Estudo sobre Apocalipse 14:17-20
Estudo sobre Apocalipse 14:17-20
Como o quarto anjo no v. 15, os dois anjos do presente trecho nitidamente têm a ver com a execução do juízo, ao contrário dos três primeiros anjos nos v. 6-11, que proclamavam a abertura do juízo. Além disso, evidencia-se aqui a formação de dois pares. O sexto anjo é parte do quinto anjo, assim como o quarto anjo estava relacionado com o Filho do Homem. Esses dois pares servem à duplicação da imagem do juízo de Jl 3.13. Aqui existe a nítida intenção de produzir uma duplicação: observamos a mesma origem a partir do santuário do céu (v. 15,17), o mesmo equipamento (v. 14,17, cf. nota 714), o mesmo grito em volume alto (v. 15,18), o mesmo objeto de juízo (v. 15,18), a mesma solicitação (“toma!”, nos v. 15,18) e a mesma execução (“passou”, nos v. 16,19).
Visualiza-se, portanto, como em Jl 3.13, duplamente o mesmo acontecimento. Isso lhe confere uma ênfase enorme. Não podemos nos deixar confundir pelo fato de que esse juízo é executado uma vez pelo próprio Filho do Homem, e outra vez pelo anjo. O anjo é anjo dele. No anjo ele está agindo novamente. O texto paralelo em Ap 19.15 mostra o próprio Cristo pisando o lagar!
É expressiva a definição exata da origem do sexto anjo, de que saiu do altar. Cabe recordar que João viu os mártires clamar a Deus a partir desse altar (nota 297): “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” [Ap 6.10]. Pelo fato de que agora sai desse lugar o anjo que dá o sinal de largada para o juízo final, fica estabelecida a correlação entre o juízo final e as orações dos mártires. Chegou a hora pela qual suplicaram por tanto tempo.
O anjo do altar tinha autoridade sobre o fogo. Devemos equipará-lo ao anjo de Ap 8.5, que já lançou uma vez “fogo do altar” sobre a terra? Contudo, naquela ocasião parecia tratar-se do altar de incenso, e aqui o juízo também não é apresentado pela ilustração do fogo derramado. Pois agora processa-se o juízo final, que passa a ser ilustrado pela metáfora da vindima. Como em Ap 16.7, o altar parece estar representando a voz da santidade e justiça de Deus.
Esse anjo traz a ordem: Toma (“Envia”) a tua foice afiada e ajunta os cachos da videira da terra, porquanto as suas uvas estão amadurecidas! Na Palestina deixava-se os ramos da videira crescer livremente no chão, de maneira que uma única videira podia cobrir uma superfície grande. No Sl 80.8,9 fala-se de uma videira que “encheu a terra (inteira)”, aqui é a superfície da terra toda. A metáfora era amplamente conhecida no Oriente, e mesmo no AT não está restrita, p. ex., a Israel. Agora está sendo vindimada a videira da terra, ou seja, conforme o v. 6, todas as nações, tribos, línguas e povos. Então, o anjo passou a sua foice na terra, e vindimou a videira da terra.
O que recolheu ele lançou no grande lagar720 da cólera de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade. Para a nossa percepção a referência do lugar é surpreendente. Afinal, a “videira da terra” abrange um grande número de locais e cidades. O lagar está sendo pisado no mundo inteiro. Como é que a lagaragem pode ser situada num lugar fora do muro da cidade? No entanto, justamente não se está pensando em dimensões geográficas, mas em grandezas essenciais. Elas são tomadas de Jl 3. Nesse texto lemos, por um lado, acerca do povo de Deus sobre o monte Sião e, por outro, dos inimigos que sobem de todos os lados. Contudo, diante dos muros de Sião o ataque é obstruído por uma intervenção de Deus. Os inimigos são exterminados em um banho de sangue. Logo, uma menção indireta do processo de clemência na igreja aparece somente à margem da visão. O presente juízo acontecerá, na perspectiva dela, “do lado de fora”.721
A relação com Jl 3 também é confirmada pela subsequente alusão obscura a uma batalha. E correu sangue do lagar. O AT ocasionalmente compara vinho tinto com sangue.722 O sangue chegou até aos freios dos cavalos. Esta descrição de um banho de sangue obedece a uma fórmula e retorna diversas vezes na literatura.723 Narra-se que um cavalo se move no sangue dos pecadores que lhe chega até a altura do peito, ou que ele afunda no sangue até as narinas, ou que anda no sangue dos mortos até o nariz. Estas formulações trazem consigo o fato de que as pessoas se tornam insensíveis para com seu significado literal. Os leitores da época entendiam que agora está se realizando um grande juízo, sem que neles fossem despertados sentimentos especialmente sanguinários.
Depois da menção da profundidade da torrente de sangue segue-se um dado sobre seu comprimento: numa extensão de mil e seiscentos estádios. Diante desse dado, Bengel e outros especulam com o comprimento da Palestina.724 Contudo, quando se entende o número como simbólico, o que é mais plausível no presente caso, chega-se precisamente a um resultado que exclui qualquer ideia da Palestina. O que ocorre nesse caso é que o número dos quatro pontos cardeais foi elevado à potência e ainda multiplicado pelo número cem, que expressa a plenitude. Assim esse juízo abarca a terra em todas as suas dimensões imagináveis e até em seu mais afastado recanto. Ao contrário dos juízos que acontecem dentro da história, que constantemente permitiam que a vida, em parte, continuasse, e depois dos quais repetidamente havia os que escaparam, no presente episódio acontece o juízo total.725
Índice:
Apocalipse 14:17-20
Notas:
714. Em grego drépanon, de “quebrar”, “cortar”. Este termo de uso múltiplo pode servir para expressar um machado, uma foice ou uma faca de vindimar. No v. 16 trata-se de uma faca de vindimar, como decorre do uso na vinha. No v. 15 trata-se de uma foice, como se depreende da expressão “ceifa”, que está ligada no grego à expressão “verão”. Na Palestina o colheita do cereal acontece no início do verão, ao passo que a safra de uvas apenas no final do outono.
297. O Apocalipse parece estar fazendo uma distinção entre o “altar de ouro”, i. e, o altar de incenso (Êx 30.3; aqui em Ap 8.3-5; 9.13), e o “altar” (Ap 6.9; 11.1; 14.18; 16.7). Este último corresponde ao altar de holocaustos.
720. Em geral, as instalações de lagares eram esculpidas na rocha inteiriça: um rebaixamento raso, do qual pequenas aberturas de escoamento conduziam até um segundo recipiente, situado mais abaixo. Na bacia de cima os homens descalços calcavam as uvas, segurando-se em cordas suspensas ou uns nos outros, e cantavam para manter o ritmo.
721. O termo tem uso análogo em Mt 5.13; Jo 15.6; Ap 11.2; 22.15.
722. Gn 49.11; Dt 32.14; Is 63.3,6. Na Páscoa judaica costumava-se beber vinho tinto.
723. Cf. Bornkamm, Ki-ThW vol. iv, pág. 261, A. 8.
724. O comprimento deveria perfazer cerca de 300 km (cf. blh), portanto, bem mais que a extensão desse país.
725 Langenberg toma por base o número quarenta como cifra da provação. Multiplicado por si próprio, resultaria no conceito da provação extrema. Contudo, de forma alguma o termo “provação” é apropriado para reproduzir o conteúdo do texto.