escada de autojustificação.
Podemos dizer que o versículo 8 funciona como correção e equilíbrio: depois de denunciar aqueles que, desejando ser mestres da lei, a manejam sem entendimento (1 Timóteo 1:7), Paulo reafirma que a lei permanece boa quando usada conforme sua vocação — revelar o caráter santo de Deus, expor o pecado, restringir o mal e conduzir ao Evangelho (1 Timóteo 1:9–11). O uso legítimo da lei, portanto, não é transformá-la em arma de especulação ou instrumento de justiça própria, mas deixá-la cumprir seu papel de espelho que denuncia o pecado e pedagogo que aponta para Cristo, em sintonia com Romanos 3:19–24 e Gálatas 3:21–24. Para Timóteo, isso significa pastorear uma comunidade em que a lei é honrada, não idolatrada; em que o decálogo e os mandamentos morais são proclamados com seriedade, mas sempre em diálogo com a graça que justifica o ímpio. Para nós, significa ler a Escritura com temor e alegria: temor, porque a lei revela a gravidade de nossa condição; alegria, porque, usada legitimamente, ela nos conduz àquele em quem o fim do mandamento é amor — do coração puro, da boa consciência e da fé sem máscara.
1 Timóteo 1:9
...sabendo isto, que a lei não é estabelecida para o justo, mas para os injustos e rebeldes, ímpios e pecadores, profanos e irreligiosos, parricidas e matricidas, homicidas (Gr.: eidōs touto, hoti dikaiō nomos ou keitai, anomois de kai anypotaktois, asebesin kai hamartōlois, anosiois kai bebēlois, patrolōais kai mētrolōais, androphonois — Literalmente: “sabendo isto, que para um justo lei não jaz, mas para os sem-lei e insubordinados, para irreverentes e pecadores, para os sem-santidade e profanos, matadores de pai e matadores de mãe, matadores de homens”.) O versículo se ancora em alguns termos-chave que desenham um mapa moral inteiro. Eidōs (“sabendo”) deriva do verbo eidō / oida (“ver, saber, perceber”), em que o “saber” nasce de uma visão interior, um conhecimento já estabelecido, não em construção; Paulo, portanto, não está tateando, mas partindo de uma certeza. Nomos (“lei”) vem do verbo nemō (“repartir, distribuir”), e designa aquilo que foi “parcelado” por Deus como norma, tanto a Torá mosaica quanto, por extensão, qualquer sistema normativo revelado. Dikaiō (“justo”, dativo de dikaios) traz a ideia de alguém “em conformidade com o padrão de Deus”, alinhado com o seu juízo de retidão, não apenas juridicamente, mas em harmonia real com a vontade divina. Em contraste, anomois (“sem-lei”) nasce de a- (negação) + nomos, indicando o que está fora da ordem normativa de Deus, “destituído de lei”, tanto no sentido de desprezar a Torá quanto de agir em rebelião contra qualquer mandamento divino; anypotaktois (“insubmissos”) qualifica os que se recusam a se colocar “em ordem sob” uma autoridade, negando o lugar que lhes caberia na hierarquia da obediência.
Asebesin (“ímpios”) vem de a- + sebomai (“reverenciar”), e descreve os que vivem “sem reverência”, indiferentes ou hostis ao sagrado; hamartōlois (“pecadores”) brota de hamartanō (“errar o alvo”), nomeando aqueles que transformaram o desvio em hábito, pessoas “devotadas ao pecado”. Anosiois (“sem-santidade”) contrapõe-se àquilo que é hosios (“santo, piedoso”), apontando para o desrespeito aos limites da santidade; bebēlois (“profanos”) está ligado à ideia de “pisar um limiar” (de bainō + bēlos), alguém que invade o sagrado como quem pisa um chão comum, tornando-o público e vulgar, “acessível para ser pisoteado”. Na sequência mais concreta, patrolōais (“parricidas”) combina patēr (“pai”) com um radical de “espancar, golpear”, retratando quem ousa levantar a mão contra o próprio pai; mētrolōais (“matricidas”) une mētēr (“mãe”) ao mesmo radical, nomeando a monstruosidade de matar a mãe. Por fim, androphonois (“homicidas”) resulta de anēr (“homem”) + phonos (“assassinato”), o “matador de homens”, o violador radical do sexto mandamento. Assim, o campo semântico do versículo vai do mais abstrato (“sem-lei”, “ímpios”) ao mais concreto (“assassinos de pais e mães”), como uma espiral que desce da rebelião interior até o crime extremo.
No versículo aqui, eidōs (“sabendo”) é particípio perfeito, voz ativa, masculino, singular de oida, funcionando aqui como uma forma quase nominal, “aquele que sabe”, retomando implicitamente o sujeito da frase anterior e condensando um estado de conhecimento já consolidado. O particípio governa touto (“isto”), pronome demonstrativo neutro, acusativo singular, como seu objeto direto: é “isto” que ele sabe, a proposição introduzida por hoti (“que”). Dentro da oração introduzida por hoti, temos nomos (“lei”) como substantivo masculino, singular, em nominativo, atuando como sujeito gramatical, enquanto dikaiō (“a um justo”) aparece no dativo masculino, singular, como dativo de referência: é “quanto ao justo” que se afirma que a lei não é posta.
O verbo principal dessa cláusula é keitai (“jaz”, “é posta”), verbo em voz média/passiva, tempo presente, modo indicativo, terceira pessoa do singular, de keimai, com valor estativo: a lei “se encontra estabelecida” de determinada maneira, “jaz” para certos destinatários, mas não para o justo. Em seguida, o advérbio de negação ou (“não”) nega a relação entre nomos e dikaiō, enquanto a partícula de (“mas”) introduz o contraste com a série de dativos plurais que se segue. Anomois, anypotaktois, asebesin, hamartōlois, anosiois, bebēlois, patrolōais, mētrolōais e androphonois são todos adjetivos ou substantivos adjetivais no dativo masculino plural, funcionando como dativos de vantagem ou destinatário, completando a elipse do verbo: a lei “jaz” para eles, é para essa classe de pessoas que ela é “posta” ou “promulgada”. As conjunções kai (“e”) vão encadeando os pares, costurando um catálogo de tipos humanos sob o domínio da lei, enquanto a articulação por pares (anomois… anypotaktois; asebesin… hamartōlois; anosiois… bebēlois; patrolōais… mētrolōais) sugere binômios que se intensificam mutuamente — rebelião interior que se torna impiedade visível, profanação do santo que deságua na ruptura dos laços mais sagrados, como a honra aos pais e o respeito à vida humana.
O v. 9 se organiza em torno do particípio eidōs (“sabendo”), que traz consigo uma nuance causal ou concessiva (“sabendo isto, [mesmo assim]…”), mas aqui funciona sobretudo como um pressuposto argumentativo: a boa utilização da lei, afirmada no versículo anterior, repousa sobre este conhecimento de base. A construção eidōs touto, hoti… introduz uma oração substantiva completiva (hoti + frase) que funciona como conteúdo do saber. Nessa oração, a estrutura de base é uma predicação nominal: “para o justo lei não jaz”, em que a cópula é substituída pelo verbo existencial-estativo keitai, com nomos como sujeito e dikaiō como dativo de referência. O foco recai sobre a relação da lei com pessoas, mais do que sobre a definição da lei em si.
O de adversativo, seguido da fileira de dativos plurais, estabelece a antítese: a lei, que não se deita sobre o justo, recai sobre tantos quantos se enquadram nas categorias enumeradas. A série de dativos, sem repetir o verbo, depende semanticamente de keitai: “lei não é posta para o justo, mas [é posta] para os sem-lei e insubmissos…”. A ausência de verbo explícito ao longo da lista intensifica a impressão de peso: é como se a palavra “lei” pairasse sobre cada grupo, repetida silenciosamente pela elipse. Há, além disso, uma clara aproximação com a estrutura do Decálogo, que muitos comentaristas observam para o conjunto de 1 Timóteo 1:9–10, onde os tipos de pecadores se alinhariam, em bloco, com violações dos mandamentos, notadamente o quinto e o sexto no caso de patrolōais, mētrolōais e androphonois. Dessa forma, a sintaxe não apenas classifica; ela mapeia a lei sobre um panorama de transgressões, mostrando para quem essa lei “foi posta”.
Quando se comparam as versões, o contorno da ideia se torna ainda mais nítido. A King James Version traz: “Knowing this, that the law is not made for a righteous man, but for the lawless and disobedient, for the ungodly and for sinners, for the unholy and profane, for murderers of fathers and murderers of mothers, for manslayers,” (“Sabendo isto, que a lei não é feita para um homem justo, mas para os sem lei e desobedientes, para os ímpios e pecadores, para os não santos e profanos, para os assassinos de pais e assassinos de mães, para homicidas”). A English Standard Version formula: “understanding this, that the law is not laid down for the just but for the lawless and disobedient, for the ungodly and sinners, for the unholy and profane, for those who strike their fathers and mothers, for murderers,” (“compreendendo isto, que a lei não é estabelecida para o justo, mas para os sem lei e desobedientes, para os ímpios e pecadores, para os não santos e profanos, para os que ferem seus pais e suas mães, para homicidas”).
A Young’s Literal Translation é quase um espelho do texto grego: “having known this, that for a righteous man law is not set, but for lawless and insubordinate persons, ungodly and sinners, impious and profane, parricides and matricides, men-slayers,” (“tendo sabido isto, que para um homem justo lei não é posta, mas para pessoas sem lei e insubordinadas, ímpias e pecadoras, irreverentes e profanas, parricidas e matricidas, matadores de homens”). Entre as versões em português, a NVI registra: “Também sabemos que a lei não foi feita para os justos, mas para os transgressores e insubordinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os que matam pai e mãe, para os homicidas,” enquanto a Almeida Revista e Corrigida lê: “Sabendo isto: que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas,”. Em todas, o eixo permanece o mesmo: a lei não é, em primeiro plano, instrumento de opressão sobre quem já anda em retidão, mas martelo levantado sobre a cabeça de uma humanidade em rebelião, desenhada aqui por camadas de impiedade culminando no assassinato de quem, pela própria ordem da criação, deveria ser honrado.
Esse versículo é a continuidade lógica de 1 Timóteo 1:8, onde Paulo confessa que “sabemos que a lei é boa, se alguém a usa legitimamente”. O “uso legítimo” da lei aparece, então, como este: aplicá-la àqueles que vivem em oposição frontal ao caráter de Deus e ao seu Decálogo, e não como jugo para sufocar quem, pela graça, já caminha segundo o Evangelho. A lista dos “sem-lei” ecoa, de um lado, a intuição de Romanos 7:7, onde o apóstolo confessa que “não conheceria o pecado, senão pela lei”; de outro, converge com a declaração de Gálatas 3:19, segundo a qual “a lei foi acrescentada por causa das transgressões”, até que viesse a Descendência prometida, Cristo. Em 1 Timóteo 1:9, porém, Paulo afunila: não se trata apenas de uma função “pedagógica” abstrata, mas de um alvo pessoal; a lei é algo que “jaz sobre” o ímpio como sentença e freio. A progressão da lista sugere também um espelhamento da própria estrutura dos mandamentos: o desprezo pela autoridade (os “insubmissos”) confronta o mandamento de honrar pai e mãe; a impiedade e profanação violam o núcleo da adoração a Deus; os homicidas quebram frontalmente o “não matarás”.
