A Igreja no Evangelho de Mateus

A Igreja no Evangelho de Mateus

A Igreja no Evangelho de Mateus

A menção à justiça, tema relevante no evangelho de Mateus, fornece um ponto de transição para o tópico dos discípulos e da igreja. Todavia, antes de examinar o sentido ético ou prático da justiça (e as ideias associadas a ela em Mateus), seria proveitoso considerar como Mateus prevê o relacionamento entre os primeiros discípulos de Jesus e a igreja que formariam a seguir.

A conclusão do evangelho, em que Jesus fala para os discípulos ensinarem aos outros “todas as coisas que eu vos tenho mandado” (28.20), indica que Mateus percebe a correspondência entre o que registrou sobre os ensinamentos e as instruções de Jesus para os discípulos e sua relevância para a igreja. Essa parte do versículo pareceria ser um endosso quiçá abrangente para a aplicabilidade de tudo que Mateus inclui em seu evangelho. O fato de essa instrução ser seguida pela afirmação da presença espiritual de Jesus “até à consumação dos séculos” parece também implicar a relevância permanente dessa instrução até o retorno dEle. Contudo, há alguns pontos de dificuldade nessa visão que complicam a fácil aplicação dos ensinamentos de Jesus subsequentes para os discípulos. Mateus, de modo característico, transmite, na maior parte de sua narrativa, os ensinamentos de Jesus em linguagem relevante para a prática religiosa e cultural judaica. Até certo ponto, isso é compreensível, uma vez que essa é a cultura em que Jesus realizou seu ministério e da qual os discípulos foram reunidos. Mas o que o cristão gentio deve fazer com prescrições que instruem os discípulos a responder a um irmão impenitente como “gentio” (18.17; embora a associação com “publicano” ajude a tornar esse rótulo a ter relevância transcultural duradoura)? Ou que relevância tem a ordem para ungir a cabeça enquanto jejua (6.17) para uma igreja predominantemente gentia, em que (pelo menos, a julgar pelo silêncio das epístolas) o jejum não é praticado? Contudo, esses são desafios interpretativos razoavelmente menores, do tipo que provavelmente a média dos gentios lide sem muita dificuldade.

Mais relevante é o que o leitor deve fazer com o fato de que Jesus dota seus discípulos de grande autoridade não apenas para pregar (10.7), mas também para ressuscitar os mortos (v. 8)? Até que ponto Mateus entende essas ordens que incluem exercer essa autoridade miraculosa, também aplicável aos discípulos fora da es fera dos Doze primeiros? Talvez o que é dito sobre Pedro, após sua confissão de Jesus como Cristo (16.16), seja instrutivo para responder a essa questão. Jesus, após uma explicação da capacitação divina por trás da capacidade de Pedro de fazer essa confissão (v. 17), faz duas declarações a respeito desse apóstolo. Jesus, em um jogo com o nome de Pedro em que usa a palavra grega para pedra (petra), diz: “[...] Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (v. 18).51 Há pouco debate em relação a essa última afirmação ser uma palavra de garantia de que a igreja durará até o retorno de Jesus, mesmo em face da oposição de Satanás. Mas qual é o sentido da primeira parte da declaração? Jesus dizia, aqui, que Pedro seria a fundação da igreja primitiva? Esse texto (associado ao versículo seguinte) é usado pelos intérpretes católicos romanos para sustentar a visão de que Pedro foi o primeiro papa.

Um corpo de interpretação protestante, um contra-argumento à interpretação dos católicos romanos, desenvolveu o argumento de que a “pedra” a que Jesus se refere não é Pedro, mas, antes, a confissão deste de que Jesus é o Cristo. Não há nada inerentemente improvável nessa segunda proposta e pode-se montar um bom caso para essa interpretação. Todavia, a leitura mais natural do texto é entender que o jogo de palavras aponta para Pedro como a pedra. Mas em que sentido ele é a fundação sobre a qual a Igreja é edificada? A resposta a essa pergunta exige o exame do versículo seguinte, a declaração adicional de Jesus a respeito de Pedro: “E eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (16.19). A segunda parte dessa declaração (o ligar e o desligar) aparece, de novo, em 18.18, em relação aos discípulos em geral. Isso pode indicar que, aqui, Pedro funciona como o porta-voz ou representante dos discípulos. Se esse for o caso, ele não seria o único beneficiário dessa bênção, mas compartilharia o papel com os outros discípulos. Todavia, as chaves dos céus são dadas a Pedro. Qual é a relevância das chaves? Elas abrem e fecham portas (cf. Lc 11.52). Mateus fornece pouca indicação de como Pedro deve exercer essa autoridade.

