Apocalipse 1: Significado, Explicação e Devocional

Apocalipse 1

Apocalipse 1 inaugura a obra mais visionária do Novo Testamento com um prólogo solene, teológico e profético. É o limiar de uma revelação que se pretende última — uma ἀποκάλυψις (apokálypsis), ou seja, um desvelamento de realidades celestiais e escatológicas ocultas. O primeiro capítulo estabelece a autoria, a natureza divina da mensagem, o destino às sete igrejas da Ásia e, sobretudo, apresenta a visão inaugural do Cristo glorificado. Esse capítulo não é apenas uma introdução, mas um sumário teológico condensado: ele apresenta o tempo escatológico como iminente (“as coisas que em breve devem acontecer”), revela a cristologia exaltada que guiará todo o livro, e estabelece o padrão de linguagem simbólica, litúrgica e profética que perpassará a obra inteira.

I. Esboço de Apocalipse 1

A. Proêmio da revelação e bem-aventurança (1:1–3)
Resumo da origem, mediação e propósito do Apocalipse (1:1–3)
a. Revelação de Jesus Cristo, dada por Deus, comunicada por anjo a João e destinada aos seus servos (1:1)
b. Testemunho de João à palavra de Deus e ao testemunho de Jesus Cristo, quanto a tudo o que viu (1:2)
c. Bem-aventurança aos que leem, ouvem e guardam as palavras da profecia, pois o tempo está próximo (1:3)

B. Saudação às sete igrejas e doxologia cristológica (1:4–8)
Saudação trinitária às sete igrejas da Ásia (1:4–5a)
a. Graça e paz da parte daquele que é, que era e que há de vir (1:4a)
b. Dos sete espíritos que estão diante do seu trono (1:4b)
c. De Jesus Cristo: a fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos e o soberano dos reis da terra (1:5a)

Doxologia a Cristo por sua obra redentora e reino sacerdotal (1:5b–6)
a. Aquele que nos ama e nos libertou dos nossos pecados pelo seu sangue (1:5b)
b. Constituição da Igreja como reino e sacerdotes para Deus e seu Pai (1:6a)
c. Doxologia: a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém (1:6b)

Declarações programáticas sobre a vinda e a identidade divina (1:7–8)
a. Proclamação: ele vem com as nuvens, e todo olho o verá, até os que o traspassaram (1:7a)
b. Lamentação de todas as tribos da terra por causa dele (1:7b)
c. Autodeclaração divina: Alfa e Ômega, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso (1:8)

C. Visão inaugural do Filho do Homem no meio dos candelabros (1:9–20)
Contexto da visão e comissão profética (1:9–11)
a. João como irmão e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus, em Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus (1:9)
b. Estar “no Espírito” no dia do Senhor e ouvir por detrás uma grande voz, como de trombeta (1:10)
c. Ordem de escrever o que vê em livro e enviar às sete igrejas da Ásia (1:11)

Visão do Cristo glorificado entre os sete candelabros (1:12–16)
a. Sete candelabros de ouro e, no meio deles, um semelhante a filho de homem (1:12–13a)
b. Vestes talares e cinto de ouro, cabeça e cabelos brancos como lã e neve, olhos como chama de fogo (1:13b–14)
c. Pés semelhantes ao bronze reluzente, voz como voz de muitas águas, sete estrelas na destra, espada afiada de dois gumes da boca, rosto como o sol no seu fulgor (1:15–16)

Reação de João e autoapresentação de Cristo (1:17–18)
a. João cai como morto aos pés do Filho do Homem (1:17a)
b. Toque consolador e “não temas”: o Primeiro e o Último, o que vive, que esteve morto e vive pelos séculos dos séculos (1:17b–18a)
c. Posse das chaves da morte e do Hades (1:18b)

Interpretação da visão e chave simbólica das sete igrejas (1:19–20)
a. Mandato de escrever as coisas que viu, as que são e as que hão de acontecer depois destas (1:19)
b. Explicação do mistério das sete estrelas e dos sete candelabros: estrelas como anjos das igrejas, candelabros como as próprias igrejas (1:20)

II. Explicação de Apocalipse 1

Apocalipse 1:1a

Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que devem acontecer em breve (Gr.: apokalypsis Iēsou Christou hēn edōken autō ho theos deixai tois doulois autou ha dei genesthai en tachei — “Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que devem acontecer em breve”). A palavra inicial apokalypsis (“revelação, desvelamento”) é substantivo feminino nominativo singular e funciona como núcleo do sujeito de todo o versículo, título que paira sobre o livro inteiro; etimologicamente, vem de apo (“para fora, para longe”) + kalyptō (“cobrir, velar”), sugerindo o gesto de retirar um véu para que algo oculto se torne visível. A expressão genitiva Iēsou Christou (Iēsous “Jesus”, Christos “Ungido”) traz dois substantivos masculinos genitivos singulares, formando um genitivo que pode ser lido ao mesmo tempo como subjetivo (revelação que procede de Jesus) e objetivo (revelação cujo conteúdo é Jesus), o que vários intérpretes reconhecem: o livro inteiro é tanto dom de Cristo quanto desdobramento da sua identidade e senhorio. O pronome relativo hēn (“a qual”) é acusativo feminino singular, retomando apokalypsis como objeto direto do verbo edōken (“deu”), aoristo ativo indicativo, 3ª pessoa singular, verbo cuja forma e tempo verbal, atestados no interlinear, sublinham um ato pontual e decisivo de concessão divina; o sujeito é ho theos (“Deus”, substantivo masculino nominativo singular com artigo), e o pronome dativo autō (“a ele”) é dativo de benefício, indicando que essa revelação foi confiada a Jesus como depositário e mediador da vontade do Pai.

O infinitivo aoristo ativo deixai (“mostrar”) exerce função de infinitivo de propósito: Deus deu a revelação a Jesus “para mostrar” algo, o que se explicita no dativo tois doulois autou (“aos seus servos”), onde tois é artigo dativo masculino plural e doulois (“servos, escravos”) é substantivo masculino dativo plural, com autou (“dele”) como pronome possessivo genitivo; a imagem de doulos (“servo-escravo”) não designa um funcionário eventual, mas alguém que pertence por inteiro ao seu Senhor, como indicam os léxicos, acentuando a pertença e a obediência. O conteúdo a ser mostrado vem na oração relativa neutra ha dei genesthai en tachei: ha (“as coisas que”) é pronome relativo neutro acusativo plural, objeto do verbo impessoal dei (“é necessário”), presente ativo indicativo 3ª pessoa singular, que exprime necessidade vinculada ao plano de Deus, não simples conveniência humana; genesthai (“acontecer, vir a ser”) é infinitivo aoristo médio de ginomai (“tornar-se, acontecer”), complementando dei; en tachei (“em breve / com rapidez”) é preposição en (“em”) com o dativo neutro singular tachei, substantivo de tachos (“rapidez, prontidão”), usado em outros textos do Novo Testamento para indicar tanto brevidade temporal quanto rapidez na execução, como mostram suas ocorrências em Romanos 16:20 e Apocalipse 22:6.

A sequência sintática forma um arco bem definido, e isso já aparece na maneira como as formas são flexionadas. O núcleo da frase é o título-sujeito apokalypsis (“revelação”), substantivo feminino, nominativo, singular, que se apresenta como o grande tema da unidade; a ele se ligam, em genitivo, os dois nomes próprios Iēsou (“de Jesus”) e Christou (“de Cristo”), ambos masculinos, singulares, marcando não apenas posse, mas aquela construção típica em que o genitivo funciona como “genitivo de origem” e, ao mesmo tempo, como “genitivo objetivo”: a revelação tem sua fonte em Jesus Cristo e é, ao mesmo tempo, revelação cujo conteúdo é ele próprio. Em seguida, a relativa explicativa introduzida por hēn (“a qual”) retoma essa apokalypsis e a apresenta como objeto do verbo edōken (“deu”), forma de aoristo, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, de didōmi (“dar”), colocando Deus (ho theos — “Deus”, nominativo, masculino, singular) como sujeito agente dessa doação, enquanto o pronome autō (“a ele”, dativo, masculino, singular) indica que o Filho recebe essa revelação como mediador.

A seguir, o infinitivo deixai (“mostrar”), aoristo, ativo, funciona como infinitivo de finalidade, apontando para o propósito dessa dádiva: ela foi concedida “para mostrar” algo; e é nesse ponto que o dativo plural tois doulois autou (“aos seus servos”) entra em cena, com doulois (“servos”, masculino, plural) como dativo de vantagem, desenhando o círculo dos destinatários como aqueles que pertencem a Deus (autou, genitivo) e vivem na condição de servos. Finalmente, a relativa substantiva ha dei genesthai en tachei (“as coisas que devem acontecer em breve”) designa o conteúdo necessário dessa revelação: dei (“é necessário”), presente, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, exprime necessidade divina, não mera probabilidade; genesthai (“tornar-se, acontecer”), infinitivo aoristo médio de ginomai, remete ao “tornar-se real” no tempo; e en tachei (“em breve”, literalmente “em rapidez”), com tachei (“rapidez”, substantivo neutro, dativo, singular, usado adverbialmente), indica que esses eventos se inscrevem num horizonte de urgência escatológica. Assim, a morfologia não aparece como um catálogo frio de formas, mas como tecido: cada caso, cada tempo verbal, costura a teologia do versículo — uma revelação que procede de Deus, é confiada ao Cristo, é dirigida aos servos, e versa sobre coisas necessárias que estão prestes a se desdobrar com rapidez no drama da história.

O versículo abre o livro como um documento de iniciativa trinitária: o Pai entrega a revelação ao Filho, o Filho a mostra aos servos, e mais adiante o Espírito falará às igrejas; as traduções realçam esse duplo foco de necessidade e iminência: a ESV traz “the things that must soon take place” (“as coisas que devem em breve acontecer”), a KJV “things which must shortly come to pass” (“as coisas que em breve hão de acontecer”), enquanto a YLT registra “what things it behoveth to come to pass quickly” (“as coisas que convém, no sentido de que lhes é devido, que aconteçam rapidamente”), todas preservando a força de dei como algo que “deve” ocorrer segundo o decreto divino. Em português, NVI, NAA, ARC e NVT convergem ao falar de “o que em breve deve acontecer”, “as coisas que em breve devem acontecer” ou “os acontecimentos que ocorrerão em breve”, mostrando que a igreja é convocada a viver num horizonte de urgência vigilante, não de cálculo cronológico; o eco de Daniel 2:28–29 e Amós 3:7 — onde Deus revela “o que há de ser” aos seus servos, os profetas — reforça que aqui os “servos” são a comunidade messiânica inteira, chamada a ler a história como palco do desvelar de Cristo, e não como arena entregue ao acaso. O movimento espiritual do versículo, portanto, é este: um véu que se abre (apokalypsis), um Jesus que recebe do Pai aquilo que já é seu, servos que não são deixados tateando no escuro, mas convidados a ver, com a alma em ponta de pés, “as coisas que devem acontecer em breve” como parte de um roteiro já escrito nas mãos do Cordeiro.

Apocalipse 1:1b

...e ele a tornou conhecida, enviando por meio do seu mensageiro ao seu servo João (Gr.: kai esēmanen aposteilas dia tou angelou autou tō doulō autou Iōannē — “e ele a significou, enviando por meio do seu anjo ao seu servo João”.) A conjunção kai (“e”) faz a ponte com a cláusula anterior, abrindo a descrição do modo como a revelação passa da esfera divina ao mundo humano. O verbo finito esēmanen (“ele significou, ele tornou conhecida por sinais”) é aoristo ativo indicativo, 3ª pessoa singular; ele retoma implicitamente o sujeito da cláusula precedente (Deus, atuando por meio de Cristo), e seu campo semântico, segundo os léxicos, remete a “indicar” ou “fazer conhecer” por meio de sinais, o que liga Apocalipse à teologia joanina dos sēmeia (“sinais”), onde Jesus “significa” de que morte há de morrer (por exemplo, em João 12:33). O particípio aoristo ativo nominativo masculino singular aposteilas (“tendo enviado”) funciona como particípio circunstancial de meio ou de tempo, especificando que Deus torna conhecida a revelação precisamente “enviando” o anjo; o verbo simples apostellō (“enviar como emissário”) traz consigo a ideia de missão delegada, tão cara ao vocabulário joanino em relação ao Filho enviado.

A preposição dia (“por meio de”) rege o genitivo tou angelou autou (“do seu anjo”): angelou (“mensageiro, anjo”) é substantivo masculino genitivo singular, e autou (“dele”) é pronome possessivo genitivo masculino singular que marca o pertencimento do anjo a Deus; léxicos lembram que angelos pode designar tanto mensageiro humano quanto ser celestial, mas aqui, pelo contexto visionário, trata-se de mensageiro celeste. Em seguida, o dativo tō doulō autou Iōannē (“ao seu servo João”) apresenta o destinatário humano da revelação: é artigo dativo masculino singular, doulō (“servo, escravo”) é substantivo masculino dativo singular, autou é pronome possessivo genitivo (“dele”), e Iōannē (“João”) é substantivo próprio dativo masculino singular em aposição a doulō; toda a expressão funciona como objeto indireto de esēmanen. Etimologicamente, sēmainō está ligado a sēmeion (“sinal”), termo-chave nos Evangelhos; angelos (“mensageiro”) acentua a dimensão de comunicação; doulos lembra que João não é um visionário autônomo, mas um escravo do Senhor; e Iōannēs deriva do hebraico Yōḥānān (“YHWH é gracioso”), sugestivo para um homem que recebe, por pura graça, a incumbência de ser porta-voz das visões.

Do ponto de vista sintático, tudo gravita em torno do verbo esēmanen (“sinalizou”, “deu a conhecer por sinais”), forma de aoristo, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, de sēmainō, que concentra o ato soberano pelo qual Cristo torna a revelação inteligível a João. A conjunção kai liga esse verbo ao que veio antes, costurando a cadeia de ações divinas: Deus dá a revelação, e o Filho a “sinaliza”. Logo em seguida, o particípio aposteilas (“tendo enviado”), aoristo, ativo, nominativo, masculino, singular, de apostellō, aproxima-se de esēmanen como um particípio circunstancial que explica o modo ou o meio pelo qual essa sinalização se realizou: ele deu a conhecer “enviando”. Essa ideia se completa com a expressão preposicional dia tou angelou autou (“por meio do seu mensageiro”), em que dia com o genitivo indica mediação, o canal pelo qual a comunicação passa; angelou é substantivo masculino, genitivo, singular (“mensageiro, anjo”), modificado por autou (“dele”), de modo que o anjo pertence ao Cristo e atua como seu emissário oficial. Por fim, o grupo tō doulō autou Iōannē desenha o destinatário humano: é artigo dativo masculino singular, doulō (“servo”, masculino, dativo, singular) é o núcleo que marca a identidade vocacional de João, e o nome próprio Iōannē (“João”, dativo, masculino, singular) vem em aposição, especificando quem é esse servo. O dativo aqui é de destinatário: toda a cadeia verbal — sinalizar, enviar, por meio do anjo — converge para esse ponto de chegada, “ao seu servo João”. Assim, a morfologia não aparece como um quadro frio de códigos, mas como uma coreografia: o Cristo, sujeito implícito, sinaliza de modo decisivo (aoristo), serve-se de um anjo como mediador (genitivo com dia), e faz tudo isso em direção a um servo concreto, João (dativo), para que a revelação não permaneça suspensa nos céus, mas chegue, por escrito, à igreja na história.

Em termos de tradução, as versões em inglês mantêm o jogo entre “enviar” e “significar”: a ESV diz “He made it known by sending his angel to his servant John” (“Ele a tornou conhecida, enviando o seu anjo ao seu servo João”), a KJV conserva “and he sent and signified it by his angel unto his servant John” (“e pelo seu anjo a enviou e a significou ao seu servo João”), e a YLT descreve “and he did signify it, having sent through his messenger to his servant John” (“e ele a significou, tendo enviado por meio do seu mensageiro ao seu servo João”). Em português, NVI e NVT falam de Deus que “a tornou conhecida enviando-a por meio do seu anjo ao seu servo João” e de Cristo que “enviou um anjo para apresentá-la a seu servo João”, enquanto ARC afirma que ele “pelo seu anjo as enviou e as notificou a João, seu servo”, traçando a mesma linha de uma revelação que desce, em cascata, do trono às igrejas por meio de mensageiros fiéis.

O uso de sēmainō sugere que o conteúdo do Apocalipse é, desde o início, reconhecido como simbólico: Deus “significa” a realidade da história por meio de imagens, visões e sinais, assim como, nos escritos joaninos, a cruz é interpretada como exaltação e glorificação. A forma como a cadeia de mediação é descrita — do Pai ao Filho, do Filho ao anjo, do anjo ao servo João, de João às igrejas (Apocalipse 1:4, 11) — evita tanto o esoterismo quanto a banalização: não se trata de um segredo criptografado para alguns iniciados, mas de uma palavra viva que passa por mãos e bocas concretas, sem perder sua origem transcendente. Na prática, o versículo chama o leitor a aceitar que a Palavra de Deus nos chega por vias humildes: um profeta exilado em Patmos, um mensageiro celeste, um texto escrito, uma comunidade que lê. Não é pouca coisa que Deus, em vez de gritar do céu, escolha significar a história a um “servo” e, por meio dele, às igrejas; o tom é de condescendência amorosa: o Deus que habita na inacessível luz se inclina, envia, explica, traduz sua própria voz em linguagem de sinais para que servos cansados, sofridos e perseguidos aprendam a ver, por trás dos impérios e catástrofes, o Cordeiro que governa.

Apocalipse 1:2

...o qual deu testemunho da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo, de tudo o que viu (Gr.: hos emartyrēsen ton logon tou theou kai tēn martyrian Iēsou Christou hosa eiden — “o qual deu testemunho da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo, de tudo o que viu”.) A frase inteira respira o campo semântico do testemunho jurídico e profético: o verbo emartyrēsen (“deu testemunho”) vem de martyreō, ligado a martys (“testemunha”), e designa aquele que afirma, com autoridade de quem viu e ouviu, realidades que não podem ser verificadas por todos, mas que se tornam públicas pela sua palavra. É o verbo que recorre quando se fala do testemunho apostólico nos escritos joaninos, incluindo passagens como João 19:35, onde se declara: “Aquele que o viu, disso deu testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que está dizendo a verdade, e dela testemunha para que vocês também creiam”, aproximando diretamente a função de João em Apocalipse da figura da testemunha ocular da paixão de Cristo. O substantivo logos (“palavra”) em ton logon tou theou não indica apenas um vocábulo isolado, mas o discurso, a mensagem articulada de Deus, a sua auto-comunicação em forma de palavra falada e escrita, o mesmo termo que em João 1 abre o evangelho: “No princípio era a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus”, ligando o campo semântico da revelação verbal ao próprio Cristo como Logos pessoal. Já martyrian traduz a ideia de “testemunho”, não como opinião privada, mas como declaração formal, pública, suficiente para estabelecer um fato; em muitas ocorrências, esse substantivo expressa um testemunho que tem peso jurídico, cultual e escatológico, o que se percebe pelo uso recorrente do termo em contextos de proclamação do evangelho e de confirmação da verdade de Cristo. A expressão “testemunho de Jesus Cristo” pode ser lida, do ponto de vista etimológico-teológico, tanto como genitivo subjetivo (o testemunho que Jesus dá) quanto como genitivo objetivo (o testemunho acerca de Jesus), e justamente essa ambivalência favorece a compreensão da revelação como algo que vem de Cristo e, ao mesmo tempo, fala a respeito dele.

Na tessitura morfológica da frase, o pronome relativo hos (“o qual”) aparece no nominativo masculino singular, retomando o “João” do versículo anterior e funcionando como sujeito de toda a oração, de modo que o que se diz aqui é um predicado que qualifica o apóstolo como testemunha. O verbo emartyrēsen está no aor., ind., at., 3ª p. sing., concentrando em um golpe de vista a ação de testemunhar como um todo, sem detalhar processos ou repetições; aoristo perfeito de sentido global, como um selo que olha para a vida inteira de João sob o prisma de uma única identidade: aquele que deu testemunho. O grupo nominal ton logon tou theou (“a palavra de Deus”) traz o artigo definido ton e o substantivo logon no acusativo masculino singular, funcionando como objeto direto do verbo, enquanto tou theou, com artigo e substantivo no genitivo masculino singular, atua como genitivo de origem e de posse, marcando que esta palavra não é mera reflexão humana, mas procede de Deus como sua fonte e proprietário. A conjunção kai (“e”) coordena simetricamente esse primeiro objeto direto a um segundo, tēn martyrian Iēsou Christou (“o testemunho de Jesus Cristo”), em que o artigo tēn e o substantivo martyrian surgem no acusativo feminino singular como novo objeto direto, e os nomes próprios Iēsou e Christou, ambos no genitivo masculino singular, especificam o testemunho em termos cristológicos, podendo ser lidos como testemunho que tem Jesus como origem e conteúdo. A parte final da frase é introduzida por hosa (“tudo quanto”, “quaisquer coisas que”), pronome relativo no acusativo neutro plural, que introduz uma oração relativa de conteúdo, e o verbo eiden, aor., ind., at., 3ª p. sing., de horaō (“ver”), indica que o fundamento do testemunho de João não é mera especulação, mas aquilo que ele efetivamente contemplou. A oração forma um quadro coeso: sujeito (o relativo hos, retomando João), predicado verbal (emartyrēsen), dois objetos diretos coordenados (ton logon tou theou e tēn martyrian Iēsou Christou), e uma oração relativa final (hosa eiden) que serve de complemento de extensão do testemunho, reforçando que o conteúdo do que João proclama abarca “tudo quanto viu”, não apenas fragmentos escolhidos.

Quando se observam as versões, vê-se como os tradutores tentam fazer justiça a esse equilíbrio entre conteúdo e extensão. Em inglês, a KJV verte: “Who bare record of the word of God, and of the testimony of Jesus Christ, and of all things that he saw” (“o qual deu registro da palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, e de todas as coisas que ele viu”), deixando os três membros ligados por “and” e sugerindo quase três objetos coordenados. A ESV suaviza a estrutura: “who bore witness to the word of God and to the testimony of Jesus Christ, even to all that he saw” (“que deu testemunho da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo, até de tudo o que viu”), usando “even” para tratar “tudo o que viu” como uma espécie de explicação enfática da abrangência do testemunho. A YLT é ainda mais literal: “who did testify the word of God, and the testimony of Jesus Christ, as many things also as he did see” (“que testemunhou a palavra de Deus, e o testemunho de Jesus Cristo, tantas coisas quantas também viu”), mantendo a linguagem quase espelhada ao grego e sublinhando por “as many things as” que não há visão que não tenha sido integrada ao testemunho. A ASV, por sua vez, diz: “who bare witness of the word of God, and of the testimony of Jesus Christ, even of all things that he saw” (“que deu testemunho da palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, até de todas as coisas que viu”), fazendo eco à ESV e confirmando a ideia de um testemunho inteiramente abrangente. Em português, a NVI afirma: “que testificou, em todas as coisas que viu, a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo”, deslocando “em todas as coisas que viu” para o meio da frase e fazendo dele quase um advérbio de extensão do ato de testificar. A ARC diz: “o qual testificou da palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, e de tudo o que tem visto”, mantendo a tripla coordenação e deixando claro que o testemunho de João é tanto sobre a palavra, quanto sobre o testemunho de Jesus, quanto sobre tudo que passou por seus olhos. A NVT reorganiza em duas frases: “que relatou fielmente tudo que viu. Este é seu relato da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo”, primeiro insistindo na fidelidade do relato às visões e, depois, identificando esse relato com a palavra de Deus e com o testemunho de Jesus, o que reforça que não se trata de memórias privadas, mas de Escritura. O fio comum em todas essas versões é a insistência de que João não é um filósofo a conjecturar, mas uma testemunha a relatar.

Do ponto de vista exegético, o versículo articula três eixos que se entrelaçam como cordas de uma mesma harpa: a origem divina da mensagem, a centralidade de Jesus e a ancoragem do testemunho na experiência concreta da visão. Ao dizer que João deu testemunho “da palavra de Deus”, o texto conecta Apocalipse ao longo curso da revelação bíblica em que, já na Septuaginta, a fórmula logos tou theou (“palavra de Deus”) ecoa as antigas fórmulas proféticas que traduzem o hebraico dābār YHWH (“palavra do Senhor”), como se cada profecia recebida ao longo da história convergisse, agora, nesse grande painel final. Ao falar em “testemunho de Jesus Cristo”, o texto dialoga com os escritos joaninos que descrevem os apóstolos como aqueles que testemunham o que viram e ouviram: “Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco” (1 João 1:3), e “A vida se manifestou; nós a vimos, dela testemunhamos e proclamamos a vocês a vida eterna” (1 João 1:2), de modo que o testemunho de João em Apocalipse é continuação do mesmo projeto de proclamar o que foi visto e tocado na história de Jesus. A expressão “tudo o que viu” impede que se reduza o livro a alegorias livres ou a fantasias religiosas: cada visão, por mais simbólica que seja, é parte do “tudo” que João recebeu, e o estatuto desse conteúdo é o de testemunho fiel e verdadeiro, como o próprio livro afirmará adiante: “Ele é a testemunha fiel” (Apocalipse 1:5), de modo que o testemunho de João é, no fundo, participação no testemunho do Cristo mesmo. Na prática espiritual, isso significa que a fé cristã não se edifica sobre intuições vagas, mas sobre um testemunho concreto, transmitido de geração em geração: a igreja, ao proclamar “a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo”, entra na mesma corrente de João, repetindo, com suas próprias palavras e em seu próprio tempo, aquilo que foi visto e proclamado pelos primeiros discípulos.

Na lógica da vida cristã, o versículo chama cada leitor a um duplo movimento: ouvir e prolongar o testemunho. Ouvir, porque só quem acolhe a “palavra de Deus” como palavra que vem de fora, cortante e consoladora, pode situar sua própria história sob a luz desse “tudo o que viu” que João descreve; prolongar, porque o discipulado cristão é, em sua raiz, ser testemunha — não de visões apocalípticas, mas da presença de Cristo no cotidiano, das pequenas ressurreições, das quedas e recomeços, da graça que se infiltra nas ruínas. O texto, assim, nos toma pela mão e nos põe ao lado de João: ele viu, nós cremos; ele testemunhou, nós recebemos; mas, ao recebermos, passamos a ser também nós mesmos, à nossa medida, pessoas que “dão testemunho da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo”, escrevendo, com a vida, um pequeno eco desse grande livro que encerra a Escritura.

Apocalipse 1:3

Bem-aventurado aquele que lê e os que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, porque o tempo está próximo! (Gr.: Makarios ho anaginōskōn kai hoi akouontes tous logous tēs prophēteias kai tērountes ta en autē gegrammena, ho gar kairos engys — “Bem-aventurado o que lê e os que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, porque o tempo está próximo.”) A frase se abre com makarios (“bem-aventurado”, “feliz”), adjetivo no nominativo masculino singular, usado aqui como substantivo, desenhando a figura do homem cuja existência é declarada feliz diante de Deus. Esse makarios retoma a longa tradição dos “macarismos” bíblicos: na Septuaginta, ele verte o hebraico ’ašrê (“feliz”, “bem-aventurado”), como em makarios anēr (“bem-aventurado o homem”) de Salmos 1:1, onde o justo é descrito como aquele que não anda no conselho dos ímpios, mas se deleita na lei do Senhor. Em Apocalipse, portanto, não se trata de um sentimento superficial, mas de um estado objetivo de bem-aventurança, enraizado na relação com a revelação divina, tal como na porta de entrada do Saltério.

O verbo central do início é anaginōskōn (“lendo”, “aquele que lê”), particípio presente, ativo, nominativo, masculino, singular, derivado de anaginōskō (“conhecer de novo”, “reconhecer”, “ler”), formado de ana (“de novo”) + ginōskō (“conhecer”). O campo semântico de anaginōskō cobre tanto o ato de decifrar um texto quanto o de proclamá-lo em voz alta diante da assembleia, ecoando a prática sinagogal e depois cristã da leitura pública das Escrituras. Em paralelo, aparece akouontes (“os que ouvem”), particípio presente, ativo, nominativo, masculino, plural de akouō (“ouvir”, “escutar”, “acolher”), verbo que pode significar simplesmente perceber sons, mas frequentemente carrega a nuance de ouvir com atenção, compreender e obedecer, como mostram os léxicos que sublinham seu uso em contextos de ensino e fé. O terceiro eixo da tríade é tērountes (“os que guardam”), particípio presente, ativo, nominativo, masculino, plural de tēreō, verbo cujo núcleo semântico é “vigiar”, “guardar”, “proteger”, “observar cuidadosamente”, usado muitas vezes para descrever o cuidado em guardar mandamentos e palavras divinas. Por fim, o motivo que sustenta a bem-aventurança surge na cláusula final: ho gar kairos engyskairos (“tempo oportuno”, “momento decisivo”) indica não apenas a passagem cronológica, mas o “tempo apropriado, o ponto de maturação” de uma ação, em contraste com chronos, o tempo quantitativo. O advérbio engys (“perto”) sublinha que esse momento de intervenção divina não é uma abstração remota, mas se achega à fronteira da experiência histórica.

Apocalipse 1:3 é construído como uma grande frase de bem-aventurança com verbo cópula elíptico: “bem-aventurado [é] aquele que lê...”. O adjetivo makarios (“bem-aventurado”) no nominativo masculino singular funciona como predicativo, enquanto o artigo ho (“o”) e o particípio anaginōskōn (“que lê”) formam o sujeito gramatical da sentença: o leitor é descrito não por um substantivo, mas por uma ação em andamento, marcada pelo particípio presente. Em seguida, a conjunção kai (“e”) introduce o grupo plural hoi akouontes (“os que ouvem”), com artigo no nominativo masculino plural e particípio presente, ativo, também no nominativo masculino plural, ampliando a benção do indivíduo que lê para a comunidade que escuta. O objeto direto conjunto desses ouvintes é tous logous tēs prophēteias (“as palavras da profecia”): logous (“palavras”) é substantivo, masculino, acusativo, plural, recebendo o artigo definido tous; prophēteias (“profecia”) é substantivo, feminino, genitivo, singular, funcionando como genitivo de especificação: são as palavras que pertencem a esta profecia específica, o livro que se abre.