Vê-se, assim, que a lei, longe de ser antagônica ao Evangelho, é descrita, nos versículos seguintes, como “conforme o evangelho da glória do Deus bendito” (1 Timóteo 1:11): ela expõe a doença para que a graça revele a cura. Pastoralmente, o versículo impede tanto o legalismo quanto o libertinismo. Ele impede o legalismo porque recusa projetar a lei como instrumento de opressão sobre o “justo”, isto é, sobre quem foi tornado justo em Cristo e nele encontra o cumprimento da lei (Romanos 8:3–4); mas impede também o libertinismo, porque retrata a lei como linha de fogo que cerca o campo dos sem-lei, lembrando-os de que cada transgressão está debaixo do olhar do Legislador. Em termos devocionais, é como se o texto nos perguntasse: de que lado desta linha estamos? Se encontramos em Cristo o “justo” em quem a lei já não “jaz” como condenação, então a mesma lei se transforma, para nós, em espelho e trilha; mas se insistimos em permanecer entre os anomois (“sem-lei”) e anypotaktois (“insubmissos”), o que ouvimos aqui não é um consolo, e sim o eco de um tribunal que se aproxima. Dentro desse quadro, sua tradução “não é estabelecida para o justo” exprime bem o valor de keitai como lei “posta”, “deitada” sobre alguém; poder-se-ia apenas notar que o grego destaca mais a ideia de uma lei que “jaz sobre” determinadas pessoas do que de uma mera instituição abstrata, mas sem alterar o sentido fundamental da frase.
1 Timóteo 1:12
E dou graças àquele que me capacitou — Cristo Jesus, nosso Senhor — por me ter considerado fiel, designando-me para o ministério... (Gr.: Charin echō tō endynamōsanti me Christō Iēsou tō Kyriō hēmōn, hoti piston me hēgēsato themenos eis diakonian — Tradução literal: “tenho gratidão àquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor, porque me considerou fiel, pondo-me a serviço”). No início, o substantivo charin (“graça”, “favor”, “gratidão”) é o acusativo de charis, termo que vem do campo da beleza, do favor gratuito, do dom imerecido; aqui assume o sentido de “agradecimento”, quase “gratidão-dom” que Paulo tem na mão e oferece a Cristo.
O verbo echō (“tenho”) completa a locução idiomática charin echō (“tenho gratidão”, “dou graças”), que aparece também em contextos de ação de graças profundas, como eco de um coração que se sente devedor da graça. O particípio endynamōsanti deriva de endynamoō (“fortalecer”, “revestir de força”), formado de en (“em”) + dynamis (“força, poder”), descrevendo aquele que infundiu energia em Paulo, revestindo-o por dentro de capacidade que ele não possuía em si mesmo. No núcleo da frase seguinte, está piston (“fiel”, “confiável”), adjetivo que expressa alguém digno de confiança, sólido, firme no compromisso; é a forma adjetival de pistis (“fé”), mas aqui descreve o caráter de Paulo visto pelos olhos de Cristo. O verbo hēgēsato, de hēgeomai (“considerar, reputar, contar como”), é verbo de avaliação: Cristo “fez um juízo” sobre Paulo, reputando-o fiel. Já themenos vem de tithēmi (“colocar, pôr, estabelecer”), verbo muito usado para instituir cargos e funções; o particípio aqui descreve o modo como Cristo o considerou fiel: pondo-o “eis diakonian”, dentro de uma diakonia (“serviço, ministério”), termo ligado ao serviço humilde do diácono, ao cuidar prático da igreja.
A frase abre com charin como substantivo feminino, singular, acusativo, funcionando como objeto direto de conteúdo do verbo echō: Paulo não “dá” graças com um verbo transitivo, ele “tem gratidão” como algo concreto que possui e direciona a Cristo. Echō é verbo no presente do indicativo, voz ativa, primeira pessoa do singular, expressando um estado contínuo: “estou tendo gratidão”, “vivo em ação de graças”. O dativo tō endynamōsanti é formado pelo artigo dativo masculino singular tō mais o particípio aoristo ativo masculino singular endynamōsanti, de endynamoō; esse dativo pessoal indica o destinatário da gratidão: “àquele que me fortaleceu”. Me é pronome pessoal acusativo de primeira pessoa singular, objeto direto do particípio: sou eu o fortalecido. Em seguida, Christō Iēsou tō Kyriō hēmōn é uma série de dativos masculinos singulares, “Cristo”, “Jesus”, “o Senhor nosso”, em aposição explicativa a tō endynamōsanti: aquele que fortaleceu é ninguém menos que Cristo Jesus, nosso Senhor.
A conjunção hoti (“porque”) introduz a oração causal: piston me hēgēsato themenos eis diakonian. Hēgēsato é verbo no aoristo do indicativo, voz média, terceira pessoa do singular, de hēgeomai; a voz média ressalta que Cristo, ao “considerar” Paulo fiel, envolveu-se pessoalmente nesse juízo. Nesta construção de duplo acusativo, me (“a mim”) é o acusativo de pessoa e piston (“fiel”) é o acusativo de predicativo: ele me considerou como fiel. O particípio themenos é aoristo médio nominativo masculino singular, de tithēmi, concordando com o sujeito subentendido do verbo (ele, Cristo) e atuando como particípio circunstancial modal: ele me considerou fiel “colocando-me” no serviço. Eis é preposição que rege acusativo e indica direção ou finalidade; diakonian é substantivo feminino singular acusativo, objeto da preposição, descrevendo o campo para o qual Paulo foi colocado: o âmbito do ministério.
O versículo apresenta uma oração principal de ação de graças e uma oração causal que a explica. A oração principal é “Charin echō tō endynamōsanti me Christō Iēsou tō Kyriō hēmōn” — sujeito implícito “eu”, verbo echō, objeto direto charin e dativo pessoal tō endynamōsanti…; o foco recai sobre a direção da gratidão: não a igreja, não as circunstâncias, mas a pessoa de Cristo. A oração causal introduzida por hoti explicita o motivo dessa gratidão: “porque ele me considerou fiel, pondo-me no ministério”. Nela, o sujeito é o próprio Cristo (subentendido em hēgēsato), o objeto direto é “me” e o predicativo é “piston”; o particípio themenos indica uma ação concomitante ao ato de considerar fiel, quase como se a avaliação e a designação fossem dois lados da mesma moeda: Cristo o reputou fiel justamente conferindo-lhe a diaconia. Desse modo, a estrutura sintática mostra uma progressão: conhecimento → capacitação → avaliação → designação. Tudo parte de Cristo e converte Paulo em servidor, não em dono do ministério.
As traduções deixam transparecer essas nuances. A KJV verte: “And I thank Christ Jesus our Lord, who hath enabled me, for that he counted me faithful, putting me into the ministry;” (“E dou graças a Cristo Jesus, nosso Senhor, que me habilitou, porque me considerou fiel, pondo-me no ministério”). A ESV traduz: “I thank him who has given me strength, Christ Jesus our Lord, because he judged me faithful, appointing me to his service” (“Dou graças àquele que me deu força, Cristo Jesus, nosso Senhor, porque me julgou fiel, designando-me para o seu serviço”). A YLT diz: “And I give thanks to him who enabled me — Christ Jesus our Lord — that he did reckon me stedfast, having put me to the ministration” (“E dou graças àquele que me habilitou — Cristo Jesus, nosso Senhor — por me ter considerado firme, tendo-me posto na ministração”). Em português, a ARC segue de perto: “E dou graças a Cristo Jesus, nosso Senhor, que me tem confortado, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério”; a NVI diz: “Dou graças a Cristo Jesus, nosso Senhor, que me deu forças e me considerou fiel, designando-me para o ministério”; a NVT: “Agradeço àquele que me deu forças, Cristo Jesus, nosso Senhor, pois ele me considerou digno de confiança e me chamou para servir.” Todas convergem em três eixos: a fonte das forças é Cristo, o juízo sobre Paulo é um juízo de fidelidade, e o resultado desse juízo é a colocação no serviço, nunca o mero prestígio.
Este versículo é como o primeiro acorde da grande doxologia autobiográfica de 1 Timóteo 1:12–17. Logo após falar do evangelho da glória do Deus bem-aventurado, que lhe foi confiado (1 Timóteo 1:11), Paulo irrompe em gratidão: o depósito que recebeu é maior do que ele, e a consciência disso o impede de ver o ministério como carreira; é graça sobre graça. O verbo endynamoō aproxima esse texto de Filipenses 4:13 (“todas as coisas posso naquele que me fortalece”) e de 2 Timóteo 4:17 (“o Senhor, porém, me assistiu e me revestiu de forças”), onde o mesmo Cristo que chama é o que continuamente fortalece. A lógica é inversa à meritocracia religiosa: Cristo não escolhe Paulo porque ele já era fiel; Cristo o alcança na condição de blasfemo e perseguidor (v. 13), exerce misericórdia, transforma-o e, nesse processo, o considera fiel, pondo-o em diaconia.
A lembrança da antiga violência de Paulo contra a igreja realça que a “fidelidade” julgada em piston me hēgēsato não é perfeição moral prévia, mas confiabilidade forjada pela graça. Isso ecoa o padrão de 1 Coríntios 7:25 (“pela misericórdia do Senhor tenho sido fiel”), e de 1 Coríntios 4:1–2, onde se diz que o essencial nos dispenseiros é que sejam achados fiéis, justamente porque lidam com mistérios que não lhes pertencem. Para Timóteo — e para qualquer leitor — o versículo desenha um retrato do ministério cristão: não é pedestal, é diakonia; não começa em aptidão natural, começa em capacitação graciosa; não se sustenta em autoconfiança, mas na consciência de ser continuamente fortalecido e julgado fiel por aquele que nos chamou. A alma que lê esse verso é convidada a se ver, não como autora da própria vocação, mas como vaso carregado à força pela mão de Cristo, que enche, pesa, prova e põe esse vaso na mesa do serviço, enquanto, de dentro, o próprio Senhor sussurra: “tenho gratidão àquele que me fortaleceu”.
1 Timóteo 1:13a
...eu que antes falava mal, perseguia e insultava... (Gr.: to proteron onta blasphēmon kai diōktēn kai hybristēn — “a mim, que anteriormente era blasfemo, perseguidor e insolente”; mais literalmente: “o de antes, sendo blasfemo e perseguidor e insolente”). No primeiro membro, Paulo abre o “álbum” do seu passado com três palavras que soam como marteladas na própria consciência. Proteron (“antes”, “anteriormente”) situa sua antiga condição num tempo que ficou para trás, mas ainda ecoa. Blasphēmon (blasphēmon — “blasfemo”, “caluniador”) deriva do adjetivo blasphēmos, ligado ao campo da fala que fere e desonra; nos léxicos é definido como “injurioso, caluniador, blasfemo”, descrevendo tanto o conteúdo (ofensa ao sagrado) quanto a atitude de desprezo. Diōktēn (diōktēn — “perseguidor”) é substantivo formado a partir do verbo diōkō (“perseguir, caçar”), e os léxicos o definem como “aquele que persegue, que caça”, figura que “persegue ou caça o povo de Deus”. Hybristēn (hybristēn — “insolente”, “violento”) vem de hybristēs, “homem violento, insolente, maltratador”, associado à ideia de quem humilha o outro com agressividade gratuita. Etimologicamente, o quadro é sombrio: uma boca que profere blasfêmias, um corpo que persegue e um coração que se compraz em violentar; o “antes” de Paulo é um mosaico de blasfêmia, perseguição e hybris.
