Significado de Ezequiel 15
Ezequiel 15
Ezequiel 15 é o mais breve capítulo do livro, mas também um dos mais incisivos em sua crítica à infidelidade de Jerusalém. Sua linguagem é simbólica, crua e deliberadamente humilhante: a cidade de Davi é comparada a uma videira — não a frutífera e desejável, mas à madeira inútil da videira selvagem, incapaz de servir para qualquer propósito, nem mesmo para ser usada como estaca de apoio ou para fazer um gancho. Este capítulo pertence ao bloco de oráculos proféticos que se estendem de Ezequiel 12 a 24, todos voltados à denúncia do pecado de Jerusalém e à justificativa teológica do exílio iminente. Ao lançar mão de uma parábola vegetal, o profeta faz uso de uma imagem profundamente enraizada na tradição bíblica, subvertendo suas associações comuns com eleição e bênção. A videira aqui não simboliza a nobreza de Israel (como em Isaías 5), mas sua absoluta inutilidade diante do juízo divino.O capítulo não apenas denuncia a esterilidade de Jerusalém, mas anuncia que a cidade será entregue ao fogo, tanto literal quanto simbólico. Ao invés de apresentar promessas de restauração, como ocorre em outras partes do livro, Ezequiel 15 intensifica a mensagem do juízo, preparando o terreno para os capítulos 16 e 17, que expandem a metáfora da videira em termos históricos e teológicos. O fogo, símbolo do juízo irrevogável, consome até o que antes era considerado precioso, revelando que o critério divino para o julgamento não é o passado da aliança, mas a resposta presente à fidelidade do Senhor.
Estrutura e Estilo Literário
O capítulo pode ser dividido em três movimentos progressivos:(1) A parábola da madeira da videira (vv. 1–5): Ezequiel, por meio de uma pergunta retórica, sublinha a inutilidade da madeira da videira para qualquer ofício prático. Diferente das árvores nobres do Líbano, a videira não serve para ser transformada em ferramenta, nem mesmo antes de queimada — muito menos depois. O fogo, aqui, serve como metáfora da destruição e ao mesmo tempo como intensificador da indignidade.
(2) A aplicação da parábola a Jerusalém (v. 6): o oráculo divino explicita que Jerusalém é como essa madeira: sem valor, sem fruto, destinada ao fogo. A imagem ecoa julgamentos anteriores, mas agora com um tom mais definitivo. Não há aqui espaço para arrependimento ou redenção; trata-se de sentença. Embora essa seja a tônica do capítulo 15, vale a pena notar que o livro de Ezequiel como um todo apresenta promessas de restauração (ex: Ez 36-37). Para um entendimento completo do livro de Ezequiel, é bom lembrarmos que a sentença dura deste capítulo é parte de um arco maior de profecia que inclui esperança, mesmo que não aqui.
(3) A consumação do juízo (vv. 7–8): Deus declara que, mesmo após sucessivos castigos, Jerusalém não se converteu. Por isso, o Senhor “voltará a face contra eles” — expressão de afastamento, repúdio e juízo. O motivo da destruição é a infidelidade do povo, a quebra da aliança e o abandono do caminho de Deus.
O estilo é oracular, estruturado por perguntas retóricas e frases curtas, secas, densas em conteúdo. O uso da metáfora agrícola remete à tradição profética anterior, mas aqui ela é desconstruída: a videira que antes era símbolo da eleição e beleza tornou-se paradigma da degradação. A linguagem hebraica sustenta esse contraste com imagens concretas e vocabulário técnico, numa prosa direta que não permite suavizações.
