Acaz — Enciclopédia da Bíblia Online
ACAZ
(Hb.: אָחָז, [ʾĀḥāz], “deteve”; gr.: Ἄχαζ, Ἀχάζ Akhaz; Lat.: Achaz). “Acaz” é forma abreviada de “Jeoacaz”, com o sentido de “Yahweh segurou/apanhou” ou “Yahweh tomou posse”, hipócristico que reduz nomes como Jeoacaz e Acazias. Em fontes assírias, o rei de Judá aparece como “Yauhazi”, i.e., Jeoacaz, testemunhando a equivalência onomástica entre “Acaz” e “Jeoacaz” (KUAN, Eerdmans Dictionary of the Bible, 2000; PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 1969, pp. 282–284). O valor teológico do nome remete à ideia de proximidade e sustento divinos, como em “tu me seguras pela mão direita” (Salmos 73:23), referência invocada como pano de fundo do teônimo (CULVER, “Acaz”. Enciclopédia da Bíblia, vol. 1, 2008, p. 77).
I. Ascensão e duração do reinado
Filho de Jotão, Acaz começou a reinar jovem e governou dezesseis anos. As fontes oscilam entre “vinte” e “vinte e cinco” anos para sua idade ao ascender, variação atestada em versões antigas e frequentemente discutida por causa da idade de Ezequias (25 anos) ao sucedê-lo, o que, com o número menor, implicaria paternidade muito precoce. Duas soluções aparecem nas fontes: casamento e procriação precoces em contexto oriental e/ou corre-agência com Jotão, ampliando o lapso cronológico efetivo do governo. Quanto às datas absolutas, as cronologias situam seu governo em meados do século VIII a.C., com propostas que variam entre c. 742–727 a.C. e c. 735–716/715 a.C., a depender de como se contam corre-agências, deposições políticas e a diferença entre calendários de Judá (Tisri) e Israel (Nisã) (VIBERT, The New International Encyclopedia of Bible Characters, 1995; KUAN, 2000; “Ahaz” em ISBE). Análises que explicitam o descompasso calendárico e a dinâmica faccional sugerem que os “dezesseis anos” sejam contados a partir do fim do exercício de Jotão (732/731), e não desde uma eventual deposição anterior, hipótese que explica “quatro anos extras” atribuídos a Jotão.
II. Retrato deuteronomista e cronista
As narrativas de 2 Reis 16 e 2 Crônicas 28 convergem em julgar negativamente o reinado, embora com ênfases distintas. Em Rs, a fórmula avaliativa padrão — “não fez o que era reto aos olhos de Yahweh” — é colocada lado a lado com uma comparação direta com os reis de Israel do Norte (2 Reis 16:2–3), sublinhando apostasia, culto nos altos e submissão diplomática à Assíria (KUAN, 2000). EmCr, esse juízo é intensificado e re-estruturado: as derrotas e deportações são narradas com maior detalhe, o apelo a Tiglate-Pileser III é enquadrado em ofensivas de edomitas e filisteus, e a idolatria é descrita como agravamento deliberado “no tempo da angústia” (2 Crônicas 28:22–23), compondo a imagem do “pior” dos reis de Judá (KUAN, 2000).
III. Guerra Siro-Efraimita e os oráculos a Acaz
Logo no início do governo, Acaz enfrenta a coalizão de Rezim, de Damasco, e Peca, de Israel, que intentava depô-lo e entronizar “o filho de Tabel”, provavelmente arameu, a fim de forçar Judá a integrar o bloco antiassírio (Isaías 7:6). Isaías exorta à confiança e oferece um “sinal” a pedido do próprio Yahweh; Acaz recusa com uma piedade de fachada, enquanto, ao que tudo indica, já cursava a via diplomática com Assíria (Isaías 7:10–12). Nesse contexto, Isaías proclama o nascimento-sinal de “Emanuel”, como garantia de preservação da linhagem davídica e de frustração do projeto siro-efraimita (Isaías 7:13–17). O “Livro de Emanuel” (Isaías 7–12) se torna, assim, lente profética para avaliar o reinado e suas consequências (VIBERT, 1995). A fórmula lapidar “se não credes, não permanecereis” (Isaías 7:9b) é aplicada ao momento em que a confiança régia se desloca da promessa para a geopolítica (VIBERT, 1995).