O livro de Atos, que dá atenção ao desenvolvimento da Igreja Primitiva, registra o papel de Pedro de proclamar o evangelho tanto para judeus como para gentios. Sob essa luz, torna-se claro o papel dado a Pedro por Jesus. No dia de Pentecostes, Pedro pregou o evangelho para os judeus, e três mil creram (At 2). No nascimento da Igreja, Pedro atuou como o primeiro “porteiro”. Quando ele proclamou o evangelho que “em nome de Jesus Cristo [vocês podem encontrar] perdão dos pecados” (2.38), muitos creram e foram batizados. Por meio do ministério de Pedro, abriu-se a porta para muitos judeus que, pela fé em Cristo, foram acrescentados à Igreja. Pedro também foi o primeiro porteiro para os gentios (At 10). Pedro, convidado por Cornélio a ir a sua casa e preparado por Deus para fazer isso, foi. Lá, Pedro prega o evangelho, e muitos creem e são trazidos para o Reino dos céus. Em ambos os casos, foi Pedro quem iniciou essa nova fase de proclamação do evangelho e abriu a porta para judeus e gentios.

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Nesse âmbito, Pedro atuou como a pedra sobre a qual a Igreja foi edifica da. Ele proclamou o evangelho, com a autoridade inerente à mensagem dada a ele, e o perdão dos pecados para todos que crerem — primeiro para os judeus, mas também para os gentios. Nesse sentido, os pecados que ele proclamou desligados pela fé em Cristo foram desligados. Para aqueles que se recusaram a crer, os pecados que os prendiam permaneceram (cf. At 2.40). Dessa forma, Pedro era o porta-voz de Deus para judeus e gentios, papel para o qual foi designado por Jesus mesmo. Pedro foi o único a desempenhar esse papel? Sim, no sentido de que ele foi o primeiro, mas outros também proclamaram o evangelho. Paulo, por exemplo, também pregou o evangelho. Ele também abriu a porta da fé para judeus e gentios (por exemplo, At 14.1). Assim, a fundação da Igreja não foi lançada apenas por Pedro. Nesse sentido, as palavras de Paulo para os efésios, em que ele descreve a Igreja como edificada “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Ef 2.20), são relevantes. Pedro, de fato, foi o primeiro orador da Igreja a pregar para judeus e gentios, mas não foi o último. Nem sua autoridade era única. Outros podiam proclamar com autoridade que aqueles que criam no evangelho podiam ter certeza de que seus pecados eram perdoados e afirmar com igual certeza que os que rejeitavam a mensagem do evangelho faziam isso para seu próprio risco e permaneceriam presos a seu pecado (cf. At 13.38-41). Todavia, nada pode mudar o fato de que Pedro foi o primeiro porteiro do Reino para judeus e gentios.

É esse papel que Mateus descreve nessas palavras de Jesus sobre Pedro, e este se tornou o pioneiro para muitos que seguiram seu exemplo. Nossa pergunta anterior permanece. Até que extensão os discípulos retêm a autoridade concedida a eles por Jesus na primeira jornada missionária deles e até que ponto essa autoridade é transferível para os discípulos subsequentes? A resposta é um pouco mais complexa do que se pode imaginar à primeira vista. Como mencionamos antes na discussão do capítulo 10 em relação à mensagem do evangelho a respeito de missões, Mateus (de forma distinta de Marcos e Lucas) não fornece o relato do retorno dos discípulos dessa primeira jornada através de Israel, nem faz nenhum registro do que eles conseguiram realizar nela. Não há, por exemplo, nenhum relato de alguém ser ressuscitado. Se o Evangelho de Mateus for tudo a que o leitor tiver acesso, a pergunta sobre a extensão da autoridade dos discípulos permanece sem resposta.

