Atos dos Apóstolos — Data da Escrita

Atos dos Apóstolos — Data da Escrita

Atos dos Apóstolos — Data da Escrita



O tempo da escrita de Atos é um dos problemas mais discutidos no meio erudito do Novo Testamento hoje em dia. Estudiosos competentes argumentaram seriamente em favor de datas, que vão desde cerca de 60 d.C. até a metade do segundo século. Duas coisas, entretanto, são evidentes: Atos foi escrito depois do Evangelho de Lucas e subseqüente aos eventos de Atos 28. O tempo da estadia de dois anos de Paulo na prisão romana (At. 28:30) é, necessariamente, o terminus ad quo (fator determinante) a data mais antiga possível.

Até o surgimento da crítica histórica, era geralmente aceito que Atos foi escrito antes do primeiro julgamento de Paulo perante Nero. Embora ainda haja discussão acerca da época exata do encarceramento de Paulo em Roma, conforme visto em Atos, a maioria dos estudiosos colocaria o fim dos dois anos dentro do período de 59-62 d.C. O fator determinante na datação deste período é a revocação de Félix para Roma e a chegada de Festo como procurador da Palestina. Os historiadores romanos e Josefo não são claros acerca da queda de Félix e Palas (irmão de Félix). Palas serviu de instrumento para adotar Nero na família imperial de Cláudio. Conseqüentemente, Nero era devedor a Palas por ter-se tornado imperador, e Nero não gostava de ser devedor a ninguém. Palas foi o chefe do tesouro romano sob Cláudio e Nero. Embora Suetônio e Tácito tragam confusão neste ponto, parece que Palas foi desacreditado e removido do ofício em 55 d.C. Josefo (Antigüidades, xx, 8,9) escreveu que Félix fora convocado a Roma, mas foi salvo da ruína completa pela intervenção de seu irmão. Contudo, embora Palas não mais fosse o chefe do tesouro romano, ele ainda mantinha grande influência em Roma. Não se segue, necessariamente, então, que Félix teve que ser resgatado antes da remoção de seu irmão, conforme alguns críticos exigiriam. Do número de eventos que Lucas registra como acontecendo desde a época de Atos 18:12 (a ascensão de Gálio à procuradoria em Corinto em 51-52 d.C.) até a chegada de Festo a Cesaréia (At. 25:1), pareceria, necessariamente, que Palas salvou seu irmão da desgraça após 55 d.C. A data mais provável para a chegada de Festo a Cesaréia é cerca de 57 d.C. Isto colocaria a viagem de Paulo a Roma no inverno de 57-58. Os dois anos de Atos 28:30 incidiriam, então, entre 58-60, dando algum tempo para as correções do calendário. Isto também daria algum tempo para os eventos aludidos nas epístolas pastorais de Paulo antes de sua segunda prisão e subseqüente morte, após o ano do incêndio, em Roma, de julho de 64.

Um crescente número de estudiosos está mudando para a posição de que Atos foi escrito durante este primeiro encarceramento em Roma. F. F. Bruce (The Acts of the Apostles, p. 10-14) relaciona sete considerações para se aceitar esta época como sendo a da escrita de Atos.

Primeira: Atos revela pouco conhecimento acerca das cartas de Paulo. Pareceria inconcebível um historiador omitir a oportunidade de dizer alguma coisa acerca do local, propósito e destinação de cartas que estavam sendo colecionadas e distribuídas entre as igrejas na última parte do primeiro século.

Segunda: A maneira abrupta de encerrar pode ser melhor explicada pelo fato de Atos ter sido escrito antes do aparecimento de Paulo perante Nero. Não é natural um livro ser terminado desta maneira, se o autor sabia que Paulo havia sido solto.

Terceira: Em nenhuma parte o autor insinua acerca da morte de Paulo. Atos termina com uma nota demasiadamente confiante. Certamente o autor, em algum lugar, teria traído a si próprio se soubesse da morte de Paulo.

Quarta: A reação geral das autoridades romanas ao cristianismo torna difícil de se crer que a perseguição neroniana havia iniciado. Em toda parte os oficiais romanos haviam declarado os cristãos inocentes das acusações trazidas contra eles. A perseguição por decreto governamental ainda não havia começado.