IV. Apelo a Tiglate-Pileser III e consequências imperiais
Acaz envia tributo e se autodeclara “teu servo” ao monarca assírio, pedindo socorro contra os seus vizinhos. Tiglate-Pileser III devasta Damasco, executa Rezim e subtrai de Israel regiões estratégicas — do norte de Naftali a Gileade e partes da Galileia — deportando populações (2 Reis 16:7–9; 15:29). O feito é igualmente registrado em inscrição real (PRITCHARD, ibid., 1969, p. 283; GRABBE, Ancient Israel: What Do We Know and How Do We Know It? 2007, p. 134). Aliviado do cerco imediato, Judá passa, porém, ao estatuto de vassalagem: tributo pesado, dependência militar e isolamento diplomático tornam-se o preço da “salvação” estratégica, avaliação que, nas fontes, se revela espiritualmente desastrosa (KUAN, 2000).
V. Derrotas, perdas territoriais e crise interna
Enquanto a Assíria liquida Damasco e reduz Israel, Judá sofre em várias frentes: Edomitas reocupam Elate (porto no golfo de Ácaba) e voltam a invadir o sul; filisteus tomam e ocupam cidades na Sefelá e no Neguebe; incursões do Norte resultam em mortandade expressiva e deportações—com posterior devolução de cativos por intervenção do profeta Odede e chefes efraimitas (2 Crônicas 28:5–15, 17–20; 2 Reis 16:6). O balanço crônico atribui tais desastres ao abandono do Deus dos pais e sublinha que Tiglate-Pileser “o afligiu e não o ajudou”, apesar das remessas do tesouro do templo, do palácio e das casas dos príncipes (2 Crônicas 28:20–21).
A própria lógica narrativa de 2 Crônicas 28 não descreve apenas um colapso geopolítico, mas constrói uma leitura causal na qual a fragmentação das fronteiras se torna sintoma de uma fratura cultual: as perdas territoriais e humanas aparecem como “efeitos” teológicos de um “abandono” anterior, e o texto explicita essa moldura ao qualificar o reinado em termos de infidelidade e provocação da ira divina (2 Crônicas 28:1–4; 2 Crônicas 28:22–23). Nesse enquadramento, “Edom”, “filisteus” e “o Norte” não são apenas adversários externos, mas sinais de um mundo que, para o cronista, já não está sendo governado pela estabilidade do pacto; a história torna-se um espelho moral em que a crise militar confirma a crise de adoração.
O episódio de Odede e dos chefes efraimitas introduz, dentro desse mesmo quadro, uma crise interna de consciência: o texto narra a violência do triunfo do Norte, mas interrompe a espiral da guerra com uma cena de confrontação profética que culmina na devolução de cativos (2 Crônicas 28:9–15). A forma como a narrativa insiste em mandar “de volta” irmãos capturados pode ser lida como tensão entre vitória militar e limites ético-covenantais: mesmo quando há superioridade bélica, a exploração do compatriota não pode ser naturalizada como “direito do vencedor”, em harmonia com a tradição legal que regula servidão e vulnerabilidade dentro de Israel (Deuteronômio 15:12–15; Levítico 25:39–46). Assim, a crise não é só de território: é também de identidade, porque a guerra expõe a tentação de transformar o irmão em mercadoria e a religião em álibi.