Hebraico e a LXX
O texto hebraico de Ezequiel 15, conforme fixado na Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) e na Biblia Hebraica Quinta (BHQ), apresenta um vocabulário técnico agrícola e uma estrutura de perguntas retóricas cuidadosamente encadeadas. Já no v. 2, encontramos a pergunta-chave: מַה־יֵּעָשֶׂה עֵץ הַגֶּפֶן מִכָּל־עֵץ הַיָּעַר (“que vantagem tem a madeira da videira sobre todas as outras madeiras da floresta?”). O termo עֵץ הַגֶּפֶן (ʿēts hagefen) refere-se aqui não ao fruto da videira, mas à madeira em si — um uso propositalmente paradoxal, pois a videira não é cultivada pela qualidade de sua madeira, mas pelo fruto. A pergunta expõe o absurdo de buscar utilidade em algo cujo valor nunca foi utilitário.A LXX verte essa expressão como τί ἔσται ἐκ τῆς ἀμπέλου ὑπὲρ πᾶν ξύλον τὸ ὂν ἐν τοῖς ὕλαις; — “O que será da videira comparado a toda madeira que há nas florestas?” A tradução é fiel, mas acentua a ideia de comparação como condenação. Já nos vv. 3–4, o hebraico multiplica perguntas hipotéticas com verbos como יֵעָשֶׂה (yeʿāśeh, “fará”) e יִקָּח (yiqqāḥ, “tomará”), levando o leitor à conclusão inevitável: a videira não serve para nada, nem para ser moldada como gancho ou objeto de uso. A LXX acompanha com precisão essa lógica, usando formas do verbo γίνεσθαι e λαμβάνειν.
O v. 6 é a chave hermenêutica: כְּעֵץ הַגֶּפֶן בֵּין עֲצֵי הַיַּעַר... נָתַתִּי אֶת־יוֹשְׁבֵי יְרוּשָׁלִָם — “Como a madeira da videira entre as árvores da floresta... assim entreguei os habitantes de Jerusalém.” A equiparação com “habitantes de Jerusalém” (יוֹשְׁבֵי יְרוּשָׁלִָם) revela o alvo do oráculo. A LXX usa τὸ ξύλον τῆς ἀμπέλου... ἔδωκα τοὺς κατοικοῦντας Ἰερουσαλήμ — o verbo ἔδωκα (dei, entreguei) remete à entrega em juízo, ecoando fórmulas bélicas e oraculares.
Nos vv. 7–8, a expressão וְנָתַתִּי פָנַי בָּהֶם (“e porei minha face contra eles”) é um hebraísmo típico de juízo, que designa a oposição frontal de Deus. A LXX traduz com καὶ θήσομαι τὸ πρόσωπόν μου ἐπ’ αὐτούς, com igual contundência. A justificativa da destruição é clara: מַעַל מָעָלוּ נְאֻם אֲדֹנָי יְהוִה — “cometimento de infidelidade com infidelidade, diz o Senhor Deus.” A duplicação do termo מַעַל (maʿal) é intensificadora, denotando traição reiterada. A LXX interpreta com ἀθετεῖν ἠθέτησαν, um duplo uso do verbo que significa rejeitar, trair, violar — reforçando a ideia de aliança quebrada.
O confronto entre o hebraico e a LXX revela uma perfeita consonância na transmissão da ideia central: Jerusalém, outrora escolhida, tornou-se inútil como madeira da videira, e será consumida no fogo do juízo. A versão grega mantém a dureza profética, sem suavizações, apontando para uma hermenêutica de continuidade com o TM, mas sem atenuar o escândalo do oráculo: Deus não hesitará em rejeitar e destruir aquilo que não mais corresponde ao seu propósito eletivo.
Versículo-Chave
Ezequiel 15:6 – “Portanto, assim diz o Senhor Deus: Como a madeira da videira dentre as árvores do bosque, a qual dei ao fogo para ser consumida, assim entregarei os habitantes de Jerusalém.”Este versículo condensa o eixo teológico e literário do capítulo: a analogia entre a inutilidade da madeira da videira e a condenação dos habitantes de Jerusalém. A partícula כְּ (kə, “como”) introduz a sentença comparativa, sendo o ponto de partida de uma lógica de juízo: o que não tem serventia será consumido. O paralelo entre a videira e Jerusalém despoja a cidade de qualquer privilégio inerente. Sua identidade eleita, simbolizada tantas vezes pela videira frutífera (cf. Isaías 5:1–7), é aqui invertida: a eleição sem fidelidade resulta em rejeição. O versículo traduz a tensão entre a graça da eleição e a responsabilidade da aliança. A entrega ao fogo não é arbitrária, mas fruto de julgamento ético e teológico.
Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento
Ezequiel 15 dialoga profundamente com a tradição profética que utilizou a videira como metáfora da nação de Israel. Isaías 5:1–7 já havia apresentado a “canção da vinha” como denúncia da infidelidade de Judá: Deus esperava uvas boas, mas a vinha produziu uvas bravas. Essa imagem foi retomada com frequência por Jeremias (cf. Jeremias 2:21: “plantei-te como vide excelente... como te tornaste degenerada?”), e agora Ezequiel a radicaliza ao declarar não apenas a improdutividade do fruto, mas a total inutilidade da madeira. A mesma imagem surge em Oséias 10:1, onde Israel é comparado a videira frondosa que apenas frutifica para si. Em todos esses textos, o elemento comum é a frustração divina com a esterilidade ética da nação.
No Novo Testamento, a metáfora da videira é transformada radicalmente em João 15. Ali, Jesus afirma: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor... todo ramo que não dá fruto é cortado e lançado ao fogo.” Esta formulação retoma Ezequiel 15 em chave cristológica: o juízo não é mais sobre a madeira da cidade, mas sobre os ramos infiéis que não permanecem em Cristo. A separação entre o tronco e os galhos frutíferos reflete a mesma lógica de Ezequiel — a eleição exige resposta ética, e a ausência de fruto resulta em exclusão e destruição.
Hebreus 6:7–8 também ecoa essa teologia da terra infrutífera: “A terra que bebe a chuva... se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada, e seu fim é ser queimada.” Aqui, a inutilidade de um campo cultivado e improdutivo alude diretamente à videira que não serve para mais nada — exceto ser consumida. Há também paralelos com Romanos 11, onde Paulo fala da oliveira natural cujos ramos foram cortados por causa da incredulidade. Embora a imagem botânica seja distinta, o princípio teológico é idêntico: a rejeição por esterilidade.
O fogo como agente do juízo é amplamente atestado nas Escrituras. Em Ezequiel, o fogo é o símbolo recorrente do julgamento divino (cf. Ez 20:47; 22:21), enquanto que no Novo Testamento ele aparece como purificação escatológica (cf. Mateus 3:12; 2 Pedro 3:10). O que Ezequiel apresenta em termos agrícolas e urbanos será reinterpretado no NT como fogo escatológico, que separa o verdadeiro do falso, o fiel do apóstata.
Lição Teológica Geral
Ezequiel 15 apresenta uma teologia do juízo concentrada, em que o privilégio da eleição não serve como escudo para a infidelidade. A aliança não garante impunidade. A videira que não dá fruto não apenas perde seu valor funcional — ela é desprezada como material e queimada como lixo. A eleição sem resposta ética se converte em juízo. Jerusalém, símbolo da presença de Deus e centro da aliança davídica, é rebaixada ao status de madeira seca, sem serventia e destinada ao fogo. Este é um juízo radical contra qualquer teologia de mérito automático da eleição.
A lição teológica de Ezequiel 15 é a gravidade da responsabilidade que acompanha o chamado divino. A aliança, se não vivida, se torna acusação. O juízo não é apenas o fim de uma história de infidelidade; é a revelação do que essa infidelidade sempre foi: esterilidade. A ausência de fruto é prova da desconexão com a vida de Deus. O capítulo propõe uma severa crítica ao triunfalismo religioso de Jerusalém e, por extensão, a toda comunidade que confia em sua identidade sem examinar sua ética. É um convite à autocrítica e ao arrependimento, pois a aliança, para ser bênção, precisa ser habitada em fidelidade.
