Estudo sobre Apocalipse 17:15-18

Estudo sobre Apocalipse 17:15-18




O trecho requer uma observação preliminar quanto ao enquadramento cronológico dos acontecimentos. Muitos comentaristas845 entendem o decurso do texto também como sequência cronológica dos eventos profetizados. De acordo com isso, portanto, os dez reis marcharão primeiro com a besta para a batalha final contra o Cordeiro. Batidos pelo Cordeiro (v. 14), eles se voltam com fúria cega contra a mulher, a fim de dilacerar aquela que até aqui carregaram com admiração (v. 2). A derrota diante de Cristo, portanto, é seguida da autodestruição do mundo anticristão.

Outros comentaristas846 reconhecem corretamente que a sequência literária não significa uma sequência histórica, mas que o texto avança por temas: primeiro o anjo aborda o fim da besta (v. 8-11), depois o fim dos dez reis (v. 12-14) e finalmente o fim da prostituta (v. 15-18). Cada vez trata-se realmente de um fim, se levarmos a sério os diversos trechos em seu aspecto literal. Os dez reis, depois de derrotados por Cristo, não continuam agindo de um ou outro jeito na sua parusia. Observe-se o paralelo pormenorizado em Ap 19.19-21: “E todas as aves se fartaram das suas carnes”.

Por isso, os v. 15-18 constituem um avanço meramente em termos temáticos. Em termos cronológicos, p. ex., o v. 17 (“para oferecerem sua dignidade real à besta” [tradução do autor]) constitui claramente uma retomada do momento do v. 13 (“oferecem à besta sua dignidade real” [tradução do autor]). Portanto, o v. 17 ainda transcorre no tempo anterior ao último ataque contra o Cordeiro.

Consequentemente, no v. 15 o anjo começa com um novo tema, a saber, com o tema principal do presente capítulo, anunciado já pelo v. 1 e que, devido à importância, foi guardado para o final: o juízo sobre a prostituta.

Falou-me ainda: As águas que viste,847 onde a meretriz está assentada, são povos, multidões, nações e línguas. A interpretação da água como mar das nações tem precedentes no AT.848 Na Antiguidade os povos muitas vezes eram vistos em conjunto com seus reis, de modo que o anjo, quando menciona os reis na metáfora seguinte dos dez chifres, continua falando do mesmo assunto. Os dez chifres que viste e a besta, esses odiarão a meretriz. Depois de uma breve interpretação das águas ele chegou agora à mulher, que conforme o v. 1 está entronizado sobre essas águas.


Ciente de estar comunicando algo assombroso, o anjo salienta: esses odiarão a meretriz. Afinal, eram os reis que, conforme o v. 2, estavam completamente inebriados dela. Também lemos que, mais tarde, depois de terem dilacerado a prostituta, esses mesmos reis se desatam em grande lamentação (Ap 18.9). Choram “lágrimas de crocodilo” por causa de uma devastação (Ap 18.19) que eles próprios causaram (Ap 17.16). Por meio desse fato torna-se translúcida, mais uma vez, uma afirmação como a de Ap 16.14: por ocasião da devastação não tinham domínio de si mesmos, mas estavam possuídos do espírito do diabo, guiados como ferramentas sem vontade própria. Atingidos pelo hálito da besta, exalam ódio para todos os lados.849

Acima de tudo eles odeiam de forma incompreensível ao Cordeiro (v. 14), que deu seu sangue por eles. Contudo odeiam igualmente a prostituta. São inteiramente negativos. Ao estudar o cap. 13 já constatamos que a besta, capaz de todas as coisas, não consegue realizar uma coisa: não é capaz de amar, motivo pelo qual tampouco consegue despertar amor. Como a besta, também a prostituta com todos os seus atrativos (v. 4) somente foi capaz de suscitar desejos, mas nenhum amor. Por mais cortejada que fosse, por mais que todo o mundo olhasse para ela e a bajulasse e invejasse – nunca foi amada. É isso que agora se torna flagrante. O mundo em discórdia com o Cordeiro e com Deus também cai em discórdia consigo próprio. Os abismos sociais são intransponíveis. A cultura babilônica poderá trazer liberdade, justiça e bem-estar de forma transitória. Contudo liberdade para quem? Justiça para quem? Bem-estar para quem? Sempre apenas para um lado, e do outro lado aparecem as vítimas:850 os escravos trabalhadores, as buchas de canhão, os presos políticos. Somente o Cordeiro traz a salvação que abrange todas as criaturas de Deus.851

A destruição da Babilônia é ilustrada com auxílio de metáforas de juízo do at. Eles a farão devastada (cf. o comentário ao v. 3) e despojada (“nua” [rc, blh, nvi, teb, bj, bv, vfl]). Isso significa o saque total de suas riquezas.852 No lugar da ostentação do v. 4 entra a desonra gritante. E lhe comerão as carnes. Essa metáfora para sugar até o sangue é ilustrada de modo chocante por Mq 3.2,3: “… deles arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos; que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão”. Pensemos também na morte de Jezabel (2Rs 9.33-36). Cães comeram sua carne. Ela é precursora da prostituta Babilônia, por desviar para a idolatria e derramar o sangue dos profetas (aqui no v. 6; cf. também o exposto sobre Ap 2.20-23).