Contudo, para os leitores que também têm acesso a Atos, a pergunta a respeito da autoridade se esclarece: os discípulos retêm a autoridade concedida a eles por Jesus, até mesmo para ressuscitar pessoas. Ou, pelo menos, Pedro a manteve, como Dorcas pode atestar (At 9.36-42). Paulo também tem essa autoridade, como Eutico também pode atestar (At 20.7-11). Entretanto, Paulo, por falta de uma melhor descrição, é representante de uma segunda geração de discípulos? Aparentemente não, pelo menos, não pela forma como ele via sua conversão e chamado para o ministério. Do ponto de vista de Paulo, o próprio Jesus o fez discípulo. Nenhum homem o instruiu (G1 1.11-24). De qualquer modo, o resultado dessa discussão não exige que se mude a noção inicial de que Mateus entende que a essência das instruções e comandos de Jesus são aplicáveis à comunidade cristã.

Em certos aspectos, os primeiros discípulos eram distintivos, e mesmo entre eles, Pedro realizou uma tarefa especial. Mas o que Jesus disse para eles também tem aplicação para os discípulos posteriores que devem “guardar todas as coisas” que Ele nos tem ordenado (28.20). Na verdade, essa obediência é o sentido básico do termo mencionado no início desta seção, a palavra “justiça”. No Sermão do Monte, essa palavra é usada em relação ao comportamento dos discípulos (5.6,10,20; 6.1,33), mas também com referência a Jesus (3.15) e a João Batista (21.32).53 Ela descreve o modo de viver de acordo com a vontade de Deus. Como tal, Jesus disse ao relutante João que o batismo era apropriado a Ele também como expressão de sua obediência à vontade de Deus (3.15). O primeiro uso da palavra “justiça” com referência aos discípulos também é um lembrete de que embora a justiça, conforme seu uso no evangelho, descreva o comportamento, ela, não obstante, é uma expressão da capacitação graciosa de Deus (5.6). Um discípulo é uma pessoa que tem “fome e sede”, que sinceramente deseja levar uma vida justa, mas aquEle que satisfaz esse anseio e que torna essa justiça uma realidade é Deus.54 Por isso, também é importante ter em mente o que antecede o pronome na conhecida afirmação de 6.33: “[...] buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça”.

Os discípulos devem buscar o avanço do Reino “dEle”, o governo e o reinado de Deus. E a “sua” justiça é o modo de viver em concordância com a vontade dEle, justiça que Jesus apresentou aos discípulos como o objetivo apropriado para a vida deles. Portanto, os discípulos devem viver de uma forma que os outros vejam suas boas obras (5.16) a fim de que o Pai celestial, e não eles, seja glorificado (cf. 6.9; 15.31). Mateus, como se quisesse enfatizar esse ponto, acrescenta, poucos versículos adiante, o que parece ser uma afirmação contraditória: “Tenham o cuidado de não praticar suas ‘obras de justiça’ diante dos outros para serem vistos por eles” (6.1; NVI). Para Deus também é importante, além da forma de viver da pessoa, a motivação desta. Por que um discípulo faz o que faz? Para melhoria, ganho ou glória pessoal? E fácil esquecer que na análise final não são relevantes a aprovação e a admiração dos outros, mas a aprovação e o louvor de Deus (cf. Jo 12.43; Rm 2.28,29).

E essa sinceridade de propósito que a passagem de Mateus 6.33 defende diante dos discípulos. Essa ênfase na atitude ou motivo, o espírito com que a obediência é exercida, também é um lembrete de que o Evangelho de Mateus, não obstante dedicar muita atenção às obras e ao comportamento, também reconhece que a justiça que suplanta a dos fariseus (5.20) afeta toda a pessoa, transformando não só o comportamento exterior, mas também a disposição de coração (5.8). A referência de Jesus aos membros da comunidade como os “que creem em mim” (18.6) mostra que Mateus não perde de vista a fé como a característica interior essencial do verdadeiro discípulo. Acreditar em Jesus é aceitar o fato de que Ele fala e age com a autoridade de Deus (8.8-10). Os líderes religiosos, em suas declarações para Jesus na cruz, falam a verdade sobre Jesus, enquanto, ao mesmo tempo, revelam o próprio fracasso em crer: “Salvou os outros e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça, agora, da cruz, e creremos nele” (27.42). Mas como Ele veio para “dar a sua vida em resgate de muitos” (20.28), não podia descer da cruz. Apenas poucas horas antes da crucificação, Ele explicara o sentido de sua morte para os discípulos com estas palavras: “Porque isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados” (26.28). Os líderes religiosos ao fracassar em crer nEle, fracassam em obter perdão.

