Estudo sobre Apocalipse 17:3-6
Estudo sobre Apocalipse 17:3-6
Transportou-me o anjo, em espírito… Como em Ap 1.10; 4.2 e 21.10,795 esta formulação introduz o novo enfoque de uma série de visões. Por si só já é significativo que João veja a florescente cidade no deserto, ou seja, no juízo.796 Ela ainda não percebe que já está marcada pelo juízo. Ela sonha de tudo, menos com seu fim. “E disseste: Eu serei senhora para sempre! Até agora não tomaste a sério estas coisas, nem te lembraste do seu fim” (Is 47.7).
E vi uma mulher montada numa besta escarlate, besta repleta de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. De modo exato, embora abreviado,797 este animal de montaria é identificado com a besta do cap. 13, o poder anticristão. Não se deve depreender do texto a subjugação da besta pela prostituta.798 Os orientais sentiam, antes, a união entre cavaleiro e montaria. Retrataram numerosos deuses e deusas montadas, a fim de simbolizar a força dessas divindades, às quais estavam aliados. É desse modo que a cultura do mundo está se aliando ao poder da besta. É sua decisão anticristã (v. 6) que lhe confere vida, que a sustenta (v. 7), que a eleva e que fará com seja arruinada (v. 16).
Contudo, por enquanto ela continua sentada sobre a besta, sem desconfiar de nada, e apaixonada por si própria, vestida de púrpura e de escarlata. A púrpura, de cor vermelho escura, é cor de reinado (Lc 16.19). Significado similar possui o vermelho berrante do escarlata.799 No entanto, evita-se aqui o vermelho da cor do fogo de Ap 6.4; 12.3, uma cor de desgraça. De forma alguma exibe-se desde logo a embriaguez com o sangue do v. 6.
O europeu sulista é menos exigente na comida, mas em troca mais exigente na roupa e nas jóias. Ainda hoje as italianas usam anéis e brilhantes em seis ou oito dedos. Também esta mulher ávida de luxo estava repleta de ouro, reluzia de ouro valioso e de pedras preciosas e pérolas. Ela exibe uma riqueza tão incalculável que o espectador desta figura brilhante e ofuscante fica totalmente atordoado. Há nela um traço proposital, assim como uma prostitua expõe na “vitrina” tudo o que possui. De acordo com Ap 18.7 ela se glorifica a si mesma. O louvor próprio desenfreado é característico da Babilônia. Em Ap 3.17 essa marca se manifesta dentro da igreja.
Radiante de felicidade fascinante, a prostituta estende ao mundo inteiro o cálice de ouro e, a seu modo, convida para a “santa ceia”: tendo na mão um cálice de ouro. Na realidade o vinho era símbolo da alegria de viver. Contudo nesse caso estava em jogo a mentira. O exterior e o interior do cálice formam um contraste mordaz. Está transbordante de abominações e com as imundícias da sua prostituição. No AT ambas as expressões ocorrem paralelas e designam o mundo gentio. João recua horrorizado diante do conteúdo do cálice que exteriormente é tão deslumbrante. Acaso a Babilônia não se apresentava intencionalmente como superação dos cultos primitivos, acaso não se elevava acima das planuras da superstição, até os píncaros da erudição e do iluminismo (qi 10-15)? Entretanto, o que ela proporciona depois mais uma vez não passa de superstição.
Na sua fronte, achava-se escrito um nome, um mistério! Pela intercalação da exclamação mistério! deixa-se claro que se seguirá um nome cujo sentido não é simplesmente evidente, mas, por ser nome simbólico, carece de decodificação. A última interpretação – já nos antecipamos tratando desse versículo – acontece somente no v. 6. Como em Ap 12.9; 13.18 ou 19.13, estamos aqui diante de uma passagem central.
A interpretação do trecho subsequente forçosamente sofre pelo fato de que os pontos que o texto justapõe de forma impressionante precisam ser estendidos e abordados um após o outro. Somente no retrospecto poderá surgir novamente uma visão de conjunto.
