Salmo 2 — Análise Bíblica

Salmo 2: Triunfo do ungido do Senhor

Enquanto o salmo 1 começa com “bem-aventurado o homem” (1:1), o salmo 2 termina com “bem-aventurados todos” (2:12). Observamos, portanto, uma transição do indivíduo para o grupo. O salmo 1 trata das lutas do indivíduo justo. O salmo 2, por sua vez, focaliza o destino do povo de Deus em um mundo governado e organizado por nações estrangeiras. As nações que se opõem a Deus e a seu Ungido são a manifestação mais ampla dos pecadores e escarnecedores mencionados no salmo 1.

O salmo 2 é o primeiro de uma série de textos conhecidos como salmos reais, ou seja, salmos cujo tema principal é o rei. Acredita-se que esses salmos estavam associados à cerimônia de coroação, realizada quando um novo rei subia ao trono. Qualquer mudança de governo, por sucessão pacífica ou golpe de Estado, é um acontecimento importante, com potencial para crises e rebeliões. Não foi coincidência os israelitas pedirem a Roboão, filho de Salomão, que aliviasse o jugo pesado deles antes da coroação (ÍRs 12:1-5; 2 Cr 10:1-4).

Em Atos, o salmo 2 é interpretado como um texto de teor messiânico. O Ungido em 2:2 é Jesus Cristo, e Herodes e Pôncio Pilatos representam os reis da terra (At 4:25-27; cf. tb. At 13:32).

O salmo 2 levanta a questão dos poderes malignos no mundo, um assunto importante para os africanos que imaginam ser impossível ter esperança em um mundo governado por interesses próprios. Mas Deus está no controle deste mundo, e aqueles que se refugiam nele serão bem-sucedidos.

2:1-3 Conspiração internacional

O salmo começa com uma pergunta retórica: Por que [...] os povos imaginam coisas vãs? (2:1). Uma conspiração ampla está em andamento. E significativo que o verbo traduzido por “imaginam” ou “tramam” (NVI) seja a mesma palavra traduzida por “medita” em 1:2. Enquanto a mente do justo se dedica a pensar na “lei do Senhor”, a mente dos ímpios se ocupa com ideias para derrubar seus governantes. Conspirações desse tipo são bastante conhecidas no continente africano, com toda a sua história de intrigas e golpes de Estado. Alguns países africanos nunca passaram por uma transferência pacífica de poder. Nos dias de hoje, várias gerações associam qualquer mudança de governante a violência e guerra civil.

Os governantes que as nações desejam derrubar são o Senhor e [...] o seu Ungido (2:2). O rei era chamado de “Ungido”, pois parte da cerimônia de coroação consistia em derramar óleo sobre sua cabeça (ISm 10:1). Em Israel, era comum usar óleo para fins alimentícios, medicinais e cosméticos. Ao ser empregado para ungir sacerdotes, profetas ou reis num contexto religioso ou político, porém, o óleo indicava que a pessoa estava sendo separada para uma fun­ção ou ofício específicos. O indivíduo em questão passava a ser chamado, portanto, de “o Ungido”, designação que pode ser traduzida literalmente por “o Messias”.

O Ungido não permanece no governo por seu próprio poder. O salmista o descreve como “seu Ungido”, isto é, do Senhor. O rei terreno governava em nome e sob a supervisão do verdadeiro Rei divino. As ameaças ao rei ungido descendente de Davi eram consideradas oposição ao governo do Senhor. Não obstante, as nações sujeitas a esse governo desejavam libertar-se; daí ouvirmos os conspiradores falar de romper seus laços e lançar fora suas algemas (2:3).

Conspirações contra Deus não são exclusividade do AT. No NT, Herodes e Pôncio Pilatos conspiraram juntos contra Jesus, o Ungido do Senhor. Ainda hoje, poderes malignos se opõem à vontade de Deus e à proclamação do evangelho.

2:4-6 Riso divino

Conspirações políticas e oposição religiosa podem levar alguns cristãos ao desespero. Por isso, precisamos atentar nos próximos versículos desse salmo, nos quais o Senhor dá sua resposta final a todas as conspirações. Os conspiradores podem ser “reis da terra” cheios de arrogância, mas Aquele a quem se opõem habita nos céus (2:4). Está assentado tranquilamente em seu trono, enquanto os adversários correm de um lado para o outro. O Senhor ri-se e zomba desses conspiradores insignificantes.

Diante da rebelião, o Rei celestial se pronuncia em favor de seu representante. Essa intervenção provoca terror em seus adversários (2:5). Sua oposição ao novo rei terreno é retratada claramente como oposição ao Rei celestial que está por trás do que acontece na terra. Deus lembra aos conspiradores que ele é o mestre de cerimônias. Foi ele quem escolheu e deu posse ao novo rei sobre o meu santo monte Sião (2:6). Sião era um dos montes sobre os quais Jerusalém se encontrava e, provavelmente, o local do palácio e do templo.

