Estudo sobre Apocalipse 17:6b-10

Estudo sobre Apocalipse 17:6b-10



Os v. 6b,7 fazem a transição para a interpretação,813 ressaltando a admiração extraordinária do vidente,814 no mesmo estilo de Dn 7.28; 8.27; 10.8-10. E, quando a vi, admirei-me com grande espanto (“admiração”). O anjo, porém, me disse: Por que te admiraste? Os vasos humanos são frágeis demais, de argila fina demais para a pesada poção da realidade de Deus. No entanto, não está em jogo a questão genérica de apreender o divino, mas sim o divino em vista do mal na história. Os cumes elevados dos Alpes já impressionam de modo geral, porém impressionarão mais quando o espectador estiver num desfiladeiro profundo. Desse modo a divindade torna-se duplamente incompreensível para João, sim, torna-se torturante e chocante, porque ele se encontra nas profundezas da história e sob o impacto do pavor da Babilônia.

No Sl 73 o salmista recebe uma visão da felicidade dos ímpios: sem Deus parecem ter paz perfeita, são bem saudáveis, exuberantes e audaciosos, contornam esplendidamente tudo o que é incômodo, falam como das alturas do céu, sempre têm razão e ostentam sucesso com terrível regularidade. Isso faz o salmista vacilar: “quase me resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos… Em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim” [v. 2,16]. Como obteve ajuda? “Até que entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles” (v. 17). À luz da realidade suprema de Deus a felicidade dos ímpios despedaça-se como felicidade falsa. É essa ajuda que socorre também a João na sua confusão. Ele vê o fim da besta (v. 8-11), o fim dos dez reis (v. 12-14) e o fim da mulher (v. 15,16).

O anjo, que no v. 1 lhe dissera: “mostrar-te-ei”, acrescenta agora: Dir-te-ei (“Eu, eu mesmo te direi” [tradução do autor])… Este enfático “eu, eu mesmo” provavelmente esteja construindo um contraste com Dn 8.27, onde se lê: “Espantava-me com a visão, e não havia quem a entendesse”. Decorre, pois, uma vantagem para os profetas da nova aliança. À luz da Páscoa, a escuridão não é mais tão impenetrável.

O mistério essencial da prostituta (quem é ela?) na verdade já fora elucidado nos v. 5,6. Os versículos seguintes referem-se a seu mistério histórico (para onde ela leva?), a saber, ao mistério da mulher e da besta que tem as sete cabeças e os dez chifres e que leva a mulher. Nessa interpretação trata-se, sucessivamente, das correlações em que a mulher se situa, primeiro do destino do animal de montaria, que é mais uma vez identificado expressamente815 com a besta de Ap 13.1.

A besta que viste, era e não é, está para emergir do abismo. No texto a seguir aplica-se quatro vezes o esquema dos três tempos verbais à besta (v. 8,10,11), seguramente como declaração básica sobre a besta e como seu verdadeiro “mistério” (v. 7). Isso corresponde ao destaque dado à ferida mortal em Ap 13.3,12,14. Ambas as afirmações fundamentais se encaixam: tendo superado a ferida mortal, a besta demonstrou ser vitoriosa sobre a transitoriedade das criaturas. Ela imita a soberania de Deus e de Cristo sobre a história816 e atemoriza as pessoas por sua indestrutibilidade que dura por todos os tempos. Mesmo quando dá a impressão de que sua existência pertencia a épocas finalmente passadas, ela subitamente está de volta, celebrando sua “parusia” triunfante (cf. abaixo), seu renascimento satânico.