Na estrutura morafológica, to proteron funciona como expressão adverbial (“anteriormente”), em que proteron é forma comparativa de pro (“antes”), neutro acusativo usado adverbialmente, acompanhado do artigo to, que aqui substantiva a expressão, como se dissesse: “o estado de ‘antes’ do qual falo”. Onta é particípio presente, voz ativa, masculino acusativo singular, de eimi (“ser, estar”), concordando com o pronome tácito “me” do v. 12 em função de predicativo do objeto: ele me considerou fiel, sendo eu aquele que antes era isso tudo. Blasphēmon é adjetivo masculino acusativo singular, predicativo do mesmo “me”, qualificando Paulo como “blasfemo”. Diōktēn é substantivo masculino acusativo singular, de diōktēs (“perseguidor”), em série coordenada por kai (“e”) com blasphēmon e hybristēn; hybristēn é substantivo masculino acusativo singular de hybristēs (“insolente, violento”). Os três acusativos, encadeados por kai, funcionam como predicativos em série da mesma pessoa, sob o governo de onta: “sendo (eu) um blasfemo, e um perseguidor, e um insolente”.
Sintaticamente, to proteron onta blasphēmon kai diōktēn kai hybristēn é uma frase participial que depende do v. 12: Cristo “me considerou fiel” (v. 12), “a mim, que anteriormente era blasfemo, perseguidor e insolente”. É uma construção concessiva implícita: “apesar de eu ter sido isso”. A combinação do advérbio temporal proteron com o particípio onta cria a ideia de um estado contínuo no passado, que caracteriza o “antes” da conversão. A tríplice coordenação reforça a progressão: da palavra (blasphēmon, a língua que fere), à conduta (diōktēn, o perseguidor que corre atrás), ao temperamento (hybristēn, o violento insolente). Tudo isso está gramaticalmente pendurado no mesmo “eu”, que se assume como sujeito das violências contra Cristo e a igreja.
As traduções espelham bem esse retrato. A KJV verte: “Who was before a blasphemer, and a persecutor, and injurious: but I obtained mercy, because I did it ignorantly in unbelief.” (“que anteriormente era blasfemo, e perseguidor, e injurioso; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade”). A ESV diz: “though formerly I was a blasphemer, persecutor, and insolent opponent. But I received mercy because I had acted ignorantly in unbelief” (“ainda que anteriormente eu era blasfemo, perseguidor e oponente insolente; mas recebi misericórdia porque havia agido ignorantemente, na incredulidade”). A YLT apresenta: “who before was speaking evil, and persecuting, and insulting, but I found kindness, because, being ignorant, I did it in unbelief” (“que antes falava mal, e perseguia, e insultava; mas encontrei bondade, porque, sendo ignorante, fiz isso na incredulidade”).
A ASV traduz: “though I was before a blasphemer, and a persecutor, and injurious: howbeit I obtained mercy, because I did it ignorantly in unbelief” (“embora eu anteriormente fosse blasfemo, e perseguidor, e injurioso; contudo, alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade”). Em português, a NVI diz: “a mim que anteriormente fui blasfemo, perseguidor e insolente; mas alcancei misericórdia porque o fiz por ignorância e na minha incredulidade”; a NVT: “embora eu fosse blasfemo, perseguidor e violento. Contudo, recebi misericórdia, porque agia por ignorância e incredulidade”; a ARC: “a mim, que, noutro tempo, fui blasfemo, e perseguidor, e opressor; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade.” A convergência é nítida: há um “antes” marcado por blasfêmia, perseguição e violência.
Paulo aqui costura 1 Timóteo 1:13 com toda a tradição lucana e paulina sobre o Saulo perseguidor. Atos 8:3 descreve que ele “ravageava” a igreja, entrando de casa em casa e arrastando homens e mulheres para a prisão; Gálatas 1:13 recorda que ele “perseguia com violência a igreja de Deus e procurava destruí-la”; 1 Coríntios 15:9 o faz confessar que não é digno de ser chamado apóstolo “porque persegui a igreja de Deus”. A tríplice autoqualificação de 1 Timóteo 1:13 não é exagero retórico: é a leitura teológica de um passado histórico de violência real. O brilho da graça no v. 14 ganha profundidade justamente porque o pano de fundo não é psicologicamente neutro: antes de ser vaso de misericórdia, Paulo foi martelo de perseguição.
1 Timóteo 1:13b
...mas eu encontrei misericórdia, porque, na ignorância, fazia tudo isso na incredulidade... (Gr.: all’ ēleēthēn, hoti agnoōn epoiēsa en apistia — “mas fui alvo de misericórdia, porque, sendo ignorante, fiz isso em incredulidade”; mais literalmente: “mas fui-misericordiado, porque, ignorando, pratiquei [isso] em incredulidade”). No segundo membro, o cenário muda de cor, mas não suaviza o pecado: a luz entra precisamente onde a escuridão era densa. O verbo ēleēthēn (ēleēthēn — “fui alvo de misericórdia”) é aoristo passivo de eleeō (“ter misericórdia, mostrar misericórdia”), que os léxicos definem como “ter compaixão, mostrar favor gracioso, obter misericórdia”. O passivo teológico é eloquente: Paulo não “adquiriu” misericórdia, ele a “recebeu”, como objeto de um ato soberano de compaixão. Agnoōn (agnoōn — “sendo ignorante”) é particípio de agnoeō (“não saber, ser ignorante, não compreender, pecar por ignorância”), termo que designa um não-saber que pode ser tanto fraqueza quanto culpa; apistia (apistia — “incredulidade”, “falta de fé”) é substantivo formado de a- privativo + pistis (“fé”), e os léxicos o descrevem como “falta de fé, incredulidade, infidelidade”, muitas vezes com matiz de resistência obstinada. A etimologia reforça o paradoxo: Paulo agia em “não-saber” e em “não-fé”; sua ignorância não o inocenta, mas torna a misericórdia ainda mais surpreendente.
A conjunção alla é adversativa forte (“mas”) que contrapõe o estado anterior e o gesto de Deus. Ēleēthēn é verbo no aoristo passivo do indicativo, primeira pessoa do singular, de eleeō; o sujeito é “eu” (implícito), o agente divino é subentendido, e o aoristo resume o ato decisivo da misericórdia recebida na conversão. Hoti introduz a oração causal: “porque”. Agnoōn é particípio presente, voz ativa, nominativo masculino singular de agnoeō, concordando com o sujeito “eu” e funcionando como particípio circunstancial de causa: “por ser ignorante”. Epoiēsa é aoristo ativo do indicativo, primeira pessoa do singular, de poieō (“fazer, praticar”), cujo objeto direto está implícito (blasfemar, perseguir, agir com violência). En é preposição que aqui rege o dativo apistia; apistia é substantivo feminino, singular, dativo, nomeando a esfera em que Paulo agia: “no ambiente da incredulidade”, como se sua respiração espiritual fosse ausência de fé. O conjunto agnoōn epoiēsa en apistia desenha um quadro de ação contínua no passado (“sendo ignorante”) culminando em atos pontuais e concretos (“eu fiz”), todos banhados num clima de incredulidade.
Temos neste versículo uma oração principal adversativa (“mas fui alvo de misericórdia”) seguida de uma oração causal (“porque, na ignorância, fiz isso na incredulidade”). A conjunção alla marca uma virada soteriológica: apesar do quadro anterior, um ato externo de misericórdia interrompe a sequência natural da culpa. A oração causal não diz que a ignorância mereceu misericórdia, mas que ela é o cenário em que Deus decidiu agir compassivamente. Em pano de fundo, ecoa a distinção veterotestamentária entre pecados de ignorância e pecados de mão levantada, em que havia provisão sacrificial específica “para a alma que pecar por ignorância” (Números 15:27–29). Paulo se lê à luz dessa categoria: ele era inimigo de Cristo, mas um inimigo “cego”, cuja cegueira, porém, não o isentava de culpa — tornava-o alvo da compaixão que derruba cegueiras.
As versões refletem essa tensão entre severidade e graça. A KJV: “but I obtained mercy, because I did it ignorantly in unbelief” (“mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade”). A ESV: “But I received mercy because I had acted ignorantly in unbelief” (“Mas recebi misericórdia porque havia agido ignorantemente, na incredulidade”). A YLT: “but I found kindness, because, being ignorant, I did it in unbelief” (“mas encontrei bondade, porque, sendo ignorante, fiz isso na incredulidade”). A ASV: “howbeit I obtained mercy, because I did it ignorantly in unbelief” (“contudo, alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade”). Em português, a NVI: “mas alcancei misericórdia, porque o fiz por ignorância e na minha incredulidade”; a NVT: “Contudo, recebi misericórdia, porque agia por ignorância e incredulidade”; a ARC: “mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade.” Todas preservam o eixo: misericórdia recebida, ignorância real, incredulidade profunda.
Na teologia que emana deste versículo, Paulo se torna um ícone vivo de como a graça lida com a culpa. Ele não minimiza o pecado — assume-se blasfemo, perseguidor, insolente —, mas, ao mesmo tempo, lê sua história à luz da categoria de “ignorância em incredulidade”. Isso dialoga com a oração de Jesus na cruz (“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”) e com a própria compreensão paulina de que foi alvo de misericórdia para ser “modelo” da longanimidade de Cristo para com os futuros crentes (1 Timóteo 1:16). As referências a Atos 8:3, Gálatas 1:13 e 1 Coríntios 15:9 mostram que essa culpa não é abstrata: é sangue, prisão, terror. Mas, na economia de Deus, o mesmo que “fazia tudo isso na incredulidade” é transformado em pregador da fé que antes destruía. A misericórdia aqui não é um verniz sentimental: é a força que entra no centro da ignorância culpada, quebra a espinha da incredulidade e, como um oleiro paciente, refaz o vaso que antes servia de instrumento de violência em cálice de proclamação do evangelho.
1 Timóteo 1:14
e abundou sobremaneira a graça de nosso Senhor, com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. (Gr.: hyperepleonasen de hē charis tou Kyriou hēmōn meta pisteōs kai agapēs tēs en Christō Iēsou — Tradução literal: “porém, superabundou a graça do nosso Senhor com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus”.) O verbo hyperepleonasen (“superabundou”) é formado de hyper (“sobre”, “além”) + pleonazō (“crescer”, “aumentar”), e designa não apenas abundância, mas excesso transbordante, sendo atestado como “estar presente em grande ou superabundante medida”. Assim, Paulo escolhe um termo raro para sugerir que a charis (“graça”, “favor imerecido”) de Cristo não apenas é suficiente, mas se derrama com força exuberante sobre o pecador; essa graça, segundo os léxicos, é a benevolência ativa de Deus que transforma e fortalece, “a influência divina sobre a alma, que a volta para Cristo e a sustenta na fé e no exercício das virtudes”. Os substantivos que acompanham essa graça, pistis (“fé”) e agapē (“amor”), são palavras de campo semântico denso: pistis é “convicção da verdade, confiança quanto à relação do homem com Deus, com a ideia de entrega confiante e fervor santo”, enquanto agapē designa o amor de benevolência e entrega, a forma de amor que, no Novo Testamento, costuma apontar para o amor de Deus e o amor gerado por Deus no coração, “afetividade benevolente, amor que se doa”. Quando Paulo junta charis, pistis e agapē sob o senhorio de Cristo, ele pinta um quadro em que a graça de Cristo é a fonte, a fé é a resposta confiante, e o amor é o fruto concreto dessa intervenção graciosa.