Comentário de Ezequiel 15
A Metáfora da Videira Inútil: A Questão (Ezequiel 15:1-3)
E veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: (Como em todo chamado profético, Ezequiel não fala de si mesmo. A palavra vem diretamente de Deus, revelando que esta mensagem não nasce do coração humano, mas da autoridade divina.) Filho do homem, que mais é a madeira da videira do que qualquer outra madeira, do ramo que está entre as árvores do bosque? (Aqui Deus compara a nação de Israel a uma videira — imagem usada em outros textos também, como Isaías 5:1-7 e João 15:1-6. A pergunta retórica tem uma resposta implícita: nada. A madeira da videira, diferentemente da do carvalho ou da oliveira, é fraca, tortuosa e sem valor para construção. Só serve para uma coisa: dar frutos. Se não dá frutos, não serve para mais nada.)
A Videira Queimada: A Inutilidade Levada às Últimas Consequências (Ezequiel 15:4-5)
Eis que é lançada no fogo para servir de combustível; ambos os seus extremos consome o fogo, e o seu meio fica queimado: (Deus está dizendo que a videira — símbolo de Jerusalém — já foi parcialmente destruída: o fogo já consumiu as extremidades, e o centro está carbonizado. Isso aponta para o cerco da cidade, os ataques sucessivos dos babilônios e a decadência espiritual do povo. A imagem é clara: uma videira queimada por dois lados e chamuscada no meio é completamente imprestável. O juízo de Deus já começou, e está prestes a ser completo.) serviria ela para alguma obra? (A pergunta aqui é retórica, e a resposta é um claro “não”. Se a madeira da videira, quando intacta, já não serve para nada além de produzir uvas — e nem isso estava fazendo — quanto menos agora, queimada e quebrada! Deus está dizendo: se vocês, como nação, falharam em dar frutos de justiça, o que resta senão o fogo? Veja João 15:6 — “se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem, e lançam no fogo, e ardem.”)
Eis que, estando inteira, não se podia fazer dela obra alguma; quanto menos, estando o fogo a consumido, e estando queimada, se faria dela alguma obra? (Aqui Deus reforça o argumento: se mesmo no seu melhor estado — isto é, “inteira” — a madeira da videira já era inútil para qualquer obra de construção, como esperar alguma utilidade depois que ela foi chamuscada e queimada? A ideia é que não há mais nenhuma esperança em sua utilidade. A única destinação possível agora é o fogo. Essa é a imagem do juízo inevitável. É o mesmo que o autor de Hebreus diz sobre aqueles que caíram: “a terra que não produz fruto... é rejeitada, perto está da maldição, e o seu fim é ser queimada” — Hebreus 6:8.)
Jerusalém Como a Videira Inútil (Ezequiel 15:6-8)
Portanto, assim diz o Senhor Deus: Como a madeira da videira entre as árvores do bosque, a qual dei para servir de combustível ao fogo, assim também darei os habitantes de Jerusalém. (Deus agora aplica a parábola diretamente: como a madeira da videira é inútil e é lançada ao fogo, assim também será com Jerusalém. O povo que deveria dar frutos para Deus — frutos de justiça, de fé, de obediência — agora será entregue ao fogo do juízo. A cidade escolhida, o povo separado, perderam sua função, e por isso estão prestes a serem consumidos como lenha seca. É o cumprimento do que foi dito em Amós 3:2: “Somente a vós conheci de todas as famílias da terra; portanto, eu vos castigarei.”)