A terceira série participial, tērountes ta en autē gegrammena (“e [os que] guardam as coisas nela escritas”), mantém o paralelismo: tērountes (“guardando”, “os que guardam”) é particípio presente, ativo, nominativo, masculino, plural, retomando o mesmo sujeito plural dos ouvintes. O objeto direto é ta gegrammena (“as coisas escritas”), com ta como artigo acusativo, neutro, plural, e gegrammena como particípio perfeito, passivo, acusativo, neutro, plural de graphō (“escrever”), descrevendo aquilo que se encontra já registrado e permanece em estado de “ter sido escrito”. A preposição en (“em”) com o pronome dativo feminino singular autē (“nela”) aponta de volta para a “profecia” enquanto locus textual: é dentro da profecia que essas realidades estão fixadas. A cláusula final, ho gar kairos engys (“porque o tempo está próximo”), traz kairos (“tempo oportuno”) como substantivo, masculino, nominativo, singular, desempenhando a função de sujeito, enquanto engys (“perto”) atua como predicativo adverbial, compondo uma espécie de oração nominal: “o tempo [está] perto”. O gar (“pois”, “porque”) liga logicamente a bem-aventurança à motivação: a proximidade do tempo de Deus é a razão do chamado a ler, ouvir e guardar.

A construção é elegantemente escalonada. Há, primeiro, um singular: “aquele que lê”, provavelmente evocando a figura do leitor oficial na assembleia cristã, alguém que proclama o texto em voz audível à comunidade. Em seguida, a sintaxe se abre ao plural: “os que ouvem”, designando a congregação que recebe essa leitura. O terceiro particípio, “os que guardam”, é gramaticalmente paralelo ao segundo e semanticamente abraça tanto o leitor quanto os ouvintes, porque o guardar é a resposta comum requerida de todos. A ausência de um verbo finito de “ser” e o uso de participiais presentes conferem ao versículo um caráter de quadro contínuo: não se trata de um ato pontual de ler, ouvir ou guardar, mas de uma prática constante, um estilo de vida que se desenrola sob a luz de um tempo que já se aproxima.

As versões em português ecoam bem essa estrutura. A ARC verte: “Bem-aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo.” A Nova Almeida Atualizada registra: “Bem-aventurado aquele que lê, e bem-aventurados aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo.” A NVT, numa chave mais coloquial, diz: “Feliz é aquele que lê as palavras desta profecia, e felizes são aqueles que ouvem sua mensagem e obedecem ao que ela diz, pois o tempo está próximo.” As versões inglesas, como a KJV — “Blessed is he that readeth, and they that hear the words of this prophecy, and keep those things which are written therein: for the time is at hand” — e a ESV — “Blessed is the one who reads aloud the words of this prophecy, and blessed are those who hear, and who keep what is written in it, for the time is near” — sublinham, em alguns casos explicitamente, o caráter de leitura em voz alta: “reads aloud”. Todas, porém, convergem no tripé semântico do grego: bem-aventurança ligada a ler, ouvir e guardar, motivada por um tempo decisivo que “está próximo”.

Na exegese, a tessitura desses verbos cria uma pequena liturgia em miniatura logo no prólogo do livro. O singular “aquele que lê” sugere a figura de um leitor que, na assembleia, se levanta com o rolo da revelação e faz ressoar a palavra. O plural “os que ouvem” englobaria a comunidade reunida, fazendo de Apocalipse um livro desde o início concebido para ser proclamado e não apenas estudado em silêncio. A terceira ação, “guardar”, desloca o foco da mera recepção auditiva para uma resposta existencial: tēreō indica cuidar, vigiar, obedecer; é o verbo usado para falar de guardar mandamentos em outros lugares do Novo Testamento, e aqui implica que as “coisas escritas” na profecia exigem uma vigilância obediente, não curiosidade apocalíptica. Essa tríade ressoa com outras passagens bíblicas em que a verdadeira bem-aventurança é vinculada não só ao ouvir, mas ao fazer: Jesus, em outra bem-aventurança, declara felizes aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam; Tiago exorta a ser “praticantes da palavra e não somente ouvintes”; o próprio Apocalipse, ao final, repete esta bênção em Apocalipse 22:7, formando um inclusio que abraça todo o livro com a mesma promessa.

O versículo é como uma campainha colocada à porta do Apocalipse: antes de trombetas, selos e juízos, ouve-se uma bem-aventurança dirigida à comunidade que se dispõe a acolher e obedecer. O makarios aqui não promete uma fuga do sofrimento, mas uma felicidade enraizada na fidelidade num tempo em que o kairos de Deus se aproxima. O contraste implícito entre kairos e chronos é importante: o leitor que lê, o ouvinte que escuta e o discípulo que guarda são descritos como pessoas que vivem não apenas no fluxo do calendário, mas no tempo qualitativo em que Deus age, o momento em que as coisas “chegam à cabeça” e se definem, como a própria literatura sobre kairos sugere. Ler Apocalipse à luz dessa abertura é percebê-lo menos como um catálogo de enigmas cronográficos e mais como um chamado pastoral à fidelidade: quem abre os ouvidos e a vida para essa profecia, sob a consciência de que o “tempo está próximo”, é declarado desde já bem-aventurado, como a árvore de Salmos 1 que, plantada junto às correntes de águas, dá o seu fruto “no seu tempo” e não seca.

Apocalipse 1:4a

João, às sete igrejas que estão na Ásia (Gr.: Iōannēs tais hepta ekklēsiais tais en tē Asia — “João, às sete igrejas que estão na Ásia”. Tradução mais literal: “João, às sete igrejas que [estão] na Ásia”.) O nome “João” verte o grego Iōannēs, que por sua vez translitera o hebraico Yōḥānān, “YHWH é gracioso”, combinando o elemento divino Yah / Yō com o verbo ḥānan (“ser gracioso”, “mostrar favor”). Já no centro da saudação, portanto, o próprio nome do autor torna-se uma espécie de prelúdio teológico: quem escreve é alguém cuja existência é selo de graça imerecida, algo que harmoniza com todo o tom do livro, no qual a perseverança dos santos se apoia na iniciativa graciosa de Deus. A expressão “igrejas” traduz ekklēsiai, vocábulo formado de ek (“para fora”) e kaleō (“chamar”), que, no grego comum, designa uma assembleia convocada, seja política, seja religiosa, e no Novo Testamento passa a indicar a comunidade reunida por Deus em Cristo, seja em uma cidade específica, seja em sentido mais abrangente. A especificação “sete igrejas” combina número literal (as comunidades de Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia) com o simbolismo do sete, associado à completude na própria estrutura do Apocalipse, em que o número se repete em selos, trombetas e taças, sugerindo que essas sete comunidades são uma miniatura representativa de toda a igreja ao longo da história.

A locução “que estão na Ásia” verte a construção atributiva tais hepta ekklēsiais tais en tē Asia: o primeiro artigo com ekklēsiais marca o grupo como definido, enquanto o segundo artigo, seguido do grupo preposicional en tē Asia, funciona como adjetivo atributivo, precisando a localização dessas igrejas. Do ponto de vista morfológico, Iōannēs está no nominativo, masculino, singular, desempenhando a função de sujeito epistolar — é o remetente que se apresenta, tal como ocorre nas cartas paulinas —, ao passo que tais hepta ekklēsiais se encontra no dativo, feminino, plural, marcado pela presença do numeral indeclinável hepta, indicando o destinatário da carta. A expressão en tē Asia traz Asia como substantivo próprio, feminino, dativo, singular, regido pela preposição en, que aqui indica localização geográfica; essa “Ásia” não é o continente moderno, mas a província romana na costa oeste da Ásia Menor, região que incluía precisamente as cidades mencionadas no capítulo 1, o que confirma a inserção concreta do livro em um espaço político, econômico e religioso bem definido.

A cláusula é um enunciado nominal, típico do cabeçalho epistolar: o nominativo “João” seguido do dativo “às sete igrejas” supõe um verbo implícito (“escreve” ou “envia”), exatamente como em “João às sete igrejas…”, estrutura profundamente enraizada na prática epistolar do primeiro século (cf. também Tiago 1:1; 1 Pedro 1:1). As traduções destacam essa estrutura de modo bastante uniforme: “João, às sete igrejas que estão na Ásia” (ARC); “João, às sete igrejas que estão na Ásia” (NVT); “João, às sete igrejas que se encontram na província da Ásia” (NVI); “John to the seven churches which are in Asia” — “João às sete igrejas que estão na Ásia” (KJV); “John to the seven churches that are in Asia” — “João às sete igrejas que estão na Ásia” (ESV). Exegética e teologicamente, essa primeira cláusula desenha um arco que vai de um indivíduo concreto, João, à totalidade simbólica das sete igrejas em uma província periférica do império, lembrando que a revelação que se seguirá é, ao mesmo tempo, profundamente situada e universal: o Cristo exaltado fala a comunidades reais, em cidades reais, com problemas reais, mas de tal forma que seus apelos e promessas alcançam toda assembleia que, em qualquer tempo e lugar, se reconhece “igreja” diante da Palavra. O endereço “na Ásia” indica que a revelação nasce em território sob a sombra de Roma, o que prepara a tensão entre o Cordeiro e a besta que perpassará todo o livro; a igreja é convocada como ekklēsia — assembleia convocada por Deus — em contraposição às assembleias cívicas convocadas pelo imperador, e a própria escolha do número sete sugere que, mesmo dispersa em cidades distintas, a comunidade de Cristo é vista como um corpo inteiro aos olhos daquele que a chama.

Apocalipse 1:4b

Graça e paz a vós da parte daquele que é, e que era, e que há de vir (Gr.: charis hymin kai eirēnē apo ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos — “Graça e paz a vós da parte daquele que é, e que era, e que há de vir”. Tradução mais literal: “Graça para vós e paz, da parte daquele que é e que era e que vem”.) A palavra “graça” verte o grego charis, ligado etimologicamente ao verbo chairō (“alegrar-se”, “regozijar-se”), de onde vem a ideia de favor que desperta alegria, benevolência imerecida, dom que não nasce do mérito do destinatário, mas da liberalidade do doador; no Novo Testamento, charis torna-se quase um termo técnico para designar a iniciativa salvadora de Deus em Cristo. “Paz” traduz eirēnē, vocábulo que, embora venha de um campo semântico grego associado a “união” e “integração” (provavelmente ligado ao verbo eirein, “ligar”, “atar”), assume nas cartas cristãs o lugar do hebraico šālōm, implicando não apenas ausência de conflito, mas inteireza, harmonia, bem-estar relacional com Deus e com o próximo. A fórmula “graça e paz” combina, assim, o cumprimento típico grego com a saudação judaica, condensando em duas palavras o evangelho que une judeus e gentios em um mesmo corpo (cf. Romanos 1:7; 1 Coríntios 1:3).

Os termos charis e eirēnē aparecem no nominativo, feminino, singular, coordenadas por kai e funcionando como núcleo de uma construção nominal de bênção: “graça… e paz… [sejam] a vós”, com o verbo de existência implícito, como ocorre frequentemente nas saudações paulinas. O dativo hymin (“a vós”) indica o destinatário beneficiado por essa graça e essa paz, enquanto a preposição apo (“da parte de”, “a partir de”) introduz a fonte da bênção: ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos. Aqui o artigo ho substantiva cada forma verbal, de modo que ho ōn (“aquele que é”, particípio presente de eimi), ho ēn (“aquele que era”, forma do imperfeito) e ho erchomenos (“aquele que vem”, particípio presente médio de erchomai) tornam-se títulos divinos, ecoando e expandindo a fórmula de Êxodo 3:14 na Septuaginta (“Eu sou o que é” — egō eimi ho ōn). Do ponto de vista sintático, João comete deliberadamente um “solecismo”: depois de apo, esperar-se-ia um genitivo, mas ele preserva a forma nominativa ho ōn, provavelmente para manter intacta a expressão consagrada como nome divino, reforçando o vínculo com a revelação do “Eu Sou” a Moisés e, por extensão, com os oráculos de Isaías em que Deus se declara “o primeiro e o último”.

As traduções espelham a densidade dessa fórmula: “Graça seja convosco e paz, da parte daquele que é, e que era, e que há de vir” (ARC); “Graça e paz a vocês, da parte daquele que é, que era e que há de vir” (NVI); “Graça e paz a vocês da parte daquele que é, que era e que há de vir” (NVT); “Grace be unto you, and peace, from him which is, and which was, and which is to come” — “graça seja para vós e paz, da parte daquele que é, e que era, e que há de vir” (KJV); “Grace to you and peace from him who is and who was and who is to come” — “graça a vós e paz, da parte daquele que é e que era e que há de vir” (ESV). Essa tríade verbal recusa reduzir Deus a um ponto fixo em um tempo abstrato: Ele é o que é, presença atual que sustenta a igreja; Ele era, Senhor da história passada de Israel e da igreja nascente; Ele vem, não apenas no sentido de um futuro distante, mas como o Deus que continuamente se aproxima, visita, julga e consola, até a consumação revelada no restante do livro (cf. Apocalipse 1:8; 4:8; 11:17; 16:5). Essa bênção de “graça e paz” enraíza, portanto, toda a leitura do Apocalipse em uma experiência concreta: não se trata de um catálogo frio de catástrofes, mas de uma palavra enviada à igreja a partir daquele cujo nome mesmo é um movimento entre ser, ter sido e vir, garantindo que a comunidade prova a graça agora, lembra a fidelidade de Deus no passado e vive na expectativa de sua vinda, como quem habita um tempo atravessado pela presença do Eterno.

Apocalipse 1:4c

...e da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono (Gr.: kai apo tōn hepta pneumatōn ha enōpion tou thronou autou — “e da parte dos sete espíritos que estão diante do seu trono”. Tradução mais literal: “e da parte dos sete espíritos que [estão] diante do seu trono”. A cláusula prossegue a estrutura da bênção anterior: novamente a preposição apo (“da parte de”) introduz a fonte da graça e da paz, agora identificada como “os sete espíritos” — tōn hepta pneumatōn. O numeral hepta, indeclinável, qualifica pneumatōn, substantivo neutro, genitivo, plural, derivado de pneuma, termo cuja etimologia remete ao verbo pneō (“soprar”, “respirar”) e cujo campo semântico abrange “vento”, “sopro” e, em contexto religioso, “espírito”, inclusive como tradução grega habitual do hebraico rûaḥ no Antigo Testamento. Em Apocalipse, a expressão “sete espíritos de Deus” reaparece em 3:1; 4:5; 5:6, onde os sete espíritos são identificados com sete lâmpadas diante do trono e com sete olhos do Cordeiro enviados por toda a terra, sugerindo que, mais do que sete entidades distintas, se trata de uma forma simbólica de falar da plenitude do Espírito de Deus, em harmonia com o uso do número sete como cifra de totalidade e perfeição em todo o livro. O relativo neutro plural ha (“os quais”) está no nominativo e funciona como sujeito de um verbo ser elíptico (“que [estão]”), introduzindo a expressão preposicional enōpion tou thronou autou: enōpion é uma preposição cujo valor básico é “diante de”, “na presença de”, literalmente “na face de”, formada a partir de en (“em”) e de um elemento ligado a “olhar” (ops), e rege aqui o genitivo tou thronou autou, “do seu trono”.

O termo thronou é substantivo masculino, genitivo, singular, indicando posse ou relação (“trono dele”), e autou é pronome pessoal, genitivo, singular, retomando o sujeito divino da cláusula anterior, de modo que a imagem é a de espíritos permanentemente colocados “em frente” ou “sob o olhar” do trono divino, prontos para servir. As versões principais convergem: “e da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono” (ARC); “e da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono” (NVI); “e da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono” (NVT); “and from the seven Spirits which are before his throne” — “e da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono” (KJV); “and from the seven spirits who are before his throne” — “e da parte dos sete espíritos que estão diante do seu trono” (ESV). Do ponto de vista exegético, a maior parte da tradição cristã tem visto aqui uma referência ao Espírito Santo em sua plenitude, emoldurada pela linguagem simbólica de sete espíritos, em paralelo com a visão de Isaías 11:2, onde o Espírito do Senhor repousa sobre o Messias em sete aspectos (Espírito do Senhor, de sabedoria, de entendimento, de conselho, de fortaleza, de conhecimento e de temor do Senhor), e com a visão de Zacarias 4, em que os sete olhos do Senhor percorrem toda a terra.

Inserido entre a menção ao Pai (“aquele que é, que era e que vem”) e, logo adiante, a de Jesus Cristo (Apocalipse 1:5), o sintagma “os sete espíritos que estão diante do seu trono” participa de uma moldura trinitária de saudação: graça e paz procedem do Deus eterno, da plenitude do Espírito e do Cordeiro, o que torna ainda mais significativa a posição “diante do trono”: a igreja é abençoada a partir do centro mesmo do governo divino, onde o Espírito, em sua multiforme atuação, está constantemente voltado para a história, sondando, iluminando, julgando e consolando. Assim, a cláusula final da saudação não apenas acrescenta um elemento à fórmula litúrgica, mas afirma, em imagens, que nenhuma das sete igrejas — nem qualquer comunidade cristã que leia o livro — vive isolada ou esquecida: diante do trono, a plenitude do Espírito está em permanente atenção, como olhos e lâmpadas, projetando sobre a terra a luz e o olhar daquele que é, que era e que vem.

SETE EM APOCALIPSE

O número sete é importante estrutural e simbolicamente no livro do Apocalipse. Estruturalmente, João organizou sua escrita em torno do número sete. Exemplos óbvios disso são as mensagens às sete igrejas (caps. 2–3), os sete selos (caps. 6–8), as sete trombetas (caps. 8–11) e as sete taças (caps. 15– 16). Outros usos explícitos do número sete incluem os sete espíritos (1:4; 5:6), os sete anjos das igrejas (1:20), as sete estrelas (1:16, 20; 2:1), os sete candelabros (1:12, 20; 2:1), as sete tochas (4:5), os sete trovões (10:3-4), o Cordeiro com sete chifres e sete olhos (5:6), os sete dragão com cabeças (12:3), e a besta de sete cabeças (13:1). No mundo antigo, o número sete às vezes era considerado um número sagrado. Rituais ou objetos associados ao divino geralmente ocorriam em grupos de sete. No judaísmo, o sete tinha um significado especial porque o sétimo dia era o sábado, o dia de descanso e o santo dia de Deus. Sete também era visto como um número que denotava completude ou perfeição, talvez derivado da observação de sete planetas no céu. No Apocalipse, o número sete frequentemente parece carregar esse significado simbólico. Assim, por exemplo, os “sete espíritos que estão diante de seu trono” (1:4) provavelmente representam a totalidade do espírito de Deus. Para mais informações sobre o antigo significado do número sete, ver M. H. Pope, “Seven, Seventh, Seventy,” Interpreter’s Dictionary of the Bible, ed. George Arthur Buttrick, 4 vols. (Nashville: Abingdon, 1962), 4:294-95; e Jöran Friberg, “Numbers and Counting”, The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman, 6 vols. (Nova York: Doubleday & Co., 1992), 4:1139-45. Por outro lado, Adela Yarbro Collins (“Numerical Symbolism in Jewish and Early Christian Apocalyptic Literature,” Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, ed. Hildegard Temporini e Wolfgang Haase [Berlim: Walter de Gruyter, 1984], II.21.2:1221 -87) argumentou que há pouca evidência para apoiar a crença de que sete era um símbolo de completude.

Apocalipse 1:5a

...e da parte de Jesus Cristo, a fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos e o soberano dos reis da terra; (Gr.: kai apo Iēsou Christou, ho martys ho pistos, ho prōtotokos tōn nekrōn kai ho archōn tōn basileōn tēs gēs — Tradução mais literal: “e da parte de Jesus Cristo, a testemunha, a fiel, o primogênito dos mortos e o governante dos reis da terra”.) Aqui cada vocábulo carrega um peso etimológico que se derrama sobre a cristologia inteira do livro. O nome Iēsous (“Jesus”) remete ao hebraico Yēšûaʿ (“YHWH é salvação”), condensando no próprio nome a promessa de um Deus que salva por iniciativa própria, não por resposta humana. O título Christos (“Cristo”) deriva de chriō (“ungir”), ecoando a figura do ungido régio e sacerdotal e ligando Jesus tanto ao Messias davídico prometido quanto à unção espiritual que repousa sobre Ele sem medida. O substantivo martys (“testemunha”) designa, em seu uso jurídico original, aquele que presta depoimento veraz diante do tribunal; a história cristã acabará por associá-lo também ao que sela seu testemunho com o sangue, de onde vem o nosso “mártir”. O adjetivo pistos (“fiel”, “confiável”) sublinha a absoluta confiabilidade desse testemunho: quando Jesus fala, a realidade se revela como ela é, sem maquiagem. Já prōtotokos (“primogênito”) junta prōtos (“primeiro”) e tiktein (“gerar”), passando a significar não apenas o primeiro em ordem temporal, mas o herdeiro de preeminência, como em Salmos 89:27: “farei dele o meu primogênito, o mais exaltado dos reis da terra”. Por fim, archōn traz a ideia de governante, chefe, aquele que exerce autoridade real; unido a “reis da terra”, indica que Jesus não é apenas mais um rei entre outros, mas o Senhor soberano que paira sobre todos os poderes.

A preposição apo com o genitivo (“apo Iēsou Christou”) indica origem: graça e paz fluem “da parte” de Jesus como de uma fonte inesgotável, em paralelismo com a procedência do Pai e do Espírito no contexto da saudação. O sintagma “ho martys ho pistos” traz dois termos no nominativo, masculino, singular, ambos articularizados; martys funciona como substantivo, “a testemunha”, enquanto pistos, adjetivo também no nominativo, masculino, singular, assume função adjetiva atributiva: é a testemunha qualificada justamente pela fidelidade. A seguir, “ho prōtotokos tōn nekrōn” apresenta prōtotokos como adjetivo substantivado, masculino, nominativo, singular, recebendo artigo e sendo determinado pelo genitivo plural tōn nekrōn (“dos mortos”): Ele é o primogênito que emerge do domínio dos mortos, e não apenas o primeiro a morrer, mas o primeiro a sair da morte com um corpo glorioso, abrindo uma nova ordem de existência. Por fim, “ho archōn tōn basileōn tēs gēs” mostra archōn como substantivo, masculino, nominativo, singular, com dois genitivos que se encadeiam: tōn basileōn (“dos reis”) e tēs gēs (“da terra”), formando a ideia de governo sobre todos os poderes políticos terrenos. O uso das formas no nominativo com artigos sucessivos (“ho martys, ho pistos, ho prōtotokos, ho archōn”) sugere uma série de predicativos em aposição a “Jesus Cristo”, com cópula elíptica: implicitamente, “Jesus Cristo é a testemunha fiel, é o primogênito dos mortos, é o governante dos reis da terra”.

Essa cadeia de títulos se liga à saudação anterior (“graça a vós e paz”) por meio de kai apo, que introduz a terceira fonte da bênção, depois do Pai e do Espírito. Assim, o sujeito lógico da sequência é a graça e a paz que procedem “de Jesus Cristo”, enquanto os predicativos no nominativo desenham a identidade desse Jesus ao qual a comunidade se volta. A ordem crescente — da função de testemunha, passando pela primazia sobre a morte e culminando no governo universal — conduz o leitor do Cristo humilhado, que testemunha diante de Pilatos (como em João 18:37, onde Ele declara ter vindo “para dar testemunho da verdade”), ao Cristo exaltado, que reina sobre todos os reis. O genitivo “tōn nekrōn” pode ser lido como genitivo partitivo (“dentre os mortos”), reforçando que Ele irrompe de dentro do conjunto daqueles que jazem sob o jugo da morte, mas não como simples indivíduo isolado: é o cabeça de uma nova humanidade ressuscitada, em harmonia com Colossenses 1:18, que o chama de “primogênito dentre os mortos, para ter em tudo a primazia”. Já “tōn basileōn tēs gēs” ecoa o Salmo 89:27, onde o primogênito de Deus é proclamado “o mais exaltado dos reis da terra”, estabelecendo uma ponte explícita entre o Filho davídico prometido e o Cristo do Apocalipse.

Na comparação de versões, a King James Version traz: “And from Jesus Christ, who is the faithful witness, and the first begotten of the dead, and the prince of the kings of the earth”, enfatizando a fidelidade do testemunho e chamando-o de “príncipe” dos reis, um termo que ressalta nobreza e autoridade, embora menos forte que “soberano”. A NVI em português verte: “e da parte de Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primogênito dentre os mortos e o soberano dos reis da terra”, aproximando-se muito do nosso texto e preferindo “soberano”, que faz sobressair a supremacia absoluta de Cristo sobre o concerto político do mundo. A ARA segue caminho semelhante: “a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra”, destacando com maiúsculas o caráter de título oficial dessas designações. A leitura conjunta desses testemunhos mostra um consenso: o Cristo que fala no Apocalipse não é um profeta entre outros, mas a testemunha derradeira, o primogênito da nova criação e o Rei dos reis.

Quando olhamos a expressão “a fiel testemunha”, ela aponta antes de tudo para a vida histórica de Jesus, que não apenas falou da verdade, mas encarnou a verdade a ponto de morrer por ela; o Evangelho de João o apresenta vindo ao mundo “para dar testemunho da verdade”, e cada gesto, cada silêncio diante do tribunal se torna uma janela para o ser de Deus. Chamar Jesus de “primogênito dos mortos” não significa que Ele tenha sido o primeiro cronologicamente a voltar à vida (já que ressurreições aparecem antes na Escritura), mas que Ele é a cabeça de uma ressurreição qualitativamente nova, a primeira vida ressuscitada que não volta à morte, inaugurando a condição futura dos santos. Em Colossenses 1:18, essa primogenitura é explicitamente associada à supremacia na Igreja e na criação, de modo que o Apocalipse insere seu Cristo como aquele em quem a nova criação já começou. Quando, enfim, o texto o chama de “governante dos reis da terra”, estabelece uma tensão com o restante do livro, onde muitos desses reis se colocam contra o Cordeiro (como em Apocalipse 17:14), mas são vencidos por Aquele que já é, desde o princípio, o verdadeiro Senhor de suas coroas. A comunidade, cercada de poderes hostis, é convidada a ver, por trás dos tronos instáveis da história, o rosto daquele que reina com cicatrizes de testemunha e de primogênito.

Apocalipse 1:5b

Àquele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados com o seu sangue,... (Gr.: tō agapōnti hēmas kai lysanti hēmas ek tōn hamartiōn hēmōn en tō haimati autou — Tradução mais literal: “Ao que nos ama e nos soltou para fora dos nossos pecados, por meio do sangue dele”.) A expressão começa com o artigo dativo , que substantiva os particípios seguintes, criando a figura de um único destinatário da doxologia: “ao que nos ama” e “ao que nos libertou”. O verbo agapaō está no particípio presente, ativo, dativo, masculino, singular (agapōnti), sugerindo uma ação contínua: não se trata apenas de um amor passado, mas de um amor que persiste, que se derrama continuamente sobre os seus. Já lysanti vem de lyō (“soltar, desfazer laços, libertar”), particípio aoristo, ativo, dativo, masculino, singular, indicando um ato completo e decisivo, um corte definitivo que nos arrancou de dentro da esfera dos pecados. O termo hamartia designa o pecado como desvio de alvo, ruptura da aliança, e aparece aqui no plural, hamartiōn, para indicar a multiplicidade concreta das nossas transgressões. O substantivo haima (“sangue”) evoca tanto a vida derramada quanto o preço sacrificial, lembrando que a libertação não é mera declaração jurídica, mas custa a própria vida do Cordeiro.

Do ponto de vista morfológico, o dativo “tō agapōnti… kai lysanti” funciona como dativo de referência e de louvor: “ao que nos ama e nos libertou”, antecipando a doxologia desenvolvida no versículo 6 (“a ele a glória e o poder para todo o sempre”). O uso do particípio presente em agapōnti dá ao amor de Cristo uma coloração durativa: Ele é, neste exato momento, o que ama, permanece amando, sustém com amor a comunidade às voltas com perseguição e tensão. Em contraste deliberado, o particípio aoristo lysanti retrata um ato pontual no passado salvador: houve um momento — a cruz — em que Ele nos desatou das correntes do pecado. A sequência hēmas (acusativo de primeira pessoa do plural) repetida reforça que esse ato foi feito “para nós”, colocando a comunidade como objeto direto tanto do amor presente quanto da libertação consumada. A preposição ek, com o genitivo tōn hamartiōn hēmōn, exprime não apenas origem, mas saída: é como se estivéssemos dentro de uma prisão chamada “nossos pecados”, e a mão perfurada nos puxasse para fora desse recinto. Por fim, en tō haimati autou traz haima no dativo singular, sob a regência de en, exprimindo meio ou instrumento: o sangue de Cristo é o meio pelo qual essa libertação se efetiva, não apenas um símbolo, mas o caminho concreto pelo qual a culpa é quebrada.

Essa cláusula prolonga e aprofunda a apresentação de Jesus feita pelos títulos anteriores. Se, antes, Ele era descrito em terceira pessoa como testemunha fiel, primogênito e governante, aqui a linguagem se torna quase litúrgica, deslocando-se para um “ao que…”, como se a comunidade, ao ouvir quem Ele é, imediatamente se voltasse para Ele em adoração. O paralelismo interno, com os dois particípios coordenados por kai (“ao que nos ama e nos libertou”), cria um ritmo que liga inseparavelmente amor e libertação: o ato libertador não é frio decreto, mas transbordamento de um amor que continua a abraçar os libertos. O complemento “dos nossos pecados” deixa claro que o cativeiro do qual saímos não é, em primeiro lugar, político ou social, mas espiritual e moral, ainda que tenha inevitáveis efeitos nas outras esferas; e a locução “por meio do seu sangue” retoma todo o pano de fundo sacrificial da Escritura, desde o sangue pascal em Êxodo até os cânticos do Cordeiro em Apocalipse 5.

Na comparação de versões, a ARA verte: “Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados”, aproximando-se muito da leitura de Nestle–Aland, que traz lysanti (“libertou”); a NVI diz: “Ele nos ama e nos libertou dos nossos pecados por meio do seu sangue”, reforçando a permanência do amor no presente. Já a ARC, seguindo o texto bizantino que lê lousanti (“lavou”), traz: “Àquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados”, preferindo a metáfora da purificação. A crítica textual contemporânea, porém, aponta para lysanti como a forma mais provavelmente original, apoiada por manuscritos antigos como P¹⁸ e códices de grande peso, pelo que muitas edições modernas optam por “libertou” ou “nos soltou” em vez de “lavou”. De todo modo, o próprio livro do Apocalipse faz amplo uso da imagem de lavagem pelo sangue (como em Apocalipse 7:14, onde os santos “lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro”), mostrando que, ainda que a forma em 1:5 seja “libertou”, a metáfora da purificação não é alheia à teologia joanina.