Assim, a fé é aquela disposição de coração invisível, cujo corolário visível, ou a manifestação exterior, é a vida justa. Encontramos uma boa ilustração dessa interação entre coração e vida na forma como o Evangelho de Mateus, repetidas vezes, chama a atenção para a importância de respeitar os outros, de ter misericórdia e compaixão, de perdoar e de restaurar como marcas distintivas de alguém que faz a vontade de Deus. Nas Bem-aventuranças, que fornecem discernimento das características do discípulo, Jesus refere-se a abençoar os misericordiosos (5.7) e os pacificadores (v. 9). Ter raiva de um irmão eqüivale a matar, e promover a reconciliação é uma questão da mais alta prioridade para o discípulo (w. 21-26). Por sua vez, a vingança ou retaliação do mesmo tipo e grau não deve caracterizar o comportamento dos discípulos (w. 38-42; cf. 26.50-52). Na verdade, deve-se amar o inimigo e orar por ele (5.43,44). Em nenhuma passagem a ênfase no perdão e na reconciliação é mais pronunciada que em Mateus 18, o chamado discurso eclesiológico, que trata de problemas da vida cotidiana da comunidade dos discípulos. Jesus enfatiza a preocupação com o bem-estar do menor membro da comunidade ao se identificar com uma criança (v. 5). Os que por diversos motivos atraem naturalmente o desprezo devem ser objeto de preocupação solícita (v. 10). Se alguém se desgarrar da comunhão da comunidade, não deve ser ignorado nem repudiado, mas buscado com diligência a fim de ser restaurado (vv. 12-14). Se um irmão pecar, deve-se tentar a reconciliação (v. 15). Mesmo que ele tenha de ser disciplinado pela igreja como um todo e por um tempo lhe seja negado, na comunidade, o reconhecimento como irmão, ele ainda tem de ser amado, e deve-se orar por ele e buscar seu arrependimento (afinal, alguns publicanos e gentios tornaram-se pilares da Igreja Primitiva).

O texto dos versículos 18-20 também se aplica à prática da reconciliação. A Igreja toda deve demonstrar de forma visível a preocupação de Deus para com a saúde e a vitalidade espirituais de seus membros ao confrontar o pecado e ao incitar os desviados a buscar o arrependimento e a restauração. Quando essa confrontação e disciplina levam ao arrependimento, a Igreja toda pode declarar com confiança que o indivíduo, de acordo com a vontade de Deus, foi “libertado” e perdoado desse pecado e oferecer a restauração à comunhão como evidência desse fato. Por sua vez, quando a atitude do impenitente persiste, a Igreja pode declarar com igual certeza que essa pessoa colherá as consequências desse pecado, ficará “preso” pelas próprias cadeias de seu feito até que procure a libertação e o perdão disponibilizados por Deus. Nesse âmbito, a Igreja opera em nome de Deus, pois ela é sua representante, da mesma forma que Pedro atuou como porta-voz de Deus em um âmbito distinto, embora relacionado, nos primeiros dias da missão da Igreja. Assim, da mesma forma que se deve orar em favor das pessoas de fora da Igreja que se opõem a ela e a oprimem (5.44), também se tem de oferecer oração pelos membros da Igreja (18.19,20) que, por persistirem no pecado, prejudicam não apenas a si mesmos, mas também à comunhão da qual fazem parte (cf. 1 Co 5.6-13). Por esses pecadores também, a Igreja toda deve orar confiante de que o irmão que está em erro, pela misericórdia de Deus, será restaurado e receberá o perdão de que precisa. Nessas considerações a respeito do bem-estar dos indivíduos e de toda a comunidade, a igreja recebe a certeza da preocupação constante e da presença espiritual de Jesus (veja também a garantia que Paulo oferece a esse respeito; 1 Co 5.4).