Do ponto de vista morfológico, hyperepleonasen é verbo, aoristo do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, tendo como sujeito o substantivo feminino singular nominativo charis (“graça”), que aparece articulado como hē charis (“a graça”) e define o núcleo do predicado verbal. A partícula de funciona como conjunção coordenativa com nuance levemente contrastiva (“ora”, “porém”), ligando a lembrança do passado de Paulo (v. 13) à irrupção da graça que muda a história. Kyriou (“Senhor”) é substantivo masculino singular genitivo, dependente de charis em relação genitiva de posse, enquanto hēmōn (“nosso”) é pronome pessoal, genitivo da primeira pessoa do plural, que se associa a Kyriou formando a expressão “nosso Senhor”.
A preposição meta (“com”) rege o genitivo e introduz um complemento preposicional de companhia: pisteōs (“de fé”) e agapēs (“de amor”), ambos substantivos femininos, singular genitivo, que funcionam como termos coordenados do mesmo sintagma. O artigo feminino singular genitivo tēs, seguido da expressão preposicionada en Christō Iēsou (“em Cristo Jesus”, com Christō e Iēsou no dativo masculino singular), retoma a dupla pisteōs/agapēs e a qualifica: é a fé e o amor “que estão em Cristo Jesus”, ou seja, localizados n’Ele como esfera espiritual de origem e permanência. Sintaticamente, a oração é verbal, com sujeito expresso (“a graça de nosso Senhor”), verbo finito que descreve um evento pontual de superabundância (aoristo), e um complemento preposicional que indica o modo e a companha moral em que essa graça se manifesta: fé e amor que residem na união com Cristo.
As versões refletem essa riqueza com nuances diferentes: a ARC verte “E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e o amor que há em Jesus Cristo”, reproduzindo bem a ideia de excesso (“superabundou”) e o dativo de esfera (“que há em Jesus Cristo”). A NVI diz: “contudo, a graça de nosso Senhor transbordou sobre mim, juntamente com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus”, acrescentando explicitamente o “sobre mim” a partir do contexto e enfatizando o aspecto de transbordamento. Em inglês, a KJV traduz: “And the grace of our Lord was exceeding abundant with faith and love which is in Christ Jesus.” (“E a graça de nosso Senhor foi excessivamente abundante com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus.”), enquanto a ESV traz: “and the grace of our Lord overflowed for me with the faith and love that are in Christ Jesus.” (“e a graça de nosso Senhor transbordou para mim com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus.”). Todas convergem em sublinhar a ideia de que a graça não atua sozinha, mas vem “acompanhada” (meta) de fé e amor, de modo que a experiência da graça verdadeira se evidencia em confiança e caridade concretas.
Paulo entrelaça autobiografia e kerygma: o perseguidor que recebeu misericórdia (v. 13) torna-se vitrine da charis (“graça”) que transborda com pistis (“fé”) e agapē (“amor”), ecoando a lógica de Romanos 5:20, em que o pecado abundante é vencido por uma graça ainda mais abundante. Não se trata apenas de perdão forense, mas de uma invasão transformadora que gera fé e amor “em Cristo Jesus”, isto é, dentro da esfera de comunhão com Ele, tal como a tríade fé, esperança e amor aparece como fruto da obra divina em 1 Coríntios 13:13. O antigo blasfemo agora crê e ama; a antiga violência se converte em dedicação humilde ao evangelho. Para a comunidade, o versículo funciona como consolo e advertência: consolo, porque nenhum passado é profundo demais para a superabundância da charis; advertência, porque a fé que nasce dessa graça não pode ser meramente nominal, mas deve florescer em agapē concreta, como João afirma ao ligar amor e fé em 1 João 4:9–10. Desse modo, o coração duro vai sendo tomado por uma maré mansa e insistente de graça, confiança e amor, como se o Senhor despejasse um oceano inteiro sobre um vaso rachado até que ele, enfim, se deixe encharcar.
1 Timóteo 1:15
...firme é a palavra, e digna de toda aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro; (Gr.: pistos ho logos kai pasēs apodochēs axios, hoti Christos Iēsous ēlthen eis ton kosmon hamartolous sōsai, hōn prōtos eimi egō — Tradução literal: “fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores, dos quais eu sou o primeiro”). O adjetivo pistos (“fiel”, “confiável”) é definido nos léxicos como “digno de confiança, seguro, verdadeiro”, aplicado tanto a pessoas quanto a afirmações, e aqui qualifica ho logos (“a palavra”, “a afirmação”) como proposição absolutamente confiável. A expressão se tornou uma fórmula técnica nas Pastorais, os chamados “fiéis ditos” (pistos ho logos), usada cinco vezes (1 Timóteo 1:15; 3:1; 4:9; 2 Timóteo 2:11; Tito 3:8) para introduzir enunciados centrais da fé. O termo apodochē (“aceitação”, substantivo feminino singular genitivo após pasēs, “de toda aceitação”) pertence ao campo retórico da “acolhida” ou “acolhimento”, sugerindo que tal proposição não é apenas tecnicamente correta, mas merece ser abraçada por todos os crentes.
No núcleo cristológico, Christos Iēsous nomeia o Messias Jesus, e o verbo ēlthen (de erchomai) descreve a sua vinda: um movimento da esfera divina para dentro do kosmos (“mundo”), o que envolve encarnação e missão. O infinitivo sōsai (de sōzō) carrega, segundo os léxicos, a ideia de “salvar, resgatar, livrar, preservar e tornar são”, tanto no sentido físico quanto, sobretudo, espiritual, como “trazer à segurança, livrar da penalidade e do poder do pecado”. O objeto dessa ação é hamartolous (“pecadores”), termo que designa não apenas quem ocasionalmente falha, mas “pessoas devotadas ao pecado, moralmente fracassadas, separadas da vontade de Deus”. Por fim, prōtos (“primeiro”) tem campo semântico de primazia e precedência, podendo significar tanto o “principal” quanto o “pior” — e Paulo o aplica a si mesmo, não como cálculo estatístico, mas como autopercepção profundamente marcada pela memória de sua antiga rebeldia.
A primeira parte “pistos ho logos kai pasēs apodochēs axios” é uma oração nominal, sem cópula expressa, em que se pressupõe o verbo estin (“é”) ligando o sujeito ho logos (“a palavra”, substantivo masculino singular nominativo) aos predicativos pistos (“fiel”, adjetivo masculino singular nominativo) e axios (“digno”, adjetivo masculino singular nominativo), o último qualificado por pasēs apodochēs (“de toda aceitação”, com apodochēs no genitivo feminino singular governado por pasēs). A conjunção hoti introduz a oração substantiva que explicita o conteúdo dessa “palavra”: “que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores”. Nessa cláusula, Christos Iēsous é sujeito, ēlthen é verbo, aoristo do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, indicando um evento histórico, pontual — a entrada de Cristo na história. A expressão eis ton kosmon (“ao mundo”, com kosmon no acusativo masculino singular) funciona como complemento circunstancial de direção e esfera da vinda.
O infinitivo sōsai (“salvar”) é aoristo, voz ativa, e se liga a ēlthen como infinitivo de propósito: Ele veio com a finalidade de salvar. O acusativo hamartolous (“pecadores”, adjetivo substantivado no masculino plural acusativo) é objeto direto do infinitivo sōsai. Na sequência, o relativo hōn (“dos quais”, genitivo plural) introduz uma oração relativa em que egō (“eu”) é sujeito, eimi (“sou”) é verbo, presente do indicativo, voz ativa, primeira pessoa do singular, e prōtos (“primeiro”, masculino singular nominativo) funciona como predicativo do sujeito. Assim, a sintaxe organiza o versículo em três camadas: uma declaração solene sobre a confiabilidade da “palavra”, o conteúdo kerygmático dessa palavra (Cristo veio para salvar pecadores) e a aplicação existencial na confissão de Paulo (“dos quais eu sou o primeiro”).
As versões evidenciam essas nuances. Em português, a NVI verte: “Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior”, optando por “afirmação” para logos e por “pior” para prōtos, acentuando o aspecto qualitativo da culpa. A ARC clássica diz: “Esta é uma palavra fiel e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal.” Em inglês, a KJV registra: “This is a faithful saying, and worthy of all acceptation, that Christ Jesus came into the world to save sinners; of whom I am chief.” (“Esta é uma afirmação fiel e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores; dos quais eu sou o principal.”), enquanto a YLT traz: “stedfast is the word, and of all acceptation worthy, that Christ Jesus came to the world to save sinners—first of whom I am;” (“firme é a palavra, e digna de toda aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores — dos quais eu sou o primeiro;”). A ESV, por sua vez, mantém a fórmula: “The saying is trustworthy and deserving of full acceptance, that Christ Jesus came into the world to save sinners, of whom I am the foremost.” (“A afirmação é digna de confiança e merece plena aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores, dos quais eu sou o mais destacado.”). Todas preservam a estrutura tripartida: fórmula de confiabilidade, conteúdo cristológico, confissão pessoal.
Este versículo condensa o coração do evangelho em forma de “dito fiel” memorável para uso litúrgico e catequético: estudos clássicos sobre os pistoi logoi mostram que essas fórmulas nos Pastorais funcionam como pequenos credos ou sentenças de pregação resumida, destinadas a serem repetidas e cantadas na vida da igreja. Aqui, o conteúdo é a missão salvífica de Cristo: Ele “veio ao mundo” não primariamente para ensinar ou reformar estruturas políticas, mas “para salvar pecadores”, o que ecoa o próprio resumo dado nos evangelhos: “o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Lucas 19:10) e “não vim chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17).
A confissão “dos quais eu sou o primeiro” mostra que, na experiência de Paulo, o evangelho só é plenamente apropriado quando a culpa deixa de ser abstrata e se torna pessoal: o apóstolo não fala dos pecadores em terceira pessoa; ele se reconhece à frente da fila, de tal modo que a graça superabundante do versículo anterior agora se revela como resposta a uma miséria também superlativa. A comunidade que recita esse “dito fiel” é chamada a duas atitudes simultâneas: absoluta confiança na confiabilidade da “palavra” que proclama Cristo como Salvador de pecadores, e absoluta honestidade na autoavaliação, reconhecendo-se entre aqueles que precisam ser salvos.
A fórmula se torna, assim, uma espécie de credo em miniatura: uma frase curta em que o crente pode repousar a cabeça, sabendo que todo o peso de sua culpa já foi acolhido por Aquele que atravessou o mundo para resgatá-lo. Dentro desse quadro, traduzir pistos ho logos por “fiel é a palavra” em vez de “firme é a palavra” aproxima ainda mais a nossa língua do tom confessional e relacional do texto grego, em que a ênfase recai menos na robustez abstrata da sentença e mais na confiabilidade pessoal da promessa que ela carrega.
1 Timóteo 1:16
Mas, por isso mesmo, encontrei bondade, para que em mim, o principal, Jesus Cristo demonstrasse toda a sua longanimidade, para que servisse de exemplo aos que haveriam de crer nele para a vida eterna. (Gr.: alla dia touto ēleēthēn, hina en emoi prōtō endeixētai Christos Iēsous tēn hapasan makrothymian pros hypotypōsin tōn mellontōn pisteuein ep’ autō eis zōēn aiōnion — Literalmente: “mas por isso mesmo fui alvo de misericórdia, para que em mim, como o primeiro, Cristo Jesus mostrasse toda a longanimidade, para modelo dos que haveriam de crer nele para vida eterna”.)