Quinta: Não existe nenhuma insinuação, em Atos, de que a Guerra Judaico-Romana (66-70 d.C.) já se havia iniciado, ou, conseqüentemente, de que Jerusalém havia sido destruída (70 d.C). Certamente, este acontecimento de máxima importância para o judaísmo teria sido mencionado se já tivesse ocorrido. Pareceria que um autor cristão teria sido incapaz de impedir-se a si mesmo de escrever acerca do cumprimento das profecias de Jesus.

Sexta: Em Atos, coisas que eram de importância nas relações judaico-cristãs antes da queda de Jerusalém e de pouca importância após sua queda são discutidas. A isto pode-se acrescentar que o conhecimento da morte de Tiago, o irmão do Senhor, nas mãos do sumo sacerdote, em 62 d.C, não é indicado.

Sétima: A teologia de Atos parece ser primitiva tanto na concepção quanto na terminologia.

Destas sete considerações, somente três (a segunda, a terceira e a quarta) são relevantes para a datação de Atos antes da soltura de Paulo da prisão. Os outros argumentos poderiam também ser usados para qualquer época anterior à queda de Jerusalém. Pode-se ver que o encerramento abrupto de Atos com Paulo na prisão não é mais abrupto que a maneira pela qual o autor encerra a discussão acerca dos outros apóstolos, especialmente de Pedro (At. 12:17; 15:11). Não se ouve acerca de nenhum dos apóstolos após Atos 15 (Tiago, o irmão de Jesus, é mencionado posteriormente, mas só de maneira incidental, e ele não era um apóstolo). Não foi o propósito de Lucas apresentar uma narrativa biográfica de nenhum dos discípulos de Jesus; eles entravam na história do propósito de Lucas somente quando contribuíam para esse propósito.

Dois outros pontos são difíceis, contudo, não, insuperáveis. Estes têm a ver com o fato de que Atos nada sabe acerca da morte de Paulo nem parece ter conhecimento acerca da perseguição oficial do governo. É universalmente aceito que Paulo de fato morreu nas mãos de Nero. O que não está manifestamente claro é a época de sua morte. Será que Paulo foi solto da prisão e posteriormente preso outra vez, sofrendo martírio, ou será que ele nunca obteve liberdade após o encerramento de Atos? Alguns argumentaram que este último caso é o real. Lucas escreveu, dizem estes críticos, esperando que Paulo fosse solto, mas isto não ocorreu. Paulo realmente apareceu perante Nero e foi achado culpado de acusações suficientes para ocasionarem sua morte. Esta seria uma explicação para o livro terminar da maneira como termina; foi escrito como uma defesa, para Paulo, em seu julgamento perante Nero. Alguns críticos sugeriram que Teófilo foi o conselho de defesa de Paulo. Há bem pouca evidência para se recomendar esta última afirmação como sendo o caso real. Os dois volumes são demasiadamente extensos e não é apresentado bastante material, para este tipo de defesa, relacionando-se diretamente à situação de Paulo.

Este argumento, todavia, levanta mais problemas do que os que estão resolvidos. O otimismo do capítulo 28 não pode ser negligenciado. Há também a tradição da igreja primitiva de que Paulo de fato foi libertado. Se se aceita que Paulo é o autor das Epístolas Pastorais, então ele teve que ser solto da prisão, para se explicar as referências históricas nas Pastorais que não podem ser correlacionadas com Atos. Clemente de Roma (nos cinco últimos anos do primeiro século) escreveu que Paulo foi posto em liberdade e pregou “para as extremidades do Ocidente” (I Clemente 5:7). Tendo sido escritas em Roma, estas, para um romano, só podem significar Espanha. Depois, Paulo foi feito outra vez prisioneiro e morreu nas mãos do imperador romano, Nero. O Fragmento Muratoriano também se refere ao fato de Paulo ter feito uma viagem evangelística à Espanha e depois ter sofrido martírio em Roma. Esta informação é apoiada pelos dados históricos apresentados nas Pastorais. Deve ser observado que nenhum destes dados pode ser harmonizado com os de Atos; eles poderiam ocorrer somente em alguma época subseqüente ao término de Atos. Se, de fato, Paulo foi solto da prisão por volta de 60 d.C. e morto durante ou após o incêndio de Roma (64 d.C), haveria tempo amplo para os eventos contidos nas Pastorais.

