Estudo sobre Apocalipse 18:15-22

Estudo sobre Apocalipse 18:15-22


O bloco sobre os mercadores da terra (nota 862) chama atenção por seu comprimento. Enquanto os políticos ganham somente dois versículos (v. 9,10), os empresários estão em primeiro plano. É que de fato a Babilônia é uma verdadeira “Tiro” (excurso 15d), um centro comercial extraordinário.880 Os comerciantes choram e pranteiam por ela, porque já ninguém compra sua mercadoria. Com a Babilônia destruiu-se um mercado insaciável. Para os comerciantes, a riqueza de mercadorias não significa nada mais que prejuízo, porque elas estão armazenadas e custam caro. A catástrofe da Babilônia é a catástrofe deles.
 
Antes de ouvirmos a canção de lamentação desses mercadores do além-mar (v. 16-17a), somos familiarizados com a oferta deles e, assim, também profundamente com o caráter da cidade. A lista contém trinta artigos.881 Na contagem, o número quatro desempenha um papel importante.

Inicialmente quatro artigos de joias: mercadoria de ouro, de prata, de pedras preciosas, de pérolas. Como em Ap 17.4, as pérolas constam no final da listagem, por serem a maior preciosidade, muitas vezes avaliadas acima do ouro. No próprio Ap essas joias são consideradas a essência da beleza, uma vez que, com exceção da prata, retornam na visão da nova Jerusalém (Ap 21.11,15,19,21). Não é com repulsa que esses termos são usados (excurso 15e). O mesmo vale também para outros detalhes da lista de mercadorias.
 
Seguem-se quatro tecidos de luxo. A batista (“linho finíssimo” [ra]) é uma cambraia fina e delicada, que orna os santos em Ap 19.8, a noiva do Cordeiro, e em Ap 19.14, os exércitos celestiais. Tecidos de púrpura são tingidos com o suco da lesma púrpura,882 que não desbota ao lavar nem com a luz. Com sua preferência por cores vivas, os orientais amavam esse brilho intenso, que no começo era claro, depois mudava para um violeta opaco, e finalmente ardia na cor vermelho escura. Antes de o bicho-da-seda ser trazido para a Europa, no século vi, a seda, originária da China, era vergonhosamente cara, por causa dos numerosos intermediários. Ela era literalmente pesada a ouro. O escarlate, tingido com o suco de um inseto, superava a púrpura em força luminosa, porém não era tão duradouro.
 
Entre os bens importados existem também artigos para a ornamentação interna das casas mais luxuosas,883 entre os quais constava, para trabalhos de incrustações em móveis de luxo e para artesanato, toda espécie de madeira odorífera (“madeira de tuia”), ou seja, todo um sortimento dessas madeiras da árvore-da-vida africana. Outro importante artigo de luxo na Antiguidade eram as presas de elefantes da Índia, das quais se podia confeccionar todo gênero de objeto de marfim, p. ex., tronos (1Rs 10.18) e palácios inteiros (Sl 45.8; 1Rs 22.39). Os arqueólogos encontraram entalhes de marfim incrustados com ouro e pedras azuis. Finalmente a lista também contém móveis de luxo dos mais diversos, toda qualidade de móvel de madeira preciosíssima. O superlativo denota que nessa área o comerciante dificilmente cometeria exageros. Determinados círculos pensavam que não podiam rebaixar-se a usar móveis que qualquer outra pessoa também poderia comprar. Por isso era preciso trazer novidades, que rapidamente entravam na moda e eram comercializadas em grandes quantidades.
Naturalmente não podiam faltar na Babilônia, por causa da intensa atividade de construção, os transportes de matéria-prima de bronze, de ferro e de mármore.
 
Agora a lista passa para quatro884 artigos cosméticos. A canela, extraída da casca da canela chinesa, parece não ter sido utilizada na cozinha, mas servia como ingrediente para perfumes destinados a refrescar camas e roupas. O bálsamo da amoma, planta aromática indiana, tornava o cabelo cheiroso e solto. Sob o material de incenso aparecem o unguento da mirra e a resina aromática [incenso], conhecidas substâncias odoríficas. O primeiro, extraído da resina de um arbusto do sul da Arábia, tinha uso múltiplo (cf. Ct 1.13), como líquido ou também como talco. O incenso (na verdade “o branco”, “reluzente”), comercializado na forma de pequenos pedaços de resina seca, era queimado nas chamas da lareira em rodas de amigos. O alto teor de óleos de cheiro conferia-lhe um extraordinário efeito odorífico.
 