Convém lembrarmos que, não obstante os acontecimentos ao nosso redor, Deus está no controle. Nenhuma conspiração pode impedir o cumprimento de sua vontade. Herodes e Pilatos foram testemunhas desse fato quando aquele a quem mataram ressuscitou dentre os mortos para viver eternamente. Um dia, todos os que se opõem ao Senhor verão sua vitória e perceberão que sua oposição foi inútil.

2:7-9 A proclamação do rei

O rei davídico só fala depois das palavras de afirmação do Rei celestial. Certo do apoio de Deus, anuncia um decreto publicado no céu pelo tribunal divino naquele dia (2:7). O advérbio hoje se refere ao dia da coroação, no qual o decreto é lido e proclamado. Desse dia em diante, o rei se toma Filho de Deus. A princípio, Deus conferiu esse título à nação de Israel como um todo (Dt 1:31). Posteriormente, contudo, o prometeu de forma específica aos reis da linhagem de Davi (2Sm 7:14; lCr 17:13).

No antigo Oriente Médio e entre vários povos de toda a Africa, os reis são considerados divindades. Para o povo iomba da Nigéria, por exemplo, os reis eram descendentes dos deuses e atuavam como seus representantes. Mas não é a esse conceito que a Bíblia se refere quando chama o rei israelita de filho de Deus. Ele continua sendo considerado um ser humano, mas atua como representante do Rei celestial.

No NT, as palavras Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei são citadas por Paulo em seu sermão em Antioquia da Pisídia (At 13:33) e pelo escritor da epístola aos Hebreus (Hb 1:5). A filiação divina de Jesus, como a do rei, não diz respeito ao nascimento biológico. Nem o rei nem Jesus devem ser considerados literalmente descendentes de Deus. São “filhos” no sentido de que se encontram num relacionamento especial com Deus. Enquanto a relação do rei com Deus era de um ser humano com seu Criador, Jesus e o Pai compartilham da mesma natureza, e Jesus se tomou Filho de Deus de forma voluntária ao se sujeitar ao Pai (Fp 2:6-7).

A adoção do rei israelita como filho de Deus acarretava diversas conseqüências. Deus lhe concedia domínio e direito de governar sobre as nações (2:8). É extremamente significativo, portanto, que a mensagem transmitida ao rei em 2:7 seja idêntica àquela que Jesus ouviu em seu batismo (Mc 1:11; Lc 3:22).

A descrição do rei que governa sobre as nações com vara de ferro e as despedaça como um vaso de oleiro (2:9) pode referir-se a um ritual realizado como parte da cerimônia de coroação. O novo rei provavelmente recebia uma imagem ou vaso de barro com o nome de governantes, nações e povos inimigos e o despedaçava para simbolizar sua vitó­ria sobre seus adversários. João cita esse versículo várias vezes em Apocalipse. Em duas ocasiões, ele é usado para referir-se à vitória do Senhor (Ap 12:5; 19:15). Em outra citação, diz respeito à vitória dos cristãos ou da igreja sobre seus inimigos (Ap 2:27). Jesus recebeu seu povo como herança, e aqueles que confessam seu senhorio participam de seu remado.

2:10-12 Exortação para se sujeitar

Os últimos versículos do salmo são dirigidos aos governantes da terra mencionados em 2:1. Nações, povos, reis e autoridades que conspiram em 2:1-2 são convidados a aceitar a única proposta que lhes resta: sujeitar-se voluntariamente ao Ungido, o filho do Senhor. Não há alternativa.

Eles devem escolher isso mesmo se desejam ser prudentes e permanecer em segurança (2:10). Servir ao Senhor com temor significa sujeitar-se ao rei recém-nomeado. Assim como a rebelião contra o rei terreno corresponde à insubmissão ao rei divino, também a submissão ao rei terreno simbolizada pelo gesto de beijar suas mãos e pés equivale à submissão ao Rei celestial (2:12a). Quem não aceitar o governo de Deus por meio de seu filho atrairá destruição sobre si. O salmo não termina, porém, em tom sombrio, pois o Rei celestial não é um tirano. Encerra-se em tom de bênção:

Bem-aventurados todos os que nele se refugiam (2:12&). As palavras benevolentes continuam sendo válidas em nosso tempo, e hoje é o dia de aceitar essa graça. Quem aceitar voluntariamente o governo de Jesus será abençoado. Por outro lado, quem rejeitar seu senhorio será castigado um dia por tal arrogância.

O salmo 2 tranquiliza aqueles que depositam sua confiança no Senhor. Apesar da oposição, a vontade do Senhor se cumprirá. As palavras de Jesus a Pedro ainda valem para a presente geração: “... edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). Mas o salmo 2 também é uma advertência àqueles que rejeitam o senhorio de Jesus Cristo. Estamos vivendo no tempo da graça. Um dia, o governante da terra trará julgamento sobre quem não reconhecer seu Filho e representante.

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