Estudo sobre Apocalipse 14:14-16

Estudo sobre Apocalipse 14:14-16


Pelo próprio começo olhei, e eis esse aparecimento é destacado da série dos seis anjos. Primeiro João percebe como “trono” a nuvem branca (de modo análogo em Ap 4.2; 19.11; 20.4,11). Como em Ap 1.7 aqui ela é símbolo de poder,707 contudo a impressão é reforçada pelo impacto de sua alvura ofuscante.708 Na realidade ela não é uma cor perceptível aos sentidos, mas antes a ausência de qualquer cor natural, a “descrição” de uma natureza de luz celestial indescritível.709

Acaso essa nuvem assinala, como outras passagens,710 a vinda do Senhor com glória? Tanto a nuvem como também sua cor branca como igualmente a coroa dourada podem referir-se a anjos (Ap 10.1; 19.14; 4.4). Somente a exegese seguinte poderá esclarecer essa questão.

João vê o Entronizado sobre o trono de luz.711 Ele forma o contraste com os “entronizados sobre a terra” do v. 6. Nesse momento descarta-se a interpretação de que seja um anjo.712 Clareza definitiva é trazida pelo adendo semelhante a filho de homem (forma idêntica a Ap 1.13). Isso constitui uma referência consciente a Dn 7.13, a passagem muito conhecida no judaísmo e cristianismo a respeito da sujeição de todos os reinos humanos em favor do reino eterno por intermédio do Filho do Homem exaltado. Ele aparece coroado de vitória: na cabeça uma coroa de ouro.

A tarefa mais importante esperada do Filho do Homem é o juízo.713 O Pai “lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem” (Jo 5.27). Nesse momento não se deve pensar num juízo sobre a igreja, mas num juízo “fora da cidade”, isto é, sobre a vasta “terra” (v. 6,15,16,18,19 = sete vezes). A igreja, porém, encontra-se, nessa moldura do quadro, junto com o Cordeiro sobre Sião e não se enquadra no conceito “terra”. Para esse juízo ele trazia na mão uma foice afiada.714

No texto a seguir temos de avaliar se há razões de peso para desviarmo-nos da visão exposta, que é coesa. Será que o presente trecho do Filho do Homem armado de foice e rodeado de seus anjos do juízo também contém ainda um processo de misericórdia, como constatam muitos comentaristas?

Outro anjo saiu do santuário do céu (cf. v. 17 e Ap 11.19). Desta forma, não se interrompe a seqüência de anjos. Todos eles, como também este anjo, vêm da central de comando celestial, da presença de Deus. Que traz ele? Gritando em grande voz para aquele que se achava sentado (“ ao Entronizado”) sobre a nuvem. Essa comunicação, por mensageiros, entre Deus e Cristo demonstra que Cristo saiu do lugar à direita de seu Pai – corretamente entendido – e que veio ao mundo.715

O anjo passa adiante uma incumbência suprema: Toma a tua foice e ceifa. Na Bíblia a colheita pode ser tanto uma metáfora da alegria como também do terror. No NT ocorre predominantemente como uma figura de terror.716 Depõe a favor dessa leitura também o atual contexto. Pois chegou a hora de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu. No âmbito dessa visão essa hora, afinal, não pode ser separada do v. 7: não se trata de reunir a igreja conforme Mt 24.31, mas da hora do juízo sobre a besta e seus adoradores, sobre a Babilônia e seus amigos. Deus responde definitivamente do seu templo às orações dos mártires de Ap 6.10. A grande espera alcançou seu ponto extremo. Não acontece mais nenhum desenvolvimento terreno. A colheita está supermadura,717 referindo-se a toda a terra.


A impressão da execução judicial se intensifica pelo arremesso da foice. E aquele que estava sentado (“entronizado”) sobre a nuvem passou a sua foice sobre a terra. O próprio procedimento da colheita não é descrito aqui, enquanto se informa, p. ex., em Mt 13.39: “Os ceifeiros são os anjos”. Sucinta é também nesse texto a nota sobre a execução. E a terra foi ceifada.