Somente agora são arrolados quatro artigos de cozinha. Quanto a vinho e azeite, cf. o comentário a Ap 6.6. A flor de farinha e o trigo provavelmente indicam um leque completo de tipos de farinha.
 
No fim aparecem quatro artigos predominantemente de mercadoria viva. Para o mercado de carnes é necessário um abastecimento bem organizado de gado e ovelhas. Cavalos e carros de luxo evidentemente perfazem uma unidade, de sorte que não se deve imaginar cavalos para fins militares ou agrícolas. Pelo contrário, os cavalos puxavam as luxuosas carruagens prateadas885 pelas multidões boquiabertas.

 
O encerramento da lista, como um soar do gongo, é feito pela última “mercadoria viva”: e transportes de escravos (“corpos – a saber, seres humanos vivos” [tradução do autor]) (“almas humanas”)! Cavalos e carros de luxo já trouxeram à mente o cidadão distinto que desfila numa esplendorosa carruagem. Naturalmente também fazem parte desse quadro os escravos que correm à frente para abrir caminho para a carruagem nas ruas superlotadas. No grego clássico “corpo” podia designar uma pessoa, mas depois adquiriu conotação pejorativa e se tornou uma expressão abreviada para “pessoa escrava”.886

O adendo887 e até almas humanas baseia-se na lista de mercadorias em Ez 27.13, onde a expressão igualmente aponta para escravos.888 Que sentido possui a designação dupla? Primeiramente João parece arrolar os “corpos” friamente entre os artigos de comércio, como um mercador de escravos faria, sem qualquer emoção. Em seguida, porém – num contraste impactante – irrompe sua revolta sagrada. Recorrendo a uma palavra da Escritura Sagrada, ele exclama em tom acusador: sim, pessoas vivas! Em decorrência, a lista de mercadorias, tão objetiva, termina com um flamejante ponto de exclamação, que não deve mais largar o leitor e lhe permite constatar de súbito a perversão da Babilônia.
 
Navios escravistas adentram o porto, entulhados de corpos humanos, cheios de gemidos, fedor, brigas, execrações e pestes. Para os empresários as cargas limpas de madeira ou tecidos obviamente eram muito mais bem-vindas. Contudo era inconcebível que o sistema social de cidades antigas funcionasse um único dia sem escravos. Por isso esses transportes eram necessários. O ser humano superior, com sua carruagem de prata, e o ser inferior, o escravo, formavam um conjunto.
 
Não ter escravo889 era considerado tão ruim como não possuir roupa ou abrigo. Cidadãos pobres tinham somente três a quatro escravos. Dez perfazia um número apenas suficiente. Somente 200 escravos era considerado um número grande para uma casa. Algumas famílias possuíam em suas propriedades rurais e em instalações semelhantes a fábricas até dez mil escravos. Segundo uma estimativa, no primeiro século havia 23 escravos para cada homem livre. Em todos os casos, entre as dezenas de milhares de moradores de uma cidade, como, p. ex., Corinto, encontravam-se apenas poucos milhares de cidadãos livres.
 
Nem mesmo Platão, ele próprio um escravo remido, e Aristóteles, os quais alçaram a vida intelectual grega ao florescimento máximo e consolidaram o pensamento ocidental sobre a liberdade e a democracia, não eram capazes de se imaginar uma vida sem escravos.890 Obviamente uma cultura dessas tinha de ser paga com uma ruptura abissal no tecido social. Corria um ditado: “Quantos escravos, tantos inimigos!”, e a minoria livre temia as massas incessantemente.
 
Apesar de ser recitada, pois, sem comentários, a lista de mercadorias proclama publicamente os males sociais da Babilônia.891 Indiretamente ela caracteriza todas as pessoas de paladar refinado, mimadas, ávidas de prazer, mas também cegas e perdidas. No final a acusação é salientada de forma chocante. Essa cultura é uma cultura comerciante, na medida em que nela tudo se torna alvo de negócio. Tudo é manipulado, o intelectual e o ideal, o religioso, o psíquico e o íntimo. Dessa maneira, no final, tudo acaba na busca dos interesses de poucos ou de um grupo.
 
Essa cultura está degenerada, porque não serve ao ser humano. Já por isso ela é contrária a Deus e finalmente torna-se também anticristã (cf. o comentário ao v. 24). Em seu nome Jesus foi vendido por trinta moedas de prata.
 