O nome é Babilônia,800 a grande cidade.801 Na época de João a Babilônia histórica já estava devastada há muito tempo. Mesmo sua localização exata era incerta até que na Idade Moderna fosse escavada sob doze a vinte e quatro metros de escombros. Apesar disso João chegou a comunicar a exclamação do anjo a seus irmãos em Ap 18.4: “Retirai-vos dela (da Babilônia)!” Esta convocação tem tão pouca conotação geográfica quanto o convite do poeta Benjamim Schmolk: “Alma, encaminha-te ao Calvário”. É evidente que um conceito geográfico foi reinterpretado espiritualmente.
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A antiga Babilônia não tinha importância histórica até o tempo de Hammurapi (por volta de 1725-1656 a.C.). Através dele a cidade conquistou predomínio cultural até a era do helenismo. Contudo, a cidade exerceu verdadeira posição de império mundial somente por tempo breve e transitório.802 O episódio de Gn 11.1-9 pode ser típico para a Babilônia: é certo que a Babilônia gera a ideia de império mundial, porém a concretização não obtém sucesso. A cidade limitou-se a ser centro comercial e cultural. Naturalmente a magnitude de seu luxo era proverbial entre gregos e romanos. A Babilônia dominava como uma mulher que, “delicada e mimada” (blh), controla os homens, como uma “senhora de reinos” (Is 47.1,5), como “rainha” (Ap 18.7). Tudo isto, bem como o extenso cap. 18 sobre a Babilônia dos comerciantes, é em geral pouco considerado na interpretação desse termo.
É preciso diferenciar a Babilônia da besta,803 caracterizada por violência, guerra e subjugação. Cultura e violência podem convergir, mas também separar-se novamente (cf. Ap 17.3,16). A besta sozinha, sem a bela cavaleira, seria uma afronta. É por isso que ela gosta de se servir da cultura e de seus recursos inebriantes. Esta é, portanto, a solução perfeita: em primeiro plano a mulher fascinante, no fundo os dentes arreganhados da besta, caso os seres humanos se tornem atrevidos demais. Os ideais ressoam nas grandes praças, porém nas ruas laterais a tropa de choque está de prontidão. Isto é o máximo que se pode oferecer sem Deus.
Portanto, a Babilônia é a sociedade que desenvolveu a admirável capacidade de se instalar nesta terra. Os abismos do ser foram camuflados pela capacidade e pelo conhecimento, eliminados ou pelo menos cerceados pela organização. É possível viver neste mundo cheio de luzes e de seguranças inteligentes.
Contudo, ainda não foi dito nada de substancial. A Babilônia é também a mãe das meretrizes e das abominações da terra. Todo esse brilho foi erguido sobre uma gigantesca quebra de fidelidade (cf. o comentário a Ap 17.1), sobre a ruptura amadurecida, conscientemente executada, com Deus. Tão grande quanto é a Babilônia, tão grande é sua prostituição. Sua magnitude é aquela desenvolvida pela prostituição.804 É por isso que não se deve simplesmente igualar a Babilônia com a cultura e depreender do Ap hostilidade à cultura. Contudo, como a Bíblia toda, o Ap é implacavelmente crítico em relação à cultura. De forma alguma ele permite que lhe seja negado a aplicação de parâmetros éticos e espirituais.
Agora é que chega ao auge o diagnóstico da natureza da mulher. Uma segunda vez dentro dessa visão, João escreve: Então, vi. Nesse último desmascaramento ele estremece (v. 6b). Viu a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus. Observado mais de perto, o vinho da prostituição transforma-se no sangue dos santos. Com isso é dado o ponto da virada. A Babilônia não é apenas cultura sem Deus, mas também cultura contra Cristo. Justamente por ser cultura sem Deus, ela tem de entrar em conflito com aqueles que persistentemente falam Deus. Talvez as igrejas tivessem esperança de que, com sua palavra de paz e reconciliação para todos os povos e classes, elas não encontrariam a mesma rejeição como o tom arrogante da sinagoga. Contudo, enquanto a Babilônia for Babilônia ela tomará um rumo anticristão se a igreja for verdadeiramente igreja.
