Estudo sobre Apocalipse 14:2-3

Estudo sobre Apocalipse 14:2-3



Como já tantas vezes, João ouve, no v. 2, também uma voz que faz parte da visão. Ouvi uma voz. Ela não ressoa das fileiras dos selados sobre o Sião,668 mas acima deles, do céu, do mundo da limpidez de Deus (cf. também o v. 3). Os cento e quarenta e quatro mil, rodeados pelo barulho blasfemo, não estão entregues unilateralmente às vozes da terra, porém registram (v. 3) também o júbilo do culto a Deus realizado nos céus. A força e glória vitoriosas desse coro de anjos669 são destacadas extraordinariamente (quatro vezes: “voz”!). Sua força equivale a uma tempestade (cf. o exposto sobre Ap 1.15): como voz de muitas águas, como voz de grande trovão. Sua glória lembra música de harpa em intensidade inebriante (cumulação de “harpa”, “tanger a harpa”): também a voz que ouvi era (ao mesmo tempo) como de harpistas quando tangem a sua harpa. A harpa não somente era “instrumento celestial” (Ap 15.2: “harpas de Deus”), mas também era utilizada na glorificação dos imperadores. Forma-se, pois, um contraste triunfante670 com as cerimônias em torno da imagem da besta.

Entretanto, somos informados não apenas do volume da voz e do esplendor desse coro, mas também de uma indicação de seu conteúdo. Entoavam novo cântico (cf. o comentário a Ap 5.9). Será que esse tom não está apontando para a consumação final? O judaísmo ensina que “Israel somente cantará um novo cântico nos dias do Messias, como hino de louvor pelo milagre da redenção”.671 Esses dias, porém, de acordo com o evangelho, irromperam precisamente com a Sexta-Feira da Paixão (qi 48-52). É por isso que o novo cântico, segundo o entendimento cristão, já consta do repertório antes da volta do Senhor. Também deve-se levar em conta o dado de Ap 5.9, de que ele é entoado por anjos. Eles cantam diante do trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos. Logo, não devemos imaginar os vinte e quatro anciãos-anjos como os cantores, como em Ap 5.9, mas sim um círculo maior.

Por ser cântico celestial de anjos, esse novo cântico não pode ser entoado por nenhuma voz humana. Não obstante, uma parte da humanidade pode “aprendê-lo”. E ninguém pôde aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil. Segundo o uso corrente, o termo aqui utilizado poderia significar: aprender a cantar o cântico. Por conseguinte, os anjos liderariam o cântico e o ensinariam, e a igreja poderia um dia, na consumação, aderir ao coro (Ap 15.3).672

Entretanto, merece ser ponderada a possibilidade de que no grego posterior “aprender” significa: ser verdadeiramente capaz de ouvir o cântico, representando uma audição aprofundada e compreensiva, que inclui um ato de aquisição intelectual.673 Nesse caso, a presente frase não fala de cantar conjuntamente no futuro, mas de compreender agora, evocando textos como Ap 2.17; 7.9; 19.12. Todos eles falam de um conhecimento secreto, do qual participa somente a igreja fiel, de realidades divinas às quais existe apenas um único acesso divino. Aqui a igreja, ainda assediada pela torrente anticristã, tem acesso espiritual ao júbilo celestial de vitória. Ela recebe do Espírito a corrente de consolo e de certeza e é governada por uma paz que está acima de todo o entendimento.674

Com clareza desejável somos informados no final do versículo de que os cento e quarenta e quatro mil são os mesmos que foram comprados dentre os moradores da terra. A formulação675 soa bastante sucinta em comparação com Ap 5.9 (cf. o texto correspondente), porém possui um forte peso no atual contexto por causa da repetição no final do v. 4. Eles foram “comprados para fora da terra”. Aqui a terra constitui a posição oposta ao Sião.


Até agora os que João viu foram definidos de acordo com sua localização e sua origem. Com o objetivo de obter uma identificação inequívoca acrescenta-se, nos v. 4,5, uma explicação adicional de acordo com a natureza deles. Três vezes João reitera: Estes (cf. RC). O tom evoca o júbilo de Adão em Gn 2.23, quando recebeu sua mulher: “Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada (esta)” (RC). Obviamente quem fala nesses versículos é João, porém em suas palavras reside algo da impetuosa satisfação de Jesus por sua amada noiva comprada.





Notas:
668. Contra Bengel e Schlatter.

669. Acompanhamos de Wette, Hadorn, Zahn e Lohmeyer. Também em Ap 5.8,9 há anjos cantando com harpas nas mãos.

670. Concernente ao Sl 138.1, Kraus fala de uma “confrontação teimosa”: “Perante os deuses eu tangerei a harpa para ti”. Cf. também o comentário a Ap 5.8.

671. Bill iii, pág. 601.

672. É a tese de Bousset, Schlatter, Zahn.

673. Com Lohmeyer, Hadorn, Lilje etc. O mesmo uso do termo ocorre também em Jo 6.45.

674. O trecho contém referências soltas à glossolalia (“falar em línguas”): canto de anjos (cf. 1Co 13.1), instrumentos musicais (cf. 1Co 13.1; 14.7), impossibilidade dos descrentes entender (cf. 1Co 14.23), louvor a Deus (cf. 1Co 14.16) e cântico (1Co 14.15). Apesar disso, no presente caso o acontecimento espiritual não deve ser relacionado de forma especial com o dom da glossolalia, pois conforme 1Co 12.30 ele é distribuído apenas a um grupo na igreja, enquanto aqui a igreja toda, completa em número (144.000), entende o novo cântico e fica repleta de alegria espiritual.

675. Novamente uma ponte para os 144.000 do cap. 7: “ser comprado” em Ap 14.3 corresponde a “ser servo”.