Estudo sobre Apocalipse 19:11
Apocalipse 19:11
Embora a nova unidade maior seja acrescentada sem grande realce lingüístico,923 depois dos evidentes versículos finais 9 e 10, não há como imaginar que ainda seja dada continuação ao bloco a respeito da Babilônia, já que a partir de agora não há mais nenhuma palavra sobre a Babilônia. Em contraposição, a nova série de visões evidencia-se como um desenvolvimento separado das visões das taças, a saber, em conexão direta com Ap 16.13,14,16. Naquele texto lia-se a respeito da preparação do anticristo e de seus exércitos. Agora desencadeia-se o último choque com o Cristo que se revela.
O novo tema é dado pela “abertura do céu” no fim dos tempos (cf. abaixo, o comentário ao v. 11) na história, ocasião em que a divindade de Deus e seu Cristo, a condenação de Satanás e seus asseclas, bem como a condição humana da pessoa aparecem definitivamente. A ênfase reside no caráter definitivo. Tudo chega manifestamente à estação final. É o que se ressalta sobre o destino das duas bestas, de Satanás, da morte, dos ímpios, mas igualmente de Cristo e seus servos.924
Essa quinta e última aparição de Cristo concentra em si elementos de todas as visões de Cristo anteriores no livro.925 Já por esse fato pode-se falar de uma revelação plena de Jesus. Corrobora essa afirmação também a grande quantidade de nomes com que se apresenta. Cristo vem com tudo que ele é e possui. “Haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2). Por fim, o auge da tensão transparece também pelo predomínio das formas verbais no presente.
Em contraposição aos trechos subsequentes da série, os v. 11-16 destacam-se pelo fato de que fornecem tão somente uma imagem parada. É verdade que alguns comentários se excedem em dramatizações, falam da “incursão tempestuosa de uma cavalgada” e de um “ataque de cavalaria” (p. ex., Frey). Essa, porém, não é uma forma de observar o texto com atenção, porque não percebe a característica fundamental dessa visão, da qual são derivadas as visões seguintes. Somente um indício indireto permite notar que o cavaleiro vem para a “terra”,926 a saber, que seus exércitos celestiais o “seguem” (v. 14). Primeiramente ele se apresenta com seu séquito ao espectador (diríamos hoje que posa para a fotografia). Permite que sejam reconhecidos seu contexto e seus acompanhantes, sua vestimenta e seu equipamento, e sobretudo a plenitude de seus nomes. Mostra-se como executor do fim. Somente depois ele passa a executá-lo parte por parte.
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Novamente chama a atenção, embora não seja mais surpresa depois do que já foi exposto,927 como o Ap aborda o tema da parusia. Refugiando-se de maneira preponderante em formulações do AT, ele quase não concede espaço real à fantasia. Submete o tema a uma disciplina santa.
Vi o céu aberto. Em comparação com diversas passagens semelhantes no Ap, resulta aqui uma intensificação definitiva (cf. nota 745). João torna-se testemunha da abertura irrestrita do mundo de Deus para a história humana. De certa maneira observa uma saída em massa por todos os portais e portas do céu.
Falar da abertura do céu pressupõe que estava fechado (cf. o comentário a Ap 4.1), anunciando-se agora o começo da redenção escatológica. Conforme Jo 1.51 precedeu-a uma história de contínuas aberturas do céu, que no entanto jamais exibiram tudo. Repetidamente Deus decidiu conter-se e exerceu paciência. Agora finalmente passa a vigorar de modo pleno.
E eis um cavalo branco. Depois de uma introdução solene como em Ap 4.1; 7.9; 14.1 João se apercebe inicialmente928 da montaria do Cristo, ressaltada ainda pelos v. 19,21.
Para o oriental é muito significativo sobre o que a pessoa está sentada, se sobre a terra (Ez 26.16), sobre a besta (Ap 17.3), sobre a nuvem (Ap 14.14), sobre um jumento (como Jesus na entrada em Jerusalém; Jo 12.14) ou, como aqui, sobre um cavalo branco. Esse detalhe já traça as coordenadas para o entendimento da visão.
O cavalo é uma montaria de guerra e de reis (cf. também Ap 6.2; 9.7,16, 17)929 e poderia constituir um contraste intencional para a entrada pacífica de Jesus sobre o jumento conforme Zc 9.9. Naquela ocasião, Jesus, pronto para morrer, veio submeter-se ao matadouro como Cordeiro. Por um lado, esse que está vindo agora é o mesmo, o que será comprovado por todos os detalhes seguintes, porém ele vem de outra maneira. Vem sobre o cavalo do triunfo (cor branca!) e, portanto, como Poderoso máximo. Note-se que ele não vem primeiramente buscar o poder para si, pois conforme Ap 5.7,9,12 já o recebeu com todas as honras, porém os que negam sua autoridade ainda persistem. Ele vem para afastar essas resistências com sua palavra de poder, para “arrasar com força e destruir com tudo, ao diabo e seu poder”.