Esta guinada da opinião geral contra os cristãos aconteceu claramente mais tarde. Não foi possível provar que cometiam atrocidades, e apesar disto eram acusados de “inimigos do Estado” e de “odiarem a espécie humana”.805 Porque, enquanto se retraíam, como os judeus, de grande parte do convívio e do culto helenista,806 ao mesmo tempo penetraram – como os judeus não faziam na mesma medida – em todos os povos e segmentos, e retiravam pessoas convertidas de todos os estamentos. Nesse ponto impunha-se ao mundo em volta a impressão de uma hostilidade à sociedade. Obviamente eles não se tornavam puníveis em contravenções legais. Contudo, as asserções dos cristãos807 não tinham força alguma para mudar esta suspeita.
Desde bem cedo a Babilônia foi interpretada como sendo a Roma papal,808 depois também como sendo genericamente cada igreja adaptada ao mundo,809 que se afastou de seu “marido”, ou seja, o Deus vivo, e se “prostitui” com o Estado. Em breve ela adota um comportamento exigente, ganancioso, luxurioso, imoral, guerreiro e diplomático. Ela confunde tarefas e meios espirituais e estatais. Em seus representantes tenta-se encontrar em vão a fidelidade ao Cordeiro de que fala Ap 14.4, ao passo que persegue brutalmente os verdadeiros discípulos de Jesus, causando mais mártires que os imperadores da Roma gentílica, “ébrios do sangue dos santos e do sangue das testemunhas de Jesus”.810
Em primeiro lugar o texto não nos deixa à vontade para de antemão entendermos a “Babilônia”, cidade de comerciantes, como uma igreja. É verdade que tão logo uma igreja se torne uma “casa de negócio” no sentido de Jo 2.16 – observamos essa tendência e as características típicas em Laodicéia – ela adquire participação no modo de ser babilônico. Uma coisa gera a outra, até chegar à fogueira inquisitorial. Entretanto, há diversas “fogueiras” e diversos “papados”, e nem sempre apenas nos outros!
A exegese mais recente interpreta a Babilônia como sendo a Roma gentílica,811 apoiando-se na circunstância de que no judaísmo daquele tempo “Babilônia” era um criptônimo muito usado para Roma e o Império Romano.812 Não nos cabe negar fundamentalmente essa designação (cf. o v. 9!), contudo ela deveria ser melhor definida. Era Ap 13 que fazia referência muito mais intensa à Roma político-estatal. Em contraposição, não há dúvida de que os cap. 17,18 indicam para a cultura de cunho helenista no Império Romano, sem obviamente limitar-se a ela.
Índice:
Apocalipse 17:3-6
Notas:
795 Este ser transportado também ocorre em Ez 3.12,14; 8.3; 11.24.
796 O deserto como indício de estado de juízo: Is 13.19-22 (Babilônia); Jr 25.11; 50.12 etc. – Nada nesse texto sugere que se deva interpretar o deserto como mundo das nações ou lugar dos recomeços (Langenberg) ou como lugar de Satanás e dos demônios (Lohmeyer). Em contrapartida, a leitura de juízo é recomendada com base em Ap 17.16 (cf. 18.19), onde aparece “devastar” [= desertificar].
797 Não se diz que os nomes, ao contrário de Ap 13.1, estariam inscritos no corpo da besta (Bousset). No cap. 12 não se encontra a definição de cor vermelha “escarlate”. Ela não deve ser confundida com o vermelho da “cor do fogo” (Ap 12.3; cf. o comentário a Ap 17.4).
798 Stokmann e Langenberg: a besta é dirigida e tem de obedecer.
799 De acordo com Mc 15.17, Jesus foi coberto com um manto de púrpura, de acordo com Mt 27.28 com um manto de escarlate. Também no AT as duas expressões ocorrem com frequência lado a lado, o último muitas vezes relacionado à ideia de exuberância pecaminosa, ao contrário da lã branca.
800 No NT aparece regularmente babylon, na LXX às vezes também babylonia. Na Bíblia hebraica ocorre consistentemente a forma Babel para a cidade e a região ou o Estado.