A frase sobre Tiglate-Pileser — “o pôs em aperto, em vez de fortalecê-lo” — funciona como fecho irônico: a tentativa de buscar amparo imperial aparece, no próprio texto, como agravamento do aperto (2 Crônicas 28:20–21). Quando se coteja essa avaliação com o relato político de 2 Reis 16, a narrativa bíblica permite enxergar, no mínimo, a ambivalência de “Elate/Elate”: a tradição registra a perda e a reocupação do porto em termos que variam entre versões, e isso já basta para mostrar que, literariamente, trata-se de um ponto sensível e estratégico na memória do reinado (2 Reis 16:6). No horizonte profético, a mesma Assíria que parece “solução” pode tornar-se “enchente” que invade e sufoca, imagem empregada para descrever a força assíria como águas que transbordam e alcançam Judá (Isaías 8:7–8), enquanto Isaías 7 enquadra a conjuntura como prova de confiança e não apenas de cálculo diplomático (Isaías 7:1–9). Tudo isso intensifica o sentido do parágrafo: a crise territorial é, no texto, uma pedagogia dura — não porque nega a realidade das potências, mas porque afirma que alianças e tributos não “curam” a ferida religiosa que o cronista identifica como raiz do desastre.
VI. Legislação cultual, inovações e o “altar de Damasco”
A dependência política se converte em imitação cultual. Em Damasco, ao prestar homenagem ao rei assírio, Acaz “toma gosto” por um altar local e ordena ao sacerdote Urias a construção de um exemplar ampliado no pátio do templo em Jerusalém. De volta, sacrifica no novo altar, reconfigura o espaço sagrado, desloca o altar de bronze e determina que o culto regular passe a ser feito no “altar grande”, reservando o altar tradicional “para consultar” (2 Reis 16:10–16). Em complemento, remove a “bacia de bronze” de sobre os bois, altera as bases e mexe em estruturas de acesso régio, “por causa do rei da Assíria” (2 Reis 16:17–18), operação lida nas fontes como submissão estética-política e como saque funcional dos bens sagrados.
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| Pintura de Rombout van Troyen, intitulada Rei Acaz sacrifica seu filho a Moloch de 1626. |
VII. Práticas religiosas e repressão do culto javista
Os relatos atribuem a Acaz práticas abomináveis: multiplicação de altares “em cada esquina de Jerusalém”, incenso nos altos “em cada cidade de Judá”, sacrifício de filhos “no fogo” no vale de Hinom, consulta a necromantes, culto aos astros e possível instalação de “cavalos do sol” (2 Reis 16; 2 Crônicas 28; cf. 2 Reis 23:11–12; Isaías 8:19).Cr acrescenta o fechamento das portas do templo e a suspensão de ritos, o que explica por que, no primeiro mês do governo de Ezequias, sacerdotes e levitas precisaram reabrir e purificar o santuário (2 Crônicas 29:3–17). A avaliação teológica das fontes é uníssona: dano profundo e extensivo ao culto de Yahweh, com efeitos sociais e institucionais de larga escala (KUAN, 2000).
VIII. O “relógio de sol de Acaz” e marcas materiais do reinado
As fontes mencionam um relógio de sol—provavelmente degraus ao redor de um gnômon—capaz de indicar o tempo pelo movimento da sombra, artefato associado posteriormente ao “sinal” dado a Ezequias (2 Reis 20:9–11; Isaías 38:8). Atribui-se sua adoção ao influxo assírio-babilônico, parte do pacote de importações culturais do período.