E porei o meu rosto contra eles: (Aqui Deus fala em termos de julgamento pessoal. “Pôr o rosto” não é aqui expressão de favor, mas de ira. Significa que Deus se volta contra eles como inimigo. Em Levítico 26:17, Deus disse: “Porei o meu rosto contra vós, e sereis feridos diante de vossos inimigos.” É a linguagem da guerra santa — mas agora, Deus não guerreia por Israel, e sim contra Israel.) Do fogo sairão, mas o fogo os consumirá: (Mesmo que escapem de um juízo, cairão em outro. Essa é uma figura de castigo continuado, como se dissessem: “Vocês escaparam das chamas por um lado, mas outro fogo já os espera do outro lado.” A história da destruição de Jerusalém foi exatamente assim: um cerco após o outro, fome, espada, pestes, até a ruína completa. O que escapar da espada, morrerá de fome; o que escapar da fome, será levado cativo; o que escapar do cativeiro, será perseguido. Isso ecoa Jeremias 15:2 — “Os que para a morte, para a morte; os que para a espada, para a espada; e os que para o cativeiro, para o cativeiro.”); e sabereis que eu sou o Senhor, quando puser o meu rosto contra eles. (Deus diz que, por meio do juízo, eles conhecerão quem Ele é. Essa é uma das frases repetidas em Ezequiel — aparece dezenas de vezes: “e saberão que eu sou o Senhor.” Aqui, porém, não é pelo livramento, mas pelo castigo. Até na ira, Deus se revela. Ele se dá a conhecer pela justiça, assim como pela misericórdia. Como está escrito em Isaías 26:9: “quando os teus juízos estão sobre a terra, os moradores do mundo aprendem justiça.”)
E porei a terra em assolação, porquanto grandemente transgrediram, diz o Senhor Deus. (A razão do castigo é clara: a transgressão. O juízo não é caprichoso, é justo. O povo pecou, e pecou de forma contínua e deliberada. A terra — que deveria manar leite e mel — será deixada em ruínas. Jerusalém, que era o centro da adoração, será abandonada como um campo seco. Veja 2 Crônicas 36:16 — “Zombaram dos mensageiros de Deus... até que subiu a ira do Senhor contra o seu povo, e não houve remédio.”)
Contexto Histórico de Ezequiel 15
O capítulo 15 do livro de Ezequiel apresenta uma parábola curta e incisiva, centrada na metáfora da videira — uma imagem profundamente enraizada na tradição bíblica e também atestada em literaturas sapienciais do antigo Oriente Próximo. Nesta seção, Ezequiel retoma e reformula a figura da videira, anteriormente consagrada em textos como o “Cântico da Vinha” de Isaías (Is 5:1–7), para ilustrar o juízo iminente sobre Jerusalém. O profeta inicia com uma pergunta retórica: “Filho do homem, que superioridade tem a madeira da videira sobre qualquer outro ramo dentre as árvores do bosque?” (Ez 15:2), colocando em dúvida não apenas o valor físico do material, mas seu valor simbólico diante da esterilidade espiritual de Judá. A conclusão é que, uma vez que a videira se torna infrutífera, sua madeira — já de pouca serventia em seu estado natural — se torna ainda mais inútil depois de queimada, sendo apta apenas para servir de combustível.
O uso da videira como imagem de Israel ou de Judá possui uma longa tradição no cânon do Antigo Testamento. Já em Números 13:23, a videira é símbolo da fertilidade e riqueza da terra de Canaã. Posteriormente, textos como Deuteronômio 32:32, Jeremias 2:21 e Oséias 10:1 desenvolverão essa figura simbólica como metáfora da nação de Israel, ora em sua frutificação sob a bênção divina, ora em sua degeneração moral e idolátrica. Ezequiel, portanto, não inova ao empregar essa imagem, mas a subverte ao enfatizar a total inutilidade da madeira da videira quando esta deixa de cumprir sua função frutífera. Ao contrário da madeira de carvalho ou cedro, usada em construções e objetos úteis, a madeira do videiro, tortuosa e frágil, não serve sequer para confeccionar um gancho ou estaca, conforme o texto adverte (Ez 15:3).