Esse versículo desenha a lógica da experiência cristã à luz do Cordeiro. O amor presente (“ao que nos ama”) é a atmosfera na qual a Igreja respira; não é um amor em suspenso, condicionado, mas um abraço contínuo, que sustenta a fé em meio ao escárnio dos reis da terra sobre os quais Ele reina. A libertação “dos nossos pecados” situa o problema humano na raiz certa: antes de qualquer opressão externa, há um cativeiro interior que precisa ser rompido. Isaías 40:2 já anunciara um tempo em que a iniquidade de Jerusalém seria “paga”, sua pena “cumprida”; o Apocalipse mostra que esse tempo encontrou sua plenitude no sangue do Cordeiro, que sela de uma vez por todas a quitação da culpa. O eco de 1 Coríntios 6:11 é inevitável: “vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados”, atestando que a obra de Cristo não apenas declara, mas transforma, purifica e consagra. Quando o leitor ouve que foi “solto para fora” de seus pecados pelo sangue, é convidado a enxergar sua própria história como êxodo: Cristo é o Cordeiro cujo sangue marca a porta, mas é também o libertador que abre o mar e conduz para fora da casa de servidão.

Apocalipse 1:6

...e nos fez reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai; a ele [seja] a glória e o poder pelos séculos dos séculos! Amém. (Gr.: kai epoiēsen hēmas basileian, hiereis tō theō kai patri autou, autō hē doxa kai to kratos eis tous aiōnas [tōn aiōnōn]; amēn — Tradução mais literal: “e fez-nos reino, sacerdotes para o Deus e Pai dele; a ele [é] a glória e o domínio para os séculos dos séculos; amém.”) O verbo epoiēsen (“fez, constituiu”) procede de poieō (“fazer, produzir, criar”), verbo que no grego bíblico pode descrever tanto o ato criador de Deus quanto a constituição de um povo em nova condição, como quando o Senhor “faz” alguém justiça ou “faz” de um povo sua herança. O substantivo basileia (“reino”) reúne os sentidos de “realeza”, “domínio régio” e “comunidade governada por um rei”; os léxicos sublinham que em textos como Apocalipse 1:6 a expressão “poiein tina basileian” significa “tornar alguém reino”, ecoando o antigo anúncio de um povo que encarna a realeza de Deus no mundo. Já hiereus (“sacerdote”) remete ao ofício cultual de oferecer sacrifícios e mediar bênção, sendo retomado aqui para toda a comunidade, como desenvolvimento da promessa de um “reino de sacerdotes” feita a Israel em Êxodo 19:6. O termo doxa (“glória”) carrega a ideia de peso, esplendor, reputação manifesta, enquanto kratos designa força efetiva, poder que se exerce e domina; juntos, formam uma fórmula doxológica frequente: a Deus pertencem o brilho e o domínio. Por fim, aiōn (“era, século”) no plural com o genitivo tōn aiōnōn constrói a expressão idiomática “pelos séculos dos séculos”, acumulando eras sobre eras para exprimir a eternidade, e amēn sela a doxologia com o “assim é” da fé que consente a tudo que foi proclamado.

O verbo epoiēsen está no aoristo, indicativo, ativo, terceira pessoa do singular, com sujeito implícito retomando o Cristo do versículo anterior, “aquele que nos ama e nos libertou dos nossos pecados”. O pronome hēmas (“nós”) está no acusativo de primeira pessoa do plural e funciona como objeto direto desse verbo: somos o material sobre o qual o Rei operou. Em seguida, basileian vem como substantivo, feminino, singular, acusativo, funcionando não como objeto direto independente, mas como predicativo do objeto, assim como hiereis (substantivo, masculino, plural, acusativo) que se lhe junta por justaposição: Ele nos fez, a nós, um reino, e nos fez sacerdotes. O dativo tō theō kai patri autou (“para o seu Deus e Pai”) apresenta dois substantivos masculinos, singulares, no dativo, ligados por kai, indicando destinatário e esfera: o reino e o sacerdócio que nos definem são “para” Deus, orientados ao serviço e ao culto. O segundo movimento do versículo começa com autō (“a ele”), pronome pessoal no dativo masculino singular, que aqui é dativo de vantagem ou de direção, introduzindo a doxologia: “a ele [seja] a glória e o poder”. Doxa e kratos aparecem no nominativo singular, feminino e neutro respectivamente, funcionando como sujeitos lógicos de um verbo de cópula elíptico (“[é]”), de modo que a frase exprime, subentendido, “a glória e o domínio são dele”. A locução preposicional eis tous aiōnas [tōn aiōnōn] traz o acusativo plural tous aiōnas (“os séculos”) qualificado pelo genitivo tōn aiōnōn (“dos séculos”), estabelecendo a duração ilimitada dessa glória e desse domínio.

Apocalipse 1:6 prolonga a grande frase que começou no versículo 5: o Cristo que “nos ama” (particípio presente) e “nos libertou” (particípio aoristo) agora “nos fez” (aoristo indicativo) reino e sacerdotes. Há, portanto, um encadeamento perfeito: amor contínuo, libertação consumada, constituição de identidade. O objeto direto hēmas recebe dois predicativos em aposição, basileian e hiereis, que não se excluem nem se somam como duas dignidades paralelas, mas se interpretam mutuamente: somos um reino precisamente na medida em que somos sacerdotes, e nosso sacerdócio é real, configurado pela realeza do Cordeiro. O dativo tō theō kai patri autou delimita o eixo desse sacerdócio: não somos sacerdotes de nós mesmos, nem de qualquer entidade anônima, mas do Deus que, em relação ao Filho, é “seu Deus e Pai”, linguagem que guarda ao mesmo tempo a distinção das pessoas e a intimidade da relação. A segunda metade do versículo, “autō hē doxa kai to kratos eis tous aiōnas [tōn aiōnōn]; amēn”, toma o destinatário dessa ação (“aquele que nos fez reino e sacerdotes”) e o transforma em alvo direto de louvor: o dativo autō abre uma frase doxológica em que o sujeito explícito são “a glória e o poder”, mas o sentido é de atribuição: a glória e o poder são reconhecidos como pertencentes a Ele, agora e por todas as eras.

Na comparação de versões, a King James Version registra: “And hath made us kings and priests unto God and his Father; to him be glory and dominion for ever and ever. Amen.”, seguindo o Texto Recebido, que lê basileis (“reis”) e introduz uma conjunção kai entre “reis” e “sacerdotes”. Já versões baseadas em Nestle–Aland 28 e textos críticos modernos vertem “reino”: a ESV traz “and made us a kingdom, priests to his God and Father, to him be glory and dominion forever and ever. Amen.”, enquanto a NVI em português diz: “e nos constituiu reino e sacerdotes para servir a seu Deus e Pai. A ele sejam glória e poder para todo o sempre! Amém.” Comentários léxicos observam que basileian em acusativo singular, sem conjunção intermediária, favorece a leitura “reino” em vez de “reis”, entendendo o povo como corpo régio, não apenas como indivíduos entronizados. Essa leitura harmoniza-se com passagens paralelas, como Apocalipse 5:10 (“e os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra”) e Apocalipse 20:6 (“serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele mil anos”), bem como com Êxodo 19:6 (“e vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”) e 1 Pedro 2:9 (“vós sois… sacerdócio real”), onde a comunidade inteira é vista como corpo régio-sacerdotal.

O versículo condensa a vocação da Igreja como continuidade e transfiguração da vocação de Israel. Em Êxodo 19:6, Israel é chamado “reino de sacerdotes e nação santa”, imagem que resume uma existência colocada entre Deus e as nações como canal de bênção e presença. Agora, em Apocalipse 1:6, essa linguagem é retomada sobre um povo redimido pelo sangue do Cordeiro, espalhado entre as nações, mas unido num só “reino” e num só “sacerdócio”. Estudos recentes sobre o tema do “reino de sacerdotes” mostram como essa expressão designa um povo inteiro investido de função cultual e representativa: aproximar o mundo de Deus e levar Deus ao mundo, oferecendo sacrifícios espirituais de louvor, obediência e serviço. A união de “reino” e “sacerdotes” indica que não se trata de um clero separado de um laicato passivo, mas de uma comunidade inteira chamada a exercer, em Cristo, um ministério sacerdotal de intercessão e proclamação, como explicita 1 Pedro 2:5.9 ao falar de “sacerdócio santo” e “sacerdócio real” encarregado de proclamar as virtudes daquele que nos tirou das trevas para sua luz maravilhosa.

Ao declarar “a ele [seja] a glória e o poder pelos séculos dos séculos”, João mostra que todo esse estatuto régio-sacerdotal da Igreja é derivado e orientado: somos reino apenas porque Ele é Rei; somos sacerdotes apenas porque Ele é o Sumo Sacerdote que nos introduz no Santo dos Santos. Apocalipse 5:10 ampliará esse tema, ligando o “reino e sacerdotes” ao futuro “reinar sobre a terra”, enquanto Apocalipse 20:6 mostrará os que participam da primeira ressurreição como “sacerdotes de Deus e de Cristo” que reinam com Ele. Em termos práticos, o versículo convida o leitor a perceber a própria vida cristã como uma liturgia contínua: cada gesto de fidelidade é ato de reino, cada oração e cada ato de amor são incenso sacerdotal, tudo convergindo para essa doxologia final em que a glória e o domínio são devolvidos Àquele de quem nunca deixaram de ser. A Igreja não existe para tomar o poder em seu próprio nome, mas para ser, dentro da história, o lugar em que a glória e o poder de Cristo são reconhecidos e refletidos, até que “os reinos do mundo se tornem do nosso Senhor e do seu Cristo” (Apocalipse 11:15) e a doxologia de 1:6 seja plenamente visível.

Apocalipse 1:7a

Eis que ele vem com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram;... (Gr.: Idou erchetai meta tōn nephelōn, kai opsetai auton pas ophthalmos kai hoitines auton exekentēsan — “Eis que ele vem com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram.” Tradução mais literal: “Vê! Ele está vindo com as nuvens, e todo olho o verá, também quantos o traspassaram.” Nesta abertura, o advérbio-exclamação idou (“olha!”, “vede!”) funciona como um grito litúrgico, chamando a congregação a fixar o olhar num acontecimento que rompe o cotidiano, ecoando fórmulas proféticas do Antigo Testamento em que a visão é inaugurada com um “eis” que abre o cenário escatológico. O verbo erchetai (“vem”, “está vindo”) está no presente indicativo, voz média deponente, terceira pessoa do singular, mas com força de futuro certo: é o “presente escatológico” que descreve como já em curso aquilo que ainda aguarda consumação, e essa forma verbal se casa com Daniel 7:13, onde “um como filho de homem” vem “com as nuvens do céu”, ligando o Cristo glorificado ao Filho do Homem entronizado diante do Ancião de Dias. A expressão meta tōn nephelōn (“com as nuvens”) retoma o campo semântico das teofanias em que a nuvem é o véu da presença divina — da coluna de nuvem no êxodo às nuvens da transfiguração —, de modo que aqui não se trata apenas de meteorologia, mas de Cristo vestindo-se dos paramentos da própria Shekinah, vindo em cortejo celeste como Senhor da história.

Na sequência, opsetai (“verá”) é futuro médio deponente, terceira pessoa do singular, do verbo “ver, contemplar” num registro mais forte que simples perceber: é visão que apreende, visão que reconhece. O sujeito pas ophthalmos (“todo olho”) é um singular coletivo que inclui cada indivíduo, sem exceção, e alarga o quadro da cena: não apenas os fiéis, mas toda a humanidade terá o olhar arrancado da distração para defrontar-se com o Cristo que vem. A relativa hoitines (“os quais”, “aqueles que exatamente…”) acrescenta um traço de ênfase: não se fala genericamente dos inimigos, mas daqueles que têm uma relação histórica específica com o Crucificado. O verbo exekentēsan (“traspassaram”) é aoristo indicativo ativo, terceira pessoa do plural, de ekkenteō (“traspassar, transfixar”), termo que os léxicos descrevem como perfurar com um instrumento agudo até atravessar, abrindo uma ferida irrefutável; é um verbo usado apenas duas vezes no Novo Testamento, aqui e em João 19:37, em ambos os casos ligado à morte de Jesus. Etimologicamente, ekkenteō combina a preposição ek (“para fora”) com a raiz de kentron (“ferrão”, “agulhão”), compondo a imagem do corpo de Cristo como alvo do golpe último, o ferrão cravado na carne do Cordeiro — e, por isso mesmo, como sinal permanente de juízo e graça: o Ressuscitado é reconhecido pelas marcas que os homens lhe imprimiram.

Esta cláusula se organiza como um anúncio solene: o “eis” abre a visão; o verbo “vem” com seu complemento preposicional “com as nuvens” estabelece o cenário teofânico; em seguida, duas orações coordenadas descrevem a resposta da criação: “todo olho o verá” e, num foco estreitado, “os que o traspassaram”. O efeito é cinematográfico: primeiro o plano geral do cortejo nas nuvens, depois o close nos rostos humanos, por fim a câmera pousa sobre aqueles cujas mãos (e corações) perfuraram o Senhor da glória. No campo intertextual, Apocalipse 1:7 costura Daniel 7:13 (“via nas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o filho do homem”) com Zacarias 12:10 (“olharão para mim, a quem traspassaram, e o prantearão como quem pranteia por um unigênito”), de modo que a figura traspassada de Zacarias, que é ao mesmo tempo Deus e o Servo ferido, agora se identifica com o Cristo exaltado que volta sobre as nuvens. Mateus 24:30 retoma a mesma tessitura: “todas as tribos da terra se lamentarão, e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória”, confirmando que o vidente do Apocalipse lê a história de Jesus como o ponto de convergência de todas as visões proféticas anteriores.

Na comparação de versões, a KJV verte: “Behold, he cometh with clouds; and every eye shall see him, and they also which pierced him” (“Eis que ele vem com as nuvens; e todo olho o verá, e também aqueles que o traspassaram”), enquanto a ESV diz: “Behold, he is coming with the clouds, and every eye will see him, even those who pierced him” (“Eis que ele está vindo com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram”). A NVI em português oferece: “Eis que ele vem com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram”, e a ARC muito proximamente: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até os mesmos que o traspassaram”, preservando o paralelismo entre a universalidade do “todo olho” e a particularidade histórica dos que feriram o Cristo. A NVT intensifica o tom oracular com “Vejam! Ele vem com as nuvens do céu, e todos o verão, até mesmo aqueles que o transpassaram”, destacando a força convocatória do idou (“Vejam!”) e reforçando o caráter público da manifestação do Ressuscitado. Teologicamente, o versículo projeta uma cena na qual o tempo da fé dá lugar ao tempo da visão: aquele que hoje é crido sem ser visto surgirá em horizonte cósmico que nenhuma lente poderá ignorar; e, de forma ainda mais pungente, aqueles que participaram — por ato ou cumplicidade — do traspassamento de Jesus serão confrontados com a verdade de sua própria violência. João 19:37 já havia lido Zacarias 12:10 como cumprimento na cruz (“eles olharão para aquele que traspassaram”), mas aqui a mesma profecia é deslocada do Calvário para o dia final, unindo história e escatologia numa única linha em que o Crucificado e o Vindouro são o mesmo Senhor. O texto, portanto, não apenas declara que Cristo voltará; ele promete que não haverá esquina da história, nem olhar individual, que possa se furtar a esse encontro com o transfixado que vem nas nuvens, trazendo nas mãos feridas a prova irrefutável de seu amor e o critério último de todo juízo.

Apocalipse 1:7b

...e todas as tribos da terra se lamentarão por causa dele. Sim! Amém!” (Gr.: kai kopsontai ep’ auton pasai hai phylai tēs gēs. nai, amēn — Tradução mais literal: “e bater-se-ão em pranto sobre ele todas as tribos da terra. Sim, amém.”) O verbo kopsontai (“se lamentarão”) é futuro médio deponente, terceira pessoa do plural, do verbo koptō (“cortar, golpear, bater no peito”), que os léxicos descrevem como o gesto ritual de bater no peito em luto intenso, o lamento que se traduz em golpes físicos, típico de funerais e situações de catástrofe. Assim, o futuro aqui não sugere um suspiro discreto, mas um choro que sacode o corpo, uma dor que se derrama em gesto público, como se todas as tribos do mundo improvisassem um grande cortejo fúnebre em volta daquele que haviam rejeitado. O sintagma ep’ auton (“sobre ele”, “por causa dele”) com a preposição epi e o acusativo indica tanto a direção do lamento — voltado para a pessoa de Cristo — quanto a causa desse pranto: choram “por causa dele”, porque finalmente percebem quem foi o Crucificado, e porque a vinda em glória expõe, em luz crua, o drama de tê-lo desprezado.

O sujeito pasai hai phylai tēs gēs (“todas as tribos da terra”) retoma o vocabulário de Gênesis e das promessas feitas a Abraão, em que “todas as famílias da terra” seriam benditas na sua descendência, e o converge com o cenário escatológico em que essas mesmas famílias, agora chamadas “tribos”, se vêem convocadas diante do Filho do Homem. O substantivo phylai (“tribos”) designa tanto clãs de Israel quanto agrupamentos étnicos em geral; já (“terra”) pode significar “solo”, “território” ou o mundo habitado, e há discussão se aqui se restringe à terra de Israel ou se amplia para a humanidade inteira, sobretudo porque Mateus 24:30 repete quase literalmente a fórmula dizendo que “todas as tribos da terra se lamentarão” ao verem o Filho do Homem vindo nas nuvens. A maioria das traduções modernas entende o alcance universal da cena: a NVI afirma que “todos os povos da terra se lamentarão por causa dele”; a ARC fala de “todas as tribos da terra”, e a NVT de “todas as nações da terra se lamentarão por causa dele”, reforçando que o lamento não se limita a Jerusalém, mas envolve o concerto inteiro das nações. Em inglês, a ESV diz: “and all tribes of the earth will wail on account of him” (“e todas as tribos da terra lamentarão por causa dele”), enquanto a Young’s Literal Translation opta por “all the tribes of the land”, ressaltando o vínculo com a terra de Israel, leitura que ecoa o foco de Zacarias 12:10–12, onde o pranto se espalha “sobre Jerusalém” e “sobre as famílias da terra” em torno de quem foi traspassado. O versículo termina com o duplo selo “nai, amēn” (“sim, amém”), unindo um “sim” grego a um “amém” hebraico e formando um coro litúrgico em duas línguas: é como se a Igreja, ao ouvir esse anúncio de luto e glória, respondesse, tanto no idioma do mundo helênico quanto no da antiga aliança, que essa visão é verdadeira, necessária, incontornável.

Na tessitura bíblica mais ampla, esse lamento universal liga Apocalipse 1:7 não apenas a Zacarias 12:10, onde a casa de Davi e os habitantes de Jerusalém choram “como se chora por um filho único”, mas também às palavras de Jesus em Mateus 24:30, nas quais “todas as tribos da terra se lamentarão” ao verem o Filho do Homem vindo sobre as nuvens, e à própria leitura joanina de Zacarias em João 19:37, quando o evangelista vê no golpe da lança o cumprimento de “olharão para aquele que traspassaram”. Esse fio intertextual mostra que o lamento final não é mero sentimentalismo tardio, mas a consumação de um processo: o mesmo povo que, em Zacarias, fere e depois pranteia, agora se torna símbolo de um mundo inteiro que reconhece tardiamente o Messias; e o Cristo que foi olhado na humilhação da cruz será então visto na exaltação das nuvens, com o choro agora ampliado em escala global. Entre esses dois “olhares” — o olhar que traspassa e o olhar que se arrepende — se desenrola toda a história da graça: hoje ainda é tempo de olhar para o Traspassado pela fé, como quem recebe um convite à conversão; naquele dia, o olhar será inevitável e o pranto, incontornável. O “Sim! Amém!” final é, ao mesmo tempo, descanso e tremor: descanso para os que aguardam o Justo que vem com as nuvens, tremor para os que perceberão, tarde demais, que o Cordeiro ferido que desprezaram é também o Rei diante de quem toda tribo e todo peito se curvarão em pranto.

Apocalipse 1:8

Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso. (Gr.: Egō eimi to alpha kai to ō, legei kyrios ho theos, ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos, ho pantokratōr — Tradução mais literal: “Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o que é e o que era e o que vem, o Todo-Governante.”) O enunciado começa com Egō eimi (“Eu sou”), fórmula que, no grego comum, é simplesmente a junção do pronome de 1ª pessoa egō (“eu”) com o verbo de ligação eimi (“ser, estar”), mas que na Escritura ganha ressonâncias de auto-revelação divina, ecoando tanto os “Eu sou” de Jesus em João quanto, por via da Septuaginta, a resposta de Deus a Moisés: “Eu sou o que é” (Egō eimi ho ōn) em Êxodo 3:14. A sequência to alpha kai to ō transforma a primeira e a última letras do alfabeto grego em título teológico: alpha é a primeira letra, ōmega (pronunciada ō) a última, de modo que a expressão, nascida do universo da linguagem, é elevada aqui à condição de metáfora cósmica — Aquele que fala é o início e o término de toda história, o arco inteiro sobre o qual tudo o mais é apenas uma frase. O falante é identificado como kyrios ho theos (“Senhor, o Deus”), união de dois títulos carregados: kyrios é o termo que a Septuaginta usa para verter o nome divino YHWH, enquanto theos designa Deus em sua unicidade absoluta; juntos, formam uma autodeclaração que remete às fórmulas de Isaías: “Eu sou o primeiro e eu sou o último; além de mim não há Deus.” A tríade ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos retoma, em forma desenvolvida, o “ho ōn” de Êxodo 3:14 LXX, expandindo o “Aquele que é” para abarcar passado (“o que era”) e futuro (“o que vem”). Finalmente, o título ho pantokratōr (“o Todo-Poderoso”) resulta da junção de pan (“tudo”) com a raiz de krateō (“segurar com força”, “dominar”), significando “aquele que domina todas as coisas”, “o que detém todo o poder”; léxicos e estudos de história da linguagem assinalam que pantokratōr traduz frequentemente, na Septuaginta, títulos como “Senhor dos Exércitos” e “Deus Todo-Poderoso”, e no Novo Testamento aparece sobretudo no Apocalipse como nome próprio do Deus soberano.

O pronome pessoal egō na primeira pessoa, singular, exerce função de sujeito explícito no versículo; eimi é verbo de ligação, tempo presente, modo indicativo, voz ativa, primeira pessoa, singular, ligando o sujeito ao predicado nominal to alpha kai to ō. Os dois substantivos “alfabéticos” aparecem com artigo definido neutro, singular, no caso nominativo (to alpha, to ō), funcionando como predicativos do sujeito: o que fala se identifica com o início e o fim da série, não em sentido meramente cronológico, mas ontológico. O verbo legei (“diz”) está no presente indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, introduzindo a fala direta: é o Senhor Deus quem pronuncia a auto-definição. Kyrios e theos estão ambos no nominativo, masculino, singular (kyrios ho theos), com ho theos em aposição explicativa a kyrios: o Senhor é, precisamente, o Deus que fala. A seguir, a tríade “que é, que era, que há de vir” é expressa por três formas articularizadas: ho ōn é particípio presente, ativo, nominativo, masculino, singular de eimi, substantivado pelo artigo ho, de modo que se torna título: “o existente”, “o que é”; ho erchomenos é particípio presente, deponente (formalmente médio, mas com sentido ativo), nominativo, masculino, singular, de erchomai (“vir”), e designa “o que vem”, o que está a caminho; já ho ēn é um caso peculiar em que o artigo ho (nominativo, masculino, singular) se junta à forma finita do verbo no imperfeito (ēn, “era”), criando, de maneira gramaticalmente anômala mas teologicamente intencional, uma espécie de “título verbal” para o passado divino: “o que era”. Todos esses elementos estão no nominativo, em aposição ao sujeito “Senhor Deus”, como uma cascata de nomes sobrepostos que cercam o invisível de palavras. Por fim, pantokratōr aparece com artigo ho, nominativo, masculino, singular, como mais um título em aposição: “o Todo-Poderoso”, aquele cuja força abarca e sustém todas as coisas.

O versículo se organiza em uma estrutura de predicação nominal seguida de citação oracular. A primeira oração, “Eu sou o Alfa e o Ômega”, é um enunciado de identidade em que a cópula liga a primeira pessoa do divino à metáfora alfabética da abrangência total: o sujeito é Deus, o predicado são as duas extremidades da série. Em seguida, “diz o Senhor Deus” funciona como verbo dicendi que autentica a auto-revelação — trata-se de proclamação divina, não de título atribuído de fora. A série de relativas ou expressões articularizadas (“aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso”) está em aposição a “Senhor Deus”, como se o texto acumulasse camadas de luz em torno de um mesmo centro: o Deus que fala é o eternamente presente, o Senhor da história passada, o que vem ao encontro de seu povo, e, ao mesmo tempo, o soberano que domina todas as eras. Há aqui um jogo com o tempo verbal que amplia a gramática: o presente ho ōn nomeia o ser permanente de Deus; o imperfeito ho ēn deixa entrever o fio da história, desde a criação e as alianças de Israel; o particípio “que vem” indica que, mesmo quando se fala de futuro, ele é descrito como movimento contínuo — Deus é sempre o que vem, aquele cuja vinda é sua própria identidade. Esse encadeamento rompe o modo comum de conjugar verbos e sugere que, diante do Eterno, passado, presente e futuro deixam de ser compartimentos fechados para se tornarem faces de uma mesma fidelidade, vista ora da origem, ora do caminho, ora da chegada.

Na comparação de versões, a King James Version, seguindo o Texto Recebido, lê: “I am Alpha and Omega, the beginning and the ending, saith the Lord, which is, and which was, and which is to come, the Almighty” — em português: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso.” Grande parte das versões modernas baseadas em textos críticos (NA28, UBS5) omite a expressão “o princípio e o fim” em 1:8, por considerá-la uma ampliação secundária que harmoniza o versículo com outras passagens do mesmo livro (como Apocalipse 21:6; 22:13), nas quais essa fórmula está firmemente atestada. Assim, ESV, NRSV, NVI e NVT apresentam essencialmente: “Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso”, sem a cláusula “o princípio e o fim” aqui, ainda que a mantenham nos outros contextos onde o testemunho manuscrito é mais sólido. Essa variação textual mostra que a ideia de “começo e fim” está intrinsecamente ligada ao título “Alfa e Ômega” dentro do próprio livro, mas que, em 1:8, a formulação mais antiga parece ter consistido precisamente na frase que lemos no texto crítico: alfa-ômega, Senhor Deus, aquele que é/era/vem, Todo-Poderoso — uma corda de nomes que se basta a si mesma.

Apocalipse 1:8 funciona como um trovão teológico que sela o prólogo do Apocalipse. Ao tomar para si o título “Alfa e Ômega”, o Senhor Deus retoma e amplia as autodeclarações de Isaías 41:4; 44:6; 48:12, nas quais YHWH se apresenta como “o primeiro e o último”, aquele que abre e fecha a história. A expressão “aquele que é, que era e que há de vir” não é apenas uma fórmula poética sobre a eternidade, mas um modo de dizer, em grego, o Nome que em hebraico se liga ao ehyeh asher ehyeh de Êxodo 3:14: Aquele que verdadeiramente é, que permanece sendo e que, por isso, pode vir sem jamais deixar de ser, é o mesmo que se manifestou na sarça ardente, o mesmo que conduziu Israel, o mesmo que agora fala pela voz do Ressuscitado. Quando, mais adiante, títulos muito semelhantes serão aplicados a Cristo (como em Apocalipse 1:17; 2:8; 22:13), o leitor perceberá que o livro entrelaça, sem confundir, a identidade do Pai e do Filho: o Deus que diz “Eu sou o Alfa e o Ômega” é o Deus que se dá a conhecer no Cordeiro, de tal modo que a plenitude da auto-revelação divina passa pela figura daquele que foi morto e vive pelos séculos dos séculos.

No plano da vida da Igreja, a frase soa como uma âncora e como um horizonte. Dizer que o Senhor é o Alfa é confessar que nenhuma história começa verdadeiramente à margem dele: antes que Babilônia se erguesse, antes que Roma cintilasse, antes que as pequenas igrejas da Ásia existissem, Ele é. Dizer que Ele é o Ômega é afirmar que nenhum poder, nenhuma dor, nenhum império terá a última palavra: o fim da linha, o ponto em que todas as frases se encontram, é ocupado por esse mesmo Deus que, ao longo do livro, aparece ora no trono, ora como Cordeiro, ora como Noivo que vem. A tríade “que é, que era e que há de vir” lembra à comunidade que a sua fé não é nostalgia nem mera expectativa: é confiança no Deus que esteve, que está e que virá, e que, portanto, pode ser buscado hoje com a serenidade de quem sabe que a última sílaba da história já está pronunciada em seu Nome.

§ 1º. Apologética: Deturpações das Testemunhas de Jeová

Quando deixamos o texto grego de Apocalipse falar com sua própria música interna, Jesus é envolvido nos títulos e funções que, no Antigo Testamento, pertencem exclusivamente a YHWH; a TNM (tradução anônima publicada pelas Testemunhas de Jeová) tenta quebrar essa sinfonia mudando a partitura em Apocalipse 1:8.

A TNM verte Apocalipse 1:8 assim: “Eu sou o Alfa e o Ômega”, diz Jeová Deus, “aquele que é, que era e que vem, o Todo-Poderoso”. O nome “Jeová” não está em nenhum manuscrito grego aqui; o texto é simplesmente egō eimi to alpha kai to ō, legei kyrios ho theos, ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos, ho pantokratōr (“Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o que é, e o que era, e o que vem, o Todo-Poderoso”). É uma construção intensamente solene: kyrios ho theos (“Senhor Deus”) ecoa a fórmula veterotestamentária de YHWH; ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos (“aquele que é, que era e que vem”) é uma paráfrase transparente de Êxodo 3:14; pantokratōr (“Todo-Poderoso”) retoma o Deus dos exércitos soberano sobre tudo. Nada disso, porém, justifica inserir o tetragrama; o que existe no texto é “Senhor Deus”, não “Jeová Deus”.