A menção aos “degraus” (ou “graus”) associados a Acaz surge, no próprio texto bíblico, como um ponto de contato entre espaço palaciano, medição do tempo e teologia do “sinal”: em 2 Reis 20:9–11 e Isaías 38:8 a sombra “desce” e depois “recua” sobre esses degraus, de modo que o artefato não aparece como curiosidade técnica neutra, mas como superfície narrativa onde a promessa divina se torna mensurável aos olhos. Nesse horizonte, a expressão hebraica frequentemente discutida para o dispositivo, maʿalôt (“degraus”, “graus”), já carrega a ambiguidade material que alimenta a história interpretativa: pode apontar para degraus arquitetônicos reais que funcionavam como marcador de sombra, ou para uma forma de mostrador escalonado (um “relógio” por sombra) instalado na área régia, com linguagem de “passos”/“degraus” traduzindo uma escala observável. (Balogh, C. (2022). Shadows on the Sundial of Ahaz and New Light on the Troubled History of Isaiah 38:8 and 2 Kings 20:11. Vetus Testamentum, 73(3), 327-359. https://doi.org/10.1163/15685330-bja10102)
Lida como marca material do reinado, essa peça se encaixa com naturalidade no pano de fundo de um Judá do século VIII a.C. submetido a pressões imperiais e, por isso, exposto a importações de formas, gostos e tecnologias de prestígio. O próprio retrato de Acaz em 2 Reis 16:10–16 é programático ao descrever a adoção de um modelo cultual estrangeiro visto em Damasco e transplantado para Jerusalém, um gesto que funciona como sintoma de alinhamento político e de “assimilação seletiva” de padrões externos. (Smelik, K. A. (1998). "The Representation of King Ahaz in 2 Kings 16 and 2 Chronicles 28". In Intertextuality in Ugarit and Israel. Leiden, The Netherlands: Brill. https://doi.org/10.1163/9789004493988_012) Nesse sentido, quando se sugere que a adoção (ou a nomeação) do dispositivo de sombra se relacione ao influxo assírio-babilônico, o argumento mais sólido não é a prova direta de origem — que permanece debatida —, mas a convergência plausível entre (i) a cultura cortesã de observação e ordenação do tempo e (ii) a dinâmica de “assirianização” que alcança práticas e símbolos do poder régio. (Afirmo esta ligação como inferência plausível, ancorada no padrão cultural do período, não como dado demonstrado em si.)
Hermeneuticamente, a força do episódio está em tomar uma tecnologia do cotidiano palaciano — precisamente o tipo de coisa que pretende domesticar o dia por medidas — e fazê-la confessar, pela inversão impossível da sombra, que o tempo não é senhor de si mesmo. O “sinal” não anula o mundo material; ele o reinscreve: a escada, o pátio, a luz e o gnomon (ou o degrau que recebe a sombra) tornam-se linguagem, como se a criação — regulada por ciclos e luminárias — pudesse, por um instante, ser “dobrada” para confirmar uma palavra. (Morrall, A. (2023). In Manipulating the Sun. Leiden, The Netherlands: Brill. https://doi.org/10.1163/9789004677654_006) Assim, o artefato associado a Acaz permanece, na memória do texto, como vestígio de reinado e como palco: um objeto de governo (medir, ordenar, administrar) reorientado pela narrativa para dizer que a história de Judá não é apenas governada por impérios e seus pacotes culturais, mas pelo Deus que, quando quer, faz o próprio dia testemunhar.
IX. Perspectivas de Reis, Crônicas e Isaías
A moldura deuteronomista pinta Acaz como paradigma de infidelidade régia, associando sua política externa e seu programa cultual a categorias de “não fazer o que é reto aos olhos de Yahweh” e de “andar nos caminhos dos reis de Israel”, enquanto a narrativa cronista intensifica a causalidade teológica: as derrotas, deportações e perdas territoriais são lidas como resposta direta ao agravamento idolátrico “no tempo da angústia”, quando, em vez de se converter, “tornou-se ainda mais infiel” e chegou a sacrificar “aos deuses de Damasco” (2 Crônicas 28:22–23). Ambas convergem, porém, na centralidade do apelo à Assíria e na crítica à sua importação cultual, que, no conjunto, fazem de seu reinado um desastre espiritual e institucional para Judá (KUAN, 2000; VIBERT, 1995).
A. Isaías, “Emanuel” e a tábua de “Maher-Salal-Has-Baz”
O encontro de Isaías com Acaz “no fim do aqueduto do açude superior” e o convite divino a pedir um “sinal” são dramatizados como contraponto entre fé e diplomacia. A recusa do rei, sob verniz de piedade, é lida pelos profetas como recusa à própria palavra de Yahweh; daí o oráculo do menino “Emanuel” como garantia de preservação da dinastia de Davi, e a inscrição pública em tábua de “Maher-Salal-Has-Baz” (“rápido despojo, presa veloz”), assinada com testemunhas de alto perfil — Urias, sacerdote, e Zacarias — para selar que “a riqueza de Damasco e o despojo de Samaria” seriam levados “pelo rei da Assíria” sem que Judá precisasse intervir (Isaías 7–8). O cruzamento de nomes, lugares e agentes — Urias, o mesmo sacerdote domesticado às inovações de Acaz (2 Reis 16:15–16), e Zacarias, sogro do futuro rei Ezequias (2 Reis 18:2) — é observado como coincidência não procurada entre Isaías e Reis, reforçando a verossimilhança histórica do dossiê.