Esse juízo metafórico remete diretamente à situação de Jerusalém, que Ezequiel apresenta como uma cidade que perdeu sua função espiritual e moral no plano divino. A inutilidade da videira simboliza a esterilidade da cidade, que deixou de dar o fruto da justiça e da fidelidade à aliança. O juízo de Deus, portanto, é representado pelo fogo — o destino inevitável da videira infrutífera. Tal imagem ecoa novamente em João 15:5–8, onde Jesus, ao se apresentar como a “videira verdadeira”, exige de seus discípulos que deem frutos, sob pena de serem cortados e lançados ao fogo. Assim, a metáfora adquire, mesmo no Novo Testamento, contornos teológicos de condenação e exclusão quando a relação pactual é negligenciada.
Paralelos extrabíblicos reforçam a riqueza da metáfora empregada por Ezequiel. Na literatura egípcia, especialmente na obra sapiencial conhecida como Instrução de Amenemope, um vegetal é igualmente utilizado como símbolo dos insensatos que falam sem reflexão. Esse vegetal, enraizado em solo superficial, logo seca e perece, sendo arrancado e queimado, o que destaca seu caráter efêmero e inútil. Tal concepção do vegetal como figura do comportamento humano desviante ressoa fortemente com a crítica moral do profeta. No contexto mesopotâmico, a metáfora de uma cidade improdutiva também é empregada no épico Erra e Ishum (cuja tradição textual remonta ao século VIII a.C.), em que Marduque lamenta a infecundidade de Babilônia, dizendo que a encheu de sementes como uma pinha, mas dela não proveio fruto; plantou-a como pomar, mas não provou de seu fruto. A cidade, como a videira estéril, é retratada como uma entidade que falha em corresponder às expectativas divinas.
O versículo 7 de Ezequiel 15 — “Embora tenham saído do fogo, o fogo ainda os consumirá” — aponta para um processo de juízo progressivo, que pode ser compreendido através do recurso literário de gradação, característico do estilo profético de Ezequiel (cf. Ez 7:15). Ainda que apresentando estrutura literária refinada, a sentença remete diretamente a eventos históricos concretos. O “primeiro fogo” evoca o cerco e destruição de Jerusalém durante o reinado de Zedequias (2Rs 25:1–4), enquanto o “segundo fogo” refere-se aos castigos subsequentes à queda da cidade. Após a destruição de 587 a.C., muitos dos habitantes remanescentes se estabeleceram em Mispá ou retornaram a suas aldeias, sob a administração de Gedalias, governador designado pelos babilônios (2Rs 25:22). No entanto, após seu assassinato por insurgentes judaítas, nova onda de violência foi desencadeada, acarretando represálias caldeias severas e subsequente dispersão do restante da população (2Rs 25:23–26; Jr 40:7–43:7). O duplo fogo simboliza, portanto, não apenas o julgamento divino, mas também a continuidade de consequências históricas e sociais provocadas pela obstinação do povo em sua rebeldia e infidelidade.
Assim, o capítulo 15 deve ser lido como mais do que uma alegoria de inutilidade ou ameaça profética: trata-se de uma profunda reflexão teológica e histórica sobre o fracasso de Jerusalém em corresponder ao seu chamado pactual, uma reflexão enraizada tanto na tradição profética israelita quanto em imagens compartilhadas pelas culturas vizinhas do Antigo Oriente Próximo. A videira, símbolo por excelência da identidade de Israel, torna-se em Ezequiel 15 a metáfora de sua falência histórica, ética e espiritual — e, portanto, do juízo necessário que se impõe. Essa metáfora da videira inútil teria um impacto psicológico e teológico devastador sobre os exilados. Para um povo que historicamente se via como a “vinha do Senhor”, o jardim cuidadosamente plantado por Deus (como em Isaías 5), a comparação com a madeira imprestável de uma videira selvagem era uma negação radical de sua autoimagem e de seu status privilegiado. Não se tratava apenas de uma condenação por falha em dar frutos; era uma declaração de que até mesmo sua identidade fundamental como povo eleito havia sido corrompida a ponto de se tornarem sem valor intrínseco, aptos apenas para o fogo. O choque era profundo: a promessa de uma nação frutífera, símbolo da aliança e da bênção divina, agora se revertia em um pronome de humilhação e desqualificação total.