Quando vamos a jw.org, vemos que essa inserção não é acidental, mas parte de uma doutrina programática. O Apêndice A da TNM declara que há “base clara” para restaurar o nome “Jeová” nas Escrituras Gregas, embora reconheça que nenhum manuscrito do Novo Testamento contém o tetragrama, mas apenas títulos como “Senhor” (kyrios) e “Deus” (theos).(O nome divino nas Escrituras Gregas Cristãs em JW.org) O Apêndice C explica o método: como a maioria dos manuscritos do Antigo Testamento hebraico traz YHWH, e algumas cópias antigas da Septuaginta também o preservam, conclui-se que os escritores cristãos originais devem tê-lo usado e que copistas posteriores o teriam substituído por “Senhor”; assim, a TNM “restaura” o nome em 237 lugares nas Escrituras Gregas Cristãs, listados em C2 (quando há citação direta ou indireta do AT) e especialmente em C3, que inclui textos onde nenhum manuscrito menciona o nome mas onde, a seu ver, “o contexto” aponta para YHWH. Em artigos de divulgação, como “Que ou O que é ‘o Alfa e o Ômega’?”, a conclusão é clara e categórica: “ ‘O Alfa e o Ômega’ refere-se a Jeová Deus, o Todo-Poderoso”.

O problema é que o material em que se apoiam para “corrigir” o Novo Testamento é cronologicamente e metodologicamente inadequado. O próprio apêndice enumera uma série de “versões hebraicas” do Novo Testamento (os documentos J) usadas para justificar a presença de “Jeová” nas Epístolas e no Apocalipse, mas essas versões são traduções tardias, em geral medievais ou modernas, feitas a partir do grego: elas não são manuscritos originais, mas retroversões interpretativas. Usá-las para “provar” que o texto grego primitivo continha YHWH é como traduzir Shakespeare para o português, acrescentar “YHWH” onde ele escreveu apenas “Lord”, e depois alegar que o português revela o teor original da pena de Shakespeare. Comentários críticos sobre o NWT notam justamente isso: a restauração do nome no Novo Testamento não se baseia em qualquer evidência manuscrita, mas num raciocínio circular – parte-se da convicção de que o nome “deveria” estar lá, procura-se qualquer tradição hebraica posterior que o inclua, e então o texto grego é reescrito à luz dessa convicção.

Isso fica ainda mais evidente quando comparamos Apocalipse 1:8 com Apocalipse 22:13 na própria TNM. Em Apocalipse 22, o texto da TNM verte: “ ‘Olhe! Venho em breve, e a recompensa que dou está comigo, para retribuir a cada um de acordo com as suas obras. Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o começo e o fim.’ […] ‘Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar testemunho dessas coisas a respeito das congregações. Eu sou a raiz e a descendência de Davi, e a brilhante estrela da manhã.’ ”(Apocalipse 22:13) O próprio fluxo do texto em português mostra que o “Eu sou o Alfa e o Ômega” de 22:13 pertence à mesma voz que diz “Venho em breve” no v.12 e que se identifica como “Eu, Jesus” no v.16. Mesmo assim, os artigos doutrinários das Testemunhas afirmam que “o Alfa e o Ômega” em 22:13 deve ser Jeová, não Cristo, e recorrem a uma citação truncada de William Barclay para sustentar que “é difícil saber quem fala” ao longo do capítulo, ao passo que, em contexto, o próprio Barclay comenta 22:12-13 como sendo palavras do Cristo ressuscitado. Esta tensão entre o texto da Bíblia de estudo e a leitura doutrinária posterior já mostra que a questão não é exegética, mas dogmática: a identidade do “Alfa e Ômega” precisa ser “resgatada” para longe de Cristo, porque o sistema das Testemunhas não tolera um Jesus plenamente identificado com o Deus de Israel.

Quando voltamos ao capítulo 1, o quadro que se desenha é profundamente cristológico. João abre com uma saudação tríplice: da parte “daquele que é, que era e que há de vir”, dos “sete espíritos” diante do trono e de “Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primogênito dos mortos e o soberano dos reis da terra”. A fórmula ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos (“aquele que é, que era e que vem”) aplicada aqui à primeira pessoa da Trindade é uma releitura joanina do “Eu sou” de Êxodo 3:14, mas, como observa um estudo específico sobre ho erchomenos (“aquele que vem”), essa combinação de formas verbais para descrever Deus não tem paralelo exato na literatura judaica ou grega anterior – é uma criação teológica do Apocalipse.(WAGATSUMA, Coming: The Eschatological Consummation in the Book of Revelation, 1999, pp. 96-98) Num segundo momento da visão, essa mesma linguagem é retomada na primeira pessoa em 1:8 (“Eu sou o Alfa e o Ômega… o que é, o que era e o que vem”) e, em seguida, em 1:17–18, é o “Filho do Homem” quem diz: “Não temas; eu sou o Primeiro e o Último, e o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos”. A meu ver, é difícil escapar à conclusão de que João está intencionalmente fundindo os títulos de YHWH em Isaías (“Eu sou o primeiro e eu sou o último”, Isaías 44:6) com a experiência pascal de Jesus crucificado e ressuscitado.

No Antigo Testamento, é claro que é YHWH quem “vem” em juízo e salvação, mas, no Novo Testamento, a expressão técnica ho erchomenos cristalizou-se como título messiânico aplicado a Jesus. É com essa fórmula que João Batista pergunta: “És tu aquele que há de vir [ho erchomenos] ou havemos de esperar outro?” (Mateus 11:3; Lucas 7:19–20), e é essa expressão que Hebreus 10:37 aplica ao Cristo que “há de vir e não tardará”, ao reapropriar Habacuque 2:3. Em Apocalipse 1:7, João proclama: “Eis que ele vem com as nuvens, e todo olho o verá, até os mesmos que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele.” O sujeito que “vem com as nuvens” é o Filho do Homem de Daniel 7:13–14, que Jesus aplica a si mesmo nos evangelhos (Mateus 24:30; 26:64). Se, no v.7, é Cristo quem “vem” nas nuvens e, no v.8, ouvimos “Eu sou o Alfa e o Ômega… o que é, o que era e o que vem”, a linha mais natural é ouvir a continuidade da voz – é o mesmo que vem nas nuvens que se apresenta como Alfa e Ômega. Comentários evangélicos como o de David Guzik argumentam explicitamente nessa direção: o “Eu sou o Alfa e o Ômega” de 1:8 é a autoapresentação de Jesus, a quem o livro pertence. Ainda que se admita, com muitos exegetas, que 1:8 pode ser ouvido como voz do Pai, a teologia do capítulo insiste em que aquele que vem é o Filho, de modo que, ou a vinda de YHWH se dá por meio do Filho de forma inseparável, ou a distinção rígida “Jeová aqui, Jesus ali” simplesmente não acompanha o texto.

O entrelaçamento dos títulos reforça esse quadro. Em Isaías 44:6, YHWH se apresenta como “primeiro e último”; em Apocalipse 1:17 e 2:8, o que fala é “o Primeiro e o Último, que esteve morto e tornou a viver” – não há como evitar que aqui seja Jesus o sujeito. Em Apocalipse 21:6, quem está assentado no trono diz “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim”; em 22:13, a mesma tríade “Alfa e Ômega, primeiro e último, começo e fim” é pronunciada pela voz que, no v.16, se identifica como “Eu, Jesus”.(JW.org) A insistência das TJs em fixar “Alfa e Ômega” exclusivamente em Jeová exige um movimento hermenêutico: confessa-se que 22:13 pode, em contexto, soar como Jesus, mas recorre-se à ideia de que “o falante não está claramente identificado” para, então, decidir dogmaticamente que, como em 1:8 e 21:6, “só pode” ser Jeová. Em contraste, uma leitura que leva a sério o encadeamento dos títulos vê exatamente o contrário: a linguagem que em Isaías pertence só a YHWH é derramada sobre Cristo, de modo que a distinção entre “Jeová” e “Jesus” já não é entre Criador e criatura, mas entre pessoas dentro do único Deus.

Nesse ponto, a sequência de argumentos se mostra internamente coerente: (1) o sujeito que age desde o início do capítulo é Jesus Cristo, que recebe de Deus a revelação, a comunica por meio do anjo a João e é descrito como aquele que vem com as nuvens (Apocalipse 1:1–7); (2) nenhum manuscrito grego traz o tetragrama em 1:8, de modo que “Jeová Deus” é uma opção teológica de tradutor, não uma leitura textual; (3) outros textos do próprio Apocalipse aplicam “Alfa e Ômega”, “Primeiro e Último”, “Princípio e Fim” a Cristo de modo inequívoco, sobretudo 22:13 em conexão com “Eu, Jesus” (22:16);(4) a expressão técnica “aquele que vem” no Novo Testamento é, de fato, centralmente cristológica. Nada nisso força Jesus a “substituir” o Pai, mas tudo isso converge para a confissão que o próprio Evangelho de João já fizera: o Logos (ho logos – “o Verbo”) que estava “com Deus” e “era Deus” em João 1:1–3 é aquele por meio de quem “todas as coisas foram feitas”, e em quem Deus mesmo vem ao encontro do mundo.

Por isso mesmo, a tentativa da TNM de “proteger” a unicidade do Pai rebaixando o Filho a um ser criado acaba minando o próprio texto de Apocalipse. Quando a TNM diz em 1:8: “Eu sou o Alfa e o Ômega”, diz Jeová Deus…”, tenta separar essa declaração das falas em que Jesus se apresenta como “Primeiro e Último” e “Alfa e Ômega”; mas quando, em 22:13, ela mesma coloca na boca da voz que logo se identifica como Jesus a frase: “Eu sou o Alʹpha e o O·meʹga, o primeiro e o último, o começo e o fim”, o leitor atento percebe que ou o sistema doutrinário está errado, ou o próprio Cristo se apropria de atributos e títulos de Jeová de maneira ilegítima. A recusa em reconhecer a plena divindade de Cristo obriga, então, a duas manobras simultâneas: inserir o nome “Jeová” onde o texto não o tem (como em 1:8) e nebulizar ao máximo quem fala quando o contexto aponta claramente para Jesus (como em 22:13). O resultado, do ponto de vista exegético, não é uma “restauração” do texto, mas uma reescrita guiada por pressupostos teológicos alheios à lógica interna do Apocalipse.

Do outro lado, a leitura que você propõe conserva o texto grego como está e deixa que a própria narrativa apocalíptica faça seu trabalho: o Deus que é, que era e que há de vir, o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, se revela e “vem” concretamente na pessoa daquele que foi traspassado, que esteve morto e vive pelos séculos dos séculos. Assim, quando as Testemunhas invocam traduções hebraicas tardias para justificar a inserção de “Jeová” em Apocalipse 1:8, e quando insistem que “Alfa e Ômega” nunca pode ser Jesus, estão lutando não contra um detalhe de pontuação, mas contra o arco inteiro de uma cristologia joanina que faz de Jesus o começo e o fim, o caminho pelo qual o Deus de Israel vem ao encontro do mundo.

Apocalipse 1:9

Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus, estava na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. (Gr.: Egō Iōannēs, ho adelphos hymōn kai synkoinōnos en tē thlipsei kai basileia kai hypomonē en Iēsou, egenomēn en tē nēsō tē kaloumenē Patmō dia ton logon tou theou kai tēn martyrian Iēsou — Tradução mais literal: “Eu, João, o vosso irmão e co-participante na tribulação e no reino e na perseverança em Jesus, vim a estar na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.”) Logo na abertura, Egō Iōannēs (“Eu, João”) tem a solenidade simples de quem assina uma carta, mas, num livro como o Apocalipse, soa quase como o testemunho de uma testemunha em tribunal: é João que se coloca no banco, não para se defender, mas para narrar o que viu. Adelphos (“irmão”) vem do campo semântico da fraternidade de sangue, mas o uso cristão alarga a palavra para a comunhão de fé: aquele que fala não é um vidente distante, é “vosso irmão”. O termo synkoinōnos (“co-participante, companheiro”) nasce da junção de syn (“com, junto”) e koinōnos (“partícipe, sócio”), indicando alguém que partilha conjuntamente de algo; léxicos registram o sentido de “coparticipante, co-parceiro” em Romanos 11:17, 1 Coríntios 9:23, Filipenses 1:7 e aqui, em Apocalipse 1:9. A tríade que se segue — thlipsis (“tribulação”), basileia (“reino”) e hypomonē (“perseverança”) — costura três fios essenciais: thlipsis deriva de thlibō (“apertar, comprimir”) e designa, na imagem dos léxicos, a pressão estreita que “encurrala”, daí “opressão, aflição, tribulação”. Basileia, formada a partir de basileus (“rei”), aponta para reino, domínio real, não tanto território, mas esfera de governo; no Apocalipse, essa palavra reaparece quando os salvos são feitos “reino e sacerdotes” (Apocalipse 1:6; 5:10). Hypomonē, da raiz menō (“permanecer”) com o prefixo hypo (“sob”), indica a constância que permanece firme debaixo de peso, aquilo que dicionários definem como “perseverança, resistência firme que não se desvia do propósito mesmo sob grandes provações”. Quando João fala da “palavra de Deus” (logos tou theou) e da “testemunho de Jesus” (martyria Iēsou), retoma a linguagem do prólogo (Apocalipse 1:2), onde se diz que ele “testificou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo”, unindo a mensagem à própria pessoa de Cristo.

A frase abre com o pronome pessoal egō (“eu”), nominativo, primeira pessoa, singular, seguido do nome próprio Iōannēs, também nominativo, singular, que com ele forma o sujeito explícito do enunciado. A expressão ho adelphos hymōn traz o artigo definido ho (“o”), nominativo, masculino, singular, unido ao substantivo adelphos (“irmão”), igualmente nominativo, masculino, singular, e qualificado pelo pronome possessivo hymōn (“vosso”), genitivo, segunda pessoa, plural, que especifica a quem pertence esse “irmão”. Em aposição, synkoinōnos também está no nominativo, masculino, singular, funcionando como mais um predicado aplicado a João: ele é, ao mesmo tempo, irmão e co-participante. A locução en tē thlipsei kai basileia kai hypomonē é construída com a preposição en (“em”) regendo o dativo singular, feminino, de thlipsis (“tribulação”) e, por coordenação, igualmente o dativo de basileia (“reino”) e de hypomonē (“perseverança”), formando um único campo de participação solidária; a leitura crítica omite aqui um segundo en repetido antes de basileia, presente em alguns textos bizantinos, o que reforça que tribulação, reino e perseverança são facetas de uma mesma realidade vivida “em Jesus”.

A expressão en Iēsou utiliza novamente en com o dativo do nome próprio Iēsous, interpretado pelas versões como “em Jesus”, indicando o âmbito em que essa tribulação-reino-perseverança se dá: é participação mística nEle, não mera resistência estóica. O verbo egenomēn é aoristo, indicativo, voz média, primeira pessoa, singular, de ginomai (“tornar-se, vir a estar, acontecer”), e aqui descreve o fato de João ter “vindo a estar” na ilha, sem especificar o modo — é um aoristo de entrada em estado: um dia, ele se viu, de fato, em Patmos. A sequência en tē nēsō tē kaloumenē Patmō articula nēsos (“ilha”), dativo, singular, feminino, com o artigo repetido e o particípio presente, médio/passivo, dativo, singular, feminino, kaloumenē (“chamada, denominada”), de kaleō (“chamar”), seguido do nome próprio Patmō, dativo, singular; trata-se, pois, da “ilha que se chama Patmos”. A preposição dia com acusativo (dia ton logon tou theou kai tēn martyrian Iēsou) expressa causa: “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus”. Logon é acusativo, singular, masculino, de logos (“palavra, mensagem”), governado por dia; theou é genitivo, singular, masculino, de theos (“Deus”), definindo a procedência dessa palavra. Martyrian é acusativo, singular, feminino, de martyria (“testemunho”), com Iēsou no genitivo, singular, masculino, indicando que esse testemunho tem Jesus como conteúdo ou origem — a vida de João virou ilha porque sua boca insistiu em nome e palavra de Cristo.

O versículo se estrutura como uma longa frase em que o sujeito “Eu, João” é imediatamente qualificado por duas expressões nominais em nominativo: “vosso irmão” e “co-participante na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus”. Essa cumulação de títulos serve para aproximar: o profeta não fala “de cima”, mas desde o mesmo chão de sofrimento e esperança das igrejas. O predicado verbal entra com egenomēn (“vim a estar”), que toma como complemento a expressão locativa “na ilha chamada Patmos”; o conjunto é depois circunscrito pela causa introduzida por dia: ele se encontrou ali “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus”, não por turismo, não por acaso, mas como fruto de uma fidelidade que o impeliu até o ponto de uma espécie de exílio. As duas expressões preposicionais em dia têm função adverbial de causa e, ao mesmo tempo, enfatizam o motivo espiritual da prisão: a mensagem anunciada e o testemunho sobre Jesus são a razão objetiva do desterro, e João as assume como sua honra. Assim, a frase inteira é um tecido em que identidade, comunhão, sofrimento, esperança e missão se entrelaçam num só sopro.

Nas versões, isso aparece com nuances interessantes. A King James Version verte: “I John, who also am your brother, and companion in tribulation, and in the kingdom and patience of Jesus Christ, was in the isle that is called Patmos, for the word of God, and for the testimony of Jesus Christ” (“Eu, João, que também sou vosso irmão, e companheiro na tribulação, e no reino e paciência de Jesus Cristo, estava na ilha que se chama Patmos, por causa da palavra de Deus, e por causa do testemunho de Jesus Cristo”). A English Standard Version diz: “I, John, your brother and partner in the tribulation and the kingdom and the patient endurance that are in Jesus, was on the island called Patmos on account of the word of God and the testimony of Jesus” (“Eu, João, vosso irmão e parceiro na tribulação e no reino e na perseverança que estão em Jesus, estava na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus”).

A Young’s Literal Translation, fiel à sua vocação literalista, diz: “I, John, who also [am] your brother, and fellow-partner in the tribulation, and in the reign and endurance, of Jesus Christ, was in the isle that is called Patmos, because of the word of God, and because of the testimony of Jesus Christ” (“Eu, João, que também [sou] vosso irmão, e co-participante na tribulação, e no reinado e na perseverança de Jesus Cristo, estava na ilha que se chama Patmos, por causa da palavra de Deus, e por causa do testemunho de Jesus Cristo”). Entre as versões em português, a NVI apresenta: “Eu, João, irmão e companheiro de vocês no sofrimento, no reino e na perseverança em Jesus, estava na ilha de Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.” Todas fazem eco ao mesmo núcleo: João é irmão, parceiro, companheiro; a tribulação e a perseverança não estão soltas, mas situadas “em Jesus”; Patmos não é acidente geográfico, é uma estação no caminho da fidelidade.

Na leitura exegética, o versículo desenha a autocompreensão de João como paradigma de liderança cristã. Ele se descreve primeiro como adelphos (“irmão”) e só depois, ao longo da visão, aparecerá como profeta, vidente, escritor inspirado. O termo synkoinōnos aprofunda essa fraternidade: ele não é apenas “irmão” no sentido afetivo, mas co-participante real na thlipsis (“pressão, tribulação”) que as igrejas conhecem; como Paulo dizia aos discípulos, “por muitas tribulações nos importa entrar no reino de Deus” (Atos 14:22), e como escreve aos Romanos, somos “co-herdeiros com Cristo” se com Ele sofremos, para também com Ele sermos glorificados (Romanos 8:17). A ordem “tribulação – reino – perseverança” sugere que o reino não é uma realidade à margem do sofrimento, mas justamente o âmbito em que, no meio da pressão, a perseverança se torna forma concreta da realeza de Cristo na vida dos seus: ecoa aqui a promessa de 2 Timóteo 2:12 (“se perseveramos, com ele também reinaremos”) e a bem-aventurança de Mateus 5, onde perseguição por causa da justiça é sinal de pertença ao reino.

O cenário de Patmos acrescenta uma cor histórica: fontes antigas descrevem a ilha como pequena e árida, usada como lugar de desterro na administração romana; autores como Eusébio de Cesareia referem a tradição de que João foi ali exilado “por causa do testemunho do evangelho”. O próprio versículo condensa essa memória ao usar dia com acusativo: ele se viu na ilha “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus”, isto é, devido à sua pregação e lealdade. Não se trata de um sofrimento anônimo, mas de um destino moldado por uma causa: a Palavra e o Testemunho. Aqui, logos tou theou e martyria Iēsou formam uma dupla recorrente no livro (Apocalipse 1:2; 6:9; 20:4), sempre ligada à disposição de sofrer por fidelidade; são, por assim dizer, o “motivo oficial” do mundo para expulsar o discípulo, mas também o selo da autenticidade de sua missão.

Devocionalmente, Apocalipse 1:9 é um convite silencioso a ler o restante do livro de joelhos, ao lado de João na praia de Patmos. O profeta não está num trono, mas numa ilha; não escreve de um gabinete, mas de um lugar de confinamento. Quando ele se apresenta como “vosso irmão e co-participante na tribulação e no reino e na perseverança em Jesus”, ele dá ao leitor um espelho: o caminho do Cordeiro é um caminho em que tribulação, reino e perseverança caminham juntos, e em que “estar em Jesus” significa estar disposto a ser levado para onde a fidelidade o conduzir. A ilha, então, deixa de ser apenas rocha perdida no mar Egeu e se torna figura de todos os lugares em que a Palavra de Deus e o testemunho de Jesus nos colocam à margem — mas, justamente ali, a visão se abre, e o Cristo glorioso se mostra no meio dos candeeiros.

Pequena nota sobre a tua tradução: mantive o sentido geral (“Eu, João, que também sou vosso irmão e companheiro na tribulação, no reinado e na perseverança de Jesus Cristo…”), mas preferi “no reino e na perseverança em Jesus” para refletir mais de perto a sequência en tē thlipsei kai basileia kai hypomonē en Iēsou e a leitura crítica que omite o nome “Cristo” aqui; “reino” também traduz melhor o alcance de basileia do que “reinado”, que tende a sugerir apenas o ato de reinar, enquanto o texto enfatiza a esfera de pertença ao reino de Jesus.

Apocalipse 1:10

No dia do Senhor, eu estava em espírito e ouvi atrás de mim uma grande voz, como de trombeta (Gr.: egenomēn en pneumati en tē kyriakē hēmera kai ēkousa opisō mou phōnēn megalēn hōs salpingos — Tradução mais literal: “Vim a estar em espírito, no dia do Senhor, e ouvi por detrás de mim uma voz grande, como trombeta”.) Desde as primeiras palavras, o versículo desenha o cenário com vocábulos carregados de história e ressonância teológica. O verbo egenomēn (“vim a ser, vim a estar”) deriva de ginomai (“tornar-se, acontecer, vir à existência”), termo onipresente no Novo Testamento para indicar tanto a irrupção de eventos quanto mudanças de estado. A expressão en pneumati é formada por pneuma (“sopro, vento, espírito”), cuja etimologia remete ao ar em movimento e, por extensão, à dimensão invisível da vida, tanto no sentido do Espírito Santo como do espírito humano; o campo semântico abrange “respiração”, “força vital”, “espírito racional” e “Ser divino”. Kyriakē hēmera combina o adjetivo kyriakos (“pertencente ao Senhor”, derivado de kyrios, “Senhor”) com hēmera (“dia”), formando a expressão única “dia do Senhor”. A voz que João ouve é chamada phōnē megalē (“voz grande”), onde phōnē tem a ideia de som articulado, clamor ou brado, palavra que a Septuaginta usa para relâmpagos sonoros, trovões e voz divina; megalē (“grande”) intensifica a imponência do som. Por fim, o símile hōs salpingos recorre a salpinx (“trombeta”) — instrumento militar e litúrgico, associado tanto à convocação para a guerra quanto ao encontro com Deus em teofanias e juízos.

O v. 10 se articula em torno de dois verbos no aoristo, indicativo, primeira pessoa do singular, que funcionam como eixos narrativos do testemunho de João. Egenomēn é verbo, aoristo, indicativo, médio, primeira pessoa singular; o aspecto global do aoristo apresenta o “estar em espírito” como um ingresso súbito num estado espiritual, não como mera condição habitual. O uso da voz média sugere que João é envolvido por uma ação em que ele é mais paciente do que agente, como alguém “que se vê” lançado nessa esfera espiritual. Ēkousa, por sua vez, é verbo, aoristo, indicativo, ativo, primeira pessoa singular, descrevendo o ato pontual de ouvir; esse segundo aoristo marca o momento preciso em que, nesse estado espiritual, João percebe a voz.

Os complementos preposicionais moldam o cenário interno dessa experiência. En pneumati traz pneumati no dativo, neutro, singular, substantivo que aqui funciona como dativo locativo: João se encontra “dentro da esfera do Espírito”, numa condição de arrebatamento profético semelhante à de Ezequiel (“veio sobre mim o Espírito do Senhor”) e à de Paulo em suas visões. En tē kyriakē hēmera apresenta hēmera como substantivo, feminino, dativo, singular, modificado pelo adjetivo kyriakē, feminino, dativo, singular; o bloco inteiro age como adjunto adverbial temporal, situando a visão “no dia pertencente ao Senhor”. Opisō é advérbio com função preposicional, construindo com o pronome mou (genitivo, primeira pessoa singular) a locução “por detrás de mim”, que estabelece a orientação espacial da percepção: a voz vem de onde João não vê, quase o surpreendendo pelas costas. Phōnēn aparece como substantivo, feminino, acusativo, singular, objeto direto de ēkousa, qualificado por megalēn (adjetivo, feminino, acusativo, singular), indicando não só volume, mas grandeza de autoridade. Salpingos, finalmente, é substantivo, feminino, genitivo, singular, governado por hōs numa comparação que descreve a qualidade do som, não a natureza da voz; não se trata de uma trombeta literal, mas de uma voz com a clareza cortante e a solenidade do toque de trombeta.

A frase se organiza em duas orações coordenadas unidas por kai. A primeira, com egenomēn como núcleo verbal, apresenta João como sujeito expresso (egō é retomado implicitamente pelo verbo) e traz dois adjuntos preposicionais em sequência: “em espírito” e “no dia do Senhor”. A ordem “em espírito… no dia do Senhor” mostra que o foco primário não é o calendário, mas o estado espiritual: o tempo cronológico é importante, mas subordinado ao fato de que o Espírito toma o apóstolo. A segunda oração, com ēkousa como verbo principal, mantém o sujeito de primeira pessoa e acrescenta o adjunto circunstancial “por detrás de mim” e o objeto direto “uma voz grande, como trombeta”, organizado pelo símile hōs salpingos. O encadeamento é deliberadamente simples, quase linear, mas a densidade das imagens cria um espaço litúrgico: dia consagrado, condição espiritual, voz de convocação.

A comparação das versões lança luz sobre os matizes. A KJV verte: “I was in the Spirit on the Lord's day, and heard behind me a great voice, as of a trumpet” (“Eu estava no Espírito no dia do Senhor e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta”). A ESV mantém esse tom: “I was in the Spirit on the Lord's day, and I heard behind me a loud voice like a trumpet” (“Eu estava no Espírito no dia do Senhor, e ouvi atrás de mim uma voz alta, como trombeta”). A YLT prefere enfatizar o aoristo de egenomēn com “I came to be in the Spirit on the Lord's-day” (“Vim a estar no Espírito, no dia do Senhor”), aproximando-se da nuance de ingresso em um estado extraordinário. Em português, a NVI diz: “No dia do Senhor achei-me no Espírito e ouvi por trás de mim uma voz forte, como de trombeta”, a ARA: “Achei-me em espírito, no dia do Senhor, e ouvi, por detrás de mim, grande voz, como de trombeta”, a ARC: “Eu fui arrebatado em espírito, no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta”, e a NVT: “Era o dia do Senhor, e me vi tomado pelo Espírito. De repente, ouvi atrás de mim uma forte voz, como um toque de trombeta”. Todas convergem na percepção de que João é “tomado” pelo Espírito em um dia especificamente consagrado ao Kyrios e, nesse contexto, escuta uma voz que irrompe com a nitidez de uma trombeta cerimonial.

O ponto mais debatido reside na expressão kyriakē hēmera. O adjetivo kyriakos ocorre apenas duas vezes no Novo Testamento: aqui e em 1 Coríntios 11:20 (“ceia do Senhor”), sempre com o sentido de “pertencente ao Senhor”. Léxicos e estudos de uso patrístico apontam que “dia do Senhor” se tornou designação técnica do primeiro dia da semana, memorial da ressurreição de Cristo, já em documentos do fim do século I e início do II, como a Didaquê 14 e escritos de Inácio de Antioquia, onde “dia do Senhor” designa o dia cristão de culto em contraste com o sábado judaico. Há quem veja aqui uma alusão ao “dia do Senhor” escatológico do Antigo Testamento (dia do juízo), e de fato o contexto do livro respira atmosfera de juicio e consumação; contudo, o emprego adjetival específico kyriakē hēmera, raro e marcado, favorece a leitura de um dia de culto cristão já consagrado à memória de Cristo ressuscitado, em cujo seio João é arrebatado em visão.

O versículo funciona como uma pequena janela teológica para a natureza da revelação que se seguirá. Primeiro, “estar em espírito” coloca João na linha de continuidade dos profetas que, sob o Espírito de Deus, foram transportados para ver realidades celestes: Ezequiel é levado “pelo Espírito” para ver o vale de ossos secos; Paulo fala de alguém que foi “arrebatado até o terceiro céu”, sem saber ao certo se “no corpo ou fora do corpo”. A própria estrutura de Apocalipse mostra quatro momentos em que João “se encontra em espírito” (1:10; 4:2; 17:3; 21:10), cada um introduzindo um bloco visionário: Cristo entre os candeeiros, o trono celeste, o deserto da prostituta e a Jerusalém celestial. A experiência em 1:10, portanto, não é um devaneio privado, mas um ingresso na corte celestial onde a história é lida desde o trono.

Em segundo lugar, a ambientação “no dia do Senhor” sugere que a revelação nasce da adoração. João não está apenas sofrendo em Pátmos; ele celebra, naquele dia, o senhorio de Cristo sobre o tempo. O dia que lembra a ressurreição torna-se o dia em que o Ressuscitado fala. O que o texto descreve é quase uma liturgia cósmica: o povo de Deus, em todas as partes, reúne-se no “dia do Senhor”; em Pátmos, um exilado, isolado dos outros, é unido pela ação do Espírito à assembleia invisível e, nesse contexto, ouve a voz que definirá o destino das igrejas e do mundo.

