Estudo sobre Romanos 12:1

Estudo sobre Romanos


Romanos 12:1

Paulo introduz toda a sua exortação apostólica na esfera do “Pai da misericórdia” (2Co 1.4). Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus. Na verdade não é ele próprio que está exortando. Para ele, isso seria pusilânime, sim, muito temerário. A misericórdia de Deus, no entanto, é uma autoridade e uma potência sem igual, difícil de experimentar sem que nos tornemos diferentes, sem que ela produza em nós “tanto o querer como o realizar” (Fp 2.13). Se não nos cobrirmos os próprios olhos, somos “transformados, de glória em glória” pela contemplação do seu Cristo (2Co 3.18). Obviamente esse ser transformado não cai sobre nós como numa anestesia, mas percorre o caminho da exortação, do ouvir obediente, da livre decisão, do querer resoluto e do agir enérgico. O que Paulo objetivamente tem em mente com “misericórdia” é revelado pela expressão anterior “pois”. Ela estabelece ligação com Rm 11.30-32, porque ali ele havia resumido todo o agir redentor de Deus sob o tópico “misericórdia, compadecer-se”7. Ela abarca tudo por cuja compreensão Paulo se empenhou junto aos leitores durante onze capítulos. Desse modo, a exortação vibra agora no campo de força da mensagem de Cristo. Na verdade, o nome “Cristo” está ausente nesses dois capítulos (exceto em Rm 12.5), mas o som pleno de “Senhor Jesus Cristo” no último versículo (Rm 13.14) evidencia aquilo que esteve sempre presente.

Como será, agora, a vida daqueles que são carregados de um quarto de hora ao outro por essa essência da misericórdia de Deus e por nada mais?

A totalidade da misericórdia divina chama pela nossa totalidade. Isso é expressado aqui de forma única: Rogo-vos… que apresenteis o vosso corpo por sacrifício. Não há dúvida de que Paulo fala numa ilustração, mais precisamente evocando os cultos no templo, nos quais se colocavam “corpos” sobre o altar (Hb 13.11). Imediatamente, porém, Paulo deixa claros os limites dessa figura. Agora não se trata de corpos de animais, mas sim de “vosso corpo”, e não se trata de cadáveres, mas de sacrifício vivo.

Salta à vista o discurso metafórico de sacrificar justamente o corpo. No fundo está seguramente o corpo sacrificado de Cristo, o qual o NT confessa com freqüência e com muita ênfase. O seu sacrifício na corporalidade terrena, visível, pública, e os nossos sacrifícios estão interligados. Mas como? Se levarmos em consideração a continuação no v. 2 e em todo o capítulo, Paulo não está convidando para o martírio. Mas, ao exortar à entrega do corpo, está dando uma ênfase peculiar. Se ele se limitasse à exclamação genérica de Rm 6.11: “Vivam para Deus!”, com facilidade a entrega poderia voltar-se unilateralmente para dentro, assumindo um aspecto só interior, racional, religioso, místico – sem significado sério para a prática. O quadro, porém, é como se Paulo lançasse um olhar desafiador a seus leitores: “Diante da misericórdia de Deus no sacrifício de Cristo vocês ainda têm vontade para a interiorização? Arquem com as conseqüências e exponham toda sua realidade de criaturas sujeitas à sua clemência!” “Corpo” diferencia-se do membro individual como sendo o abrangente. Por isso, o que Paulo vislumbra não é o culto delimitado, restrito a uma hora, a um recinto, a um só estado sentimental. No NT os encontros isolados de cristãos nunca são chamados de “cultos”, uma vez que são nada mais que parcelas de um culto a Deus que abarca a vida inteira.

É desnecessário dizer que o “corpo” não é visto depreciativamente como acessório externo. Pois do contrário resultaria a exigência absurda: dêem a Deus o que é secundário, e o mais essencial pode ficar para vocês! Tomamos consciência do verdadeiro papel da corporalidade quando nos imaginamos sem corpo. Sem ele não poderíamos comer, nem dizer nada, nem ouvir, ver, sentir. Sem os neurônios de nosso cérebro não poderíamos pensar, ler, compreender, crer. Não seríamos capazes de amar, nem de fazer algum bem, assim como ninguém nos poderia fazer algo de bom. Finalmente tampouco poderíamos ressuscitar. Não existe existência humana sem corpo. Por isso podemos aguçar a afirmação: Não temos um corpo, porém somos corpo. É essa existência corporal, de ser humano, que está sendo solicitada. Deus no-la havia concedido, contudo tornou-se esfera do pecado e da morte. Porém, comprado por Cristo, esse corpo deve tornar-se de novo área irrestrita de bênção do Espírito Santo, de modo que Cristo seja enaltecido nele.

Nesse ponto cabe uma objeção: quando se trata de um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pode-se oferecer-lhe indistintamente a vida corporal que em boa medida é tão insignificante e sem brilho? Não deveríamos pelo menos selecionar o que é precioso? Por outro lado, que há de precioso nos nossos corpos mortais, corruptíveis (Rm 8.11), afetados de fraqueza, erro e culpa? De fato eles nunca são preciosos em si, mas tornam-se valiosos por chegarem às mãos de Deus como material para a sua Onipotência. Nisso reside a perfeição do ser humano, em não resistir a Deus em nada. É assim que ele ressuscitará em incorruptibilidade, em glória e em poder (1Co 15.42-44).

Isso é que seria culto racional! Os profetas do AT já exerciam crítica contundente contra os cultos absurdos de seu tempo. Ao que parece, Paulo está referindo-se a determinados fenômenos de seu tempo. Talvez ele tenha aludido criticamente a uma expressão preferida de filósofos gentílicos da época – por isso colocamos aqui as aspas. Círculos eruditos daquele tempo distanciavam-se dos sacrifícios sangrentos e da abundância de cerimônias nos templos, enaltecendo um culto puramente a nível mental. Pois para eles deus era pensamento puro, razão suprema. Por isso o pensamento também era tido por eles como a dádiva mais sublime que se podia ofertar a Deus, enquanto declaravam o corporal como desprezível. É nesse sentido que glorificavam o “culto racional”. Ocorre que Paulo contraria bruscamente essa tendência da moda. Num adendo claramente perceptível ele tira essa expressão dos filósofos e a preenche de forma nova: verdadeiramente “racional” é apenas um culto que responde de modo coerente e adequado à misericórdia de Deus em Jesus Cristo. Assim, Paulo está tão distante do paganismo refinado quanto do paganismo bárbaro. De maneira bem contrária ao helenismo, ele exorta a sacrificar justamente o corpo enquanto vosso culto racional, i. é, dos que pertencem a Cristo. Percebe-se qual seria seu veredicto sobre um cristianismo diluído em pensamentos, sobre uma teologia resultante apenas da experiência do raciocínio.