Na verdade, o discurso, a fim de aplacar qualquer questão sobre o perdão como uma característica peculiar da Igreja, o discurso se conclui com a conversa de Jesus com Pedro a respeito da extensão do perdão (18.21,22) e com o deprimente relato, na parábola do credor incompassivo, das conseqüências sofridas pelo espírito que não demonstra misericórdia (vv. 23-35). Há uma tendência que permeia muitos desses textos sobre a necessidade de perdão que pode ser um pouco desalentadora para os leitores, a saber, as referências recorrentes às consequências de se ter um espírito rancoroso ou inclemente. Na parábola do credor incompassivo, por exemplo, a cena final é aquela em que o credor incompassivo é entregue aos atormentadores até que possa pagar sua dívida impossível (v. 34; cf. v. 24), com Jesus entoando estas palavras de conclusão: “Assim vos fará também meu Pai celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas” (v. 35). A mesma perspectiva fundamental ocorre na Bem-aventurança sobre a misericórdia que inicia o Sermão do Monte: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (5.7). A implicação é que Deus não demonstrará misericórdia pelo inclemente (cf. Tg 2.13). Esse tom de julga mento também está presente na exortação por reconciliação (Mt 5.21-26). Ele está subentendido na petição da oração modelo (“Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”; 6.12) e está explícito nos dois versículos seguintes à oração: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (vv. 14,15).

Mateus está ensinando que alcançamos a salvação por meio das obras? Não, ele sabe que a salvação vem da graça de Deus. Os discípulos, surpresos com a afirmação de Jesus de que “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus” (19.24), perguntam: “Quem poderá, pois, salvar-se?” (v. 25). Jesus simplesmente responde: “Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível” (v. 26). Não se obtém a salvação, mas ela também não está desconectada das obras. Na verdade, é provável que Mateus esteja fazendo diversas coisas com essas declarações sobre o perdão. Primeiro, ele chama a atenção para a importância do perdão ao deixar claro que não perdoar pode ter consequências terríveis. Segundo, ele acaba com qualquer engano a respeito do que representa ser discípulo. Querer ser discípulo e ser realmente um discípulo podem ser duas coisas distintas. De acordo com Jesus, o discípulo tem de “renunci[ar] a si mesmo, tom[ar] sobre si a sua cruz” e segui-lo (16.24). Mateus, nessas declarações sobre perdão, fornece algumas orientações a respeito do que seguir a Jesus acarreta. Terceiro, está claro que Mateus percebe o perigo da confissão falsa e do discipulado falso.

Alguns que chamam Jesus de “Senhor”, mas, mesmo assim, serão banidos da presença dEle no dia do julgamento (7.21-23). Judas é um lembrete contundente de que até mesmo um dos discípulos originais (10.1), um apóstolo (v. 2) provou ser falso (v. 4). Portanto, o discipulado não é apenas uma questão de confissão, nem, tampouco, é constatado por meio de obras espetaculares de poder espiritual (7.22). Ele é uma questão da fé permanente (10.22; 24.10-13), com frequência, manifestada em simples obras de misericórdia (10.40-42; 25.35-40). O Deus que exige que os discípulos perdoem não estende perdão também eles? Claro que Ele estende. Pedro é um exemplo clássico. Jesus advertiu firmemente seus discípulos de que “qualquer que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus. Mas qualquer que me negar diante dos homens, eu o negarei também diante de meu Pai, que está nos céus” (10.32,33). Mateus não usa com frequência essa palavra para “negar” (arneomat). Essa forma particular da palavra ocorre apenas quatro vezes: duas em 10.33 e, de pois, mais duas vezes para descrever a negação de Pedro quando Jesus estava no pátio da casa do sumo sacerdote (26.70,72).38 Esse ato terrível parece ilustrar a terrível extensão daquilo sobre o que Jesus advertira antes.