O verbo central ēleēthēn (“fui alvo de misericórdia”) nasce de eleeō (“ter misericórdia, compadecer-se”), que nos léxicos é descrito como o ato de estender compaixão ativa a quem não tem mérito algum. A expressão dia touto (“por causa disso”, “por este motivo”) une o versículo ao “dito fiel” anterior: a confissão de Paulo como “primeiro dos pecadores” é precisamente o motivo pelo qual a misericórdia o alcança. Makrothymia (“longanimidade”, “paciência perseverante”) vem de makros (“longo”) + thymos (“ímpeto, ânimo”) e designa, no uso bíblico, a paciência de quem suporta prolongadamente a provocação sem explodir, atributo frequentemente ligado ao caráter de Deus. Hypotypōsis (“modelo”, “esboço”, “exemplo”) pertence ao campo da imagem e do padrão: uma forma traçada que serve de molde para cópias posteriores. Mellontōn (de mellō, “estar para, estar a ponto de”) indica aqueles que “estão destinados” ou “hão de” crer; pisteuein (“crer”) traz a ideia de confiança pessoal, entrega confiante, não apenas assentimento intelectual. Zōē aiōnios (“vida eterna”) reúne zōē (“vida” como participação na esfera da comunhão com Deus) e aiōnios (“eterno”, “pertencente à era vindoura”), expressão que aponta não somente para duração infinita, mas para qualidade de vida pertencente ao século futuro. Assim, etimologicamente, o verso descreve um quadro em que a misericórdia se derrama sobre o pior, para que a paciência infinita de Cristo se torne um modelo vivo para todos os que viriam a crer e a entrar na vida da era de Deus.
A conjunção alla (“mas”) é adversativa forte, abrindo contraste com o que foi dito no versículo anterior sobre Paulo ser o “primeiro dos pecadores”. Dia com o acusativo touto forma a locução preposicional dia touto (“por causa disso”), um sintagma causal que explica a razão da misericórdia recebida. Ēleēthēn é verbo no aoristo, voz passiva, modo indicativo, primeira pessoa do singular, funcionando como núcleo verbal da oração principal, com sujeito implícito (“eu”) e agente divino pressuposto. A conjunção hina introduz uma oração final (“para que”), expressando o propósito da misericórdia: en emoi prōtō endeixētai Christos Iēsous. Nessa cláusula, Christos Iēsous (“Cristo Jesus”) é substantivo masculino singular nominativo como sujeito; endeixētai é verbo no aoristo, voz média, modo subjuntivo, terceira pessoa do singular, de endeiknymi (“mostrar, demonstrar, fazer evidenciar”), descrevendo a ação intencional de Cristo de exibir algo em Paulo. En rege o dativo emoi (“em mim”), pronome pessoal dativo singular de primeira pessoa, ao qual se junta o adjetivo prōtō (“primeiro”) em dativo masculino singular, fazendo de Paulo o “campo de demonstração” e, ao mesmo tempo, aquele que ocupa a posição de primazia entre os pecadores.
O objeto direto de endeixētai é tēn hapasan makrothymian: tēn é artigo definido feminino singular acusativo; hapasan é adjetivo feminino singular acusativo de hapas (“todo”, “inteiro”), intensificando a totalidade da makrothymia (“longanimidade”, substantivo feminino singular acusativo) de Cristo. Em seguida, pros com acusativo (hypotypōsin) introduz um complemento preposicional de finalidade: pros hypotypōsin (“para modelo”, “para um padrão”), em que hypotypōsin é substantivo feminino singular acusativo, designando a função paradigmática da experiência de Paulo. O sintagma genitivo tōn mellontōn pisteuein ep’ autō depende de hypotypōsin e especifica de quem Paulo é modelo: tōn é artigo definido masculino plural genitivo; mellontōn é particípio presente, voz ativa, masculino plural genitivo de mellō, funcionando como particípio substantivado, “os que hão de”; pisteuein é infinitivo presente, voz ativa, de pisteuō (“crer”), complementando semanticamente o particípio (“os que hão de crer”); epi com dativo autō forma ep’ autō (“nele”), preposição que aqui indica o objeto sobre o qual a fé repousa. Por fim, eis zōēn aiōnion traz eis com acusativo, exprimindo finalidade e resultado (“para a vida eterna”), com zōēn substantivo feminino singular acusativo e aiōnion adjetivo feminino singular acusativo qualificando a natureza dessa vida.
O versículo se organiza em uma oração principal e duas cadeias de propósito. A oração principal é alla dia touto ēleēthēn (“mas, por isso mesmo, fui alvo de misericórdia”), em que a partícula adversativa marca a virada dramática da narrativa: do “pior dos pecadores” para o “objeto de misericórdia”. A conjunção hina abre a primeira oração final: “para que, em mim, o primeiro, Cristo Jesus demonstrasse toda a sua longanimidade”. Aqui, a estrutura coloca o dativo en emoi prōtō em posição enfatizada: Paulo é o “laboratório” em que Cristo expõe a totalidade da sua paciência. A expressão pros hypotypōsin introduz um propósito secundário, quase um “propósito do propósito”: não apenas demonstrar longanimidade em Paulo, mas fazê-lo “como modelo” para outros. O sintagma genitivo tōn mellontōn pisteuein ep’ autō funciona como complemento de hypotypōsin, especificando que esse modelo é dirigido aos que, no futuro, creriam em Cristo, e o último segmento eis zōēn aiōnion indica o alvo final dessa fé: entrada na vida eterna. Assim, a cadeia lógica é cristalina: misericórdia → demonstração da longanimidade de Cristo em Paulo → Paulo como modelo → futuros crentes → vida eterna.
As traduções principais exploram esse encadeamento com leves nuances. As versões mais literais convergem bem no primeiro bloco alla dia touto ēleēthēn (“mas por isto fui alvo de misericórdia”). ASV (“for this cause I obtained mercy” / “por isso obtive misericórdia”), ESV (“I received mercy for this reason” / “recebi misercórdia por esta razão”) e KJV (“for this cause I obtained mercy”, mesmo tradução de ASV) mantêm o aoristo passivo de ēleēthēn como algo recebido, não produzido; “obtained/received mercy” conserva essa passividade. As versões em português seguem na mesma linha: NVT (“recebi misericórdia”), NVI e ARC (“alcancei misericórdia”). A diferença aqui é mínima, mais estilística do que semântica; talvez “recebi misericórdia” faça a passividade brilhar um pouco mais que “alcancei”, que em português pode sugerir, no ouvido moderno, algo ligeiramente mais ativo, embora ainda aceitável.
No segmento hina en emoi prōtō, o ponto decisivo é o valor de prōtos. ASV traz “in me as chief” (“em mim, como líder”), ESV “in me, as the foremost” (“em mim, como principal”), KJV “in me first” (“em mim primeiro”). “Chief/foremost” (“líder/principal”) interpretam prōtos qualitativamente (o principal caso, o mais representativo, em conexão com “o primeiro dos pecadores” do v.15), enquanto “first” pode ser lido como mais ordinal. Em português, NVI (“em mim, o pior dos pecadores”) e NVT (“eu, o pior dos pecadores”) explicitamente importam a expressão do versículo anterior, fundindo v.15 e v.16 num só enunciado fluido; é teologicamente legítimo, mas não é literal em relação ao texto isolado do v.16, que só diz en emoi prōtō. A ARC (“em mim, que sou o principal”) mantém uma ambiguidade produtiva: acolhe a nuance qualitativa (“o principal entre eles”) sem repetir a fórmula do versículo anterior. Do ponto de vista do grego, a leitura qualitativa (“como o principal/exemplar”) é mais ajustada que uma mera noção de “primeiro” cronológico, razão pela qual “as chief/foremost/principal” traduz melhor a carga de prōtos no contexto.
O verbo endeixētai (“mostre/demonstre”) aparece na ASV como “show forth” (“demostrar”), na ESV “exibir”, e na KJV “demonstrou”. “Exibir” talvez seja o termo que mais se aproxima da força de “exibir publicamente”, mas “show forth” também carrega esse tom revelatório. Em português, NVT (“mostrasse quanto é paciente”), NVI (“demonstrasse toda a grandeza da sua paciência”) e ARC (“mostrasse toda a sua longanimidade”) caminham na intenção certa. Do lado do objeto direto, tēn hapasan makrothymian é traduzido pela ASV como “all his longsuffering” (“toda sua longanimidade”), pela KJV “all longsuffering” (“toda longanimidade”) e pela ESV “his perfect patience” (“sua perfeita paciência”). “All longsuffering” segue de perto a literalidade de tēn hapasan (“a totalidade da longanimidade”), enquanto “his perfect patience” interpreta “todo” não como quantidade aritmética, mas como qualidade consumada, sem fissuras. NVI (“toda a grandeza da sua paciência”) e ARC (“toda a sua longanimidade”) procuram reforçar a abrangência; a NVT suaviza um pouco com “quanto é paciente”, que é fiel à ideia, mas não explicita o “toda” do grego, ficando mais dinâmica que formal.
Quando chegamos a pros hypotypōsin, temos uma distinção interessante. ASV usa “for an ensample” (“como um exemplo”), KJV “for a pattern” (como um padrão), ESV “as an example” (igual a ASV), e NVT/NVI/ARC também escolhem “exemplo”. O termo grego é forte: hypotypōsis é “modelo, esboço, molde” — algo que se imprime para ser copiado. “Pattern” talvez seja o mais próximo dessa imagética de molde; “ensample” (forma arcaica de “example”) e “example” aproximam semanticamente, mas sem a conotação tão gráfica de “modelo-matriz”. Em português, “exemplo” é a escolha natural, embora “para servir de modelo” aproximaria mais a textura de hypotypōsin.
No bloco final tōn mellontōn pisteuein ep’ autō eis zōēn aiōnion, as versões conservam bem a sequência. ASV: “them that should thereafter believe on him unto eternal life” (“aqueles que, depois disso, crerem nele para a vida eterna”); ESV: “those who were to believe in him for eternal life” (“aqueles que cressem nele para a vida eterna”); KJV: “them which should hereafter believe on him to life everlasting” (“Aqueles que, no futuro, crerem nele para a vida eterna”). A forma mellontōn (“os que estão para…”) está contemplada em “should hereafter / should thereafter / were to” — a ideia de futuros crentes; pisteuein ep’ autō (“crer nele”) aparece ora com “on him”, ora com “in him”, sem alteração substancial de sentido; eis zōēn aiōnion é bem mantido por “unto eternal life / to life everlasting”. Em português, NVT (“todos que vierem a crer nele para a vida eterna”), NVI (“aqueles que nele haveriam de crer para a vida eterna”) e ARC (“dos que haviam de crer nele para a vida eterna”) preservam perfeitamente tanto o futuro implícito quanto a telicidade de eis. Aqui, as três são praticamente equivalentes do ponto de vista do grego.