A espada que sai da sua boca aponta, no v. 15, para essa palavra de poder. Acabaram-se as “palavras de graça” de Lc 4.22, esgotou-se o “acordo de cessar-fogo” da graça. Agora começa o juízo que não está mais limitado local e cronologicamente: o juízo final. O Senhor trocou a montaria do jumento ridicularizado pelo cavalo real.
Será que se cansou de ser Cordeiro? Acaso renega seu evangelho e a si próprio? Não, de acordo com Ap 6.16 sua ira final é “ira do Cordeiro”, de modo que ele decididamente permanece coerente consigo próprio.
Acontece que, conforme a Bíblia, Cordeiro e ira, ou evangelho e ira, de fato não são grandezas opostas. Essa verdade provavelmente jamais será captada por inteiro numa dogmática humana. Contudo, no juízo final Jesus estará presente com toda a sua graça evangélica. O pecado da cor de sangue ficará branco como a neve. Há somente um único motivo real para a condenação: blasfemar contra a graça e o Espírito da graça (Mc 3.29; Hb 10.29). A graça leva a si mesma a sério. No entanto, a blasfêmia é a natureza do anticristo (Ap 13.6).
Do mesmo modo como a quantidade de diademas (v. 12), a plenitude de nomes do Senhor aponta para a revelação plena de seu poder e de sua natureza. Desde o princípio ele se apresenta com eles. Não tem de lutar mais uma vez por esses nomes, contudo fará calar agora os que contestam sua vitória.
O primeiro dos quatro930 nomes referidos é Fiel e Verdadeiro, uma forma de reproduzir o termo hebraico “Amém”. Conforme Ap 3.14 Jesus já ostentava esse nome desde a Sexta-Feira da Paixão. Em sua morte sacrificial ele comprovou sua fidelidade de testemunha, por meio da qual empenhou tudo de si em prol de Deus e dos humanos. Na sua parusia ele aparece como o mesmo. Não tolera que Deus seja blasfemado nem que os seres humanos de Deus sejam torturados e massacrados. Contudo, a novidade é que sua infinita verdade e fidelidade passam a aliar-se também ao poder infinito, ao poder santo, que abala, arrasa e consome, e que dominará sobre tudo. Um evento extraordinário!931
E julga… com justiça. Essa formulação significa, de acordo com muitas referências do AT:932 estabelecer o direito em juízo, precisamente em favor dos indefesos e oprimidos e contra os transgressores do direito. Essa é a razão por que o AT repetidamente anuncia com júbilo o juiz universal. Ele se apresenta como promotor do direito,933 que cria salvação e condena o ímpio. O aspecto negativo está sendo ressaltado aqui pela segunda expressão: e peleja. Aquele que no passado expressamente não foi enviado para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo 3.17), recebeu agora autoridade para julgar (Jo 5.27). O fato de que o Salvador é Juiz retira o fundamento de qualquer apelação contra seus veredictos. Diante dele não se pode mais fugir para outro alguém (cf. o comentário a Ap 6.16).
Apesar do v. 15, Holtz e Rissi relacionam ambas as expressões, a saber, o julgar como também o pelejar, com a igreja.934 Alegam o conceito do juízo que restaura a salvação no AT, segundo o qual as sentenças de Deus constituem um verdadeiro benefício, uma graça, sob a qual toda a vida torna a se levantar. Contudo, será que um Juiz justo é um benefício para aqueles que odeiam o direito e o justo? A vinda do Filho do Homem seria tão salvadora, p. ex., para o juiz iníquo e seus asseclas em Lc 18.2-8 quanto para a viúva sofredora, ou não seria muito antes arrasadora? Faz pouco sentido declarar abstratamente que o vocábulo “julgar” na Bíblia é uma expressão de salvação,935 ao invés de inseri-la nos respectivos contextos e procurar ali seu sentido.
Numa época de narcisismo universal, na qual as pessoas consideram a paixão por si próprias como amor de Deus,936 é preciso resgatar a palavra bíblica do juízo. O amor de Deus expia o pecado, perdoa o pecado, mas igualmente julga o pecado, a saber, aquele pecado que nós, apaixonados por nós mesmos, nos perdoamos, e do qual, dessa maneira, nos tornamos duplamente culpados.