Por fim, a imagem da “voz… como trombeta” conecta essa cena com a teofania do Sinai, quando “a voz da trombeta” soava cada vez mais forte enquanto o Senhor descia sobre o monte em fogo, e com as expectativas escatológicas de um toque de trombeta no dia da ressurreição e da reunião final do povo de Deus. Em Mateus 24:31, o Filho do Homem enviará os anjos “com grande clangor de trombeta” para reunir os seus escolhidos; em 1 Coríntios 15:52 e 1 Tessalonicenses 4:16, a “última trombeta” marca o momento em que os mortos em Cristo ressuscitarão e os vivos serão transformados. Quando João, em Pátmos, ouve uma voz “como de trombeta”, o leitor é convidado a perceber que quem fala é o mesmo Senhor que desceu em fogo sobre o Sinai e que um dia descerá novamente com a trombeta de Deus. O versículo, então, não é apenas uma nota de diário espiritual; é uma convocação solene: há um dia do Senhor que já começou na ressurreição e no culto, mas que caminha para o Dia definitivo em que a voz que hoje ouvimos na Escritura soará, enfim, como trombeta visível no céu.

Apocalipse 1:11

‘Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último’; e: ‘O que vês, escreve num livro e envia às sete igrejas que estão na Ásia: a Éfeso, a Esmirna, a Pérgamo, a Tiatira, a Sardes, a Filadélfia e a Laodiceia.’ (Gr.: ho blepeis grapson eis biblion kai pempson tais hepta ekklēsiais, eis Epheson kai eis Smyrnan kai eis Pergamon kai eis Thyateira kai eis Sardis kai eis Philadelpheian kai eis Laodikeian — Tradução mais literal: “O que estás vendo, escreve em um rolo e envia às sete assembleias, para Éfeso, e para Esmirna, e para Pérgamo, e para Tiatira, e para Sardes, e para Filadélfia e para Laodiceia”.) O eixo do versículo gira em torno de quatro palavras: blepeis (“vês”), derivado de blepō (“ver, olhar, prestar atenção”), verbo que, além da percepção física, pode sugerir um olhar atento e discernidor, em contraste com horaō, mais ligado a “ver” como compreensão plena ; grapson, imperativo de graphō (“escrever, gravar, traçar”), verbo que vai do ato de riscar letras até a ideia de registrar solenemente um documento; biblion (“livro, rolo, escrito”), diminutivo de biblos, originalmente a fibra do papiro e, por metonímia, o rolo de papiro onde se escrevia, que em Apocalipse se tornará símbolo do decreto divino (como em “biblion da vida”) ; e pempsōn (a forma subjacente do imperativo pempson), ligado ao verbo pempō (“enviar, despachar”), termo que tanto na literatura clássica quanto no Novo Testamento designa o ato deliberado de remeter alguém ou algo investido de missão . Ao lado delas, ekklēsiais ecoa seu sentido de “assembleias convocadas”, antes de se tornar termo técnico para “igrejas”, herdando do uso grego comum a ideia de um povo chamado para fora ao encontro de uma decisão ou palavra soberana ; e o número hepta (“sete”), recorrente no livro, carrega o campo semântico de plenitude simbólica, de modo que não são apenas sete comunidades locais, mas a totalidade da Igreja sob o olhar do Ressuscitado.

Do ponto de vista morfológico, a frase é construída como um mandato concentrado dirigido diretamente a João. O pronome relativo ho (“o que”) é pronome relativo, neutro, singular, caso acusativo, funcionando como objeto direto do verbo seguinte e condensando tudo aquilo que João está contemplando na visão; blepeis é verbo, presente, indicativo, ativo, segunda pessoa do singular, descrevendo a ação contínua do vidente: ele está no ato de ver, e não apenas viu em algum momento remoto. O imperativo grapson é verbo, aoristo, imperativo, ativo, segunda pessoa do singular, com o aoristo conferindo o tom de ação pontual e decisiva: toda essa visão em curso deve ser fixada num registro concreto, num único gesto de obediência completa. O complemento eis biblion traz a preposição eis (“para, em direção a”) regendo o acusativo biblion, substantivo, neutro, singular, acusativo, de modo que a ação de escrever é orientada “para dentro” do rolo, como quem despeja a visão no corpo do texto. Em seguida, pempson (paralelo a grapson) é também verbo, aoristo, imperativo, ativo, segunda pessoa do singular, e forma um segundo comando, coordenado por kai (“e”), que aqui funciona como conjunção coordenativa somando duas tarefas inseparáveis: não basta escrever, é necessário fazer a mensagem circular.

A expressão tais hepta ekklēsiais traz ekklēsiais como substantivo, feminino, plural, dativo, recebido pela preposição implícita de direção do verbo pempō (“enviar a”), com o dativo marcando as igrejas como destinatárias pessoais da missiva; o adjetivo hepta (“sete”) funciona como adjetivo numeral, invariável, qualificando o substantivo e imprimindo à série um caráter fechado e completo. Os nomes das cidades — Epheson, Smyrnan, Pergamon, Thyateira, Sardis, Philadelpheian, Laodikeian — são substantivos próprios, na forma feminina (como cidades, concebidas quase como “matronas” espirituais), no caso acusativo singular, regidos repetidamente pela preposição eis, de modo que a sequência “eis Epheson kai eis Smyrnan kai eis Pergamon…” desenha, gramaticalmente, o itinerário do livro ao longo de um circuito postal e pastoral, cidade após cidade. No contexto imediato, ainda ressoa o particípio legousēs (“dizendo”), particípio, presente, ativo, genitivo, feminino, singular, concordando com phōnēs (“voz”), que aparece no versículo anterior: é essa “voz como de trombeta” que continua falando no imperativo, de modo que o comando a João surge como desdobramento da própria voz do Cristo glorificado.

A estrutura do v. 11 é elegante e linear. O pronome relativo ho introduz uma oração relativa de objeto (“o que vês”) que é deslocada para a frente, ganhando posição de destaque: antes de qualquer coisa, é a visão que ocupa o primeiro plano, e só depois vêm os verbos de escrever e enviar. A sequência “ho blepeis grapson… kai pempson…” articula uma progressão: percepção → registro → missão. O duplo imperativo aoristo, sem mitigação modal, reforça o caráter não opcional da tarefa profética: João não é apenas contemplador, é escriba mandatado. O dativo tais hepta ekklēsiais funciona como dativo de vantagem, indicando aqueles em favor de quem o escrito é produzido; os acusativos próprios depois de eis detalham, como uma enumeração quase litânica, o alcance concreto dessa vantagem. A ausência, em Nestle-Aland 28, da cláusula “Egō eimi to alpha kai to ō, ho prōtos kai ho eschatos” (“Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último”), presente no Texto Recebido e em traduções como a King James Version, mostra que, no texto crítico, o foco sintático do versículo recai inteiramente no mandato de escrever e enviar, enquanto os títulos cristológicos aparecem com segurança em outras passagens (Apocalipse 1:8; 1:17; 21:6; 22:13). Mesmo assim, a sintaxe da voz que fala permanece a mesma: seja com ou sem a frase adicional, a voz que se identifica nos versículos vizinhos é a mesma que agora ordena.

Quando se comparam as versões, percebe-se como o núcleo semântico se mantém, apesar de variações textuais e estilísticas. A English Standard Version, seguindo o texto crítico, verte: “saying, ‘Write what you see in a book and send it to the seven churches’” (“dizendo: ‘Escreve o que vês num livro e envia-o às sete igrejas’”). A King James Version, baseada no Texto Recebido, conserva a leitura mais longa: “Saying, I am Alpha and Omega, the first and the last: and, What thou seest, write in a book, and send it unto the seven churches which are in Asia” (“Dizendo: ‘Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o derradeiro; e o que vês, escreve num livro e envia-o às sete igrejas que estão na Ásia’”). A Young’s Literal Translation segue a mesma tradição, com ligeira diferença de estilo: “saying, ‘I am the Alpha and the Omega, the First and the Last;’ and, ‘Write what thou dost see in a scroll, and send to the seven assemblies’” (“dizendo: ‘Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último’; e: ‘O que vês, escreve em um rolo e envia às sete assembleias’”) . Em português, a NVI aproxima-se da ESV: “que dizia: ‘Escreva num livro o que você vê e envie a esta sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia’”, enquanto a ARC e tradições próximas preservam a forma expandida com “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último”. Essa distância entre as famílias textuais não altera o coração do versículo: em todas elas, João é convocado a transformar visão em escritura e escritura em carta circular.

Na tessitura exegética, este versículo concentra, como foco de luz, a vocação profética e literária de João. A combinação de blepeis e grapson faz eco aos grandes precedentes veterotestamentários em que a revelação é mandada para a escrita: o Senhor ordena a Isaías: “Vai, agora, escreve isto numa tábua diante deles e grava-o num livro, para que fique para o tempo vindouro, para sempre e perpetuamente” (Isaías 30:8) ; a Habacuque diz: “Escreve a visão, torna-a bem legível sobre tábuas” (Habacuque 2:2) ; Daniel, por sua vez, anota: “Escrevi o sonho” (Daniel 7:1). Assim, Apocalipse 1:11 insere João na mesma corrente de profetas cuja visão não se esgota na experiência subjetiva, mas se cristaliza num texto duradouro. O uso de biblion liga esse ato ao “livro” mais amplo da revelação divina: o rolo que o Cordeiro tomará da mão daquele que está sentado no trono (Apocalipse 5:1) e o “livro da vida” onde estão inscritos os que pertencem ao Cordeiro (Apocalipse 13:8; 20:12) . Quem escreve por ordem do Cristo participa, por analogia, desse grande arquivo escatológico onde Deus recolhe e fixa Sua vontade.

A ordem de enviar “às sete igrejas” alarga o raio dessa vocação: o que começa na ilha de Patmos é, desde o início, destinado a circular em toda a Ásia Menor romana, num percurso que provavelmente segue uma rota de correio ou de comércio (Éfeso, porto principal; Esmirna, mais ao norte; Pérgamo, centro político; Tiatira, Sardes, Filadélfia, Laodiceia) . O número sete mostra que essas igrejas são, ao mesmo tempo, comunidades históricas particulares e símbolo da Igreja inteira, em todas as épocas; cada nome de cidade torna-se uma espécie de espelho onde congregações de todos os séculos podem ver a si mesmas. A forma dos imperativos — “escreve”, “envia” — ressalta que a revelação não é um tesouro privado: é algo que desce do céu justamente para ser compartilhado. O caminho da palavra é, portanto, vertical (de Cristo a João) e horizontal (de João às igrejas), e o versículo condensa essa cruz de movimentos.

Na lógica hermenêutica do livro, o versículo também prepara o programa interno de Apocalipse 1:19 (“Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas”), em que o passado da visão inaugural, o presente das igrejas e o futuro dos juízos se entrelaçam num único livro. Ao mandar “o que vês, escreve num livro”, o Senhor não está pedindo um diário impressionista, mas um registro ordenado que, ao ser enviado às assembleias, se torna norma de fé e esperança. Por isso a obediência de João em escrever e enviar torna-se paradigmática para a própria Igreja: também hoje, toda vez que a comunidade contempla Cristo — nas Escrituras, nos sacramentos, na missão — é chamada a traduzir essa visão em palavra partilhada, ensino, doutrina, consolo, advertência. A voz que falou “como de trombeta” não ressoa apenas no ouvido do apóstolo; ela continua, pelo escrito, a ecoar nas assembleias, convocando-as a ler, ouvir e guardar (Apocalipse 1:3).

Apocalipse 1:12

Então me voltei para ver quem falava comigo; e, voltando-me, vi sete candelabros de ouro. (Gr.: Kai epestrepsa blepein tēn phōnēn hētis elalei met’ emou, kai epistrepsas eidon hepta lychnias chrysas — “Então me voltei para ver quem falava comigo; e, voltando-me, vi sete candelabros de ouro.” Tradução mais literal: “E virei-me para ver a voz que estava falando comigo; e, ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro.”) O vocabulário desta frase é tecido com a sobriedade de um rito: epestrepsa (“virei-me”), de epistrephō (“voltar-se, converter-se, retornar”), verbo que, em muitos contextos, adquire matiz de conversão interior, não apenas de giro físico, ecoando usos como “converter-se ao Senhor” em outras passagens do Novo Testamento. Em seguida, blepein (“ver”) não é apenas perceber com os olhos, mas apreender, considerar, dar atenção a algo que se torna objeto de contemplação. Phōnē (“voz”) designa tanto som quanto mensagem articulada, remetendo à voz divina que ressoou no Sinai e nos profetas, e aqui é “a voz que estava falando” com João por meio do verbo laleō (elalei — “estava falando”), que sugere fala contínua, um discurso em andamento. Na segunda metade, hepta (“sete”) carrega o simbolismo da plenitude, enquanto lychnia (“candelabro”, “porta-lâmpadas”) remete diretamente ao candelabro cultual, a menorá de Êxodo 25, em que o termo grego da Septuaginta para o candelabro de ouro também é lychnia, figura da luz do santuário diante de Deus. O adjetivo chrysas (“de ouro”, “dourados”), ligado a chrysos (“ouro”), acrescenta a ideia de valor, pureza e glória cultual, aproximando os candelabros da esfera do templo celestial, não de um cenário comum. Essa rede etimológica forma um pequeno drama: voltar-se, ver, ouvir uma voz e, no fim, encontrar não apenas objetos, mas o próprio símbolo da comunidade de Deus iluminando a escuridão.

Do ponto de vista morfológico, a frase se estrutura em dois movimentos principais ligados por kai (“e”): primeiro, a ação de João ao voltar-se, depois a visão que se lhe abre ao completar esse giro. Epestrepsa (“virei-me”) é verbo, aoristo, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular, com valor pontual, descrevendo um ato decidido, um “momento de virada” em resposta à voz que ouvira no versículo anterior. O infinitivo blepein (“ver”) é verbo, presente, infinitivo, ativo, funcionando aqui como infinitivo de propósito: João se volta com o propósito de ver a voz; o presente reforça a ideia de um ver prolongado, um ato de observação atenta e contínua. Phōnēn (“voz”) é substantivo, feminino, acusativo, singular, objeto direto desse infinitivo, enquanto hētis (“a qual”) é pronome relativo feminino, nominativo, singular, retomando “voz” como sujeito da oração relativa que se segue. Nessa relativa, elalei (“estava falando”) é verbo, imperfeito, indicativo, ativo, terceira pessoa do singular, exprimindo uma ação em curso — a voz não apenas falou num instante, mas “estava falando com” João continuamente. Met’ emou (“comigo”) une a preposição meta (“com”) ao pronome pessoal na forma genitiva emou (“de mim”, “comigo”), indicando companhia íntima, não mera proximidade física.

No segundo movimento, epistrepsas (“tendo-se voltado”) é particípio, aoristo, ativo, nominativo, masculino, singular, concordando com o sujeito implícito “eu” e funcionando como particípio circunstancial de tempo: “e, ao voltar-me”. Eidon (“vi”) é verbo, aoristo, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular, um aoristo constativo que resume o ato de ver a visão completa dos candelabros de uma só vez. Hepta (“sete”) é numeral adjetivo, acusativo, feminino, plural, qualificando lychnias (“candelabros”), substantivo, feminino, acusativo, plural, que é objeto direto de eidon. O adjetivo chrysas (“dourados”) está em forma feminina, acusativa, plural, concordando com lychnias e funcionando como predicativo do objeto, descrevendo a qualidade cultual desses candelabros. O sujeito de todos esses verbos é o “eu” de João, expresso explicitamente apenas no versículo anterior, mas subentendido aqui; a sequência verbal desenha o caminho da experiência profética: ouvir a voz, voltar-se intencionalmente, e, então, ver a realidade simbólica que a voz descreve.

O versículo apresenta uma primeira oração principal coordenada, “E virei-me para ver a voz”, em que epestrepsa governa o infinitivo final blepein com o objeto “a voz” (tēn phōnēn), seguido da oração relativa explicativa “a qual estava falando comigo” (hētis elalei met’ emou), que especifica de que voz se trata — é a voz já introduzida nos versículos anteriores, a do Cristo glorificado. A segunda parte, “e, ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro”, articula-se por meio do particípio circunstancial epistrepsas, que retoma e desenvolve a ação anterior: o voltar-se não é apenas o gesto inicial, mas um processo que abre espaço para a visão (eidon hepta lychnias chrysas). Assim, a estrutura inteira pode ser lida como um paralelismo entre ouvir e ver: João primeiro responde à voz, depois, no ato de se voltar, os olhos se abrem para a realidade simbólica da igreja, figurada pelos candelabros. A relação entre voz e visão é intencional: não se trata de uma voz qualquer, mas da voz cuja identidade só se clarifica plenamente quando João vê os candelabros e, em seguida, o próprio Filho do Homem no meio deles (verso 13), o que será explicitado pela interpretação dada em Apocalipse 1:20, onde se afirma que “os sete candeeiros são as sete igrejas”.

As traduções em várias versões reforçam e, por vezes, tornam mais explícita essa dinâmica. A King James Version verte: “And I turned to see the voice that spake with me. And being turned, I saw seven golden candlesticks” (“E virei-me para ver a voz que falava comigo; e, tendo-me virado, vi sete castiçais de ouro”), mantendo literalmente a expressão “ver a voz” e repetindo o verbo “virar-se” na forma participial para marcar a transição entre audição e visão. A English Standard Version diz: “Then I turned to see the voice that was speaking to me, and on turning I saw seven golden lampstands” (“Então virei-me para ver a voz que me falava, e, ao virar-me, vi sete candelabros de ouro”), em linha muito próxima. A Young’s Literal Translation conserva a estranheza semítica: “And I turned to see the voice that did speak with me; and having turned, I saw seven golden lampstands” (“E virei-me para ver a voz que falava comigo; e, tendo-me voltado, vi sete candelabros de ouro”), sublinhando com literalidade o vínculo entre ouvir a voz e ver sua fonte. Em português, a NVI traz: “Voltei-me para ver quem falava comigo. Voltando-me, vi sete candelabros de ouro”, optando por explicitar o sujeito da fala (“quem falava comigo”), o que já está implícito na construção grega; a ARC, mais próxima da tradição literal, verte: “E virei-me para ver quem falava comigo; e, virando-me, vi sete castiçais de ouro”. A NVT simplifica o fluxo, mas preserva o núcleo: “Quando me voltei para ver quem falava comigo, vi sete candelabros de ouro”. Em todas elas, a tensão entre “ver a voz” e “ver quem fala” denuncia o caráter visionário do texto: ver a voz não é mero sinestesia poética, é a forma apocalíptica de dizer que a palavra divina se torna forma, figura, realidade diante dos olhos.

O v. 12 é o instante em que o profeta se desloca do mero impacto auditivo da revelação para o espaço simbólico onde essa revelação se encarna em imagens. O ato de “voltar-se” (epestrepsa), em resposta à voz de Cristo, ecoa a experiência de tantos chamados bíblicos em que ouvir a voz de Deus exige uma mudança de direção: Moisés volta-se para ver a sarça (Êxodo 3:3–4), Isaías contempla o Senhor no templo (Isaías 6:1), Ezequiel é conduzido a ver as visões de Deus junto ao rio Quebar (Ezequiel 1:1). Essa volta inaugura um novo eixo de vida: quem se volta para a voz do Senhor passa a ver a realidade com outros olhos. Os “sete candelabros de ouro” são explicitamente interpretados como as sete igrejas em Apocalipse 1:20, de modo que a primeira visão que se abre diante de João é a da própria igreja, vista na sua vocação original de menorá, à semelhança do candelabro de ouro de Êxodo 25:31–40 e da visão de Zacarias 4, onde o profeta vê “um candelabro todo de ouro, com um vaso de azeite em cima e sete lâmpadas sobre ele”. A luz do templo, alimentada pelo óleo, prefigurava a presença perseverante de Deus no meio do seu povo; aqui, essa luz é transportada para a realidade das comunidades cristãs espalhadas pela Ásia Menor, que são chamadas a brilhar como “luz do mundo” (Mateus 5:14–16) e como “luseiros no mundo” (Filipenses 2:15), ao mesmo tempo em que recebem advertências severas para que não tenham o seu candelabro removido (Apocalipse 2:1–5). Ver os candelabros é, portanto, ver a igreja sob a luz da avaliação do Cristo glorificado; ver a voz é perceber que a palavra do Senhor não se limita ao som, mas molda a forma da comunidade que dele dá testemunho. Quando João se volta e vê, ele não contempla apenas um cenário celestial, mas é introduzido no coração do drama da história: a presença de Cristo no meio dos seus, caminhando entre candelabros de ouro que podem brilhar ou se apagar.

Apocalipse 1:13a

No meio dos sete candelabros, havia alguém semelhante a um filho de homem... (Gr.: kai en mesō tōn lychniōn homoion huion anthrōpou — Tradução mais literal: “e em meio dos candelabros, [um] semelhante a filho de homem”.) A expressão en mesō (“no meio”) nasce de mesos (“meio”, “centro”), palavra que no mundo grego evoca não apenas posição espacial, mas o ponto de convergência em que todas as linhas se encontram, o coração do círculo. Lychniōn provém de lychnos (“lâmpada”, “candeeiro”), termo que na LXX descreve o candelabro sagrado do tabernáculo e do templo, símbolo da presença e da vigilância de Deus no meio do seu povo (Êxodo 25:31–37; Zacarias 4:2). Já homoion vem de homoios (“semelhante”, “parecido”), palavra que indica correspondência real, ainda que não identidade total, preparando a ponte entre a visão de Daniel e a cristologia do Apocalipse. Huios (“filho”) e anthrōpos (“homem”) se unem em huion anthrōpou, ecoando a figura misteriosa de Daniel 7:13, “um como filho de homem”, a quem é dado domínio eterno.

Temos uma construção nominal com cópula subentendida. A conjunção kai liga este versículo ao fluxo anterior, introduzindo um novo detalhe da mesma cena. A locução preposicional en mesō está no dativo singular (mesō, substantivo, neutro, dativo, singular) e se expande com o genitivo plural tōn lychniōn (substantivo, feminino, genitivo, plural), formando um sintagma preposicional que indica o lugar da visão: o centro dos candelabros, que já foram identificados, no contexto, como as sete igrejas (Apocalipse 1:20). O núcleo da descrição é o acusativo homoion (adjetivo, acusativo, masculino, singular), funcionando como predicativo de um sujeito elíptico, geralmente entendido como um indefinido “alguém/um”, enquanto huion (substantivo, masculino, acusativo, singular) com o genitivo anthrōpou (substantivo, masculino, genitivo, singular) forma o complemento da semelhança: ele é “como um filho de homem”. A estrutura, portanto, é tipicamente semítica na sua lógica: um sintagma locativo (“em meio dos candelabros”) seguido de uma construção de identificação (“[havia] um semelhante a filho de homem”), com o verbo de ligação entendido, como é comum na LXX e no grego influenciado pelo hebraico e aramaico.

As traduções confirmam esse quadro. A KJV verte: “And in the midst of the seven candlesticks one like unto the Son of man” (“e no meio dos sete castiçais, um semelhante ao Filho do homem”), enquanto a ESV diz: “and in the midst of the lampstands one like a son of man” (“e no meio dos candelabros, um como filho de homem”), e a NIV: “and among the lampstands was someone like a son of man” (“e entre os candelabros estava alguém como um filho de homem”). A NVT em português ecoa a mesma percepção: “e, em pé entre eles, havia alguém semelhante ao Filho do Homem. Vestia um manto comprido, com uma faixa de ouro sobre o peito”. O foco não é a curiosidade sobre a identidade de um estranho personagem anônimo, mas o reconhecimento de que o próprio Cristo ressurreto aparece revestido das linhas de Daniel 7:13–14, onde “um como filho de homem” recebe domínio, glória e reino diante do “Ancião de Dias”.

Exegeticamente, João vê Cristo exatamente onde um sacerdote deveria estar: no meio dos candelabros, cuidando da luz, alimentando o azeite, corrigindo e purificando o que está prestes a apagar-se. A imagem funde o “Filho do Homem” daniélico, figura messiânica de autoridade universal, com a função sacerdotal de quem caminha entre as lâmpadas do santuário (Êxodo 25:31–37; Levítico 24:2–4). O título huion anthrōpou remete também ao uso constante nos Evangelhos, onde Jesus fala de si como “o Filho do Homem” que sofre, morre, ressuscita e vem nas nuvens do céu (Marcos 14:62; Mateus 24:30). Em Apocalipse 1:13, esse Filho de Homem já está na posição glorificada, entre as igrejas, antes mesmo de a profecia desenvolver os juízos e consolações subsequentes: a comunidade é contemplada à luz da sua presença mediadora. A lógica prática é pastoral e majestosa: a Igreja não está entregue a si mesma; o Senhor glorificado caminha, vela, inspeciona e sustenta cada candeeiro, e a identidade dele, “semelhante a um filho de homem”, assegura tanto a proximidade solidária (Ele é verdadeiramente homem) quanto a transcendência soberana (Ele é o portador da autoridade divina de Daniel 7).

Apocalipse 1:13b

...vestido dos pés à cabeça e cingido ao peito com um cinto de ouro... (Gr.: endedymenon podērē kai periezōsmenon pros tois mastois zōnēn chrysan — Tradução mais literal: “tendo sido vestido com túnica até os pés e tendo sido cingido junto ao peito com um cinto de ouro”.) O particípio endedymenon vem de endyō (“vestir”, “revestir”), verbo que no Novo Testamento frequentemente designa o ato de ser revestido de algo que redefine o estatuto da pessoa, seja uma realidade moral (“revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”, Romanos 13:14), seja a incorruptibilidade (1 Coríntios 15:53–54). Podērē deriva de pous/podos (“pé”) e descreve uma veste que alcança os pés, um traje longo, inteiro, usado por figuras de alta dignidade; este termo, segundo os léxicos, aparece aqui de forma única no Novo Testamento, mas é o mesmo vocábulo usado na LXX para a túnica do sumo sacerdote.

O particípio periezōsmenon procede de perizōnnymi (“cingir em volta”, “apertar com um cinto”), sugerindo alguém já preparado para uma função específica, pois cingir-se é, nas Escrituras, gesto de prontidão e serviço (Lucas 12:35–37). O sintagma pros tois mastois emprega pros com dativo, indicando proximidade “junto aos peitos/peito”, sendo mastoi substantivo masculino, dativo, plural de mastos (“peitos”, “região do tórax”), aqui de modo metafórico para a parte alta do peito, não um erotismo, mas a região sobre a qual se cruza a faixa do sumo sacerdote. Zōnēn (“cinto”, “faixa”) é substantivo feminino, acusativo, singular, qualificado por chrysan (“dourado”, “de ouro”), adjetivo feminino, acusativo, singular, de chrysos (“ouro”). A sintaxe mantém a unidade com o “semelhante a um filho de homem”: tanto endedymenon podērē quanto periezōsmenon… zōnēn chrysan são particípios perfeitos no acusativo masculino singular, funcionando como adjetivos que especificam a aparência daquele personagem central.

As versões reforçam esse quadro de majestade sacerdotal. A ESV traz: “clothed in a robe reaching down to his feet and with a golden sash around his chest” (“vestido com uma veste que se estende até os pés e com uma faixa de ouro ao redor do peito”), enquanto a NIV diz: “dressed in a robe reaching down to his feet and with a golden sash around his chest” (“vestido com uma túnica que alcança os pés e com uma faixa de ouro ao redor do peito”). A KJV é ainda mais solene: “clothed with a garment down to the foot, and girt about the paps with a golden girdle” (“vestido com uma veste até o pé, e cingido pelo peito com um cinto dourado”), e a YLT, em sua literalidade rígida, verte: “clothed to the foot, and girt round at the breast with a golden girdle” (“vestido até o pé, e cingido ao redor do peito com um cinto dourado”). A NVT aproxima-se muito: “Vestia um manto comprido, com uma faixa de ouro sobre o peito.” Todas convergem para uma figura em trajes longos, com um cinto de ouro na altura do peito, imagem que remete imediatamente às vestes sagradas descritas para o sumo sacerdote em Êxodo 28 e Levítico 16, com sua túnica e faixa trabalhadas “para glória e ornamento”.

O quadro do versículo é carregado de ecos veterotestamentários. A longa veste até os pés e o cinto de ouro fazem a ponte entre o “Filho de Homem” de Daniel 7:13–14 e o “homem vestido de linho, com um cinto de ouro de Ufaz” de Daniel 10:5, em que uma figura celeste gloriosa se apresenta como representante da autoridade divina. Ao mesmo tempo, a imagética sacerdotal de Êxodo 28–29, em que o sumo sacerdote entra no santuário com suas vestes especiais “para ministrar diante do Senhor”, é transfigurada: agora, quem está entre os candelabros, vestido com túnica longa e faixa de ouro, é o Cristo ressuscitado, que exerce um sacerdócio eterno “segundo a ordem de Melquisedeque” (Hebreus 7:24–27). A túnica longa, que em contextos sociais antigos significava status, honra e ausência de trabalho servil, aqui denuncia que aquele que morreu como servo agora se levanta como Sumo Sacerdote real, Senhor da história e guardião das igrejas.

Na lógica prática da passagem, a descrição não é mero ornamento estético, mas catequese visual. O leitor é convidado a imaginar o Senhor Jesus como Sumo Sacerdote que caminha entre as igrejas, não distante, mas dentro do círculo luminoso, ajustando as lâmpadas, examinando, corrigindo, encorajando. Sua túnica até os pés fala de sua glória e dignidade; seu cinto de ouro, colocado à altura do peito, evoca tanto a pureza quanto a firmeza com que abraça o ministério de intercessão e julgamento. Cada igreja, em seguida, ouvirá palavras específicas (Apocalipse 2–3), mas antes de qualquer exortação João fixa o olhar do leitor na figura daquele que fala: um Filho de Homem glorioso, sacerdote e rei, revestido de honra e ouro, plantado no meio dos candelabros para que nenhuma chama se apague sem que antes tenha sido tocada por sua presença.