E a consumirão, a meretriz, no fogo. Depois da carnificina total o intragável é queimado (Ez 23.25). Uma fúria destrutiva extrema acaba com todos os vestígios. O ódio dirige-se mesmo contra o último monturo e finalmente espalha as cinzas ao vento. Não restaria mais nada para um sepultamento.853

O v. 17 faz recordar o v. 13. Ele repete a fala da unanimidade de pensamento e resolução (cf. nota 840), mas agora sob um aspecto inesperadamente novo. Porque em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e dêem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus (cf. o comentário a Ap 10.7; 15.8). A ira de Deus é a força última que move esses reis. “Eu o farei dar meia-volta, porei uma argola no seu nariz e o arrastarei junto com as suas tropas para longe”, diz Deus aos príncipes em Ez 38.4 ([blh] cf. 39.2; 29.2), fazendo com que saiam com a ira dele numa expedição contra seus próprios interesses.

O versículo detém-se ainda na admirável unanimidade dos reis. Como pode acontecer que não entrem em conflito ou não se insurjam contra a besta e sua própria perda de soberania? Despedaçam seu próprio ídolo, sua Babilônia, que em seguida é amargamente pranteada. Fazem-no sem muitas solicitações, sem negociações infinitas e sem contrapartida. O que é que os arrasta de maneira tão irrefreada, tão súbita e simultânea? Que contra-senso é esse senso unânime!

Uma explicação já foi trazida pelo v. 14: é a irresistível inspiração da trindade satânica. Agora agrega-se uma segunda indicação. Tornaram-se instrumentos da ira de Deus.854 Deus é capaz de comandar até mesmo o pensamento daqueles que lhe resistem. Antes que eles próprios obtenham sua sentença, ele ainda os usa como vara de castigo para a prostituta. Com isso Deus exibe uma extraordinária prova de poder. Não somente está em condições de parar as ações e seus adversários, mas pode até fazê-los dar meia-volta e correr contra a sua própria causa. Transforma seus adversário em adversários e algozes de si mesmos. Dessa forma foram cabalmente refutados, e Deus sequer perdeu o fôlego nessa ação. No fim Deus será ilimitadamente sublime.

No desfecho, que conduz de volta à realidade de João, a mulher prostituta é citada mais uma vez, e sua personalidade é caracterizada solenemente pela tríplice repetição do artigo. A mulher que viste é a grande cidade que domina sobre os reis da terra. Ainda está entronizada, desfrutando de seu poder de irradiação. Ainda a terra lhe está sujeita e silente a seus pés – ainda! Depois do anterior, o presente versículo soa ameaçador. Pois agora João e seus leitores sabem do “mistério da mulher” (v. 7), razão pela qual observam a mui admirada Babilônia com seus próprios pensamentos. Por meio da palavra de Deus e do Espírito de Deus o poder do seu fascínio já se rompeu para eles.



Notas:
845 P. ex., Brütsch, Frey, Lohmeyer, Lilje.

846 P. ex., Stokmann, Schlatter, Wikenhauser, Behm, Lohse.

847 Bousset chama atenção para o fato de que, na visão a partir do v. 3, João sequer tinha visto essas “águas”. Elas tão somente eram ouvidas no v. 1. Disso ele conclui precipitadamente que o texto não estaria em ordem, e presume inclusões de mão estranha. Contudo, já em Ap 1.2, conforme antigo linguajar profético, a visão englobou a audição (nota 102).

848 Is 8.7; Jr 47.2; Ez 26.19. – O número quatro aponta novamente para a universalidade. Referindo-se à população ímpia da terra, ainda em Ap 5.9; 7.9; 10.11; 11.9; 13.7 e 14.6.

849 Uma explicação que escava profundezas ainda maiores será trazida pelo versículo seguinte.

850 A referência à injustiça social na Babilônia não é uma idéia arbitrária, cf. o comentário a Ap 18.13.

851 Nesse ponto também podemos conceder a palavra a Hartenstein, que interpreta a Babilônia como sendo a igreja acomodada ao mundo (pág. 213): “O anticristo lançará fora a igreja mundana e apóstata, com a qual inicialmente mantinha a mais estreita aliança, assim como se lança fora uma prostituta quando se abusou dela… Este, portanto, é o fim do cristianismo mundano e decaído: ser rejeitado precisamente por aqueles que o apoiavam, defendiam e que eram seus aliados” (cf. nota 586).

852 Em Ap 3.17,18 “nu” constitui o oposto de “rico”.

853 De acordo com Lv 21.9, em Israel as prostitutas eram queimadas.

840 O termo grego gnome significa: a. “sentido”, “mentalidade”; b. “decisão”, “determinação”. De acordo com os contextos ele requer uma tradução diferente no v. 13 que no v. 17. No v. 13 ele está ligado com “ter”, o que aponta para o significado a: “ter o mesmo pensamento”. Em contrapartida, no v. 17 ele está ligado com “fazer”, o que não tolera uma tradução com a acepção a, mas: “tomar uma decisão unânime e cumpri-la”.

854 Ao tratarmos de Ap 13.5 já nos ocupamos da imbricação de causa satânica e iniciativa de Deus.