E aqueles que habitam sobre a terra… se admirarão (como em Ap 13.3). Diante dessa força vital eles se sentem como que desestruturados e sucumbirão ao fascínio da besta se não estiverem ancorados em Deus, cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a (“antes da” [bv]) fundação do mundo (quanto a detalhes, cf. o comentário a Ap 13.8). Sem socorro sucumbem à aparição dela. Ou olhamos para Jesus, ou somos fascinados pela besta. Vendo a besta que era e não é, mas aparecerá.817

O termo grego traduzido por “aparecer” seguramente possui um sentido mais pleno, que a tradução não consegue reproduzir.818 A ideia é de uma apresentação exuberante da besta, a fim de receber a veneração de todo o mundo. Em 2Ts 2.9 Paulo utiliza o substantivo derivado desse verbo para a “vinda” do anticristo na “eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira”. Nos v. 3,6,8 ele designa o mesmo processo de “desvendamento” ou “revelação”, a saber, depois de um longo tempo de ação oculta na atualidade (v. 7). Tudo isso é imitação de seu adversário, Jesus Cristo, ao qual tenta fazer concorrência da Sexta-Feira da Paixão até a parusia.


Contudo, ela caminha para a destruição, dizia o adendo à formula dos três tempos (no início do v. 8). No ápice dessa imitação, Deus a interromperá poderosamente e dará um fim a essa horrível blasfêmia. A besta desaparece para sempre no lugar da perdição (Ap 19.20; 20.10). Era essa pequena frase que a explicação do anjo em relação à besta apontava. Apesar de seu enigmático desdobramento de poder, ela está sujeita à soberania suprema de Deus. Ele solta a besta por tempo limitado, contudo também torna a tirá-la da história. Tudo isso requer ser compreendido à luz dos juízos das taças. Em sua ira Deus o faz contra aqueles que não desejam seu dom inefável, a saber, o Cordeiro.

A explicação das sete cabeças da besta (v. 9-11) começa com uma exortação que retomaremos mais tarde. Ela determina a natureza da afirmação seguinte. Aqui está o sentido, que tem sabedoria (“Aqui é necessária a razão, que tem sabedoria” [tradução do autor]). Ela evoca imediatamente a exortação de Ap 13.18, que tão somente ligava os dois termos de forma inversa.

As sete cabeças são sete montes. Na Antiguidade era muito conhecida entre romanos, gregos, judeus e cristãos a referência aos “sete montes” como referência a Roma, construída sobre sete colinas (Roma septicollis). No presente texto igualmente parece excluída qualquer outra interpretação.819 Não que a besta seja simplesmente identificada com Roma. Não obstante, por sobre as cabeças da besta forma-se uma relação com a Roma daquele tempo. “Babilônia”, um conceito de proclamação, que acompanha o povo de Deus por milênios, pode fixar-se, vez por vez, em fenômenos bem definidos, sem no entanto dissolver-se e submergir neles. No presente texto, portanto, o anjo conjuga a Babilônia com a Roma de sete colinas, onde a mulher está sentada.

A visão da prostituta Babilônia, montada sobre a besta, também possuiria um sentido sem os presentes versículos, e fica claro que a conexão com Roma é estabelecida apenas posterior e adicionalmente. Ela até atrapalha um pouco o aspecto do v. 3. Lá a prostituta está solenemente sentada sobre a besta como sobre um animal de montaria; agora, no entanto, a besta a carrega nos chifres.

A continuação confirma que não há a mínima intenção de igualar a mulher à cidade das sete colinas. As sete cabeças são também sete reis. No lugar das sete colinas de Roma, existentes lado a lado, surge subitamente uma série subsequente de sete reis. Ninguém deveria negar que dessa forma agrega-se à primeira interpretação, apresentada apenas superficialmente, uma segunda, que recebe o destaque maior. Surge diante do nosso olhar não mais uma cidade singular ou um reino único, mas sim o número pleno (o número sete!) dos reinos no tempo escatológico,820 que repetidamente se aliam à prostituta Babilônia.

O conceito das colinas ou montes sugere que se trata de reinos, não de personagens isolados821 (cf. o comentário a Ap 16.20). No Oriente em geral, como também no AT, constituíam palavra simbólica para potências mundiais. Elas são representadas por seus reis.822

O v. 9, pois, certamente fez menção de Roma, contudo inseriu esse reino imediatamente na série completa dos reinos do fim dos tempos. Não somente no caso de Roma, mas repetidamente a Babilônia se alia com os sistemas de poder. Em decorrência, também essa interpretação adicional mantém-se nos parâmetros dos v. 1-6. – Os v. 10,11 serão abordados no excurso a seguir.