Então, Pedro é um exemplo do discípulo apóstata, daquele que será nega do por Jesus diante de Deus? Embora essa questão tenha sido debatida, essa interpretação é improvável. Mesmo se os leitores tiverem apenas o Evangelho de Mateus como fonte de informação sobre a Igreja Primitiva (eventualidade, em si mesma, improvável), eles logo ficariam sabendo sobre a morte de Judas (27.3-5) e, depois, observariam que Mateus menciona apenas onze discípulos reunidos diante de Jesus no monte da Galileia (28.16). A pessoa pode concluir que Pedro ainda consta entre os seguidores de Jesus. Assim, um discípulo pode falhar da forma mais abjeta após uma advertência terrível e explícita e, ainda assim, obter perdão. Pedro obteve. Mas Judas é um lembrete de quão próximo alguém pode estar do Reino sem entrar, de verdade, nele. E de acordo com a advertência de Jesus, haverá “muitos” como ele (7.22). Portanto, as palavras de advertência de Jesus não são nem teóricas nem retóricas. Elas têm o propósito de esclarecer a vontade de Deus para os discípulos e de enfatizar a importância de fazer essa vontade como algo essencial, não opcional.

Como vimos em uma discussão anterior, Jesus não ignora a questão da garantia. Mas Ele tem pouco tempo para a complacência e a indiferença em relação a fazer a vontade de Deus na comunidade de discípulos. O padrão mantido diante dos discípulos sempre é a vida e o ensinamento de Jesus: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus” (5.48). A obediência de todo o coração é o ideal almejado. Contudo, os discípulos falham nisso. Até mesmo os primeiros discípulos tinham deslizes regulares na fé. A expressão: “[...] homens de pequena fé”, funciona quase como um apelido deles (6.30; 8.26; 14.31; 16.8). Mateus ilustra sua com preensão e reconhecimento desse fato na apresentação do ensinamento de Jesus referente ao divórcio e ao novo casamento (5.31,32; 19.3-11). Enquanto Marcos e Lucas escolhem afirmar apenas o ideal absoluto (o divórcio é proibido; Mc 10.11; Lc 16.18), Mateus também inclui uma palavra de reconhecimento de que talvez nem sempre a fé triunfe, de que a “dureza” de coração (cf. 19.8) que existia sob a antiga aliança não foi totalmente eliminada nessa era da Nova Aliança, “já e ainda não consumada”, e de que o casamento fracassa? O que fazer então? Esse é um assunto controverso, mas Mateus parece dizer que Jesus reconhece o direito de casar para alguns que se divorciaram.

Claro que Jesus não defende o divórcio, pois, em 19.6, Ele afirma o ideal: “[...] o que Deus ajuntou não separe o homem”. Em vista de tudo que Mateus apresenta em seu Evangelho em relação à importância do perdão, fica claro que o primeiro curso de ação para os discípulos sempre é o perdão e a reconciliação. Mas nem sempre esse objetivo é atingível. Às vezes, o parceiro “ofendido” não aspira ao perdão, nem a reconciliação sempre é aceita. No Evangelho de Mateus, a chamada “cláusula de exceção” diz respeito à questão de “infidelidade marital” como fundamento para o divórcio: “ [...] qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério” (19.9; cf. 5.32). A palavra porneia, traduzida por “prostituição”, é um termo genérico para imoralidade sexual. Inúmeras tentativas foram feitas para evitar a implicação dessa afirmação, mas permanece o fato de que a interpretação menos problemática é a que a reconhece pelo que ela é, uma exceção ao ideal.

Jesus afirma que há situações que envolvem infidelidade marital em que, por diversos motivos, ocorre o divórcio. Essa é uma alternativa lamentável e, sempre que possível, dever ser evitada com diligência. Todavia, quando, nessa situação, ocorre o divórcio, a exceção garante ao cônjuge ofendido o direito de se casar de novo. Assim, essa é uma ilustração de uma preocupação pastoral que apresenta aos leitores os mais altos padrões — o cumprimento da vontade de Deus — e, ao mesmo tempo, reconhece que homens e mulheres, ainda à espera da culminação de sua experiência de redenção, não levam, contudo, uma vida perfeita. E apenas uma ilustração de por que o perdão é essencial na comunidade cristã.