Estudo sobre Apocalipse 14:4-5
Estudo sobre Apocalipse 14:4-5
O primeiro motivo de sua satisfação: São estes os que não se macularam com mulheres. A metáfora do adultério676 atesta aos que são vistos em Sião que eles estão livres da idolatria, a saber, da adoração à imagem segundo Ap 13.14 (cf. o texto de lá). Eles não fazem parte dos que adoram a besta.677 Segue-se a definição positiva: porque são castos (“porque são virgens” [rc, teb, bj]). Apesar de que, conforme a frase inicial, se fala de homens, essa expressão não tem razão de causar espécie, porque no grego678 e no latim “virgem” é tanto masculino quanto feminino.
Portanto, acaso se pensa em homens que vivem abstêmios do matrimônio? Em 1Co 7 Paulo recomenda, com vistas à tribulação do fim, que atinge com intensidade especial os pais de família, que não se casem. Também Mt 19.12 foi repetidamente aduzido para essa questão.679 Contudo, essa leitura de forma alguma se insere no atual contexto. Aqui João não tem uma visão do grupo de ascetas na igreja, mas sim da própria igreja com seu número completo, de todos os homens e mulheres680 comprados que seguem ao Cordeiro (v. 4b). Além disso, os casados acabariam sendo, neste contexto, os que “se lambuzam com mulheres” – algo impossível no pensamento da Bíblia. Na Escritura o matrimônio é um presente sagrado de Deus e o Ap até o emprega como imagem da mais elevada dignidade (Ap 19–22).
Resta, pois, a compreensão figurada da virgindade. Ela se contrapõe a outra metáfora do Ap, a “prostituição”. Em ambos os casos o Ap é devedor do AT: trata-se de pureza ou contaminação em relação à idolatria, de fidelidade ou infidelidade perante o Criador e Redentor. Essa metáfora diz a respeito dos cento e quarenta e quatro mil que eles não apenas são preservados, mas também se preservam, que eles não somente se situam sob a graça que os protege, mas também no amor, com o qual se entregam a Jesus.681
No dado seguinte a “castidade” deles aparece sem metáfora, ou numa metáfora diferente.682 São eles (“estes” [RC]) os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. Aqui deveria dissipar-se a última dúvida de que os que se encontram no Sião ainda não constituem a igreja aperfeiçoada, pois decididamente não se pensa num passeio por todos os cantos do céu. Pelo contrário, a expressão faz pressentir que ainda haverá um destino obscuro e grave para os seguidores.
O vocábulo “ir” (hypágein) merece um estudo mais atento em João. Muitas vezes o termo se refere a um ir em direção ao incógnito e abscôndito, sim, ao que causa medo. É uma situação à qual nos leva o desígnio indecifrável de Deus (cf. Jo 21.18). Em numerosas passagens do evangelho de João o termo ocorre em relação à misteriosa ida de Jesus ao Pai – através da morte,683 e em Ap 13.10 para descrever que os santos são levados à prisão.684 A partir desse uso também é iluminada a palavra enigmática de Jo 15.16: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”. Também apresenta-se nitidamente diante dos olhos uma escuridão, contra a qual o ser humano natural estende defensivamente ambas as mãos. Acontece, porém, que o Senhor soberanamente nos escolheu (e vai à nossa frente), bem à maneira de Lc 10.3: “Ide! Eis que eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos”. Desse modo ele envia para o horror, para as trevas, para a sepultura e – para o fruto. Certamente não envia para muitos frutos terrenos, porque a vida é interrompida, porém para fruto eterno, “que permanece”. “Os que com lágrimas semeiam com júbilo ceifarão. Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes” (Sl 126.5,6).
Assim como Jesus os antecedeu fisicamente no passado como o Cordeiro, ele agora, como o Exaltado, vai à sua frente espiritualmente em cada curva do caminho e por todos os “vales escuros”. Eles experimentam a promessa de Mt 28.18-20. Jesus vai à sua frente como um pastor à frente de seu rebanho. É por isso que, eles, “no meio de lobos”, apesar disso se encontram junto de seu Bom Pastor.685 O alvo final desse ir, para os discípulos, como outrora para seu Senhor, é a face do Pai (Ap 22.4). Por isso eles lhe seguem com confiança infinita.
Finalmente o texto evoca o discurso do Pastor em Jo 10: “Ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe reconhecem a voz” (Jo 10.3,4). João acrescenta expressamente que naquela ocasião os discípulos não entenderam o Senhor. Agora, após nada menos de 65 anos, João compreende a palavra. Agora ela tem um lugar frutífero no Ap.686
Uma terceira e última vez enceta a explicação: (“Estes” [rc]) são os que foram redimidos dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro. Depois de falar de virgens e ovelhas, a metáfora dos comprados traz o encerramento (cf. o que já expusemos sobre o v. 3b). Eles foram resgatados do encantamento de Ap 13.7, da “autoridade da besta”. Embora se encontrem nos cárceres do mundo (Ap 13.10), são os mais livres do mundo.