Apocalipse 1:14

A sua cabeça e os seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos como a neve, e os seus olhos como chama de fogo. (Gr.: hē de kephalē autou kai hai triches leukai hōs erion leukon hōs chiōn, kai hoi ophthalmoi autou hōs phlox pyros — Tradução mais literal: “e a cabeça dele e os cabelos [eram] brancos como lã branca, como neve, e os olhos dele [eram] como chama de fogo”.) A tessitura vocabular deste versículo vem carregada de ecos veterotestamentários. Kephalē (“cabeça”) designa tanto a parte física do corpo como o ponto de comando, o lugar do governo simbólico; em Daniel 7:9, o “Ancião de Dias” aparece com vestes brancas e cabelos alvos, e a LXX retoma a mesma linguagem de cabeça e cabelos para pintar a eternidade divina. Triches (“cabelos”) é usado aqui no plural, como uma massa de fios que se tornaram leukai (“brancos”, “resplandecentes”), advindo de leukos, termo que em todo o Novo Testamento associa-se à luz, à pureza cultual e à glória celestial, como nas vestes brancas dos redimidos (Apocalipse 3:5; 7:14). A comparação com erion (“lã”) e com chiōn (“neve”) não é casual: lã e neve, no imaginário bíblico, são imagens de brancura absoluta, como em Isaías 1:18, onde pecados escarlates são tornados brancos “como a neve” e “como a lã”. Ophthalmoi (“olhos”) retoma o centro da percepção e do juízo; phlox (“chama”, “labareda”) deriva de uma raiz que aponta para o flamejar vivo, e pyr (“fogo”) completa o quadro de ardor, julgamento e purificação. Em Daniel 10:6, a figura gloriosa tem “olhos como tochas de fogo”, e em Apocalipse 2:18; 19:12, os olhos de Cristo são novamente descritos como “chama de fogo”, compondo um retrato coerente do Senhor que vê, sonda e julga.

Do ponto de vista morfológico e sintático, todo o versículo se constrói como uma série de predicações nominais com o verbo de ligação subentendido, em típico estilo semitizante. A expressão hē de kephalē autou kai hai triches (substantivos, feminino, singular e plural, respectivamente, no caso nominativo, com o pronome possessivo autou no genitivo singular masculino) forma o sujeito composto, enquanto leukai funciona como adjetivo no nominativo feminino plural, atuando como predicativo que recai especialmente sobre “cabelos”, mas, no ritmo da frase, colora a totalidade da cabeça gloriosa. A sequência hōs erion leukon hōs chiōn introduz comparações em cascata: erion é substantivo neutro, acusativo singular, modificado por leukon (adjetivo neutro, acusativo singular), tudo introduzido por hōs (“como”), que reaparece antes de chiōn (“neve”, substantivo feminino, nominativo singular), reforçando a insistência na brancura. A segunda metade do versículo retoma a mesma arquitetura: hoi ophthalmoi autou (substantivo masculino, nominativo plural, com o genitivo autou) é sujeito, e hōs phlox pyros descreve o predicado nominal, com phlox (substantivo feminino, nominativo singular) seguido do genitivo pyros (“de fogo”), formando um quadro em que os olhos não são literalmente fogo, mas “como” fogo, em intensidade e penetração.

As versões principais preservam o efeito. A KJV verte: “His head and his hairs were white like wool, as white as snow; and his eyes were as a flame of fire” (“A cabeça dele e os cabelos dele eram brancos como lã, tão brancos como a neve; e os olhos dele eram como uma chama de fogo”). A ESV diz: “The hairs of his head were white, like white wool, like snow. His eyes were like a flame of fire” (“Os cabelos de sua cabeça eram brancos, como lã branca, como neve. Seus olhos eram como uma chama de fogo”). A YLT ecoa, com literalidade rígida: “and his head and hairs white, as white wool — as snow, and his eyes as a flame of fire” (“e a cabeça dele e os cabelos brancos, como lã branca — como neve, e os olhos dele como chama de fogo”). A ASV oferece: “And his head and his hair were white as white wool, white as snow; and his eyes were as a flame of fire” (“E a cabeça dele e os cabelos eram brancos como lã branca, brancos como neve; e os olhos eram como chama de fogo”). Em português, a ARC guarda bem o paralelismo: “E a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os olhos, como chama de fogo”, enquanto a NVI e a NVT convergem: “A cabeça e os cabelos eram brancos como a lã, tão brancos como a neve; os olhos, como chama de fogo” (NVI) e “A cabeça e os cabelos eram brancos como a lã e a neve, e os olhos, como chamas de fogo” (NVT).

Na hermenêutica do texto, a brancura da cabeça e dos cabelos aproxima explicitamente Jesus do “Ancião de Dias” de Daniel 7:9, cuja roupa é branca como neve e cujos cabelos são como lã pura. Não é apenas um detalhe cromático, mas uma transposição de atributos divinos para a figura do Filho do Homem: pureza moral absoluta, eternidade que não conhece decadência e sabedoria anciã que atravessa os séculos. Os olhos como chama de fogo retomam Daniel 10:6, onde a figura celestial tem olhos como tochas ardentes, e são retomados em Apocalipse 2:18 e 19:12, onde o Cristo que perscruta igrejas e julga nações porta esse olhar flamejante que penetra véus, máscaras e autoengano. Em termos práticos, o versículo assegura à Igreja perseguida que o Senhor que caminha entre os candelabros não é um mero mestre humano: Ele é o próprio Deus eterno, de cabelos de neve e olhar de fogo, que conhece a fundo as obras (Apocalipse 2:2; 2:19) e não pode ser iludido pela fachada da piedade. A brancura conforta (Ele é santo, sábio, imutável), e o fogo inquieta (Ele discerne intenções e julga), chamando a uma vida que suporte o olhar dele sem fugir.

Apocalipse 1:15

Os seus pés eram semelhantes a bronze polido, como se tivesse sido refinado numa fornalha, e a sua voz era como a voz de muitas águas. (Gr.: kai hoi podes autou homoioi chalkolibanō hōs en kaminō pepyrōmenēs, kai hē phōnē autou hōs phōnē hydatōn pollōn — Tradução mais literal: “e os pés dele [eram] semelhantes a bronze brilhante, como [de metal] tendo sido incandescido em forno, e a voz dele [era] como voz de muitas águas”.) O vocabulário aqui desce da cabeça aos pés e do olhar à voz, completando o retrato. Podes (“pés”) remete a apoio, caminhada, aquilo com que se pisa e percorre caminho; em Ezequiel 1:7, os pés dos seres viventes são “como brilho de bronze polido”, preparando o paralelismo com a visão de João. Homoioi é o plural de homoios (“semelhante”, “da mesma espécie”), indicando uma analogia visual, não identidade material; seus pés se assemelham a algo que João só sabe descrever com a rara palavra chalkolibanon. Esta, um hapax praticamente exclusivo do Apocalipse (1:15; 2:18), parece ser um composto de chalkos (“cobre”, “bronze”) e possivelmente libanos (“incenso” ou um tipo de metal claro), sendo entendida por muitos como “bronze brilhante”, “liga metálica intensamente polida e incandescente” — um metal no auge do calor e do brilho, como indica o contexto da fornalha. Kaminō (“fornalha”, “forno de fundição”) traz a imagem do refino e do juízo; pepyrōmenēs é particípio perfeito passivo de pyroō (“inflamar”, “queimar”, “provar pelo fogo”), sugerindo um metal que passou pelo processo e permanece no estado de incandescência resultante. No fim do versículo, phōnē (“voz”, “som”) ressoa com o eco dos profetas, enquanto hydatōn pollōn (“muitas águas”) evoca o estrondo de águas em movimento, como em Ezequiel 43:2, onde a voz de Deus é “como a voz de muitas águas”.

Na estrutura morfológica do v. 14, a primeira metade do versículo mantém a lógica de predicação nominal com cópula elíptica. Hoi podes autou (substantivo masculino, nominativo, plural, com genitivo possessivo) constitui o sujeito, e homoioi chalkolibanō funciona como predicado: homoioi no nominativo masculino plural, em concordância com “pés”, e chalkolibanō no dativo singular, formando a construção “semelhantes a bronze incandescente”. A cláusula comparativa hōs en kaminō pepyrōmenēs introduz o modo dessa semelhança: hōs (“como”) abre o quadro, en kaminō traz um sintagma preposicional no dativo singular (“em fornalha”), e pepyrōmenēs (particípio perfeito passivo, feminino, genitivo, singular) provavelmente concorda com um substantivo implícito ligado ao campo semântico da fornalha ou do próprio metal, intensificando a ideia de que esse bronze não é apenas precioso, mas provado, incendiado, testado ao máximo. A segunda metade repete o esquema: hē phōnē autou (substantivo feminino, nominativo singular, com genitivo possessivo) é sujeito, seguido de hōs phōnē hydatōn pollōn, onde a primeira phōnē atua como predicativo (“como som”), e hydatōn pollōn (substantivo neutro, genitivo plural, qualificado por pollōn, adjetivo masculino/neutro, genitivo plural) indica um genitivo de origem ou conteúdo: a voz dele soa como o estrondo produzido por muitas águas juntas.

As versões espelham essas nuances com pequenas variações. A KJV lê: “and his feet like unto fine brass, as if they burned in a furnace; and his voice as the sound of many waters” (“e os pés dele, semelhantes a bronze fino, como se ardessem numa fornalha; e a voz dele, como o som de muitas águas”). A ESV diz: “his feet were like burnished bronze, refined in a furnace, and his voice was like the roar of many waters” (“os pés dele eram como bronze polido, refinado numa fornalha, e a voz dele era como o rugido de muitas águas”), enquanto a YLT conserva a literalidade: “and his feet like to fine brass, as in a furnace having been fired, and his voice as a sound of many waters” (“e os pés dele, como fino bronze, como em uma fornalha tendo sido aquecido, e a voz dele, como som de muitas águas”). A ASV mantém: “and his feet like unto burnished brass, as if it had been refined in a furnace; and his voice as the voice of many waters” (“e os pés dele, como bronze brunido, como se tivesse sido refinado em fornalha; e a voz dele, como a voz de muitas águas”). Em português, a NVI e a NVT são convergentes: “Seus pés eram como o bronze numa fornalha ardente, e sua voz como o som de muitas águas” (NVT) e “Seus pés brilhavam como o bronze numa fornalha ardente, e sua voz era como o som de muitas águas” (NVI), intensificando o brilho e o calor.

Na leitura teológica e intertextual, os pés semelhantes a bronze incandescente dialogam diretamente com Ezequiel 1:7, onde os seres viventes têm pés como o brilho de bronze polido, e com Daniel 10:6, que descreve braços e pés como reluzente bronze; aqui, porém, essa imagética é concentrada na pessoa única do Filho do Homem, que caminha entre os candelabros. Os pés incandescentes sugerem não apenas glória, mas firmeza e juízo: são pés que pisam com peso, que atravessam a história em meio ao fogo, que suportam o peso da santidade sem se consumir, e que, mais adiante, esmagarão os inimigos impenitentes (Apocalipse 19:15). Ao mesmo tempo, a voz “como muitas águas” ecoa a voz de YHWH em Ezequiel 43:2, que soa “como voz de muitas águas”, e volta em Apocalipse 14:2 e 19:6 como o bramido de uma multidão e de águas caudalosas; o efeito é de continuidade entre a voz de Deus no Antigo Testamento e a voz de Cristo glorificado no Novo.

Devocionalmente, estes dois versículos deixam de ser apenas um quadro estético para se tornarem um espelho: a Igreja contempla pés ardentes e voz de águas para lembrar que o Senhor que a visita não é frágil nem vacilante. Os pés, avermelhados como metal em brasa, falam de um Cristo que já atravessou a fornalha da cruz e da ressurreição; não pisa o chão frio da neutralidade, mas o solo incandescente da santidade. A voz, que enche o espaço como um mar em tempestade, lembra que a última palavra sobre a história não será o murmúrio dos impérios, mas o estrondo da Palavra que criou os mundos e agora convoca as igrejas a ouvirem: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Apocalipse 2:7). Quem lê e ouve este retrato é chamado a ajustar seus passos — frágeis, de barro — à firmeza dos pés de bronze, e a harmonizar sua voz trêmula à cadência grave dessas “muitas águas”, que ainda hoje convidam, corrigem e consolam.

Apocalipse 1:16a

Na sua mão direita, tinha sete estrelas, e da sua boca saía uma espada afiada de dois gumes. (Gr.: kai echōn en tē dexia cheiri autou asteras hepta, kai ek tou stomatos autou rhomphaia distomos oxeia ekporeuomenē — Tradução mais literal: “e [ele], tendo na mão direita dele sete estrelas, e da boca dele [havia] espada de dois gumes, afiada, que procede [continuamente].”) A imagem abre-se com a “mão direita” (dexiadexia “direita”), termo que, além de designar o lado físico, carrega o campo semântico de poder, favor e honra, como se vê em inúmeras passagens em que a “destra” de Deus simboliza seu agir soberano. A “mão” (cheir) é, em quase toda a Escritura, o órgão da ação e do domínio, de modo que sete estrelas descansarem ali indica um governo absoluto e cuidadoso sobre aquilo que as estrelas representam. “Estrelas” (asteresaster “estrela”) no Apocalipse são explicitamente interpretadas como “anjos das sete igrejas” em Apocalipse 1:20, de modo que o símbolo não é livre, mas já ancorado pelo próprio texto: Cristo segura em sua destra os mensageiros/representantes das igrejas, o que implica tanto autoridade sobre eles quanto proteção sobre o rebanho que eles servem. A espada é chamada rhomphaia (“grande espada”), vocábulo que não designa a espada curta de combate corpo a corpo (machaira), mas um tipo de lâmina larga, de origem trácia, usada para cortes devastadores e, com o tempo, como símbolo de poder militar esmagador. O adjetivo distomos (“de duas bocas, de dois gumes”) joga com a metáfora da “boca” da lâmina; é uma espada que corta em qualquer direção, uma arma de alcance total. O qualificativo oxeia (“afiada, cortante”) intensifica a ideia de precisão e penetração, enquanto o particípio ekporeuomenē (ekporeuomenē “que sai, que procede”) no aspecto de processo contínuo sugere que essa ação de “sair” da boca não é um golpe único, mas uma emanação constante: o que procede da boca do Filho do Homem é uma palavra que não se cala, um juízo que está sempre em marcha contra a mentira e a idolatria.

Do ponto de vista morfológico, o versículo se organiza em torno do particípio echōn (“tendo”), particípio presente, voz ativa, nominativo, masculino, singular, regido por um sujeito implícito já identificado no contexto imediato como o “Filho do Homem” da visão (Apocalipse 1:13). Esse particípio presente, ligado por kai (“e”), descreve uma ação durativa: ele está, continuamente, “tendo” as estrelas em sua mão direita, não as teve por um momento e as abandonou, mas as conserva sob seu cuidado. A expressão preposicional en tē dexia cheiri autou (“na mão direita dele”) vem no dativo, formando um complemento locativo que situa a posse das estrelas nessa esfera de autoridade e honra. Asteras hepta (“sete estrelas”), acusativo, masculino, plural, funciona como objeto direto sem artigo, com o numeral indeclinável hepta sublinhando a plenitude simbólica — sete como cifra da totalidade da Igreja em sua dimensão histórica. Na segunda parte da cláusula, ek tou stomatos autou (“da boca dele”) traz a boca (stoma) como fonte de onde procede a rhomphaia distomos oxeia (“espada de dois gumes, afiada”), substantivo feminino, nominativo, singular, acompanhado de dois adjetivos também femininos, nominativos, singulares, funcionando como núcleo e seus qualificadores. O particípio ekporeuomenē, presente, voz média/passiva, nominativo, feminino, singular, concorda com rhomphaia e atua como predicativo, descrevendo a espada como algo que “está saindo”, que “se encontra em processo de sair” da boca. Assim, a estrutura sintática desenha duas cenas simultâneas: ele está “tendo” as estrelas na mão direita e, ao mesmo tempo, há uma espada que continuamente procede de sua boca, de modo que soberania pastoral e juízo verbal se entrelaçam em uma única figura.

As traduções principais convergem na imagem, com nuances interessantes. A KJV diz: “And he had in his right hand seven stars” (“E ele tinha na sua mão direita sete estrelas”) e “out of his mouth went a sharp twoedged sword” (“da sua boca saiu uma espada afiada de dois gumes”). A ESV verte: “In his right hand he held seven stars, from his mouth came a sharp two-edged sword” (“Na sua mão direita ele segurava sete estrelas, da sua boca veio uma espada afiada de dois gumes”), sublinhando com “held” o ato firme de segurar. A ASV conserva a sequência clássica: “out of his mouth proceeded a sharp two-edged sword” (“da sua boca procedia uma espada afiada de dois gumes”), aproximando-se do aspecto processual do particípio. A NVT em português diz: “Na mão direita tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada dos dois lados” e a ARC, em linha semelhante, traz “E ele tinha na sua destra sete estrelas, e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios”, expressão que preserva a força da imagem, ainda que usando um vocabulário mais antigo. Nesse horizonte, a sua tradução (“Na sua mão direita, tinha sete estrelas, e da sua boca saía uma espada afiada de dois gumes”) está plenamente em harmonia com o grego e com as principais versões; apenas se pode aproximar ainda mais do literal ao enfatizar o movimento contínuo da espada: “da sua boca saía uma espada de dois gumes, afiada, que procedia continuamente”.

O v. 16a tece símbolos já adensados ao longo da Escritura. A mão direita, como posição de honra e poder, remete ao Senhor entronizado em Salmos 110:1 (“Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”) e é aplicada a Cristo em Hebreus 1:3, onde ele se assenta “à direita da Majestade nas alturas”. Ao segurar as sete estrelas, ele se apresenta como aquele que detém, em sua própria mão, o destino e a missão das igrejas — uma visão que será reinterpretada no próprio contexto de Apocalipse 1:20, onde as estrelas são identificadas como “anjos das sete igrejas” e os candelabros como as igrejas em si. A espada que sai da boca dialoga diretamente com o tema da palavra divina como lâmina que discerne e julga: Isaías 11:4 fala do Messias que “ferirá a terra com a vara de sua boca”, e Isaías 49:2 descreve o Servo de YHWH cujo “boca” foi feita “como espada afiada”. Hebreus 4:12, embora use machaira e não rhomphaia, descreve a palavra de Deus como “mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”, capaz de discernir pensamentos e intenções do coração, e em Apocalipse 19:15 a mesma imagem da espada que procede de sua boca reaparece como instrumento com que Cristo “fere as nações”. A escolha de rhomphaia para o Cristo exaltado acentua o caráter esmagador e irresistível de sua palavra: não se trata de uma adaga devocional, mas de um golpe de sentença final, que varre estruturas inteiras de mentira. Na prática da fé, esse versículo impede qualquer romantização de um Cristo “inofensivo”: o mesmo Senhor que sustenta a Igreja em sua mão direita é aquele cuja palavra corta, divide, discerne e julga, obrigando cada comunidade e cada coração a se deixarem peneirar por aquilo que procede da boca do Cordeiro. O pastor é, ao mesmo tempo, juiz; a mão que sustenta é a boca que fere — e o caminho da Igreja passa, necessariamente, por essa espada que despedaça autoenganos para fazer nascer, no lugar deles, a verdade.

Apocalipse 1:16 Descrição física de Cristo diante de João

Apocalipse 1:16b

O seu rosto era como o sol quando resplandece no seu esplendor. (Gr.: kai hē opsis autou hōs ho hēlios phainei en tē dynamei autou — Tradução mais literal: “e a aparência dele [era] como o sol [quando] brilha em sua força.”) A segunda parte do versículo desloca o foco da mão e da boca para o rosto. O termo opsis (opsis “rosto, aparência, visão”) designa tanto o ato de ver quanto aquilo que é visto, a superfície visível de alguém, a “face” que se expõe ao olhar. O sol (hēlioshēlios “sol”) é a imagem máxima de luminosidade no mundo antigo, fonte de vida, calor e claridade, enquanto phainei (phainei “brilha, resplandece”) é verbo que evoca a manifestação da luz depois das trevas. Dynamis (dynamis “força, poder”) define esse brilho como manifestação de potência: não é um clarão tímido, mas uma irradiação plena, em sua “força”, em sua capacidade máxima de alumiar. O rosto de Cristo, portanto, não é apenas um rosto humano transfigurado, mas um rosto-solar, concentrando em si o fulgor da glória divina, ecoando tanto a bênção sacerdotal de Números 6:25 (“o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti”) quanto as visões em que a glória de Deus é descrita como brilho insuportável.

A oração é nominal, com o artigo e o substantivo hē opsis (“a aparência / o rosto”) funcionando como sujeito, no nominativo, feminino, singular, ligado por hōs (“como”) ao elemento comparativo ho hēlios (“o sol”), também nominativo, masculino, singular. O verbo ēn (“era”) está subentendido, como é comum em estruturas predicativas do grego koiné, de modo que a fórmula “o rosto dele [era] como o sol” é uma equivalência relacional. O verbo phainei, presente, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, tem por sujeito “o sol” e exprime uma ação habitual, característica: o sol é aquilo que, por natureza, “brilha”. A locução preposicional en tē dynamei autou (“em sua força”) usa o dativo com en para indicar o modo ou a esfera do brilho — ele resplandece “no âmbito” de sua força, isto é, no máximo de sua capacidade. Autou, pronome genitivo, masculino, singular, indica posse: é a própria força do sol, metaforicamente da glória do Cristo, que determina a intensidade desse resplendor. Assim, a frase inteira constrói uma teofania concentrada: a aparência de Cristo é comparada ao sol em seu zênite, quando nenhuma sombra consegue resistir ao golpe da luz.

As versões reforçam essa leitura com leves variações de tom. A ESV diz: “and his face was like the sun shining in full strength” (“e o seu rosto era como o sol brilhando em plena força”), preservando quase palavra por palavra a estrutura grega. A KJV traz “his countenance was as the sun shineth in his strength” (“o seu semblante era como o sol quando resplandece na sua força”), mantendo o ar arcaico, mas fiel ao texto. A NVT verte de forma muito próxima ao uso devocional contemporâneo: “A face brilhava como o sol em todo o seu esplendor”, captando o sentido de dynamei como “esplendor pleno”. À luz dessas comparações, a sua tradução (“O seu rosto era como o sol quando resplandece no seu esplendor”) está coerente com o grego e com as principais versões; uma formulação ainda mais literal, se desejado, poderia dizer “quando brilha na sua força”, trazendo à tona o vocabulário de poder de dynamis.

Intertextualmente, essa visão do rosto de Cristo como sol em força plena ecoa diretamente a Transfiguração, quando “o seu rosto brilhou como o sol” em Mateus 17:2, diante de Pedro, Tiago e João; a mesma comparação explícita com o sol indica que o Cristo glorificado do Apocalipse é o mesmo que, no evangelho, se transfigura por um instante, deixando aparecer a sua natureza divina sob o véu da carne. No Antigo Testamento, Daniel 10:6 descreve a figura celestial cujo “rosto era como o relâmpago”, cujos olhos eram “como tochas de fogo” e cuja voz soava como “a voz de uma multidão”, imagem que converge com o conjunto da visão de Apocalipse 1:12–16: bronze, chamas, voz de muitas águas, brilho quase insuportável. A bênção aarônica de Números 6:24–26, pedindo que o Senhor “faça resplandecer o seu rosto”, encontra aqui seu cumprimento máximo: o rosto que resplende não é apenas o de um mensageiro, mas o do próprio Filho, no qual “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2:9). No plano prático, a metáfora do sol que brilha “na sua força” é um golpe contra qualquer tentativa de domesticar Jesus a uma penumbra confortável: estar diante dele é ser exposto, aquecido, purificado, mas também cegado, se o coração preferir as sombras. A mesma luz que consola os que andam em trevas (João 8:12) é a que revela a miséria de quem insiste em fugir da verdade (João 3:19–21). Para a Igreja perseguida e cansada, porém, esse rosto-solar é promessa e consolo: aquele que segura as estrelas e empunha a espada é também aquele cujo olhar luminoso atravessa todas as noites, garantindo que nenhuma caverna de tribulação seja escura demais para a glória que emana do Cordeiro.

Apocalipse 1:17

E, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua mão direita, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último. (Gr.: kai hote eidon auton, epesa pros tous podas autou hōs nekros, kai ethēken tēn dexian autou ep’ eme, legōn· mē phobou· egō eimi ho prōtos kai ho eschatos —  Tradução ainda mais literal: “E quando eu o vi, caí aos seus pés como morto; e ele colocou a sua mão direita sobre mim, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro e o último.”) A cena é bordada com verbos que concentram, em golpes breves, a violência da visão e a doçura da voz. Eidon (“vi”) é o aoristo de horaō (“ver”, “contemplar”), verbo que, no vocabulário apocalíptico, assume tom técnico para a percepção de realidades celestes e não meramente a visão física; o aoristo, como aspecto perfeito-pontual, retrata o momento único em que o vidente é surpreendido pela figura do Filho do Homem. Epesa (“caí”) é aoristo de piptō (“cair”, “desabar”), carregando no Antigo Testamento grego a nuance de prostração diante do divino (como em Daniel 8:17–18 LXX). Nekros (“morto”) traz o campo semântico da ausência total de vida, e aqui, introduzido pela partícula comparativa hōs (“como”), indica um colapso existencial: João não apenas tropeça, ele desmorona em estado de morte figurada. Dexia (“direita”) — “a mão direita” — carrega, na tradição bíblica, a simbologia de poder, proteção e eleição (cf. Salmos 118:15–16), de modo que a mão direita sobre o profeta é gesto de autoridade que não esmaga, mas sustenta. Phobou vem de phobeomai (“temer”, “ficar aterrorizado”), relacionado a phobos; o imperativo presente negativo não é apenas “não sintas medo por um instante”, mas “deixa de permanecer em estado de medo contínuo”. Por fim, prōtos (“primeiro”) e eschatos (“último”) formam um par técnico importado dos cânticos de Isaías, onde o Senhor se apresenta como “primeiro e último” em oposição aos ídolos (Isaías 41:4; 44:6; 48:12), agora aplicados, de modo ousado, à voz que fala no Apocalipse.

A construção morfológica reforça esse arco que vai do colapso humano ao consolo divino. A frase abre com a conjunção temporal hote (“quando”), introduzindo uma oração subordinada que prepara o quadro: hote eidon auton forma uma cláusula com sujeito implícito de primeira pessoa singular (egō está subentendido no verbo), eidon funcionando como verbo, aoristo, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular, e auton como pronome pessoal masculino, acusativo, singular, objeto direto da visão. Em seguida, o aoristo epesa — verbo, aoristo, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular — retoma o mesmo sujeito e introduz a ação principal: cair “pros tous podas autou”, com pros como preposição de direção acompanhando tous podas (“os pés”, substantivo masculino, acusativo, plural) e autou (“dele”, genitivo de posse) indicando o alvo da prostração. A expressão hōs nekros traz hōs como partícula comparativa e nekros como adjetivo masculino, nominativo, singular, funcionando como predicativo implícito do sujeito, retratando o estado de João diante da visão.

No segundo movimento, o foco passa da reação humana à iniciativa de Cristo. Kai ethēken introduz novo aoristo — ethēken é verbo, aoristo, indicativo, ativo, terceira pessoa do singular, de tithēmi (“pôr”, “colocar”) — em que o sujeito agora é a figura gloriosa que João contemplou; o objeto direto é tēn dexian autou (“a mão direita dele”, dexian substantivo feminino, acusativo, singular, modificado por autou genitivo possessivo). Essa mão é colocada ep’ eme (“sobre mim”), com epi seguido de acusativo, expressando contato direto, a preposição compondo um dativo de afetação: João é o recipiente da ação consoladora. O particípio legōn — particípio presente, ativo, nominativo, masculino, singular, de legō (“dizer”) — faz a ponte entre gesto e palavra, funcionando como circunstancial de modo: ele coloca a mão “dizendo”. O imperativo mē phobou traz como partícula negativa e phobou como verbo, presente, imperativo, médio/deponente, segunda pessoa do singular, dirigindo-se diretamente a João como ordem de cessação de um estado contínuo de medo. Finalmente, egō eimi ho prōtos kai ho eschatos forma uma cláusula nominal, em que egō é pronome de primeira pessoa, eimi verbo, presente, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular, e ho prōtos / ho eschatos são adjetivos masculinos, nominativos, singulares, substantivados pelo artigo definido, funcionando como predicativos do sujeito: não se trata de qualidades acidentais, mas de títulos ontológicos.

O versículo encena um arco dramático bem definido: uma oração temporal (“quando o vi”) prepara o estilhaçar do profeta (“caí aos seus pés como morto”); a seguir, uma oração coordenada introduz a intervenção misericordiosa (“e ele pôs sobre mim a sua mão direita”), à qual se ajunta o particípio legōn com seu conteúdo de discurso direto, que abre com a proibição do medo e culmina na autodefinição de Cristo. A elipse do sujeito explícito em epesa intensifica a continuidade da primeira pessoa, de modo que o eu que vê é o mesmo eu que cai; a abundância de artigos na clausulazinha final (“o primeiro e o último”) densifica o caráter de título fixo, quase uma fórmula litúrgica. A sintaxe, portanto, arma um contraste entre o sujeito gramatical frágil, dissolvido em terror, e o sujeito divino que responde com um “eu sou” carregado de ecos veterotestamentários.

As versões em português mostram uma impressionante convergência, ainda que com nuances. A ARC verte: “E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último”; a ARA: “Quando o vi, caí a seus pés como morto. Porém ele pôs sobre mim a mão direita, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro e o último”; a NVI: “Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Então ele colocou sua mão direita sobre mim e disse: ‘Não tenha medo. Eu sou o Primeiro e o Último’”; a NVT: “Quando o vi, caí a seus pés, como morto. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim e disse: ‘Não tenha medo! Eu sou o Primeiro e o Último’” . Todas preservam a sequência ver–cair–tocar–falar, e a diferença principal está no tom da ordem: “não temas” (mais solene, eco de tantas teofanias bíblicas) versus “não tenha medo” (mais coloquial, aproximando-se da língua corrente).

Entre as versões inglesas, a ESV traz: “When I saw him, I fell at his feet as though dead. But he laid his right hand on me, saying, ‘Fear not, I am the first and the last’” (“Quando o vi, caí a seus pés como se estivesse morto. Mas ele pôs a mão direita sobre mim, dizendo: ‘Não temas, eu sou o primeiro e o último’”) . A ASV: “And when I saw him, I fell at his feet as one dead. And he laid his right hand upon me, saying, Fear not; I am the first and the last” (“E, quando o vi, caí a seus pés como alguém morto. E ele pôs a mão direita sobre mim, dizendo: ‘Não temas; eu sou o primeiro e o último’”) ; diversas compilações alinham KJV, RSV, NRSV, todas com fórmula praticamente idêntica: “When I saw him, I fell at his feet as though dead... Fear not; I am the first and the last” . A escolha uniforme do pretérito simples (“I saw”, “I fell”, “he laid”) corresponde bem ao aoristo grego, enquanto o imperativo “Fear not” conserva o registro litúrgico das teofanias (“não temas”, “não tenhas medo”).