Olhando do grego para as versões aqui colocadas, o nervo semântico de 1 Timóteo 1:16 está preservado em todas: Paulo foi alvo de misericórdia “por isso mesmo”, para que Cristo exibisse nele a totalidade de sua longanimidade, fazendo de sua história um modelo paradigmático para futuros crentes rumo à vida eterna. As principais diferenças não tocam o esqueleto da frase, mas nuances de ênfase: se prōtos é traduzido como “first” ou “chief/foremost”; se makrothymia aparece como “longsuffering”, “perfect patience” ou simplesmente “paciência”; se hypotypōsis é concebido como “pattern/model” ou como “example” em sentido mais geral; e se a ligação explícita com “o pior dos pecadores” (v.15) é mantida apenas pelo contexto (ASV, ESV, KJV, ARC) ou já é trazida para dentro do próprio versículo (NVI, NVT). Do ponto de vista exegético, quem desejar permanecer mais rente ao texto do v.16 isoladamente ficará mais confortável com ASV/ESV/KJV/ARC; quem quiser uma leitura já interpretativa, soldando 15–16 em uma única frase pastoral, encontrará nas formas da NVI e da NVT uma paráfrase fiel ao sentido, ainda que não estritamente literal quanto à formulação do versículo em si.
A trama exegética do versículo começa na pequena partícula alla dia touto (“mas, por isto mesmo”), que retoma o v.15: o fato de Paulo ser “o primeiro” entre os pecadores não o exclui da graça, mas torna-se precisamente a razão pela qual a misericórdia o alcança – não apesar de sua condição, mas precisamente nela. Isso ecoa o modo como ele se descreve em 1 Coríntios 15:9–10: ““Porque eu sou o menor dos apóstolos... Mas, pela graça de Deus, sou o que sou…”). Em ambos os textos, a lógica é a mesma: a desproporção entre culpa passada e vocação presente serve para pôr em relevo a graça, não o mérito, e 1 Timóteo 1:16 transforma essa dinâmica numa tese teológica: Deus fez de Paulo o “caso-limite” para que ninguém se julgasse fora do alcance da misericórdia.
O núcleo do propósito vem em hina en emoi prōtō endeixētai Christos Iēsous tēn hapasan makrothymian: a conjunção hina indica que a misericórdia recebida não é fim em si, mas meio para um fim: Cristo quer “demonstrar” (endeixētai) em Paulo “toda a sua longanimidade” (tēn hapasan makrothymian). O adjetivo hapasan (“toda”) não é mero exagero retórico; ele sugere que, se Cristo suportou e transformou o perseguidor blasfemo (v.13), não há pecador posterior que possa alegar ser “além” dessa paciência. Isso dialoga com Romanos 2:4, onde Paulo pergunta: “Ou desprezas as riquezas da Sua bondade, tolerância e paciência, sem reconhecer que a bondade de Deus te conduz ao arrependimento?” A longanimidade de Deus não é passividade, mas bondade em ação, estendendo o tempo para que o pecador se converta; em 1 Timóteo 1:16, essa mesma longanimidade é corporificada na história concreta de Paulo, que passa de perseguidor a apóstolo.
A expressão pros hypotypōsin tōn mellontōn pisteuein ep’ autō intensifica o caráter pedagógico dessa graça. Hypotypōsis não é apenas um “bom exemplo moral”, mas um “modelo-tipo”, um desenho que serve para ser reproduzido. Paulo se torna, por assim dizer, um ícone vivo da paciência de Cristo “para modelo dos que estão para crer nele”. A dimensão intertemporal é reforçada por mellontōn: não se trata apenas dos contemporâneos de Paulo, mas de todos os que, ao longo da história, viriam a crer em Cristo. Em termos intertextuais, isso ressoa com Efésios 2:7, onde Paulo afirma que Deus nos vivificou “para mostrar, nos séculos vindouros, as incomparáveis riquezas da sua graça, em bondade para conosco em Cristo Jesus”. Lá, a igreja como um todo é vitrine da graça nos “séculos vindouros”; aqui, Paulo é o primeiro painel dessa vitrine, o caso inaugural que inaugura uma série.
O alvo último, eis zōēn aiōnion, ancora o versículo na teleologia escatológica do Novo Testamento: a fé que nasce ao contemplar a longanimidade de Cristo não termina em alívio psicológico, mas culmina “na vida eterna”. Isso o aproxima de textos como Romanos 6:23 (“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.”), nos quais a vida eterna é o dom que se opõe ao salário do pecado. Ao vincular o modelo da experiência paulina ao destino de “vida eterna”, 1 Timóteo 1:16 garante que a narrativa de conversão não é apenas biográfica, mas paradigmática: aquilo que Cristo fez com o pior dos pecadores é sinal do que pretende fazer com todos os que nele virão a crer.
Hermeneuticamente, o versículo responde a uma possível objeção silenciosa no coração do leitor: se Cristo veio salvar pecadores (v.15), haverá um limite para essa salvação? Ao insistir que Paulo é “o primeiro”, “o principal”, o texto constrói uma espécie de “argumento do maior para o menor”: se a longanimidade de Cristo foi suficiente para transformar o inimigo declarado em apóstolo, então qualquer outro pecador, por mais profundo que seja o seu abismo, está dentro do alcance dessa mesma paciência. Isso ressoa com a declaração de 2 Pedro 3:9: “O Senhor não retarda a sua promessa... mas é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. A longa espera de Deus na história e a longa espera de Cristo por Paulo formam o mesmo fio: a paciência divina é, em si, um ministério de salvação.
Há, ainda, uma dimensão eclesial e pastoral: Paulo não narra sua história para exaltar seu passado ou dramatizar sua culpa, mas para sustentar o ministério que Timóteo deve exercer. Se o jovem obreiro, confrontado com falsos mestres e naufrágios na fé (1:19–20), corre o risco de desanimar ou endurecer, 1:16 o convida a enxergar todo pecador, inclusive os opositores, sob o prisma da “longanimidade total” de Cristo. O discipulador de Timóteo foi, ele mesmo, um caso extremo de resistência à verdade; no entanto, foi escolhido para ser apóstolo. Assim, a forma como Timóteo tratará os errantes deve ser moldada por esse paradigma: firmeza doutrinária, sim (como os vv.3–11 exigem), mas sempre sob a consciência de que o objetivo último é que os “futuros crentes” encontrem, em Cristo, vida eterna – e que até os piores podem, pela misericórdia, tornar-se vitrine da graça.
1 Timóteo 1:17
Ao Rei dos séculos, ao Deus incorruptível, invisível, único e sábio, seja honra e glória, pelos séculos dos séculos! Amém. (Gr.: Tō de basilei tōn aiōnōn, aphthartō, aoratō, monō theō, timē kai doxa eis tous aiōnas tōn aiōnōn, amēn — Literalmente: “Ora, ao Rei dos séculos, ao incorruptível, invisível, único Deus, honra e glória pelos séculos dos séculos, amém”). O título basileus (“rei”) remete ao governante soberano, senhor de um povo e de um território, e no uso bíblico concentra-se na ideia de autoridade suprema e pessoal, não apenas num título honorífico. A expressão tōn aiōnōn (“dos séculos”, “das eras”) deriva de aiōn (“era”, “idade”, “período de tempo prolongado”) e, na fórmula intensiva eis tous aiōnas tōn aiōnōn (“pelos séculos dos séculos”), torna-se idioma para a duração ilimitada, a perpetuidade da glória de Deus. O adjetivo aphthartos (“incorruptível”) nasce do alfa privativo unido ao verbo phtheirō (“corromper, destruir”), descrevendo o que é incapaz de degradação ou dissolução. Já aoratos (“invisível”) associa o alfa privativo ao verbo horaō (“ver”), qualificando Deus como aquele que, em sua essência, não é acessível aos sentidos, ainda que se revele em atos e palavras. Por fim, monos theos (“único Deus”) reúne a confissão estrita de monoteísmo, em linha com as grandes doxologias do Novo Testamento, e os substantivos timē (“honra”, “estima, valor”) e doxa (“glória”, “esplendor, fama manifesta”) recolhem toda a resposta de adoração que a igreja deve a esse Rei eterno.
Na morfologia, tō basilei (“ao Rei”) está no dativo masculino singular, funcionando como dativo de destinatário da doxologia; tōn aiōnōn (“dos séculos”) é genitivo masculino plural de valor genitivo de qualidade, configurando esse rei como “Rei das eras” ou “Rei de todas as épocas”. Os adjetivos aphthartō (“incorruptível”), aoratō (“invisível”) e monō (“único”) aparecem igualmente no dativo masculino singular, em aposição a basilei/theō, expandindo o retrato de quem é esse Rei-Deus: ele é incorruptível, invisível e único na sua categoria. Theō (“Deus”) está em dativo masculino singular, unindo-se a essa cadeia de dativos como o alvo último da honra e da glória. Os substantivos timē (“honra”) e doxa (“glória”) surgem no nominativo feminino singular, formando o núcleo de um predicado nominal elíptico — algo como “sejam [a ele] honra e glória” — enquanto eis tous aiōnas tōn aiōnōn (“pelos séculos dos séculos”) traz aiōnas em acusativo masculino plural com o genitivo tōn aiōnōn, indicando a extensão ilimitada dessa doxologia. A ausência de verbo finito explicita o caráter de verso nominal: a cópula (“sejam”, “seja”) está elidida, mas é exigida pelo contexto e pelas traduções tradicionais, que captam o tom de proclamação cultual mais do que uma simples frase descritiva.
O versículo forma uma predicação nominal exclamativa. O dativo tō basilei tōn aiōnōn, aphthartō, aoratō, monō theō funciona como dativo de referência e destinatário: “ao Rei dos séculos, ao incorruptível, invisível, único Deus”. Em seguida, o sujeito lógico do predicado nominal é formado pelo par coordenado timē kai doxa (“honra e glória”), ao passo que a expressão preposicional eis tous aiōnas tōn aiōnōn atua como adjunto adverbial de tempo-escopo, indicando a duração da honra e da glória atribuídas. A cláusula é, portanto, uma doxologia condensada: o foco recai menos sobre uma ação narrativa e mais sobre a qualificação de Deus e a resposta de louvor que lhe é devida, articulando um arco sintático que vai do destinatário (dativo) ao tributo (nominativo) e à sua extensão eterna (acusativo com preposição).
Na comparação de versões, a King James Version verte: “Now unto the King eternal, immortal, invisible, the only wise God, be honour and glory for ever and ever. Amen.” (“Agora, ao Rei eterno, imortal, invisível, ao único sábio Deus, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém.”). A English Standard Version lê: “To the King of the ages, immortal, invisible, the only God, be honor and glory forever and ever. Amen.” (“Ao Rei das eras, imortal, invisível, o único Deus, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém.”), aproximando-se do texto de Nestle-Aland ao omitir “wise”. A Young’s Literal Translation registra: “and to the King of the ages, the incorruptible, invisible, only wise God, is honour and glory -- to the ages of the ages! Amen.” (“e ao Rei das eras, o incorruptível, invisível, único sábio Deus, é honra e glória — para as eras das eras! Amém.”). Em português, a NVI traz: “Ao Rei eterno, ao Deus único, imortal e invisível, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém.”, enquanto a Almeida Revista e Corrigida conserva a forma tradicional: “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus sábio, seja honra e glória para todo o sempre. Amém.” Essa diversidade mostra que algumas tradições textuais trazem monō sophō theō (“ao único sábio Deus”), enquanto o texto de NA28 lê monō theō (“ao único Deus”), de modo que a presença de “sábio” em sua tradução reflete uma variante documentada em parte da tradição manuscrita, não um erro de compreensão.