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Apocalipse 19:11
Notas:
923 É verdade que o “e vi, e eis” tem uma conotação bastante solene (cf. o exposto sobre Ap 4.1; 7.9; 14.1) e marca enfaticamente o ponto de inserção. Além disso, evidencia-se uma cesura formal no fato de que depois do “e ouvi” (Ap 18.4; 19.1,5,6) passa a ser dito novamente “e vi” (Ap 19.11,17,18; 20.1,4,11,12; 21.1,2). Por isso não leva a nada deixar seguir simplesmente o tema de Ap 19.1-10 e falar agora da “vinda do noivo” (p. ex., Langenberg). Dessa forma encobre-se a nova seção com os conceitos da anterior, deixando-se de notar o novo enfoque.
924 É característico para o segundo apêndice a repetida menção do lago de fogo (Ap 19.20; 20.10, 14,15; 21.8). Em lugar dele, o terceiro apêndice traz a ideia de que haverá os que ficam “de fora”, em Ap 21.27; cf. Ap 22.15.
925 Do cap. 1 os olhos flamejantes e a espada do Juiz, do cap. 5 o sangue do Cordeiro, do cap. 12 o cajado do Pastor, do cap. 14 a lagaragem.
926 Essa correlação é formulada diretamente no texto paralelo de Ap 14.16.
927 Cf. a observação preliminar a Ap 6.12-17 e outras vezes mais.
745 Holtz (pág. 168) constata a seguinte intensificação: em Ap 4.1 abre-se a porta do céu, em Ap 11.19 o próprio templo, em Ap 15.5 o templo na sua acepção mais profunda como tenda da aliança, e finalmente em Ap 19.11 abre-se o céu como um todo.
928 Repetidamente ele descreve primeiro o contexto de um personagem que surge na visão, e depois o próprio personagem, p. ex., em Ap 1.12; 4.2,4; 6.2-8; 14.14; 20.4.
929 Portanto, como a nuvem da parusia, o cavalo constitui um símbolo de poder, cf. Ap 1.7; 14.14 (nuvem branca como aqui cavalo branco!); cf. Ap 11.12.
930 O próprio número quatro torna a ser significativo. Ocorrem também quatro nomes na passagem-chave para Satanás (Ap 12.9), e de forma análoga para a Babilônia (Ap 17.5).
931 Romano Guardini medita sobre essa mudança: quanto mais a verdade for verdade, tanto menos ela se mescla com meios de pressão, tanto menos ela descarta a liberdade do espírito. Não precisa do mínimo teor de violência para ser verdadeira. É verdadeira em si. A violência apenas a encobriria. É por isso que ela se arma unicamente da verdade e no mais permanece indefesa. Por isso também é tão fácil deixá-la de lado e ridicularizá-la. Isso vale de uma maneira especial, pois, para a verdade sagrada. Por ser a mais elevada, ela precisa ser, segundo aquela lei, a menor em poder. Foi por isso que o Verdadeiro veio na fraqueza da figura de servo. Qualquer outra figura teria tornado suspeito o “Fiel e Verdadeiro”. Na parusia, porém, verdade e poder hão de unificar-se, e a verdade finalmente valerá tanto quanto é verdadeira. Com isso cumpre-se um dos mais profundos anseios do espírito (Guardini, Der Herr, Leipzig 1956, pág. 640-641).
932 Sl 72; 96.13; 98.9; Is 11.4.
933 Sl 7.9; 9.9,20; 58.11; 76.8-10; 82.8; 94.2 e sobretudo nos salmos reais (Sl 96–99).
934 Ap 2.16 não pode ser aceito como texto paralelo, porque ali o “guerrear” de Cristo estaria sendo dirigido justamente contra pessoas que decaíram da igreja.
935 Essa mudança de sentido por princípio corresponde a uma linha de pensamento grego. Platão (427-347 a.C.) escreve: “Quem sofre castigo, experimenta um benefício”. Platão foi sumamente venerado tanto pelo “pai da reconciliação universal” na Antiguidade, Orígines, quanto pelo renovador dessa doutrina no século xix, Schleiermacher, sendo flagrante que influenciou a ambos (cf. nota 1023).
936 “Não sabemos o que é o amor. Temos de aprendê-lo, aprendendo a reconhecer a Deus. Seu amor é outro que o amor humano. E teremos de nos manter abertos para a circunstância de que ele contradiz as nossas concepções de amor. Então não deveremos reclamar… A raiz da fé cristã é a obediência. Sob esse aspecto todos nós nos encontramos na luta da carne contra o Espírito. A carne pede um ‘Deus bonzinho’, o Espírito nos anuncia a palavra. Jesus Cristo reconheceu na cruz o amor eterno de Deus, ao ser obediente. Obediência e fé…, é esse o caminho, no qual o amor de Deus se revela a nós como o amor que, em Cristo, elege e rejeita” (K. Barth, Gottes Gnadenwahl, reimpresso por volta de 1945, p. 50).