B. Queda de Damasco, espoliação de Israel e vassalagem de Judá
O colapso de Damasco, a execução de Rezim e a amputação territorial de Israel setentrional — Ijom, Abel-Bete-Maacá, Janoa, Quedes, Hazor, Gileade e Galileia, “toda a terra de Naftali”, com deportações — são narrados em 2 Reis e confirmados por inscrição de Tiglate-Pileser III (PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 1969, p. 283). O diagnóstico historiográfico subsequente é unânime: o “socorro” imperial, embora neutralize a coalizão siro-efraimita, converte Judá em vassalo, com tributo pesado, dependência militar e isolamento diplomático. A síntese de contexto sublinhada pela pesquisa recente reforça que a intervenção de 734–732 a.C. fecha a janela política do Levante, e a leitura teológica de Isaías opõe-se frontalmente à opção de Acaz (GRABBE, 2007, p. 134; DUNN; ROGERSON, Eerdmans Commentary on the Bible, 2003, p. 505; KUAN, 2000; VIBERT, 1995).
C. Inovações cultuais e reconfiguração do templo
A viagem de homenagem a Tiglate-Pileser em Damasco desencadeia a “modernização” cultual: cópia ampliada do altar damasceno no pátio do templo, deslocamento do altar de bronze, a transferência do culto ordinário para o “altar grande” e a reserva do altar tradicional “para consultar”, além de alterações no “mar de bronze”, nas bases e em passagens régias, “por causa do rei da Assíria”. O gesto, além de expressão estética do vassalato, teve função fiscal, ao viabilizar o confisco de objetos valiosos do santuário para tributo e política cortesã. O fechamento posterior das portas do templo e a multiplicação de altares citadinos e rurais traduzem o desmonte do culto javista sob sua regência (2 Reis 16:10–18; 2 Crônicas 28:23–25; KUAN, 2000).
D. Práticas religiosas, astrologia e “relógio de sol de Acaz”
As fontes associam a Acaz práticas como sacrifício de filhos no vale de Hinom, consulta a necromantes e culto aos astros, com a possível instalação dos “cavalos do sol”, mais tarde erradicados por Josias. Nesse pacote de importações inclui-se um “relógio de sol” — provavelmente degraus ao redor de um gnômon — cuja sombra retrocede no sinal concedido a Ezequias, indicando intercâmbio técnico-cultural com a órbita assírio-babilônica (2 Reis 20:9–11; Isaías 38:8; 2 Reis 23:11–12; Isaías 8:19).
E. Derrotas internas, Odede e o retorno dos cativos
O período assiste a perdas cumulativas: edomitas reocupam Elate e irrompem no sul; filisteus tomam cidades na Sefelá e no Neguebe; incursões do Norte provocam mortandade e deportações. O cronista destaca a intervenção do profeta Odede em Samaria, sustentado por chefes efraimitas, para devolver e assistir os cativos de Judá — episódio que insere, no meio da catástrofe, um raro gesto intertribal de misericórdia e legalidade mosaica (2 Crônicas 28:5–20; 2 Reis 16:6).