Na exegese, Paulo, após narrar a superabundância da graça que o alcançou como “primeiro dos pecadores” (1 Timóteo 1:15), irrompe nessa doxologia que desloca o olhar de Timóteo da miséria do pecado para a majestade do Deus que salva. O título “Rei dos séculos” liga-se a declarações como “Deus é Rei pelos séculos dos séculos” em Salmos 10:16 e 145:13, reforçando a soberania de Deus sobre toda a história, inclusive sobre a história pessoal do apóstolo. A qualificação “incorruptível, invisível” converge com 1 Timóteo 6:15–16, onde Deus é descrito como aquele “que habita em luz inacessível, a quem nenhum dos homens viu nem pode ver”. A invisibilidade não é ausência, mas transcendência: ele não é apreensível pelos sentidos, mas torna-se conhecido em Cristo, “imagem do Deus invisível” (Colossenses 1:15), e na revelação do evangelho. O reconhecimento de Deus como “único” preserva o monoteísmo bíblico e, ao mesmo tempo, prepara o terreno para as declarações cristológicas que atribuem a Cristo lugares e títulos divinos (como em 1 Timóteo 6:15–16 e Filipenses 2:9–11), mostrando que a glória de Deus se manifesta plenariamente em Jesus. Assim, quando a igreja responde “honra e glória pelos séculos dos séculos”, ela está confessando que toda a narrativa de sua salvação culmina na adoração desse Rei eterno que se revelou no evangelho que Paulo acabara de descrever.
1 Timóteo 1:18
Esta instrução te dou, menino Timóteo, segundo as profecias que foram feitas a teu respeito, para que milites nelas o bom combate,... (Gr.: Tautēn tēn parangelian paratithemai soi, teknon Timothee, kata tas proagousas epi se prophēteias, hina strateuē en autais tēn kalēn strateian — Literalmente: “Esta ordem eu te confio, filho Timóteo, segundo as profecias que apontaram anteriormente para ti, para que por meio delas traves o bom combate”.) No nível etimológico, parangelia (“instrução”, “ordem”) deriva do verbo parangellō (“anunciar, ordenar”), designando um mandado formal, frequentemente com conotações de ordem militar ou instrução oficial. O verbo paratithemai (“confiar, entregar, depositar”) junta para (“junto de, ao lado de”) e tithēmi (“colocar”), evocando a imagem de algo cuidadosamente depositado sob a guarda de alguém, como um depósito sagrado. O vocativo teknon (“filho, criança”) sugere relação afetiva e pedagógica, um filho na fé mais que um filho biológico. A expressão kata tas proagousas epi se prophēteias liga proagousas (“que precederam, que foram adiante”) e prophēteias (“profecias”) — discursos inspirados que declararam previamente o chamado de Timóteo. Por fim, strateuē (“milites”, “traves guerra”) e strateia (“combate, campanha”) vêm do campo militar: a fé e o ministério são descritos como uma guerra bem conduzida, uma campanha disciplinada sob ordens divinas.
A expressão tautēn tēn parangelian (“esta instrução”) traz o demonstrativo e o substantivo ambos em acusativo feminino singular, funcionando como objeto direto de paratithemai (“eu confio”). Paratithemai é verbo no presente indicativo, voz média, primeira pessoa do singular (“eu confio/entrego”), destacando a ação atual de Paulo: ele está, naquele momento epistolar, depositando esse encargo sobre Timóteo. O pronome soi (“a ti”) está em dativo de pessoa beneficiada, marcando Timóteo como destinatário do depósito. Teknon Timothee (“filho Timóteo”) é vocativo, intercalado, e carrega tanto ternura quanto autoridade pastoral.
O bloco preposicional kata tas proagousas epi se prophēteias apresenta kata (“segundo, conforme”) com acusativo, indicando a medida ou norma: a entrega da instrução se faz “segundo” profecias prévias; proagousas é particípio presente ativo feminino plural, concordando com prophēteias, e epi se (“sobre ti”) indica o alvo dessas profecias. Na oração final, hina strateuē en autais tēn kalēn strateian, a conjunção hina introduz uma oração de finalidade; strateuē é verbo no presente subjuntivo, voz média/deponente, segunda pessoa do singular (“para que tu combatas/traves guerra”), e en autais (“nelas”, isto é, nas profecias) funciona como esfera ou ambiente dessa luta; tēn kalēn strateian (“o bom combate”, “a boa campanha”) está em acusativo feminino singular como objeto interno do verbo, tornando explícito que o “combate” é qualificado pela bondade de seu objetivo e natureza.
A frase se organiza em torno da oração principal “esta instrução te dou”, onde tautēn tēn parangelian é objeto direto, paratithemai o verbo nuclear e soi dativo de destinatário. O vocativo “filho Timóteo” interrompe a linearidade, mas aprofunda o tom pastoral da sentença. O complemento preposicional “segundo as profecias que foram feitas a teu respeito” funciona como adjunto de conformidade, ancorando o ato presente de Paulo em atos de revelação anteriores da comunidade. A oração subordinada final introduzida por hina explicita o propósito da entrega: “para que milites nelas o bom combate”, isto é, para que Timóteo, apoiando-se nessas profecias, lute a boa guerra da fé, correspondendo ao encargo doutrinário e pastoral descrito no início do capítulo (1 Timóteo 1:3–5).
Na comparação de versões, a KJV verte: “This charge I commit unto thee, son Timothy, according to the prophecies which went before on thee, that thou by them mightest war a good warfare;” (“Esta incumbência te confio, filho Timóteo, segundo as profecias que anteriormente foram proferidas acerca de ti, para que por elas combatas o bom combate.”). A ASV diz: “This charge I commit unto thee, my child Timothy, according to the prophecies which led the way to thee, that by them thou mayest war the good warfare;” (“Esta incumbência te confio, meu filho Timóteo, segundo as profecias que te precederam, para que por elas traves o bom combate.”).
A ESV, em inglês contemporâneo, registra: “This charge I entrust to you, Timothy, my child, in accordance with the prophecies previously made about you, that by them you may wage the good warfare,” (“Esta incumbência eu te confio, Timóteo, meu filho, em conformidade com as profecias anteriormente feitas a teu respeito, para que por meio delas traves o bom combate,”). Em português, a NVI lê: “Timóteo, meu filho, dou-lhe esta instrução, segundo as profecias já proferidas a seu respeito, para que, seguindo-as, você combata o bom combate”; a Almeida Revista e Corrigida: “Este mandamento te dou, meu filho Timóteo, que, segundo as profecias que houve acerca de ti, milites por elas boa milícia”; e a Nova Versão Transformadora: “Timóteo, meu filho, essa é a instrução que lhe dou, com base nas profecias a seu respeito, feitas anteriormente, para que, por meio delas, você lute o bom combate”. Todas convergem para a mesma linha de sentido: um encargo apostólico confiado à luz de profecias anteriores, com vistas a um combate espiritual que é definido como “bom”.
Na exegese, esse versículo amarra o capítulo: a “parangelia” confiada a Timóteo remete explicitamente à ordem de permanecer em Éfeso e combater os falsos ensinos (1 Timóteo 1:3), cuja teleologia Paulo havia resumido no “fim da instrução”, que é o amor procedente de um coração puro, boa consciência e fé não fingida (1 Timóteo 1:5). As “profecias” sobre Timóteo recordam textos como 1 Timóteo 4:14 e 2 Timóteo 1:6, onde o dom recebido mediante profecia e imposição de mãos é mencionado, sugerindo que a vocação pastoral de Timóteo não é apenas um arranjo organizacional, mas uma resposta a um chamado discernido comunitariamente sob a direção do Espírito.
A imagem do “bom combate” ecoa 1 Timóteo 6:12 (“combate o bom combate da fé”) e 2 Timóteo 2:3–4, onde o discípulo é chamado a compartilhar os sofrimentos “como bom soldado de Cristo Jesus”, livre de embaraços civis para agradar aquele que o alistou. Assim, o vocativo “filho” não é mero sentimentalismo: Paulo vê Timóteo como soldado e herdeiro, alguém cuja vida está enlaçada à missão do evangelho. As profecias funcionam como cartas de alistamento e também como âncora de perseverança: quando o combate se torna árduo, Timóteo é chamado a lembrar que não está ali por acidente, mas porque Deus já havia falado sobre sua vida. Em termos pastorais, o versículo descreve a dinâmica do verdadeiro ministério: não é autoprojetado, mas recebido; não é conduzido ao sabor de conveniências, mas travado como guerra santa por meio de uma palavra que, uma vez confiada, transforma o ministro em depositário e soldado da verdade que proclama.
1 Timóteo 1:19
tendo fé e boa consciência, a qual alguns, tendo rejeitado, naufragaram na fé. (Gr.: echōn pistin kai agathēn syneidēsin, hēn tines apōsamenoi peri tēn pistin enauagēsan — “tendo fé e boa consciência, a qual alguns, tendo repelido, fizeram naufrágio quanto à fé”; tradução ainda mais literal: “tendo fé e boa consciência, as quais alguns, empurrando para longe, naufragaram em relação à fé”.) A palavra pistis (“fé”) nasce do verbo peithō (“persuadir, confiar”), de modo que, em seu núcleo etimológico, “fé” é confiança persuadida, convicção que se rende ao caráter de Deus, podendo indicar tanto o ato de confiar quanto o conteúdo crido. Já syneidēsis (“consciência”) vem de syn (“com”) + eidō/oraō (“ver, perceber”), designando uma “co-percepção”, uma visão interior que julga nossos atos diante de um padrão moral; por isso, os léxicos a definem como “consciência moral”, a faculdade interior que aprova ou condena. O particípio apōsamenoi deriva de apotheō (“empurrar para longe, repelir, rejeitar”), termo que sugere um gesto violento de afastar algo incômodo. Finalmente, enauagēsan procede de nauageō, formado de naus (“navio”) + agnymi (“quebrar”), de onde vem a imagem de “sofrer naufrágio”, tanto literal quanto metaforicamente, como aqui, aplicado à pistis. A etimologia, assim, pinta um quadro: fé como confiança persuadida; consciência como julgamento interno; rejeitar como empurrar para longe; naufragar como despedaçar a embarcação da própria fé no recife das escolhas morais.
O particípio echōn está no presente ativo, masculino, singular, nominativo, de echō (“ter, manter”), ligado ao sujeito implícito de strateuē no versículo anterior, descrevendo Timóteo como alguém que “vai lutando” tendo, de modo contínuo, fé e boa consciência. Pistin é substantivo feminino, singular, acusativo, funcionando como objeto direto desse particípio, enquanto agathēn syneidēsin combina o adjetivo agathēn (“boa”) — feminino, singular, acusativo — qualificando syneidēsin, substantivo feminino, singular, acusativo, de função também objetal, de forma que o particípio abraça dois objetos coordenados: fé e consciência. A conjunção kai une esses dois polos, sem subordiná-los: ambos são igualmente indispensáveis, como duas mãos segurando o leme. A relativa hēn (“a qual”), feminino, singular, acusativo, retoma principalmente syneidēsin, introduzindo uma oração relativa em que tines (“alguns”) — pronome indefinido, masculino, plural, nominativo — é sujeito de apōsamenoi, particípio aoristo médio, masculino, plural, nominativo, de valor antecedente: “alguns, tendo repelido”.