Na tessitura bíblica mais ampla, o gesto de João ao cair “como morto” dialoga com as visões de Daniel: o profeta cai com o rosto em terra e perde as forças diante da figura resplandecente à beira do Ulai; um toque o ergue, e ele é consolado com o mesmo “não temas” (Daniel 8:17–18; 10:8–10, 18–19). A visão de Ezequiel diante da glória junto ao rio Quebar e o colapso de Isaías no templo (“ai de mim, estou perdido”, Isaías 6:5) desenham o mesmo padrão: a percepção aguda da santidade divina anula o profeta, que só volta a existir porque Deus o toca, o ergue, o purifica e o envia. Em Apocalipse 1, esse padrão é reencenado com um acréscimo decisivo: aquele que diz “não temas” reivindica para si o título que, em Isaías, pertence exclusivamente a YHWH — “eu sou o primeiro e eu sou o último, e fora de mim não há Deus” (Isaías 44:6). A literatura exegética contemporânea reconhece explicitamente essa intertextualidade, mostrando como o título “primeiro e último” em Apocalipse 1:17, 2:8 e 22:13 se ancora nos oráculos de Isaías e funciona como forte afirmação da divindade de Cristo dentro de um quadro estritamente monoteísta.

Hermeneuticamente, Apocalipse 1:17 se torna um ícone de toda experiência cristã da presença de Cristo glorificado. O duplo aoristo de João — ver e cair — desenha um momento definitivo: diante da revelação plena de Jesus, todo o acúmulo de experiências anteriores do apóstolo (aquele que reclinara a cabeça no peito do Mestre durante a ceia, que o viu transfigurado no monte, que o viu ressuscitado) se dissolve num novo colapso. Ele agora não vê o rabino galileu, mas o Senhor da glória, revestido de atributos que o alinham com o “Anciano de dias” de Daniel 7. A resposta de Cristo não é apenas um consolo psicológico, mas uma autorrevelação ontológica: o “não temas” encontra seu fundamento em “eu sou o primeiro e o último”. Se ele é o início e o termo da história, nada que se desenrole entre um polo e outro pode escapar ao seu senhorio; o medo se mostra logicamente inconsistente com a realidade daquele que fala.

Na prática devocional, o versículo ensina que o temor que paralisa só é expulso quando é substituído por um temor maior e mais luminoso: o assombro diante de Cristo exaltado. João não é tranquilizado por abstrações (“vai ficar tudo bem”), mas por um toque concreto e por uma declaração de identidade. As igrejas às quais ele escreve, pressionadas pela perseguição e pela sedução imperial, são convidadas, por meio desta cena, a reinterpretar as próprias tribulações: aquele que lhes fala, que lhes exige fidelidade até à morte, é precisamente o “primeiro e o último”, aquele em cuja presença até o apóstolo veterano se prostra como morto. A mão direita colocada sobre João antecipa o cuidado com que Cristo, ao longo das cartas às sete igrejas, chama, admoesta, corrige e promete; e, ao mesmo tempo, anuncia a mão que sustém as estrelas e que segura as chaves da morte e do Hades (versículo seguinte). O leitor é provocado a fazer o mesmo percurso: ver, cair, ouvir o “não temas” e, a partir daí, viver sob o horizonte deste “eu sou” que abraça o alfa e o ômega de todas as coisas.

Apocalipse 1:18

...e aquele que vive; e eu, na verdade, morri, mas eis que vivo para todo o sempre. E tenho as chaves da morte e do Hades. (Gr.: kai ho zōn, kai egenomēn nekros, kai idou zōn eimi eis tous aiōnas tōn aiōnōn, kai echō tas kleis tou thanatou kai tou hadou — Tradução mais literal: “e o Vivente, e tornei-me morto, e eis: vivente sou pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do Hades”.) O versículo abre com ho zōn (“o Vivente”), particípio presente de zaō (“viver”), do mesmo campo semântico de zōē (“vida”), um título que não apenas designa alguém que está vivo, mas Aquele em quem a própria vida tem sua fonte e permanência. Em seguida, egenomēn vem de ginomai (“tornar-se”, “vir a ser”), apontando não apenas para o fato bruto da morte, mas para a entrada voluntária do Filho na condição de morto: o Vivente “tornou-se morto”. Nekros (“morto”) aqui não é metáfora moral, mas a palavra fria e concreta do cadáver, a interrupção real da vida física. Quando aparece idou (“eis”, “olha”), partícula de chamamento, ela funciona como um gesto textual em que o Cristo ressurreto toma João pelo ombro e o faz olhar: “vê, estou vivo”. A expressão eis tous aiōnas tōn aiōnōn (“para as eras das eras”) intensifica o conceito de aiōn (“era”, “século”) num superlativo temporal: não apenas um longo tempo, mas o horizonte ilimitado de todas as eras somadas. Por fim, kleis (“chave”) pertence ao campo da autoridade e do controle de acesso; seu emprego combinado com thanatos (“morte”) e hadēs (“Hades”, o mundo invisível dos mortos, provavelmente ligado a a- privativo + raiz de “ver”, “invisível”) desenha uma imagem de senhorio absoluto sobre o estado de morte e o domínio em que ela impera.

O v. 18 prolonga o “eu” enfático de 1:17 (egō eimi ho prōtos kai ho eschatos), agora desdobrado em três declarações concatenadas por kai. Ho zōn é particípio presente, ativo, masculino, singular, funcionando como substantivo em aposição ao “eu” que fala: aquele que se apresentou como o Primeiro e o Último é também “o Vivente”, o que vive de modo contínuo. Egenomēn é verbo, aoristo, indicativo, médio, primeira pessoa do singular, descrevendo um acontecimento pontual no passado: o Vivente entrou, em dado momento, no estado de morto. A sequência nekros no nominativo masculino singular retoma implicitamente o sujeito “eu”, formando uma espécie de predicação: “tornei-me morto”. Idou interrompe a linha verbal com um grito de revelação, e logo em seguida zōn eimi combina um particípio presente ativo (zōn, “vivente”) com o verbo “ser” no presente, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular (eimi), sublinhando o estado durativo da vida ressuscitada: não apenas voltei a viver, mas “sou o Vivente”. A locução preposicional eis tous aiōnas tōn aiōnōn, com eis (“para dentro de”, “em direção a”) e dois substantivos masculinos, plurais, em construção genitiva intensificadora, constrói o alcance dessa vida: estende-se para dentro de todas as eras concebíveis. Por fim, echō é verbo, presente, indicativo, ativo, primeira pessoa do singular, e tas kleis é acusativo plural feminino, objeto direto; tou thanatou e tou hadou são genitivos masculinos singulares que dependem de “chaves”, formando um genitivo objetivo: são as chaves que dizem respeito à morte e ao Hades, as chaves que podem abrir e fechar o acesso a esse domínio.

Do ponto de vista sintático, o versículo pode ser lido como uma sequência de predicações em série, todas com o “eu” implícito como sujeito: “(eu sou) o Vivente; e tornei-me morto; e eis: (eu) sou vivente pelos séculos dos séculos; e tenho as chaves da morte e do Hades”. O primeiro membro, com ho zōn isolado por kai, funciona como retomada nominativa em apposição a “o Primeiro e o Último” de 1:17, como se o Cristo dissesse: “o Primeiro e o Último — isto é, o Vivente”. A segunda oração, com egenomēn nekros, introduz a grande inversão cristológica: o mesmo sujeito eterno e vivente entrou, num ponto da história, na condição de morto. A terceira, com idou zōn eimi eis tous aiōnas tōn aiōnōn, torna-se o eixo da consolação: o “eis que” abre a cortina, e o predicado “sou vivente para as eras das eras” mostra que a morte foi vencida de modo irrevogável. A quarta, com echō tas kleis tou thanatou kai tou hadou, fecha a cadeia com uma imagem de autoridade soberana: Aquele que morreu e vive para sempre não apenas sobreviveu à morte, mas detém o poder de abrir e fechar o domínio onde a morte reina.

As versões reforçam, cada uma à sua maneira, essa estrutura. A KJV verte: “I am he that liveth, and was dead; and, behold, I am alive for evermore, Amen; and have the keys of hell and of death” (“Eu sou aquele que vive, e fui morto; e, eis, estou vivo para todo o sempre, Amém; e tenho as chaves do inferno e da morte”), mantendo a cadência tripla — vive, morre, vive para sempre — e introduzindo um “Amém” final, ausente nos textos críticos mas presente na tradição recebida. A ESV diz: “and the living one. I died, and behold I am alive forevermore, and I have the keys of Death and Hades” (“e o Vivente. Morri, e eis que estou vivo para todo o sempre, e tenho as chaves da Morte e do Hades”), preservando o título “the living one” e a ordem “Death and Hades”, que corresponde ao grego. A YLT, mais literal, traz: “and He who is living, and I did become dead, and, lo, I am living to the ages of the ages… and I have the keys of the hades and of the death” (“e Aquele que está vivendo, e eu tornei-me morto, e, eis, estou vivendo para as eras das eras… e tenho as chaves do Hades e da morte”), preservando o aoristo como “tornei-me” e a expressão “eras das eras”. Entre as portuguesas, a NVI diz: “Sou aquele que vive; estive morto, mas agora estou vivo para todo o sempre! E tenho as chaves da morte e do Hades”, enquanto a NVT lê: “Eu sou aquele que vive. Estive morto, mas agora estou vivo para todo o sempre! E tenho as chaves da morte e do mundo dos mortos”. Todas convergem na tríade: identidade (“o Vivente”), morte real (“estive morto”) e vida eterna, culminando no símbolo das chaves, ainda que variem em “inferno”, “Hades” ou “mundo dos mortos”.

Apocalipse 1:18 condensa o coração do evangelho em quatro golpes de martelo: quem fala é o mesmo que, em 1:17, se declara “o Primeiro e o Último”, ecos diretos de Isaías, onde o próprio Deus diz: “Eu, o Senhor, sou o primeiro, e com os últimos eu sou o mesmo”. Quando esse “Primeiro e Último” se apresenta agora como ho zōn (“o Vivente”) que “se tornou morto”, somos colocados diante do paradoxo cristológico fundamental: o Autor da vida assume a morte. É o que o Novo Testamento já havia proclamado em outras chaves: em Romanos 6:9, Cristo ressuscitado “já não morre; a morte já não tem domínio sobre ele”; em João 11:25, ele se define como “a ressurreição e a vida”, de tal modo que quem crê “ainda que morra, viverá”. O “eis que vivo para todo o sempre” conecta-se a essa mesma confissão: a morte entrou na experiência do Filho, mas não mais no seu horizonte; ela é um ponto num passado vencido, não mais uma possibilidade futura.

A imagem das chaves derrama sobre essa confissão um simbolismo de governo. Ter “as chaves da morte e do Hades” é possuir autoridade para abrir e fechar a prisão última, o cárcere aparentemente irreversível para onde descem todos os homens. A metáfora ecoa Isaías 22:22, em que o Senhor coloca sobre Eliakim “a chave da casa de Davi; ele abrirá, e ninguém fechará; fechará, e ninguém abrirá”, figura de um administrador a quem é confiado o acesso ao palácio real. Em Apocalipse 3:7, essa linguagem é aplicada diretamente a Cristo, que tem “a chave de Davi” e cuja ação de abrir e fechar é soberana; aqui, em 1:18, o campo é ainda mais radical: não apenas o acesso ao reino, mas o próprio regime da morte está sob a chave em suas mãos. O Cristo ressuscitado não é apenas o caminho de saída do túmulo; ele é o Senhor que tranca e destranca as portas da morte, o que harmoniza com sua palavra em Mateus 16:19, quando promete a Pedro “as chaves do reino dos céus”, delegando a participação de sua autoridade soberana.

Para a vida da igreja, o versículo é um remédio contra o pavor que enrijeceu João em 1:17: diante da visão do Cristo glorificado, ele cai como morto; diante da palavra do Cristo ressuscitado, ele aprende que só há um morto definitivo na narrativa — a própria morte. É como se o Senhor dissesse: “Não temas, porque a morte que te espera já passou por mim, e comigo ela não tem mais a última palavra”. Aquele que vive, que se tornou morto e agora vive pelos séculos, toma a morte que nos ronda e a coloca num chaveiro pendente de sua mão direita. E cada vez que a igreja se aproxima da tumba — seja num funeral, seja na própria angústia pessoal diante do fim — este versículo ressoa como um toque de metal na porta: as chaves estão com Ele, e o Hades não é mais um reino autônomo, mas um corredor sob a jurisdição daquele que, tendo descido às profundezas, voltou para dizer: “Eu sou o Vivente… e tenho as chaves da morte e do Hades.”

Apocalipse 1:19

Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas. (Gr.: grapson oun ha eides kai ha eisin kai ha mellei genesthai meta tauta — Tradução mais literal: “Escreve, portanto, o que viste, e o que é, e o que está prestes a tornar-se depois destas coisas.”) O imperativo grapson (“escreve”) vem de graphō (“gravar, traçar, escrever”), verbo no aoristo, modo imperativo, voz ativa, segunda pessoa do singular, e carrega a ideia de uma ordem pontual, um ato decisivo que inaugura a função de João como escriba profético; a partícula oun (“pois”, “portanto”) amarra esse mandato ao que acaba de ser revelado sobre o Cristo glorificado, de modo que a visão não é mero êxtase, mas fundamento lógico para uma missão literária. O relativo neutro plural ha (“as coisas que”) se repete três vezes, formando um tríptico temporal que funciona como objeto direto interno do imperativo, enquanto eides (“viste”) está no aoristo, modo indicativo, voz ativa, segunda pessoa do singular de horaō (“ver”, “contemplar”), apresentando a visão já como evento completo, um passado que agora precisa ser fixado por escrito; em seguida, eisin (“são”) vem no presente, modo indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural de eimi (“ser, estar”), descrevendo o estado atual das realidades eclesiais às quais o livro se dirige.

O terceiro membro, ha mellei genesthai meta tauta, combina o verbo mellei (“está prestes”, de mellō) no presente, modo indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, com o infinitivo médio genesthai (“tornar-se, acontecer”, de ginomai), produzindo uma construção que não é mero futuro cronológico, mas sugere coisas em processo, eventos “na beira” de irromper, situados meta tauta (“depois destas coisas”), expressão que no próprio Apocalipse marca transições visionárias importantes (por exemplo, Apocalipse 4:1). Etimologicamente, graphō está ligado ao ato de riscar, inscrever, e no contexto bíblico passa a significar a fixação das palavras reveladas em forma duradoura; horaō transita do simples “ver” à percepção contemplativa que, em João, frequentemente tem conotação revelatória (como em João 1:34); mellō indica algo que é necessário e iminente, não um futuro vago, e ginomai sublinha o caráter processual da história, o “tornar-se” dos desígnios divinos mais do que um simples “acontecer” pontual.

As versões inglesas mais literais convergem nesse ritmo tripartido: a NASB traz “Therefore write the things which you have seen, and the things which are, and the things which will take place after these things” (“Portanto, escreve as coisas que tens visto, e as coisas que são, e as coisas que acontecerão depois destas coisas”), enquanto a YLT acentua a nuance de iminência: “Write the things that thou hast seen, and the things that are, and the things that are about to come after these things” (“Escreve as coisas que tens visto, e as coisas que são, e as coisas que estão prestes a vir depois destas coisas”). Em português, a NAA e a ARA preservam fielmente a cadência: “Escreva, pois, as coisas que você viu, as que são e as que hão de acontecer depois destas” e “Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas”, ecoando quase palavra por palavra a sequência grega.

Na arquitetura do livro, muitos intérpretes percebem nesse verso uma espécie de sumário programático: “as coisas que viste” apontam para a visão inaugural do Cristo glorificado (Apocalipse 1), “as coisas que são” correspondem à situação presente das igrejas da Ásia (Apocalipse 2–3) e “as que hão de acontecer depois destas coisas” abrem a seção visionária que se projeta para o desdobramento histórico e escatológico (Apocalipse 4–22). A sintaxe costura assim passado, presente e futuro sob um mesmo imperativo de escrita, de modo que o livro não é um oráculo solto sobre o porvir, mas a narrativa de um Cristo que age na história inteira: no que João viu, no que as igrejas são, e no que ainda há de emergir. A lógica teológica é que a igreja só discerne corretamente o futuro quando o encara à luz do Cristo já visto e do presente real das comunidades; por isso o mandato de “escrever” é mais que registrar dados, é servir de ponte entre a experiência visionária e a perseverança concreta dos servos. Essa mesma integração aparece noutros textos joaninos, em que o ato de escrever sela a transmissão da revelação (“Estas coisas, porém, foram escritas para que creiais”, João 20:31), e se articula com a consciência de que o tempo é curto (“o tempo está próximo”, Apocalipse 1:3), de modo que a palavra escrita se torna o fio que atravessa a era entre a primeira visão do Cristo glorificado e o cumprimento de “tudo quanto convém acontecer”.

Apocalipse 1:20

O mistério das sete estrelas que viste à minha direita, e dos sete candeeiros de ouro; as sete estrelas são mensageiras das sete assembleias, e os sete candeeiros que viste são as sete assembleias. (Gr.: to mystērion tōn hepta asterōn hous eides epi tēs dexias mou kai tas hepta lychnias tas chrysas; hoi hepta asteres angeloi tōn hepta ekklēsiōn eisin kai hai lychniai hai hepta hepta ekklēsiai eisin — Tradução mais literal: “O segredo das sete estrelas que viste sobre a minha direita e das sete luminárias douradas: as sete estrelas são mensageiros das sete assembleias, e as sete luminárias, as sete, são sete assembleias.”) A expressão nominal to mystērion (“o mistério”) assume o papel de tema da frase e vem de mystērion, termo que, na tradição bíblica grega, designa um segredo divino outrora oculto, agora revelado, como na versão grega de Daniel, em que o segredo do sonho de Nabucodonosor é chamado mystērion (equivalente ao aramaico raz). O genitivo tōn hepta asterōn (“das sete estrelas”) indica posse ou pertença, conectando o mistério a esses corpos celestes simbólicos, enquanto o relativo acusativo plural hous eides (“que viste”) retoma a experiência visionária do versículo anterior e mantém João como testemunha ocular; eides é, de novo, aoristo, modo indicativo, voz ativa, segunda pessoa do singular de horaō, sinalizando um fato visto de maneira plena.

A preposição epi com o genitivo tēs dexias mou (“sobre a minha direita”) constrói a imagem daquele que segura as estrelas com a mão de autoridade e favor, retomando Apocalipse 1:16, onde a mão direita de Cristo já aparecia como lugar das sete estrelas. A coordenação com kai tas hepta lychnias tas chrysas (“e os sete candelabros dourados”) introduz o outro polo do símbolo: lychnia remete ao candelabro, e na tradição da Septuaginta designa especialmente a menorá do tabernáculo e do templo (Êxodo 25:31; Zacarias 4:2), fazendo eco ao povo de Deus como portador da luz divina no mundo. Na segunda parte da frase, o sujeito hoi hepta asteres (“as sete estrelas”) está em caso nominativo masculino plural, e o predicado nominal angeloi tōn hepta ekklēsiōn define essas estrelas como angeloi (“mensageiros”, “anjos”) ligados, por um genitivo, às “sete assembleias” (ekklēsiai), termo que, no Novo Testamento, não designa edifício, mas comunidade convocada.

O verbo eisin permanece no presente, modo indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural, afirmando uma identidade permanente, não transitória: as estrelas são, em seu ser simbólico, representantes das igrejas. A última cláusula repete a estrutura: hai lychniai hai hepta hepta ekklēsiai eisin (“as luminárias, as sete, são sete assembleias”), reforçando, pela duplicação de hepta, a correspondência exata entre candelabros e comunidades, como se o texto martelasse que não há igreja verdadeira sem luz, nem luz legítima sem igreja. As versões inglesas ecoam esse paralelismo: a NASB verte “As for the mystery of the seven stars which you saw in My right hand, and the seven golden lampstands: the seven stars are the angels of the seven churches, and the seven lampstands are the seven churches” (“Quanto ao mistério das sete estrelas que viste na minha mão direita e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas”), enquanto a YLT, mantendo termos mais literais, fala em “the secret of the seven stars that thou hast seen upon my right hand, and the seven golden lamp-stands” e traduz angeloi por “messengers” e ekklēsiai por “assemblies”. Em português, a NAA sintetiza: “Quanto ao mistério das sete estrelas que você viu na minha mão direita e quanto aos sete candelabros de ouro, as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas”, explicitando a leitura eclesial do símbolo.

Do ponto de vista exegético, a palavra mystērion aqui não convida a um obscurantismo místico, mas, ao contrário, nomeia aquilo que está prestes a ser desvelado pela própria voz de Cristo: o livro não deixa os símbolos soltos, mas imediatamente os interpreta, ensinando o leitor a ler o Apocalipse com a chave da própria Escritura. Assim, as “estrelas” associadas a angeloi estabelecem um campo de ressonância com textos em que estrelas se ligam a seres celestiais (por exemplo, Jó 38:7; Apocalipse 12:4), enquanto os “candelabros de ouro” dialogam com a menorá de Êxodo 25 e com a visão de Zacarias 4, onde o candelabro e as oliveiras representam a presença e a ação do Espírito no meio do povo de Deus. O fato de Cristo segurar as estrelas na mão direita indica que a liderança espiritual da igreja — quer se entenda angeloi como mensageiros celestes ligados a cada comunidade, quer como os representantes humanos que recebem a carta — está sob o seu domínio e sua proteção, não entregue ao acaso ou ao poder imperial. E o fato de ele caminhar entre os candelabros (Apocalipse 1:13) afirma que a presença do Ressuscitado se move no meio das igrejas, avaliando-as, corrigindo-as, encorajando-as, de modo que o “mistério” não é apenas um dado doutrinário, mas uma realidade pastoral: Cristo governa os que anunciam a sua palavra e ilumina, por meio das comunidades locais, um mundo escuro.

III. Análise Crítico-Literária de Apocalipse 1

O livro do Apocalipse se apresenta, já no capítulo 1, como uma “revelação de Jesus Cristo”, enquanto a saudação de João às igrejas o configura ao mesmo tempo como uma carta que circula entre comunidades concretas. Esse duplo enquadramento abre o texto como se fosse uma cortina litúrgica: de um lado, o gênero revelatório que descortina o agir de Deus na história; de outro, a forma epistolar que ancora essa revelação no chão da igreja. O capítulo culmina com João na ilha de Patmos, exilado e, justamente ali, visitado pelo Ressuscitado, que se lhe manifesta em glória. A palavra apokalypsis (“revelação”, “desvelar”) remete de forma direta a Daniel 2, pois a formulação completa de Apocalipse 1.1 é construída à imagem da moldura mais ampla de Daniel 2.28–30,45–47 (cf. Θ), onde o verbo apokalyptō (“revelar”) ocorre cinco vezes (cf. também 2.19,22), a expressão ha dei genesthai (“o que deve acontecer”) aparece três vezes, e o verbo sēmainō (“significar”, “indicar por sinais”) surge duas vezes (cf. também 2.23 LXX). Dentro desse campo de ressonâncias, a expressão en tachei (“em breve”) funciona como substituição consciente da fórmula “nos últimos dias” de Daniel (Daniel 2.28), deslocando a expectativa para uma época definitiva e iminente de cumprimento, como se o relógio escatológico, antes distante, agora pulsasse bem próximo do presente de João.

Entretanto, há um contraste fundamental entre o horizonte de Daniel e o de João. Enquanto Daniel aguardava que esse cumprimento se desse em um futuro remoto, situado nos “últimos dias”, João escreve com a convicção de que o começo desse cumprimento irrompe já em sua própria geração. As engrenagens escatológicas não estão apenas prometidas, mas começaram a girar; isso se percebe nas alusões à fase inicial do cumprimento das profecias do Antigo Testamento dentro do próprio capítulo 1 (cf. 1.5,7,13,16). O uso de sēmainō em Daniel 2.45 LXX explicita o caráter simbólico do sonho do rei da Babilônia: a grande estátua representa quatro impérios mundiais, como uma espécie de cartum político em linguagem onírica. Quando Apocalipse evoca essa passagem de Daniel logo no título e na declaração programática de seu conteúdo, indica que esse mesmo tipo de visão simbólica será a estrutura subjacente dos meios de comunicação ao longo de todo o livro. Assim, em vez de despertar a expectativa de que a maior parte da obra seja “literal” em sua natureza, o versículo inicial, ancorado em Daniel, sugere justamente o oposto: a maior parte do material deve ser lida como simbólica (sobre isso, ver Beale 1999b, p. 295–299). É também por isso que os capítulos 4 a 21, em particular, se deixam compreender com mais fidelidade quando acolhidos como predominantemente simbólicos, especialmente as grandes sequências visionárias dos selos, das trombetas e das taças (sobre esse ponto, ver Beale 1999a, p. 50–69), nas quais o imaginário profético irrompe como uma tapeçaria de sinais que, mais do que descrever mecanicamente eventos, dramatiza em imagens o governo de Deus sobre a história.

O número “sete”, que domina Apocalipse 1.4a, irradia o mesmo simbolismo de completude que permeia o Antigo Testamento (e.g., Levítico 4–16; 26.18–28) e cujas raízes mergulham no próprio relato da Criação: seis dias de obra divina culminando numa consumação. É natural, portanto, compreender que as sete igrejas da Ásia representem a totalidade da igreja, como um círculo inteiro desenhado por esse número cuja função literária sempre foi evocar plenitude. Nesse mesmo versículo, a descrição de Deus como “aquele que é, que era e que há de vir” reverbera uma interpretação do nome “YHWH” derivada da meditação sobre Êxodo 3.14 e sobre as autodesignações temporais de Deus em Isaías (cf. Is 41.4; 43.10; 44.6; 48.12), identidades tríplices que, muito provavelmente, já brotavam da própria estrutura revelatória de Êxodo 3.14. A tradição judaica posterior levou esse movimento ainda mais longe, ampliando o nome divino de forma tríplice, como se vê no Targum de Pseudo-Jônatas sobre Deuteronômio 32.39: “Eu sou aquele que é, que era e que será”, eco que aproxima com naturalidade o Apocalipse dessa linhagem interpretativa.

O primeiro dos três elementos, “aquele que é” (ho ōn), provém diretamente de Êxodo 3.14 LXX (egō eimi ho ōn). João o preserva no nominativo, mesmo quando a preposição grega apo (“de”, “da parte de”) exigiria o genitivo, justamente para conservar a alusão ao texto do Êxodo e destacar o matiz teológico da expressão (para um estudo completo, v. McDonough 1999). A construção pode ainda abrigar uma nuance semítica: em hebraico, substantivos não são flexionados nos casos indiretos (v. Charles 1920, 1:13). Caso João esteja de fato adotando esse procedimento, ele o faz para conferir à sua obra um timbre deliberadamente “bíblico”, sugerindo continuidade gramatical — e, portanto, teológica — entre sua revelação e a revelação veterotestamentária. Exemplos de solecismos intencionais com o mesmo efeito aparecem nas notas a 1.5; 2.20; 3.12; 9.14 em Beale 1999a, bem como em Beale 1997b. Dentro desse mesmo quadro, Apocalipse 1.4b afirma que a epístola profética também procede “dos sete espíritos que estão diante do seu trono”.

A expressão provavelmente funciona como uma designação coloquial do Espírito Santo, realçando a multiplicidade de sua atuação na igreja e no mundo. O conjunto “sete espíritos” faz parte de uma alusão parafraseada a Zacarias 4.2–7, como indicam 4.5 e 5.6, uma vez que ali as “sete lâmpadas” são identificadas como o Espírito de Deus, o condutor da graça que permitiria a Israel reconstruir o Templo (cf. Zacarias 4.7: “Graça! Graça!”; ver também comentário de 1.12; 4.5; 5.6). Há sinais de que Isaías 11.2–10 LXX também se integra a esse pano de fundo, pois Apocalipse 5.5–6 alude a esse texto (cf. a “raiz”, de Isaías 11.1, em 5.5; cf. também a menção aos “sete espíritos de Deus”, em 5.6 [v. Farrer 1964, p. 61]). O uso de Isaías 11.4 em 1.16 reforça essa tessitura, indicando, como já esclarecido por Skrinjar 1935 (pp. 114–136), que tanto Zacarias quanto Isaías funcionam conjuntamente como matriz simbólica para a expressão, cuja função é apresentar o Espírito de Deus como plenitude operante diante do trono.

Em Apocalipse 1.5, o salmo que a tradição numera como Salmos 88.28, 38 LXX (89.27, 37 TM) forma o pano de fundo sobre o qual se inscreve a tríplice designação de Cristo como “fiel testemunha”, “primogênito” e “Príncipe dos reis da terra”, já que essas três expressões aparecem agrupadas apenas ali (cf. Isaías 55.4). No contexto imediato do salmo, é Davi quem surge como rei “ungido”, chamado a reinar sobre todos os inimigos, com uma descendência firmada para sempre em seu trono (Salmos 88.20–38 LXX [89.19–37 TM]); não por acaso, o judaísmo lia Salmos 89.28 messianicamente (Midr. Rab. de Êxodo 19.7; possivelmente também Pesiq. Rab. 34.2). Embora, em Salmos 88.38 LXX, a “fiel testemunha” designe o testemunho perene da Lua, que espelha na regularidade de seus ciclos a estabilidade prometida ao trono davídico, João desloca essa expressão para Cristo sem violência hermenêutica, pois agora é ele quem personifica a fidelidade irrevogável do pacto (ver ainda Isaías 43.10–13 sobre a “fiel testemunha”). Assim, Jesus é visto como o rei davídico ideal, em quem a morte e a ressurreição convergem para instaurar um reinado eterno, que transborda para o governo compartilhado com seus filhos “amados” (cf. Apocalipse 5.5b), como se o trono prometido à semente de Davi encontrasse nele sua forma plena e definitiva.