X. Cronologia, calendários e proposta de ajuste
A sincronização dos reinos, com calendários defasados — Tisri em Judá, Nisã em Israel — e a hipótese de correagência com Jotão, explicam parte das tensões numéricas entre a idade de acesso de Acaz (20 ou 25) e os 25 anos de Ezequias ao suceder o pai. A leitura que mede os “dezesseis anos” desde a morte de Jotão (732/731) e não desde a deposição política anterior, associada à memória de corte “antiassíria” posterior, procura justificar “quatro anos extras” para Jotão nos anais que serviram à redação de Rs. A data de morte entre Tisri de 716 e Nisã de 715 (716/715) é compatível com tais ajustes. No plano narrativo, o pequeno oráculo contra Filístia “no ano da morte do rei Acaz” sugere, no horizonte profético, alívio e expectativa diferentes entre si quando o monarca desaparece de cena (Isaías 14:28–32).
XI. Epigrafia e arqueologia: inscrições, bulas e selos
O nome régio aparece nos anais de Tiglate-Pileser III como “Yauhazi [Jeoacaz] de Judá”, entre os príncipes que pagaram tributo, confirmando o vínculo de vassalagem (PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 1969, p. 283; GRABBE, Ancient Israel: What Do We Know and How Do We Know It?, 2007, p. 134). Uma bulla surgida no mercado de antiguidades nos anos 1990, com impressão de papiro, dupla fieira e até impressão digital na borda, traz a inscrição: “Pertencente a Acaz (filho de) Iotão, rei de Judá”; por sua preservação ao fogo, o gênero documental é considerado extremamente difícil de falsificar, o que explica a ampla aceitação de sua autenticidade entre estudiosos. Um escaraboide de cornalina laranja menciona “Ushna, servo de Acaz”, hoje na coleção de selos antigos da Universidade Yale. Em 2015, Eilat Mazar anunciou uma bulla real de Ezequias: “Pertencente a Ezequias [filho de] Acaz, rei de Judá”, datada entre 727 e 698 a.C., o que, além de confirmar a dupla onomástica, reforça o cenário dinástico da época.
XII. Morte, sepultamento e avaliação pós-mortem
Após dezesseis anos de governo, Acaz morreu jovem e foi sepultado “na Cidade de Davi”, porém não nas sepulturas reais, distinção reservada aos reis honrados. O gesto ritual sintetiza o juízo posterior de sua memória: politicamente hábil para livrar-se da coalizão ocidental por via imperial, religiosamente devastador para Judá (2 Crônicas 28:27). A imediata reabertura e purificação do templo, logo no primeiro mês do reinado de Ezequias, com reparos das portas e remoção das impurezas pelo corpo sacerdotal e levítico, expõe a extensão da ruptura cultual que se acumulou sob Acaz (2 Crônicas 29:3–17).
XIII. Acaz nas genealogias e no Novo Testamento
O nome de Acaz permanece nas genealogias régias de Judá e retorna na árvore genealógica de Jesus, onde aparece como ancestral de Ezequias (Mateus 1:9), sinal de que, apesar do juízo histórico e teológico que recai sobre sua pessoa, a linhagem davídica atravessa o período de vassalagem assíria sem ser suprimida (McCURLEY, HarperCollins Bible Dictionary, 2011; VIBERT, 1995).
XIV. Literatura judaica e rabínica
A. Etimologia midráshica e fechamento de sinagogas e casas de estudo
Os mestres constroem um trocadilho sobre o nome “Acaz” (aḥaz, “apertar/segurar/fechar”): “Por que foi chamado Acaz? Porque ‘trancou’ as sinagogas e as casas de estudo”, relacionando sua política religiosa à suspensão pública do ensino da Torá. O motivo teológico dado pelos midrashim é que, ao fechar os espaços de culto e estudo, o povo clamou “vai” (ai), conectando o “vayehi” (“e aconteceu…”) de Isaías 7:1 a um período de angústia sob Acaz (Gen. Rabá 42:3; ver também os comentários midráshicos coligidos em Isaías 8:16). (Gen. Rabá 42:3; Isaías 8:16, Midraxe).
B. “Selou a Torá” e “anulou o serviço”
O Talmude Babilônico descreve de forma contundente as medidas de Acaz: “anulou o serviço [do Templo] e selou a Torá”, lendo Isaías 8:16 (“Ata o testemunho, sela a Torá entre os meus discípulos”) como prova de que ele proibiu o estudo e fechou o acesso ao texto sagrado. A mesma passagem lista, em sequência, degradações cultuais de monarcas subsequentes, mas inicia com Acaz como quem interrompeu a avodá e interditou a instrução (Sanh. 103b).