801 A expressão plena “Babilônia, a grande cidade” encontra-se em Ap 18.10,21; “Babilônia, a grande”, em Ap 14.8; 16.19; 17.5; 18.2; sem o nome, simplesmente “a grande cidade”, em Ap 11.8; 16.19; 17.18; 18.16,19; “a cidade forte”, em Ap 18.10 (rc) e “a cidade” em Ap 11.13.
802 P. ex., sob Nabucodonosor, a respeito de quem relata o livro de Daniel. Estas referências à Babilônia, porém, agregaram-se à besta em Ap 13, que não deve ser simplesmente igualada à “prostituta”.
803 Discordando de Lutero e Calvino.
804 “Mãe das prostitutas” significa, conforme Kuhn, Ki-ThW vol. i, pág. 512, nota 3, no modo de falar judaico: a maior prostituta, em sentido destacado. Em decorrência não se deve evocar tanto os cultos femininos da Antigüidade e sua atmosfera erótica (divergindo de Lilje).
805 Em Tertuliano, Liber apologeticus 4, e Tácito, Anais vol. v, pág. 44.
806 Por volta do ano 177 Celso (conforme o escrito de Orígenes, Contra Celsum) acusa os cristãos de se retirar da adoração geral a Deus, de não participar das festas e banquetes oficiais da idolatria, de tampouco querer prestar juramento ao imperador nem assumir cargos públicos. Além disso, imputa-lhes que blasfemam contra as imagens dos deuses, desprezam a ciência e se isolam e desligam das demais pessoas. Pedro escreve: “estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão” (1Pe 4.4).
807 Por volta do ano 150 Justino escreve ao imperador que, afinal, no mundo inteiro não haveria melhores auxiliares e aliados para o Império Romano do que os cristãos, que se atinham com tanto rigor à castidade, ao dever, à fidelidade e verdade, ao trabalho e amor ao próximo, à obediência às autoridades, bem como à intercessão por elas. Em torno do ano 197 Tertuliano escreve ironicamente ao procônsul: “É claro, nós, os cristãos, temos de ser condenados com toda a razão, porque que motivo temos de perturbar o dia dos votos solenes e da alegria festiva imperial (aliadas a muitas orgias!) por meio de castidade, moderação e probidade!” Depois ele argumenta que os criminosos repetidamente saem das fileiras dos não-cristãos, que participam hipocritamente da glorificação do imperador, e que eram inofensivos os cristãos, porque não podiam matar a ninguém, nem invejar, nem roubar, nem enganar. “Afinal, agora tendes menos inimigos, por causa da multidão dos cristãos”.
808 O primeiro foi Joaquim de Fiore (falecido em 1202), depois também os franciscanos, Dante, Lutero, Calvino, Bengel e muitos outros.
809 O primeiro foi Auberlen (1824-1864), que se tornou precursor para a exegese no Pietismo mais recente.
810 Nesse aspecto residia também o ponto-chave para que os batistas da Idade Média, inicialmente aliados de Lutero, Zwínglio e Calvino, designassem as grandes igrejas protestantes de “Babilônia”, p. ex., nos famosos “artigos de Schleitheim” de 1527. Menno Simons diz em sua disputação “Emigração do Papado”, de 1553: “Fugi da Babilônia” (citado por H. Fast, Der linke Flügel der Reformation, Bremen, 1962, pág. 158).
811 Entre esses exegetas Lohmeyer constitui uma exceção. Ele entende a Babilônia como um poder demoníaco e satânico ao lado da besta.
812 Comprovantes em Bill iii, pág. 816. Os rabinos relacionaram com Roma tudo o que o at profetizou sobre Babilônia, Tiro e Edom e que ainda não fora cumprido. Roma era para eles a quarta besta de Daniel. – Além do mais, a igreja antiga entendeu praticamente sem exceções o termo “Babilônia” em 1Pe 5.13 como criptônimo de Roma. Certamente tinha razão, pois não existe o menor indício de uma estadia de Pedro na Babilônia ou até de que tenha feito missão naquela cidade.