Nos aspectos de estilo e conteúdo, o versículo subsequente caberia bem depois do v. 24. O fruto sazonado, que a tua alma tanto apeteceu, se apartou de ti, e para ti se extinguiu tudo o que é delicado e esplêndido (“viçoso e vistoso”). O termo traduzido por “fruto sazonado” (em grego, opõra) refere-se na verdade à época da colheita de frutos na Palestina, i. é, o começo de julho. A LXX, porém, utiliza a palavra para o produto da safra.892 A tradução das duas expressões seguintes tenta imitar a aliteração dos vocábulos gregos (lípera e lámpra): viçoso e vistoso.893 A primeira palavra é derivada do termo grego para óleo e designa o aspecto nédio, cevado e, de modo geral, rechonchudo. A segunda expressão refere-se às coisas brilhantes, que se ostentam. De tudo afirma-se no estilo do juízo: e nunca jamais serão achados (cf. o comentário a Ap 18.21-24; assim como a Ap 16.20).
 
O v. 15 finalmente dá continuação ao v. 11 e introduz o lamento dos comerciantes. A lista de mercadorias interrompera o fluxo do pensamento, para transmitir uma idéia de sua riqueza perdida e, assim, tornar sua queixa compreensível.





Notas:
862 Em grego, émporos é o grande comerciante, importador do além-mar, em contraposição ao kapelós, o pequeno comerciante, que vende na praça as mercadorias que ele retira do atacadista.

880 Por causa da repetição do termo “mercadoria” (gómos, carga, a rigor, carga do navio, cf. At 21.3) deve-se imaginar uma cidade portuária.

881 Cf. listas de mercadorias em Is 3.18-24; Ez 27.12-24 e Tg 5.1-6.

882 Para produzir algumas gramas de corante puro, dez mil lesmas precisavam ser mortas. É por isso que o preço da púrpura tornava-se imensurável.

883 “Naquela época investia-se mais cuidado na ornamentação interna das casas do que hoje. Há muitos soalhos de mosaico com ilustrações coloridas, em geral de cenas mitológicas, preservados, e também recintos mais simples tinham paredes com pinturas, que ostentavam grande exuberância nas casas ricas. As pomposas instalações dos palácios, formando no total um conjunto do tamanho de uma pequena cidade, a “casa dourada de Nero”, por cujas salas cobertas por altíssimas abóbadas o visitante ainda hoje anda pasmo e errático, cobriam-se de um luxo extraordinário. Salas e quartos eram revestidos de ouro, incrustados de pedras preciosas e madrepérolas. O forro de marfim dos refeitórios podia ser deslocado, a fim de que flores ou água perfumada fossem lançados sobre os convivas. O refeitório principal era uma sala com cúpula que girava dia e noite em torno do próprio eixo. Semelhante era também o palácio de Domiciano” (Foerster, vol. ii, pág. 94-95).

884 Talvez não se deva contar o “incenso”, por ser termo coletivo para os materiais seguintes.

885 Aqui não ocorre o termo usual para carro (hárma, cf. Ap 9.9), mas o estrangeirismo celta rhedoon, carroça de viagem de quatro rodas, que chegou aos gregos através da Itália.

886 Cf. Lohse, Ki-ThW, vol. vi, p. 771, nota 11, e Schweizer, Ki-ThW, vol. vii, pág. 1026-1040. – Exemplos na lxx: p. ex., Gn 34.29; Gn 36.6.

887 A constatação de que “almas humanas” constitui um acréscimo intencional poderia basear-se também na mudança de declinação do texto grego (“corpos” está no genitivo, “almas” no acusativo).

888 Conforme Ez 27.13 não se tem em mente aqui, com o termo “alma”, uma substância parcial do ser humano, mas sim a pessoa toda como ser vivo. É também por isso que não cabe aqui a idéia de que Babilônia teria “vendido” a “vida interior” das pessoas à idolatria. Trata-se muito concretamente do comércio de escravos.

889 A exposição a seguir baseia-se predominantemente em Foerster, vol. ii, p. 75.

890 Quando os filósofos gregos procuravam um exemplo de guerra justa, citavam as guerras empreendidas com o único fim de obter prisioneiros de guerra e suprir a necessidade de escravos. Coletores de impostos romanos, que sempre tinham de descobrir novas fontes de receita, imiscuíam-se no lucrativo comércio de escravos, equipando navios de caça humana, atacando pequenas cidades e ilhas, e levando os prisioneiros como escravos para os mercados.

891 Pelo que se pode depreender, a lista na verdade não combina com Roma, mas antes com uma cidade portuária da Ásia Menor (como demonstram Lilje e, de forma análoga, Lohmeyer).

892 Jr 40.10,12; 48.32 para figos e uvas.

893 Lohmaeyer: “atraente e reluzente”.