Bibliografia
ALLEN, Leslie C. Ezekiel 1–19. Dallas: Word Books, 1994. (Word Biblical Commentary, v. 28)BLOCK, Daniel I. The Book of Ezekiel: Chapters 1–24. Grand Rapids: Eerdmans, 1997. (NICOT)
BOADT, Lawrence. Reading the Old Testament: An Introduction. Mahwah: Paulist Press, 1984.
COOPER, Lamar Eugene. Ezekiel. Nashville: Broadman & Holman, 1994. (The New American Commentary)
CLIFFORD, Richard J. Wisdom Literature in Mesopotamia and Israel. Atlanta: SBL Press, 2007.
EICHRODT, Walther. Ezekiel: A Commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1970.
FISHBANE, Michael. Biblical Interpretation in Ancient Israel. Oxford: Clarendon Press, 1985.
GREENBERG, Moshe. Ezekiel 1–20: A New Translation with Introduction and Commentary. New York: Doubleday, 1983. (Anchor Bible, v. 22)
KEIL, Carl Friedrich; DELITZSCH, Franz. Commentary on the Old Testament: Ezekiel, Daniel. Grand Rapids: Eerdmans, 1980.
TANNEHILL, Robert C. “The Symbol of the Vine in Biblical Theology.” Interpretation, vol. 20, no. 4, 1966, pp. 375–388.
VAN GEMEREN, Willem A. (Ed.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 4 v.
WRIGHT, Christopher J. H. The Message of Ezekiel. Nottingham: Inter-Varsity Press, 2001. (The Bible Speaks Today)
WALTON, John H. et al. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament. Downers Grove: IVP Academic, 2000.
ZIMMERLI, Walther. Ezekiel 1: A Commentary on the Book of the Prophet Ezekiel, Chapters 1–24. Trans. Ronald E. Clements. Philadelphia: Fortress Press, 1979.
Índice: Ezequiel 1 Ezequiel 2 Ezequiel 3 Ezequiel 4 Ezequiel 5 Ezequiel 6 Ezequiel 7 Ezequiel 8 Ezequiel 9 Ezequiel 10 Ezequiel 11 Ezequiel 12 Ezequiel 13 Ezequiel 14 Ezequiel 15 Ezequiel 16 Ezequiel 17 Ezequiel 18 Ezequiel 19 Ezequiel 20 Ezequiel 21 Ezequiel 22 Ezequiel 23 Ezequiel 24 Ezequiel 25 Ezequiel 26 Ezequiel 27 Ezequiel 28 Ezequiel 29 Ezequiel 30 Ezequiel 31 Ezequiel 32 Ezequiel 33 Ezequiel 34 Ezequiel 35 Ezequiel 36 Ezequiel 37 Ezequiel 38 Ezequiel 39 Ezequiel 40 Ezequiel 41 Ezequiel 42 Ezequiel 43 Ezequiel 44 Ezequiel 45 Ezequiel 46 Ezequiel 47 Ezequiel 48
Quer citar este artigo? Siga as instruções:
GALVÃO, Eduardo M. “Significado de Ezequiel 15”. In.: Comentário Bíblico Online. Biblioteca Bíblica. [Aqui você coloca o ano. Não coloque o ano em que foi postado que consta no link (2025), mas o ano que aparece da última atualização que fica debaixo do título da postagem; ele marca a data da última atualização/edição, já que a maioria das páginas estão em constante atualização]. Disponível em: “cole aqui o link do artigo”. Acessado em: [coloque aqui a data em que você acessou o link do artigo, com dia, mês e ano. Note que a data que você acessa é diferente da data que consta da última atualização da página.]