Notas:
813 Com regularidade ocorrem referências à visão experimentada: “a besta que viste” (v. 8); “os dez chifres que viste” (v. 12); “a água que viste” (v. 15); “os dez chifres que viste” (v. 16); “a mulher que viste” (v. 18).

814 O vocábulo “admirar-se” (thaumázein) no mais é relacionada com ímpios (Ap 13.3 e 15.1,3). Aqui ocorre um caso especial, provavelmente como assimilação do termo usado em Daniel.

815 A ligação com o cap. 13 também é estabelecida pelos conceitos do “abismo” e da “admiração”.

816 O esquema dos três tempos verbais em relação a Deus: Ap 1.4,8; 4.8; 21.6; em relação a Cristo: Ap 1.17,18 e 22.13.

817 Hartenstein explica da seguinte maneira o esquema de três tempos: a. O mundo gentílico pré-cristão; b. O mundo superficialmente cristianizado (a “era constantiniana”), no qual o poder da descrença parece quebrado e ideais cristãos conquistam o mundo; c. A emergência do gentilismo pós-cristão, que se torna sete vezes pior: ele já não é ingênuo, mas anticristão. Desse modo, contudo, o tempo intermediário ainda é visto numa ótica demasiado otimista. Do ponto de vista, p. ex., dos valdenses, dos anabatistas ou dos socialdemocratas sob Bismarck, o poder do ateísmo prático nunca se apresentou rompido. Além disso, a besta, que penetrou na história somente depois da queda de Satanás, não pode referir-se ao gentilismo pré-cristão.

Klumbies (em: Wort und Tat, 1967, nº 4) interpreta de maneira oposta. Ele relaciona o “era” com a época anterior ao reino dos mil anos, o “e não é” com o tempo da duração desse reino e o “está para emergir do abismo” com a época depois do final desse reino (Ap 20.7). O encaminhamento para a perdição é identificado com o juízo final (Ap 20.10). Contudo, Ap 20.7 diz unicamente que Satanás será solto, mas não a besta. Além disso teríamos de imaginar, nesse caso, que a besta foi admirada depois da primeira ressurreição (contra Ap 13.3), ou seja, depois da parusia de Jesus Cristo.

818 O termo grego pareimi primeiramente significa “estar aí”, “estar presente”, “participar” em reuniões, refeições ou festas, e depois também “tornar-se presente”, “comparecer e entrar” para realizar uma visita. O substantivo derivado parousia tornou-se termo técnico para a visita de superiores (deuses, imperadores e altos magistrados), ou seja, para uma visita pomposa com grande recepção (em latim: adventus). Quando o termo se refere a Cristo, sempre é preciso depreender o seguinte sentido: vinda com poder e glória. Ele nunca é usado para designar a vinda de Jesus em humildade. Essa não foi nenhuma parusia, motivo pelo qual sua vinda no fim dos tempos tampouco é uma segunda parusia, nem uma “volta”. A ideia da “volta” origina-se do linguajar eclesial posterior.

819 É difícil identificar geograficamente as sete colinas em Roma. A expressão com certeza possui sentido esquemático.

820 Também Dn 7 vê uma sequência de reinos mundiais. Porém, os reinos que se tem em mente aqui referem-se, de acordo com o contexto, ao período do fim dos tempos, desde Cristo. Tampouco tem-se em mente a concomitância de sete reinos (v. 10,11).

821 Contra a identificação com personagens isolados depõe também a expressão “cair”, no v. 10, que se refere de forma consistente à ruína de reinos, não porém à morte de indivíduos (o que também é defendido por Zahn e Rissi).

822 No Leste do Império Romano “rei” (basileus) era termo usado geralmente para “imperador” (cf. 1Pe 2.13,17; 1Tm 2.2).