O título “primogênito” remete à posição de supremacia que Cristo assume como fruto da ressurreição dentre os mortos, em linha com Salmos 89.27–37, que desenvolve a promessa feita em 2 Samuel 7.13–16 e entrelaçada com Salmos 2.7,8. Em Apocalipse 1.5, essa dignidade régia se une à função sacerdotal de Cristo, evocada na declaração de que ele “nos libertou dos nossos pecados pelo seu sangue”. A imagem convoca o ritual veterotestamentário, em que os sacerdotes obtinham santificação e expiação para Israel por meio da aspersão do sangue de animais sacrificados (cf. Êxodo 24.8; Levítico 16.14–19; v. Loenertz 1947, p. 43). Tal quadro pode ser lido como cumprimento tipológico da libertação do Israel escravizado no Egito pelo sangue do cordeiro pascal, sobretudo à luz da nítida alusão a Êxodo 19.6 em Apocalipse 1.6. Nessa tessitura, como na carta aos Hebreus, Cristo aparece simultaneamente como sacerdote que oferece e como sacrifício oferecido, reunindo no seu próprio corpo o altar e a vítima.

Quando João declara que ele “nos constituiu reino e sacerdotes” em Apocalipse 1.6, retoma a fórmula de Êxodo 19.6 (basileiou hierateuma [cf. TM]), onde o propósito de Deus para Israel é condensado na expressão de uma vocação dupla, real e sacerdotal. A discussão exegética se divide em nuances (“sacerdócio real” ou “reino sacerdotal”), mas a diferença é mais de ênfase do que de substância, pois ambas as leituras preservam a conjunção entre realeza e sacerdócio (para a discussão das alternativas em Êxodo 19.6 e Apocalipse 1.6, v. Gelston 1959; Dumbrell 1985, p. 124–126, 159–160). O ponto central da passagem do Êxodo é que Israel deveria ser uma nação que, pela sua vida e pelo seu culto, medisse ao mundo a luz da revelação salvífica de Yahweh, servindo como vitrine da graça aos gentios (e.g., Isaías 43.10–13). Os profetas de Israel tornaram-se a consciência dessa vocação reiterada, denunciando continuamente o fracasso do povo em cumpri-la (e.g., Isaías 40–55), até que, no Apocalipse, ela ressurge transfigurada no povo messiânico.

A dimensão sacerdotal de toda a nação já estava sugerida quando Moisés consagrou o povo com o mesmo gesto que consagrou Arão e seus filhos: a aspersão do sangue do sacrifício (cf. Êxodo 29.10–21 com Êxodo 24.4–8). É muito provável que a designação de todos os santos como sacerdotes, em Apocalipse 1.6, se enraíze justamente nesse cenário (assim Düsterdieck 1980, p. 124). Como os sacerdotes de outrora, todo o povo de Deus recebe agora acesso direto à presença divina (I. T. Beckwith 1919, p. 430), porque Cristo removeu o obstáculo do pecado por meio do seu sangue vicário (Vanhoye 1986, p. 289). Esse acesso, embora “sem intermediários” humanos, é qualificado por outras passagens do Novo Testamento, que apresentam Cristo como sumo sacerdote mediador no templo celestial a favor de todo o povo de Deus (cf., e.g., Hebreus 8–10). Para um tratamento mais amplo dessas qualificações do “acesso sem intermediários”, ver Beale 2004 (capítulos sobre o templo no Novo Testamento), em que a imagem do santuário se abre como casa onde o Cordeiro, entronizado, conduz os seus sacerdotes-reis à intimidade do próprio Deus.

Em Apocalipse 1.7, o texto se constrói como um arco formado por duas citações do Antigo Testamento. A primeira, de Daniel 7.13, no contexto veterotestamentário, refere-se à entronização do “filho de homem” sobre todas as nações (cf. Dn 7.14), depois do juízo de Deus contra os impérios do mal (Dn 7.9-12). A segunda, de Zacarias 12.10, projeta o olhar para o final dos tempos, quando Deus derrotará as nações inimigas ao redor de Israel e quando Israel será redimido após arrepender-se da rejeição pecaminosa dirigida a Deus e ao seu Mensageiro (i.e., “aqueles que o traspassaram”). A combinação desses dois textos em Mateus 24.30, de forma praticamente idêntica, pode ter influenciado João a reuni-los também aqui (a mesma justaposição ocorre em Justino, o Mártir, Dial. 14.8; Mt 24.30 pode igualmente aludir ao arrependimento, à luz de 24.31). A aproximação entre aquele por quem “lamentarão” e o “primogênito” de Zacarias 12.10 também não é acidental, uma vez que a mesma palavra prõtotokos descreve o rei em Salmos 88.28 LXX (89.27 TP) e Jesus em Apocalipse 1.5, criando uma linha contínua entre o rei davídico e o Cristo exaltado.

O texto de Zacarias, porém, é recebido por João com duas alterações significativas: são acrescentadas as expressões “todo o olho” e “da terra” (cf. Zc 14.17), que universalizam o alcance do oráculo original. Essa ampliação provavelmente não aponta para todas as pessoas sem exceção, mas para todos, entre as nações, que creem, como deixam claro 5.9 e 7.9 (cf. o plural “tribos”, como referência universal aos incrédulos, em 11.9; 13.7; 14.6). A palavra (“terra”; “solo”) não pode aqui limitar-se à terra de Israel, pois funciona como termo de universalidade: esse é o único sentido da expressão pasai hai phylai tês gês (“todas as tribos da terra”) no Antigo Testamento (LXX: Gn 12.3; 28.14; Sl 71.17; Zc 14.17). A fórmula “todas as tribos de Israel”, recorrente cerca de vinte e cinco vezes no Antigo Testamento, ressalta por contraste a diferença de Apocalipse 1.7b. Desse modo, torna-se patente uma extensão do conceito veterotestamentário de Israel: aquilo que em Zacarias 12 se aplicava primariamente à nação é agora transferido aos povos da terra que assumem o papel do Israel arrependido.

Alguns estudiosos sustentam que a citação de Zacarias em Apocalipse 1.7 seria usada em sentido oposto à intenção original, como se descrevesse o sofrimento das nações sob juízo iminente. Contudo, o padrão de João é, em regra, o de aderir e desenvolver de maneira consistente as ideias contextuais das suas referências ao Antigo Testamento; por isso, as exceções propostas a essa regra carregam o ônus da prova. Em 1.7b, as nações “lamentam” não em função de si mesmas, mas “por causa dele”, o que se ajusta melhor à ideia de arrependimento do que à de mera condenação. É significativo, nesse cenário, que a figura do “filho de homem” seja aplicada a Jesus duas vezes no espaço de apenas sete versículos (1.7,13): em Daniel 7, o “filho de homem” é uma representação coletiva dos santos no sofrer e no governar, e o título é assumido por Jesus nos Evangelhos para indicar um reinado revelado e inaugurado em meio ao sofrimento. No Midrash de Salmos 2.9, Daniel 7.13,14 é interpretado como referência coletiva à nação de Israel, embora outros segmentos do judaísmo o apliquem a uma figura messiânica individual (e.g., 4Ed 13.1-39; 1En 37-71; 2Br 36-40). A identificação de Jesus como “filho de homem” (1.13), aliada ao valor progressivo do tempo presente em Apocalipse 1.7a (“ele vem”), sugere que o cumprimento da profecia de Daniel 7.13 é visto aqui como iniciado no primeiro século, prolongando-se por toda a era da igreja e culminando ao fim da história.

Em Apocalipse 1.8, o merisma “Alfa e Ômega” provavelmente nasce de uma reflexão sobre fórmulas semelhantes em Isaías 41—48, assim como “o primeiro e o último” (1.17b) se apoia no mesmo vocabulário de Isaías (cf. Is 41.4; 44.6; 48.12). A tripla identificação de 1.8b remete, de novo, a esse tecido isaiano (cf. o comentário de 1.4 sobre “aquele que é, que era e que há de vir”), compondo um retrato de Deus como aquele que transcende o tempo e, por isso, conduz todo o curso da história, permanecendo soberano desde o princípio até o fim. A fórmula “diz o Senhor Deus, o Todo-Poderoso” (pantokratõr), tão frequente nos Profetas (e.g., Ageu; Zacarias; Malaquias), reforça este mesmo ponto: a confissão cristã do Apocalipse se ancora no Deus que, como Senhor absoluto, sustém e dirige cada cena do drama histórico.

A introdução à comissão de João, em Apocalipse 1.10-11, é moldada na linguagem recorrente do profeta Ezequiel, que descreve ser “levantado” pelo Espírito; assim, a experiência revelatória de João é colocada em continuidade direta com a dos profetas do Antigo Testamento (cf. Ez 2.2; 3.12,14,24; 11.1; 43.5). A autoridade profética de sua visão é reforçada pela voz que ele ouve, a mesma voz que Moisés escutou quando Yahweh se revelou no monte Sinai (Êx 19.16,19,20). Essa convergência é sublinhada ainda pela ordem “Escreve em um livro”, eco da incumbência dada por Yahweh a seus servos profetas para registrarem e transmitirem a Israel a revelação recebida (LXX: Êx 17.14; Is 30.8; 37.2; 39.44; Tb 12.20). Convém notar que, em todas as comissões proféticas, esses escritos aparecem como testamentos de juízo contra Israel (LXX: Is 30.8; Jr 37.2; 39.44; cf. também na LXX: Êx 34.27; Is 8.1; Jr 43.2; Hc 2.2). Nesse cenário, a primeira imagem que João contempla em sua visão inaugural é a dos “sete candelabros de ouro” (Ap 1.12b), cuja moldura geral se encontra em Êxodo 25 e 37 e Números 8, mas que é tomada, de modo mais específico, de Zacarias 4.2,10.

Essa derivação é confirmada por três observações entrelaçadas: (1) a menção aos “sete espíritos” em Apocalipse 1.4 (cf. Zc 4.6); (2) o fato de que a visão dos candelabros em Apocalipse 1.12b é interpretada em Apocalipse 1.20 segundo o mesmo padrão de interpretação que se vê em Zacarias 4.2,10; (3) as alusões explícitas a Zacarias 4.2,10 em Apocalipse 4.5 e 5.6, em estreita associação com as alusões a Daniel. Os “sete candelabros” são identificados como a própria igreja (cf. Ap 1.20). Em Zacarias 4.2-6, o candelabro com sete lâmpadas funciona como sinédoque: uma parte do mobiliário do Templo representa o Templo inteiro e, por extensão, o Israel fiel (cf. Zc 4.6-9), chamado a viver “não por força nem por poder [terrenos], mas pelo meu Espírito, diz o Senhor” (Zc 4.6). Tanto no Tabernáculo quanto no Templo, o candelabro era colocado diante do lugar santíssimo, que acolhia a gloriosa presença de Deus, e a luz que dali se irradiava aparentemente representava essa presença (v. Nm 8.1-4; em Êx 25.30,31, o candelabro é mencionado logo após os “pães consagrados”; v. também 40.4; 1Rs 7.48,49). Do mesmo modo, as lâmpadas do candelabro em Zacarias 4.2-5 são interpretadas em 4.6 como representação da presença de Deus, ou do Espírito, que capacitaria Israel (= “o candelabro”) a concluir a reconstrução do Templo apesar da resistência (cf. Zc 4.6-9). Nesse horizonte tipológico, o novo Israel, a igreja, como “candelabro”, é parte do templo e deve depender do poder do Espírito — a santa presença diante do trono de Deus — em seu esforço diante da resistência do mundo; esse ponto é ressaltado em Apocalipse 1.4 e no capítulo 4. A expressão incomum “ver a voz”, no texto grego, insere-se nesse mesmo quadro teofânico e pode remeter a Êxodo 20.18, onde “todo o povo viu a voz [...] a voz da trombeta” (cf. na LXX: Ez 3.12,13; 43.5,6; Dn 7.11).

Um exame das alusões ao Antigo Testamento em Apocalipse 1.13-16 mostra que as características predominantes do “Filho de homem” são extraídas sobretudo de Daniel 7 e 10, embora outros textos também contribuam para a composição da cena. A maioria dos comentaristas concorda que o significado central dessa rede de alusões é apresentar Cristo como figura ao mesmo tempo régia e sacerdotal, já que ambos os traços aparecem nos dois capítulos de Daniel. As vestes de Apocalipse 1.13, embora se assemelhem à indumentária real, evocam aqui, de modo especial, a imagem sacerdotal em razão da atmosfera dos candelabros do templo em Apocalipse 1.12 e também porque os anjos que saem do templo celestial usam trajes idênticos (Ap 15.5-8). A ambiguidade é plausível à luz da possibilidade de que se esteja pensando simultaneamente em rei e sacerdote, à semelhança das duas figuras de Zacarias 4.3,11-14 (v. comentário de 11.4 adiante; cf. 1Me 10.88,89; 14.30,32-47).

A transposição para Cristo dos atributos da figura judicial do Ancião de Dias (ARA; cf. Dn 7.9-12) realça sua função de juiz divino do último dia, função que Apocalipse 19.12 explicita. Esse quadro é reforçado pela constatação de que Daniel 10 também se encontra por trás da imagem do “Filho de homem”: o objetivo principal do homem celestial em Daniel 10 é revelar o decreto divino de juízo contra os perseguidores de Israel (v. 10.21—12.13). Em Daniel 10.6, o “filho de homem” é descrito com “olhos [...] como tochas de fogo”, imagem retomada em Apocalipse. A aplicação dos atributos do Ancião de Dias a Cristo aponta igualmente para a vida eterna que ele partilha com o Pai (assim Sickenberger 1942, p. 49). A descrição da cabeça e dos cabelos do “Filho de homem” em Apocalipse 1.14a deriva do Ancião de Dias de Daniel 7.9, enquanto a descrição dos olhos e dos pés volta a seguir Daniel 10.6 LXX. A menção a uma “fornalha” em Apocalipse 1.15b ecoa a narrativa de Daniel 3.26 (3.93), embora Ezequiel 1.27 também possa estar em vista. A conclusão de Apocalipse 1.15, ao falar da voz do “Filho de homem”, alinha-se com Daniel 10.6, mas os termos usados para descrever essa voz são tomados de Ezequiel 1.24 e 43.2 TM, onde a voz de Deus é comparada ao estrondo de muitas águas, o que reforça o retrato de Cristo até aqui como ser divino. E, assim como os sete candelabros, o número de “sete estrelas” pode ter sua origem, ao menos em parte, nas “sete lâmpadas” de Zacarias 4, completando o entrelaçamento simbólico entre templo, luz, presença divina e missão da igreja.

Nas leituras do judaísmo tardio, o candelabro de Zacarias 4.2 deixou de ser apenas um elemento do mobiliário do Templo para tornar-se emblema das pessoas justas dentro de Israel. Nessa tradição, ele é explicitamente identificado com os sábios que, no fim, “brilharão como as estrelas”, segundo Daniel 12.3 (Midr. Rab. de Lv 30.2; Sipre de Dt Piska 10; Pesiq. Rab. Kah. Piska 27.2; Pesiq. Rab. Piska 51.4). É dentro desse mesmo horizonte que McNamara (1966, p. 197-9) interpreta o Targum palestino de Êxodo 40.4 como pano de fundo para Apocalipse 1.20a: ali, as “sete lâmpadas” do Tabernáculo “correspondem a sete estrelas, que se assemelham aos justos que brilham até a eternidade em sua justiça”, e justamente essa cláusula final funciona como alusão transparente a Daniel 12.3. Em Apocalipse 1.20a, é verdade que as estrelas são nomeadas de forma explícita como anjos (cf. a identificação análoga em Juízes 5.20), mas isso não rompe o elo com Daniel, porque, em textos como Daniel 10.13 e 12.1, os anjos aparecem como representantes celestes do povo de Deus. Ao lado dessa simbologia luminosa, a visão acrescenta outro traço: da boca de Jesus sai uma “espada afiada de dois gumes”, imagem que se ancora nas profecias de Isaías 11.4 e 49.2 e o apresenta como o juiz escatológico prometido. A cena atinge o ápice quando a descrição do “filho de homem” menciona o rosto que “brilhava como o sol no seu fulgor” (Ap 1.16c). O contorno geral da figura segue ainda o esboço de Daniel 10, mas a formulação concreta dessa metáfora é tomada de Juízes 5.31 LXX (B), onde o guerreiro israelita vencedor é descrito com um brilho semelhante ao do sol. A junção dessas duas tradições — o guerreiro vitorioso de Juízes 5.31 e o homem celeste de Daniel 10 — serve de moldura para a apresentação de Jesus como guerreiro glorioso, armado de espada e envolto em luz.

Quando João narra sua reação à visão em Apocalipse 1.17, reencontramos uma sequência já repetida quatro vezes em Daniel 10.8-20: primeiro, o profeta contempla a visão; depois, cai com o rosto em terra, dominado pelo temor; em seguida, é reerguido e fortalecido por um ser celestial; por fim, recebe desse mensageiro uma revelação adicional, introduzida por alguma forma do verbo laleō (“falar”). O paralelismo entre Apocalipse 1.17 e esse padrão daniélico é mais um traço que vincula João e sua mensagem à autoridade profética do Antigo Testamento (cf. Ap 1.10). No centro da cena, o “filho de homem” aplica a si o título “o primeiro e o último”, retomando de maneira direta as autoafirmações de Yahweh em Isaías 41.4, 44.6 e 48.12. Esses trechos de Isaías se iluminam mutuamente por meio de “expressões-chave” e imagens recorrentes: em Isaías 41, o contexto apresenta o servo de Deus que derrota o inimigo com a espada (41.2) e, logo adiante, a palavra “não temas”, acompanhada da promessa de que Deus “fortalecerá” e “sustentará” o justo com a sua mão direita (41.10); Isaías 44.6 volta a articular a autodeclaração divina com o “não temas” dirigido ao povo (cf. 44.2); Isaías 48.12, por sua vez, retoma a fórmula “o primeiro e o último” e a segue de perto com a afirmação: “A minha mão fundou a terra, e a minha mão direita estendeu os céus” (48.13), numa moldura que dialoga com Isaías 41.10, Daniel 12.6,7 e Apocalipse 1.17. Esses fios formam a ponte entre o quadro de conforto profético em Daniel 10 e as promessas de consolo de Yahweh em Isaías, agora apropriadas pelo Apocalipse. Nesse tecido, a expressão “o que vive” (hozōn [cf. a forma muito próxima ho ōn em Ap 1.4]), em Apocalipse 1.18, colocada em correlação com “o primeiro e o último”, em Apocalipse 1.17, compõe uma fórmula tripartida paralela àquela aplicada a Deus em 1.4. O efeito é intensificar a confissão do status divino de Cristo, reforçada ainda pela fórmula “vivo para todo sempre” em Apocalipse 1.18, tantas vezes usada para Deus no Antigo Testamento (Deuteronômio 32.40; Daniel 4.34; 12.7; Ezequiel 18.1).

A cláusula final da fórmula de Apocalipse 1.19 retoma, com outra aplicação, a mesma linguagem já usada em 1.1a e tomada de empréstimo a Daniel 2, e por isso não deve ser lida como o terceiro elemento de uma cronologia tripla rígida ou estritamente sequencial do livro. A expressão meta tauta (“depois destas coisas”) traz embutida uma nuance escatológica, uma vez que Daniel 2 emprega o mesmo termo como equivalente de eschaton tōn hēmerōn (“últimos dias” [cf. o uso semelhante de Joel 3.1 em Atos 2.17]). Nessa perspectiva, os “últimos dias” são melhor compreendidos como já inaugurados na época de João (para esse desenvolvimento, v. Beale 1999a, p. 152-70). Em Apocalipse 1.20, entra em cena o termo to mystērion (“o mistério”), vocábulo que, no Antigo Testamento, ocorre apenas em Daniel e que aparece doze vezes nos Apócrifos. Como em Daniel o “mistério” é carregado de sentido escatológico, o fato de ele emergir em Apocalipse 1.20, nesse contexto, confirma a ligação consciente com esse livro veterotestamentário. A visão de João é apresentada, assim, como o momento em que as profecias de Daniel a respeito dos últimos dias começam a encontrar seu cumprimento (sobre o alcance de “mistério” aqui, v. Beale 1999b, p. 255-9).

IV. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

Apocalipse 1 funciona como uma abertura sinfônica saturada de ecos do Antigo Testamento e de ressonâncias com o Novo Testamento, organizando, já nos primeiros versículos, um mosaico de temas, títulos e imagens que fundem Êxodo, Isaías, Ezequiel, Daniel e Zacarias com a proclamação cristã da morte e ressurreição de Jesus. O título “revelação de Jesus Cristo” traduz “apokalypsis Iēsou Christou

” (“revelação de Jesus Cristo”), termo que, além de nomear o gênero apocalíptico já conhecido em Daniel e Zacarias, implica a ação soberana de Deus em desvelar o que estava oculto (Daniel 2:28-30; Zacarias 1:7-17), agora centrado na pessoa do Messias. A bem-aventurança do v. 3 (“bem-aventurado”) relembra a equação bíblica entre ouvir e guardar a palavra revelada: a bênção que acompanha quem ouve e pratica ecoa tanto a bem-aventurança sapiente do Antigo Testamento quanto o ensino de Jesus (Deuteronômio 28:1-2; Salmos 1:1–2; Lucas 11:28; Tiago 1:22-25).

O preâmbulo cristológico (1:4–6) é construído com títulos e fórmulas teofânicas veterotestamentárias. A saudação “graça e paz” estabelece continuidade com a epistolografia do Novo Testamento (Romanos 1:7; 1 Coríntios 1:3), mas aqui se expande numa doxologia trinitária. O Deus que é, que era e que há de vir, “ho ōn kai ho ēn kai ho erchomenos” (“aquele que é, que era e que vem”), rearticula o “Eu Sou” de Êxodo 3:14, ’ehyeh ’asher ’ehyeh (“Eu Sou o que Sou”), e as autodeclarações de YHWH como o “Primeiro e Último” em Isaías (Isaías 41:4; Isaías 44:6; Isaías 48:12). Os “sete espíritos que estão diante do seu trono” aludem à plenitude do Espírito, figurada pelo candelabro e seus sete braços em Zacarias 4:2-10 e, possivelmente, pela septiforme descrição do Espírito em Isaías 11:2–3; essa plenitude reaparecerá de modo programático em Apocalipse 4:5 e 5:6. Cristo é chamado “a fiel testemunha” — ho martys ho pistos (“a testemunha fiel”) — em consonância com a figura do “testemunho fiel” prometido por Deus (Isaías 55:4) e com o vocábulo profético-jurídico de “testemunhar” que atravessa a Escritura (Salmos 89:37). “O primogênito dentre os mortos” — prōtotokos ek nekrōn (“primogênito dentre os mortos”) — conecta-se diretamente à esperança da ressurreição já delineada em Daniel 12:2 e ao ensino apostólico de que Cristo é “primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:29; Colossenses 1:18). Quando João afirma que ele “nos fez reino e sacerdotes” — basileian kai hiereis (“um reino e sacerdotes”) — transpõe para a igreja a vocação de Israel como mamlekhet kohanim (“reino de sacerdotes”) no Sinai (Êxodo 19:6), desenvolvida no Novo Testamento como sacerdócio santo e real (1 Pedro 2:5, 9). O ato redentor “pelo seu sangue” remete a todo o sistema sacrificial (Êxodo 24:8; Levítico 16) e à promessa de purificação escatológica (Zacarias 13:1), convergindo com a teologia paulina da justificação pelo sangue (Romanos 3:24–25; 5:9).

O anúncio “Eis que vem com as nuvens” — erchetai meta tōn nephelōn (“vem com as nuvens”) — cita e interpreta Daniel 7:13–14, onde “um como filho do homem” recebe domínio eterno. Essa vinda é publicada pelo próprio Jesus nos discursos escatológicos (Mateus 24:30; Marcos 13:26; Lucas 21:27) e reconhecida pelos anjos na ascensão (Atos 1:9–11). A sequência “todo olho o verá, até quantos o traspassaram” costura Daniel 7 a Zacarias 12:10 — onde se promete que olharão para aquele que traspassaram (dāqarû, “traspassaram”) — texto já lido cristologicamente no testemunho pascal (João 19:37). O título divino “Eu sou o Alfa e o Ômega” — egō eimi to Alpha kai to Ōmega (“Eu sou o Alfa e o Ômega”) — relê a autoidentificação de YHWH como o “Primeiro e o Último” (Isaías 44:6), agora aplicada a Deus e, ao longo do livro, compartilhada com o Cordeiro, sinalizando a mais estreita identificação entre o Senhor e o Cristo (Apocalipse 22:12–13).

A cena de comissionamento profético (1:9–11) posiciona João “no Espírito no dia do Senhor” e ouviu “voz como de trombeta”. A entrada “no Espírito” ecoa os arrebatamentos proféticos e visões de Ezequiel (Ezequiel 2:2; 3:12, 14; 8:3; 11:1) e prepara o leitmotiv de Apocalipse 4:2 e 17:3. A “trombeta” remete à teofania do Sinai, quando o som de trombeta marcava a aproximação de Deus (Êxodo 19:16, 19), e ressoa nos anúncios escatológicos do Novo Testamento (1 Coríntios 15:52; 1 Tessalonicenses 4:16). O endereçamento a sete igrejas concretas em Ásia Menor incorpora o padrão epistolar apostólico (Efésios, Colossenses, 1 e 2 Timóteo, Filemom) e universaliza-o pelo número simbólico da plenitude.

A visão do “Filho do Homem” no meio de sete candelabros (1:12–20) é uma composição densa de Daniel, Ezequiel, Êxodo e Zacarias. A imagem do “um semelhante a filho de homem” (Daniel 7:13) é enriquecida com traços do Ancião de Dias e do anjo glorioso: as vestes talares e o cinto de ouro evocam tanto a majestade real quanto o traje sacerdotal (Êxodo 28:4; 28:31–35), indicando Cristo como rei-sacerdote. A cabeça e cabelos “brancos como lã, como neve” aludem diretamente ao Ancião de Dias (Daniel 7:9), sinalizando que atributos divinos são compartilhados com o Filho, enquanto “olhos como chama de fogo” e “pés semelhantes a bronze polido” retomam o mensageiro celeste de Daniel 10:5–6 e o brilho metálico das teofanias (Ezequiel 1:7). A “voz como voz de muitas águas” reenvia à voz de YHWH que ruge como grandes águas (Ezequiel 43:2). O “afilado gládio de dois gumes” que sai da boca alinha-se à palavra eficaz de Deus (Isaías 49:2) e à espada da palavra no Novo Testamento (Hebreus 4:12; Efésios 6:17). O rosto “como o sol no seu fulgor” convoca a bênção sacerdotal que prometia o rosto de YHWH brilhando sobre o seu povo (Números 6:25) e antecipa a glória da nova criação onde “não precisam de sol” porque o Cordeiro é a lâmpada (Apocalipse 21:23; 22:5).

A reação de João — cair como morto — replica o padrão de prostração diante do sagrado em Daniel (Daniel 8:17–18; 10:9) e, ao mesmo tempo, prepara a palavra de confortação “Não temas” tão recorrente nas teofanias (Isaías 41:10). A autodeclaração de Cristo, “Eu sou o Primeiro e o Último, e o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos”, reafirma a identidade divina em chave pascal, amalgamando Isaías 44:6 com a vitória sobre a morte anunciada pelos profetas (Oséias 13:14) e proclamada apostolicamente (Atos 2:24; Romanos 6:9; 2 Timóteo 1:10). As “chaves da morte e do Hades” associam-se à soberania sobre os “portões da morte” evocados poeticamente (Jó 38:17) e judicialmente (Isaías 38:10), oferecendo uma contrapartida à autoridade de “chaves” no evangelho (Mateus 16:18–19), agora aplicada ao domínio de Cristo sobre o além.

O simbolismo e sua interpretação imediata — “as sete estrelas são os anjos das sete igrejas e os sete candelabros são as sete igrejas” — integra duas tradições veterotestamentárias. De um lado, os candelabros (menorot) retomam o candelabro do santuário (Êxodo 25:31–40) e a visão de Zacarias 4, na qual a lâmpada de sete braços, alimentada pelo Espírito, figura o povo sustentado por Deus (“não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito”, Zacarias 4:6). De outro, a menção a “anjos” dialoga com o pano de fundo de Daniel 10–12, onde príncipes celestes estão associados a realidades históricas e comunidades, sugerindo que a igreja peregrina caminha sob a assistência do mundo angélico (Daniel 10:13, 20–21; 12:1), ao mesmo tempo em que “mensageiro” (angelos) pode designar o emissário humano responsável pela leitura da carta (Malaquias 2:7; Marcos 1:2). Até mesmo a imagem das estrelas na destra pode lembrar que os sábios “resplandecerão como estrelas” no desfecho escatológico (Daniel 12:3), agora guardados pela mão do Ressuscitado (João 10:28–29).

Ao costurar essas tramas, Apocalipse 1 revela Jesus como o centro no qual convergem as esperanças régias, sacerdotais e proféticas de Israel e do Novo Testamento. Ele é a testemunha fiel que cumpre a vocação profética (Isaías 55:4), o sacerdote-rei que realiza o chamado de Êxodo 19:6 no seu povo (1 Pedro 2:5, 9), o Filho do Homem de Daniel entronizado pela ressurreição (Daniel 7:13–14; Romanos 1:4; Colossenses 1:18), o Senhor que porta os nomes divinos de Isaías (Isaías 44:6) e a presença que fala com a voz do Sinai (Êxodo 19:16–19). E, porque seu sangue efetiva o êxodo definitivo (Êxodo 24:8; Zacarias 13:1; Romanos 3:24–25), sua vinda nas nuvens — prometida, citada, esperada — sela a unidade de toda a Escritura: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá” (Daniel 7:13; Zacarias 12:10; Mateus 24:30; Apocalipse 1:7).

Índice: Apocalipse 1 Apocalipse 2 Apocalipse 3 Apocalipse 4 Apocalipse 5 Apocalipse 6 Apocalipse 7 Apocalipse 8 Apocalipse 9 Apocalipse 10 Apocalipse 11 Apocalipse 12 Apocalipse 13 Apocalipse 14 Apocalipse 15 Apocalipse 16 Apocalipse 17 Apocalipse 18 Apocalipse 19 Apocalipse 20 Apocalipse 21 Apocalipse 22

Bibliografia

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GALVÃO, Eduardo. Apocalipse 1: Significado, Explicação e Devocional. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], 17 ago. 2016. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

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