Para que foram comprados? Para uma oferta de primícias.687 Portanto, não são genericamente uma multidão consagrada a Deus, e sim uma primeira multidão consagrada a Deus, à qual seguirão outras multidões. Eles constituem um contingente inicial, que espera por complementação. A igreja significa, portanto, promessa de algo mais, ou seja, de um novo céu e uma nova terra e uma nova humanidade. Como o antigo Israel foi o estoque inicial da igreja constituída dentre todos os povos, assim essa comunidade de povos é o estoque básico de uma nova humanidade. Ela o será precisamente quando for semeada na lavoura do mundo, quando caminhar para o martírio (v. 4b) e for sepultada. Os mártires não são simplesmente “semente da igreja”, mas semente de uma nova humanidade.688
A caracterização da igreja como oferta de primícias conduz ao pensamento sacerdotal (cf. Ap 1.6). Entretanto, para os sacerdotes, como também para os animais de sacrifício, havia no AT a condição de serem fisicamente impecáveis. É por isso que a explicação encerra afirmando: não têm mácula. Este distintivo, porém, vale nitidamente como figura, assim como no NT as expressões sacrificiais são repetidamente espiritualizadas:689 não se achou mentira na sua boca.
Estes lábios santos apontam mais uma vez, como figura oposta, para o cap. 13. Ali ressaltou-se nos v. 2,5,6 a boca blasfema690 da besta, que levou todas as bocas do mundo a blasfemarem (v. 4). Do mesmo modo a palavra mentira aponta para o cap. 13, a saber, para a atuação da segunda besta, do “profeta de mentira”. No atual contexto, mentira é consentir na adoração diante da besta: “Quem é igual à besta!” Deste modo a besta se transformava, pela mentira, em deus, em senhor sobre todas as coisas.691 Era em relação a isso que os comprados se conservaram imaculados. Sua boca não negou. Num mundo que ressoava cheio de apostasia e idolatria, eles sustentaram um testemunho límpido de Deus e do Cordeiro.
Índice:
Apocalipse 14:4-5
Notas:
676. Quanto a “macular”, “lambuzar”, cf. nota 228. A metáfora é usada da mesma maneira em 2Co 11.2,3; 1Tm 3.9; 1Pe 1.22; 2Pe 3.14; Tg 1.27.
677. Duas traduções coptas e uma etíope e uma minúscula trazem a variação: que não se lambuzaram com “a mulher”, ou seja, com a “prostituta Babilônia”, cf. Ap 14.8; 17.2; 18.3,9.
678. W-B traz provas de que o termo também foi usado para Abel, José, Melquisedeque e João (col. 1244).
679. É o que fazem Bousset, Lohmeyer e Behm.
680. O fato de que se fala de homens em relação à igreja constitui um estilo retórico antigo. No judaísmo os homens formavam a comunidade. Também nós falamos dos “moradores” de uma cidade, incluindo entre eles as moradoras.
681. O mesmo pensamento é expresso por Hadorn, Schlatter, Zahn e outros.
682. Uma ponte entre a metáfora da noiva e a do seguimento é apresentada pelo conhecido texto matrimonial: “aonde quer que fores, irei eu…” em Rt 1.16, embora seja uma declaração à sogra, não ao noivo.
683. Assim também em Mt 16.24,25; Mc 13.21.
684. Em Ap 17.8 é usado para a perdição da besta.
685. O Cordeiro aparece como Pastor também em Ap 7.17.
686. “Seguir atrás de” constitui simultaneamente o oposto ao “andar atrás dos ídolos”, um uso que ocorre cerca de dez vezes no at.
687. Lohmeyer e Lilje usam o significado posterior, mais inexpressivo, de “oferta de primícias”, a saber, simplesmente “oferenda”, “sacrifício”, sem o momento temporal, de que se trata de uma primeira dádiva.
688. No atual momento ainda não abordamos todas as questões que se impõem. Elas assumirão o centro do comentário a partir do cap. 20.
689. Ef 1.4; 5.27; Cl 1.22; Fp 2.1,5; Jd 24.
690. Para “boca” e “focinho” usa-se no grego a mesma palavra (stóma).
691. No que diz respeito ao convite aos cristãos para acompanharem essa mentira, cf. nota 632, cf. também o comentário a Ap 21.8.