Esse particípio médio deixa transparecer que a rejeição é um ato deles sobre algo que lhes era dado para o bem, como quem, desde dentro, empurra para fora a própria bússola. A preposição peri com acusativo em peri tēn pistin (“quanto à fé”, “em relação à fé”) delimita a esfera na qual se dá o naufrágio; pistin reaparece, agora como substantivo feminino, singular, acusativo, objeto da preposição. O verbo finito enauagēsan é aoristo indicativo ativo, terceira pessoa do plural, núcleo da oração, descrevendo o resultado pontual e catastrófico: “fizeram naufrágio” no que diz respeito à fé. Sintaticamente, a estrutura descreve Timóteo como sujeito do combate (v.18), caracterizado pelo particípio modal echōn, e coloca “alguns” como sujeitos da cláusula relativa, cuja ação de rejeitar a consciência conduz ao naufrágio relativo à fé; o fluxo lógica e sintaticamente estabelece um nexo causal entre ética (consciência) e fé (confiança e doutrina).
Na comparação de versões, a KJV verte: “Holding faith, and a good conscience; which some having put away concerning faith have made shipwreck” (“Conservando a fé e a boa consciência; a qual alguns, tendo posto de lado quanto à fé, fizeram naufrágio”). A ESV diz: “holding faith and a good conscience. By rejecting this, some have made shipwreck of their faith” (“mantendo fé e boa consciência. Ao rejeitar isto, alguns fizeram naufrágio de sua fé”). A YLT mantém o sabor literal: “having faith and a good conscience, which certain having thrust away, concerning the faith did make shipwreck” (“tendo fé e boa consciência, que alguns, tendo empurrado para longe, quanto à fé fizeram naufrágio”). A ASV acompanha: “holding faith and a good conscience; which some having thrust from them made shipwreck concerning the faith” (“retendo fé e boa consciência; que alguns, tendo afastado de si, fizeram naufrágio quanto à fé”). Em português, a NVI traz: “mantendo a fé e a boa consciência que alguns rejeitaram e, por isso, naufragaram na fé”, a ARC: “conservando a fé e a boa consciência, rejeitando a qual alguns fizeram naufrágio na fé”, e a NVT: “Apegue-se à fé e mantenha a consciência limpa, pois alguns rejeitaram deliberadamente a consciência e, como resultado, a fé que tinham naufragou”. Todas convergem na tensão entre “reter” (fé e boa consciência) e “rejeitar” (a consciência), sublinhando que o naufrágio não é um acidente cego, mas o fruto de uma recusa deliberada da luz interior.
Esse versículo retoma o eixo já enunciado em 1 Timóteo 1:5, onde o alvo da instrução é o amor “de um coração puro, de uma consciência boa e de uma fé sem hipocrisia”, compondo o mesmo tripé: coração purificado, consciência reta e fé genuína. A partir dessa tríade, Paulo mostra que a fé não paira no vácuo conceitual, mas navega no mar concreto da consciência: quando esta é violentada, a embarcação da fé se despedaça. Os léxicos de syneidēsis destacam precisamente a função de “faculdade interior de juízo moral”, que aprova e reprova as ações. Rom 2:15 descreve a consciência testemunhando juntamente com a lei escrita no coração; Hebreus 10:22 fala de um “coração purificado de má consciência” como condição para se aproximar de Deus; em 1 Pedro 3:16, a boa consciência é escudo contra a vergonha. Em 1 Timóteo 3:9, os diáconos devem “conservar o mistério da fé com a consciência limpa”, eco direto da expressão aqui.
A imagem do naufrágio, aplicada metaforicamente à fé, aparece como um avisado desenvolvimento do uso de nauageō para descrever desastre completo, como atesta o uso lexical. A cena que se desenha é a de um navio que, tendo lançado fora o leme da consciência, já não evita os recifes; o impacto não destrói a verdade de Deus, mas rasga o casco subjetivo da fé pessoal. A partir daí, a fé pode continuar a ser professada nos lábios, mas já não navega; é um casco partido, à deriva. Intertextualmente, o quadro dialoga com Hebreus 3:12 (“vêde... que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e incrédulo, para se apartar do Deus vivo”) e com 1 Coríntios 8–10, onde a consciência ferida pode destruir o “fraco” pela liberdade mal usada de outrem. A mensagem do versículo, nesse conjunto, é que o combate cristão só é travado com integridade quando a doutrina confessada (pistis como conteúdo) e a confiança vivida (pistis como entrega) caminham lado a lado com uma consciência mantida limpa; ferir continuamente essa consciência é escolher, passo a passo, o naufrágio.
1 Timóteo 1:20
Entre eles estão Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar. (Gr.: hōn estin Hymenaios kai Alexandros, hous paredōka tō Satana, hina paideuthōsin mē blasphēmein — Literalmente: “entre os quais estão Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que sejam instruídos a não blasfemar; dos quais são Himeneu e Alexandre, a quem entreguei a Satanás, para que sejam disciplinados a não blasfemar”.) O verbo paradidōmi (“entregar”) combina para (“ao lado, para”) com didōmi (“dar”), indicando, em seu núcleo etimológico, o ato de “dar nas mãos de”, “transferir ao poder de outrem”, seja para guardar, seja para julgar ou punir, conforme destacam os léxicos. Paideuthōsin vem de paideuō, verbo que originalmente designa o “educar, formar crianças”, e que, por extensão, passa a significar “disciplinar, corrigir, castigar com vistas à formação de caráter”, jamais mera violência, mas disciplina pedagógica. Blasphēmein deriva de blasphēmeō, formado provavelmente de blas- (“dano, má reputação”) + phēmē (“fala”), somando a ideia de “falar de modo destrutivo”, “difamar”, e, no contexto religioso, “falar de maneira ímpia do que é santo”, daí o “blasfemar” de nossas traduções. O nome “Satanás” é transliteração de Satanas, de origem semita, “adversário, acusador”, designando aquele que se opõe a Deus e ao seu povo. A etimologia do trio principal já sugere o movimento: Paulo “entrega” dois homens ao “Adversário” com o propósito de que, por meio de disciplina severa, deixem de usar a boca para ferir o próprio Deus e o evangelho.
O pronome hōn é relativo genitivo, plural, de função partitiva: “entre os quais”, retomando o grupo dos que “naufragaram na fé” no versículo anterior; dentro desse conjunto, destacam-se duas figuras: Hymenaios e Alexandros, nomes próprios masculinos, singular, nominativo, que funcionam como predicativos dentro do genitivo relativo (“dos quais são Himeneu e Alexandre”). O verbo estin é presente indicativo ativo, terceira pessoa do singular, de eimi (“ser/estar”), ligando o relativo genitivo ao par de nomes, como se dissesse: “dos quais fazem parte Himeneu e Alexandre”. O pronome relativo hous, acusativo masculino plural, retoma esses dois nomes e introduz a oração em que Paulo se apresenta como sujeito explícito de paredōka, aoristo indicativo ativo, primeira pessoa do singular, verbo que concentra o ato apostólico de disciplina: ele “entregou” (ato pontual, decisivo) esses homens “a Satanás”. Tō Satana traz o artigo dativo masculino singular tō, seguido de Satana, substantivo próprio, dativo masculino singular, funcionando como dativo de destinatário: é para o âmbito de ação de Satanás que eles são entregues. A conjunção final hina introduz uma oração de finalidade: paideuthōsin é aoristo passivo subjuntivo, terceira pessoa plural, de paideuō, exprimindo o propósito de que sejam “disciplinados” ou “educados”, o que vincula o gesto à correção e não à mera destruição. O infinitivo blasphēmein é presente ativo, complementando paideuthōsin e definindo o alvo negativo da disciplina: que aprendam a “não blasfemar”. Sintaticamente, o versículo desenha um arco: do grupo genérico dos que naufragaram, passando por dois nomes concretos, até o ato apostólico de disciplina com um fim pedagógico explícito.
Na comparação de versões, a KJV diz: “Of whom is Hymenaeus and Alexander; whom I have delivered unto Satan, that they may learn not to blaspheme” (“Dos quais são Himeneu e Alexandre; os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar”). A ESV: “among whom are Hymenaeus and Alexander, whom I have handed over to Satan that they may learn not to blaspheme” (“entre os quais estão Himeneu e Alexandre, aos quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar”). A YLT verte: “of whom are Hymenaeus and Alexander, whom I did deliver to the Adversary, that they might be instructed not to speak evil” (“dos quais são Himeneu e Alexandre, os quais entreguei ao Adversário, para que fossem instruídos a não falar mal”). A ASV acompanha de perto: “of whom is Hymenaeus and Alexander; whom I delivered unto Satan, that they might be taught not to blaspheme” (“dos quais é Himeneu e Alexandre; os quais entreguei a Satanás, para que fossem ensinados a não blasfemar”). Em português, a NVI: “Entre eles estão Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar”, a ARC: “E entre esses foram Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar”, e a NVT: “Himeneu e Alexandre são dois exemplos. Eu os entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar”. A sua tradução com “ao Adversário” e “não falar mal” preserva o sentido essencial, mas a forma “Satanás” e o verbo “blasfemar” mantêm mais nitidamente o peso teológico da expressão grega e a conexão com o pecado específico denunciado.
No plano exegético, a expressão “entregar a Satanás” ecoa diretamente 1 Coríntios 5:5 (“entregar a tal homem a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus”), onde a disciplina eclesiástica, pela exclusão da comunhão, expõe o pecador ao “território” de Satanás fora da proteção da igreja, com o objetivo último de restauração. Estudos sobre o tema mostram que, em 1 Timóteo 1:20, Paulo descreve algo análogo: a exclusão de Himeneu e Alexandre da esfera visível da igreja, para que, por meio de disciplina severa, aprendam a não blasfemar. Aqui, portanto, não se trata de vingança apostólica, mas de um ato extremo de amor pela verdade e pela comunidade, onde a pedagogia divina passa, paradoxalmente, pela exposição ao “Adversário”, a fim de que os dois sejam trazidos ao arrependimento. O verbo paideuō reforça esse caráter pedagógico: é o verbo do pai que corrige o filho, do mestre que molda o aluno. A blasfêmia não é apenas erro doutrinário abstrato; é linguagem que deturpa a glória de Cristo e perverte o evangelho, como se vê em 2 Timóteo 2:17–18, onde Himeneu reaparece como alguém cuja palavra “corrói como gangrena” e que “andou desviando-se da verdade”. O elo com o versículo 19 é forte: quem rejeita a boa consciência naufraga na fé; entre esses, dois mestres se tornam exemplos paradigmáticos de destino disciplinar.
A sequência 1:19–20 mostra que fé e consciência não são apenas categorias interiores, mas têm consequências eclesiais concretas. Quando o naufrágio da fé de alguns passa a ameaçar outros, pela influência destrutiva de sua palavra, a igreja, por meio de seus líderes, precisa agir. A disciplina, aqui, é vista como remédio extremo, não como mecanismo de exclusão orgulhosa. Paulo, que conhecia por dentro o que era ser blasfemo e, ainda assim, ter alcançado misericórdia (1:13), deseja que até mesmo Himeneu e Alexandre, feridos pelo açoite pedagógico, retornem à sobriedade e à verdade. A lógica do texto é dura e, ao mesmo tempo, profundamente esperançosa: Deus ama tanto a sua glória e a sua igreja que permite que alguns sejam lançados às ondas mais fortes, não para vê-los afogados, mas para que, ao engolirem água, aprendam, enfim, a não furar o casco com a própria língua.
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GALVÃO, Eduardo. 1 Timóteo 1: Significado, Explicação e Devocional. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], 22 set. 2015. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano].