Como já mencionamos, uma série de exegetas718 constata, ao contrário dos v. 17-20, em que os inimigos são calcados no lagar, agora uma reunião misericordiosa dos eleitos do mundo inteiro em torno de Cristo. Contra essa leitura, porém, depõem não apenas o tema do texto em análise, mas também todos os seus pormenores, que não temos necessidade de recapitular. Somente o v. 20 sugere a ideia de uma preservação dos eleitos. Igualmente os textos paralelos em Ap 1.7 e 19.11-20 (cf. nota 712) são inequívocas visões de juízo. Finalmente, é preciso ter em conta o papel que exerce, no fundo, Jl 3.13. Ali prefigura-se a metáfora dupla de ceifar e pisar o lagar, valendo sem distinção para os inimigos de Sião.719



Notas:
707. Em Êx 24.15,16; 40.34,35 constitui uma expressão paralela para “glória do Senhor”.

708. Ezequiel viu o trono de Deus num azul profundo, diferente de Ap 20.11.

709. A palavra grega para branco (leukós) tem a mesma raiz de “luzir” [em alemão, leuchten] e significa, a rigor, “luz”.

710. Dn 7.13; Mc 13.26 e paralelos; 1Ts 4.17; Ap 1.7.

711. A tradução com “estar entronizado” precisa ser justificada do modo como fizemos em Ap 4.2; de forma similar em Ap 3.21; 12.5. Uma vez que estar no trono é sinal da dignidade máxima, e os servos estão de pé, estar parados é na Bíblia a postura típica dos anjos.

712. Contra Bengel, de Wette, Bousset, Zahn, Stokmann. O último defende que esse aparecimento seria “simples demais” para Cristo. Ele é sucinto, porém de forma alguma simples, se levarmos em conta a referência a Dn 7 e a posição de Cristo entre os seis anjos. A brevidade e o anonimato explica-se a partir do caráter esquemático da visão. A pintura detalhada com nomes claros e muitos pormenores seguirá em Ap 19.11-21. Alguns tópicos do presente trecho que serão retomados no cap. 19: cor branca (Ap 19.11,14), coroa (Ap 19.12), séquito de anjos (Ap 19.14), cavalos (Ap 19.14,18-21), agudeza do instrumento de execução judicial (Ap 19.15), pisar o lagar (Ap 19.15), vinho da ira (Ap 19.15), gritos poderosos dos anjos (Ap 19.17), enxofre (Ap 19.20), adoração de imagens (Ap 19.20).

713. P. ex., para o judaísmo no livro de Enoque (cap. 51; 61; 62; 63; 69). No nt: Mt 25.31-46; Lc 21.26; At 17.31; Jo 5.27. Em Dn 7, porém, o Filho do Homem ainda é um personagem sem conotação de juiz (cf. o comentário a Ap 1.13).

714. Em grego drépanon, de “quebrar”, “cortar”. Este termo de uso múltiplo pode servir para expressar um machado, uma foice ou uma faca de vindimar. No v. 16 trata-se de uma faca de vindimar, como decorre do uso na vinha. No v. 15 trata-se de uma foice, como se depreende da expressão “ceifa”, que está ligada no grego à expressão “verão”. Na Palestina o colheita do cereal acontece no início do verão, ao passo que a safra de uvas apenas no final do outono.

715. A opinião de que o próprio anjo estaria dando ordens ao Filho do Homem seria um equívoco grosseiro. Da mesma forma o anjo não lhe suplica que interfira.

716. Cf. Hauck, Ki-ThW vol. iii, pág. 132-133.

717. “A ceifa é o fim do mundo” (Mt 13.39 [rc]). Também naquela parábola o “senhor da seara” é o Filho do Homem.

718. P. ex., Lohmeyer, Hadorn, Behm, Rissi, Holtz. Também Bornkamm tende em favor dessa leitura (“Embora obviamente não tenha certeza”).

719. Contra a ideia de uma safra misericordiosa no presente texto posicionam-se também Bousset, Wikenhauser e Lilje.