Frank Stagg (O Livro de Atos) sugeriu que Lucas encerra Atos da maneira como o faz porque ele alcançou seu propósito de escrever a obra de dois volumes. Portanto, a soltura de Paulo da prisão (embora Lucas soubesse que ela havia acontecido) foi sem importância para o argumento. Terminar com uma nota de otimismo acerca do futuro do movimento cristão foi algo mais ao propósito de Lucas. Lucas teria sabido acerca da soltura de Paulo, seu ulterior ministério, reaprisionamento e morte (II Tim. 4:11). Mas seu propósito não foi apresentar um esboço biográfico de Paulo; foi traçar a história do poder do evangelho em sua superação de todas as barreiras que separam o homem do homem e de Deus (At. 28:31).

O encerramento com uma nota otimista indicaria que a justiça romana, em toda parte, achava o cristianismo inocente de todas as acusações. Os excessos insanos de Nero eram bem conhecidos no mundo romano, e Atos poderia ter sido escrito logo após a morte de Nero (68 d.C), para mostrar quão sadiamente os oficiais romanos tratavam o cristianismo antes de Nero ter transferido a culpa de ter queimado Roma de si mesmo para os cristãos (Tácito, Annales, xv, 44). Isto explicaria a razão para a ausência de se observar perseguição “governamental oficial”. Na época da escrita, Roma estava em guerra com a nação judaica (66-70 d.C). Lucas é enfático ao mostrar que, assim como o inimigo do governo romano era o grupo dos obstinados líderes judeus, o inimigo real do cristianismo era a religião fanática do judaísmo. Talvez, com a morte de Nero, a perseguição neroniana tinha já começado a parar ou perder sua força. A esta altura, o cristianismo estava quase completamente separado do judaísmo. Nos últimos anos da Guerra Judaico-Romana, os judeus cristãos já se haviam afastado do fanatismo mostrado na luta. O Senhor dos cristãos havia predito tal luta e advertiu seus seguidores a escaparem de tais ações (Mar. 13; Luc. 21). O cristianismo não mais era uma seita dentro da religião dos judeus.

Por vários anos havia-se suposto que Lucas dependeu do historiador e apologista judeu Josefo, que escreveu na última década do primeiro século. Foi dito que Lucas tomou emprestado material acerca dos eventos na Palestina para os anos precedentes à Guerra Judaico-Romana. Por esta e outras razões, a data para Lucas-Atos foi colocada no segundo século. Foi mantido que Lucas dependeu de Josefo para informação sobre Lisânias (Luc. 3:1), Teudas (At. 5:36) e o “egípcio” (At. 21:38), (vide The Antiquities of the Jews — As Antiguidades dos Judeus, XX, 5,1,2). Ao se ler Josefo, todavia, pode-se observar divergências entre as duas narrativas. Pareceria improvável que um escritor fosse ler a vasta quantidade de material de As Antiguidades, escolher somente alguns itens e depois ler erroneamente a informação! Uma datação para após 95 d.C, devido à dependência de Josefo, não mais é sustentável, e tampouco pode ser substanciada. Deve-se observar também que Lucas não menciona as cartas de Paulo em Atos. Certamente isto teria sido feito por causa da crescente importância ligada a elas pelo final do primeiro século. Teria sido uma oportunidade boa demais para um autor perder, a de não dizer alguma coisa acerca do local e ocasião da composição delas, e especialmente se ele pretendia ser um companheiro de Paulo. A única explicação para a ausência de referência ao corpus paulino é que o autor estava de fato em contato direto com o escritor delas.

É inescapável o fato de que a data da escrita de Atos está ligada com a do Evangelho de Lucas. Já foi mostrado que Lucas-Atos é uma obra de dois volumes sobre as origens do cristianismo. Os dois prefácios indicam que o Evangelho foi escrito antes de Atos. Foi estabelecido que Lucas usou Marcos como uma de suas fontes para escrever o Evangelho e, portanto, teve que ser escrito depois de Marcos. Foi sugerido, no Capítulo VI, que Marcos foi escrito em certo momento após o início da perseguição neroniana. Se Marcos escreveu de Roma e baseou seu Evangelho no testemunho de Pedro, então isso teve que ser após a morte de Paulo, já que Paulo, em nenhum lugar, em suas cartas, alude ao fato de Pedro ter estado em Roma. Por causa disso, é sugerido que uma data para a composição do terceiro Evangelho deve ser colocada ao fim da Guerra Judaico-Romana (66-70 d.C), e Atos foi, portanto, escrito antes da destruição de Jerusalém.