C. Idolatria “no aposento superior de Acaz”
Outra tradição talmúdica identifica Acaz como o rei que instalou culto idólatra “no terraço do aposento superior de Acaz”, tomando 2 Reis 23:12 como referência bíblica. O Talmude contrasta, depois, as etapas de agravamento sob Manassés e Amom (Sanh. 103b), mas anota que a primeira localização desse culto nos altos do Templo é associada a Acaz. (Sanh. 103b; 2 Reis 23:12).
D. Licenciosidade normativa
No mesmo bloco talmúdico, os sábios atribuem a Acaz a “permissão” de uniões proibidas, como política que abriu brechas para transgressões sexuais posteriores da casa real. A formulação é jurídica e deliberada: “Acaz permitiu relações sexualmente proibidas e anunciou que o casamento entre tais parentes estava permitido”, o que é usado para explicar excessos subsequentes (Sanh. 103b).
E. Suspensão do ensino público e leitura de Isaías
Midrashim sobre Isaías reforçam que, “quando ele [Acaz] trancou as sinagogas e as casas de estudo, o povo começou a clamar”, reforçando a leitura de “vayehi” como prenúncio de tribulação e a imagem de Isaías ensinando às ocultas. Essa linha midráshica amarra Isaías 7–8 ao programa antipedagógico do rei (Is 8:16, Midraxe).
F. Tentativa de sacrifício de Ezequias e a “salamandra”
A tradição talmúdica também registra que Acaz “quis fazer o mesmo com Ezequias [sacrificá-lo a Moloque]”, mas sua mãe o ungiu com “sangue de salamandra”, criatura associada ao fogo, e o menino passou ileso “pelo fogo”. É um relato aggádico que busca dramatizar a crueldade do rei e, ao mesmo tempo, a providência que preserva o futuro reformador de Judá (Sanh. 63b).
G. Retrato moral nos Provérbios aplicado a Acaz
Em uma passagem aggádica, os rabinos aplicam Provérbios 24:30–31 (“Passei pelo campo do preguiçoso…”) a reis específicos: “o preguiçoso” é Acaz, “o homem falto de entendimento” é Manassés, e assim por diante. A etiqueta “preguiçoso”, no contexto, não é indolência comum, mas designa a negligência do rei com a vinha de Israel — o culto e a Torá — que ele “deixou crescer urtigas”, i.e., abandonou (Sanh. 103a).
H. Observações finais sobre o dossiê rabínico
O conjunto de tradições preservado no Sefaria é coerente com a memória litúrgica e escolar: Acaz surge como rei que interrompe o serviço, tranca os espaços de estudo, institucionaliza práticas idólatras e até normatiza licenciosidades, compondo o “tipo” do governante que esvazia a vida religiosa de Judá e ameaça sua transmissão intergeracional (Sanh. 103a–b; Gen. Rabá 42:3; Isaías 8:16, Midraxe; Sanh. 63b).
XV. Personagem homônimo nas genealogias benjaminitas
Além do rei, “Acaz” designa um descendente de Saul preservado nas genealogias pós-exílicas (1 Crônicas 8:35–36; 1 Crônicas 9:41–42). A repetição e o enquadramento dessas listas em 1 Crônicas 8–9 refletem a memória e a proeminência saulida transmitida por famílias benjaminitas que sobreviveram ao exílio, funcionando ainda como ponte literária para a narrativa da morte de Saul (BRETTLER, 1992; DEMSKY, The Genealogy of Gibeon, 1971, p. 20; FLANAGAN, Genealogy and Dynasty in the Early Monarchy of Israel and Judah, 1982, p. 25; WILLIAMSON, Chronicles NCB, pp. 46–47).
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GALVÃO, Eduardo. Acaz. Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], 13 jul. 2009. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

