Estudo sobre Apocalipse 19:17-21
Apocalipse 19:17-21
É evidente que esses versículos formam um conjunto, uma vez que são emoldurados pela referência aos abutres. Vários comentaristas lhes dão o título: a batalha de Armagedom. É correto ligar o texto à visão da sexta taça (Ap 16.14,16). Contudo, lá o Armagedom é tão somente ponto de reunião dos exércitos anticristãos. Não existe nenhum texto bíblico a respeito de uma batalha em Armagedom. O embate com Cristo não é situado em nenhum local, nem na visão da sexta taça, nem aqui.948
Então, vi um anjo posto em pé no sol, e clamou com grande voz, falando a todas as aves que voam pelo meio do céu (“que voam no zênite”). Ele assume uma posição visível de todos os lugares e do qual sua voz pode ser ouvida em toda parte. Visa convocar o maior número possível de aves, de tanta carne que há para comer. Pois as aves que voam no zênite são, ao contrário dos pássaros que voam baixo, as águias e os urubus. Novamente constituem a sombria imagem oposta da águia que igualmente voa pelo zênite, em Ap 8.13; cf. 4.7; 12.14, que não realiza esse serviço inferior.
Vinde, reuni-vos! grita ele aos abutres. Uma reunião contrária à dos exércitos anticristãos do v. 19, da qual esses, porém, não têm a mínima noção. Ficariam apavorados se recebessem essa visão. O “aproveitamento” de seus cadáveres já está organizado. Tão destituído de chances é seu empreendimento, antes que sequer se ponham em marcha. Em todos os tempos se observou que os abutres, cheios de premonição, circulam bem antes da morte sobre as cabeças de suas vítimas. “Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres” (Mt 24.28). Do mesmo modo esses exércitos beligerantes já estão marcados pela morte, a saber, por uma morte execrável, sem exéquias (cf. o exposto sobre Ap 11.9).
As aves são convocadas a se reunir para a grande ceia de Deus. No texto paralelo de Ap 16.14 constava “grande dia de Deus”. Na acerba linguagem metafórica dos profetas o “dia do Senhor” às vezes aparecia como uma festa de matança seguida de banquete (Jr 46.10; 50.27; Ez 39.17; cf. qi 37). Para nós esse modo de expressão pode causar estranheza. Contudo, inicialmente resulta certo abrandamento pelo fato de que se trata de discurso proverbial, cujos pormenores sabidamente não são mais percebidos em sua totalidade. Além disso, porém, é importante considerar precisamente nesse momento que o anticristo se apresenta como “besta” (v. 19), i. é, ele constitui a fonte de toda a bestialidade. É por meio dele, não pelo Cordeiro, que a desumanidade entra no mundo. A terrível linguagem jurídica realça essa circunstância com torturante meticulosidade. Para que comais carnes de reis, carnes de comandantes (“generais”), carnes de poderosos (“fortes”), carnes de cavalos e seus cavaleiros, carnes de todos, quer livres, quer escravos, tanto pequenos como grandes (listagens semelhantes do mundo hostil a Deus também em Ap 6.15; 13.16.).
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A mobilização de tropas anticristãs, da qual João ouviu em Ap 16.14, surge agora diante de sua visão profética. E vi a besta e os reis da terra, com os seus exércitos, congregados para pelejarem contra aquele que estava montado no cavalo e contra o seu exército.949 Sobre essa questão, cf. também Ap 17.14. Por mais que estejam loucos por essa luta – ela não chega a ser executada. Não se pode falar de uma verdadeira “batalha do Messias”, como diz Bousset. A poderosa apresentação das tropas transforma-se num ato jurídico.
Muito subitamente o anticristo aparece numa forma passiva. Mas a besta foi aprisionada, e com ela o falso profeta que, com os sinais feitos diante dela, seduziu aqueles que receberam a marca da besta e eram os adoradores da sua imagem. Como que agarrados por um braço irresistível, o comandante e seu agitador são aprisionados diante de suas tropas e, sem resistência e sob os olhares de todos, levados embora como trapos velhos.
Já se falou da parusia em Ap 1.7. Basta que os inimigos de Deus vejam o Senhor, e logo gritam de pavor. Então ouvem sua palavra – a ênfase no texto da parusia em Ap 19.11-16 concentra-se nesse aspecto – e são como que incapazes de discordar ou reagir. O Senhor vindouro não precisa mais vencer nenhuma batalha. Visto que na Sexta-Feira da Paixão ele já derrotou totalmente o inimigo, não há mais nenhum adversário que ele ainda tivesse de subjugar. Todos eles já estão refutados e expulsos de suas posições como condenados (Ap 12.9). Agora tão somente é preciso acionar a execução da sentença. Para isso basta uma ordem breve. “Vencido cairá, por uma só palavra” [Lutero, Castelo Forte, Cantor Cristão Hino 323, Juerp, tradução de J. Eduardo von Hafe].
Os dois foram lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre. Nitidamente os dois são separados dos demais no v. 21 e, como causadores, julgados imediata e definitivamente. Eles não são enviados primeiramente ao Hades, ou seja, ao mundo dos mortos, que não é um lugar de permanência definitiva para ninguém (Ap 20.13), mas sim uma espécie de prisão para investigações. São lançados diretamente ainda vivos dentro do lago (“charco”) de fogo950 que arde com enxofre.951 Repetidas vezes o Ap fala de modo inolvidável desse lugar de perdição (também em Ap 20.10,15; 21.8). Em todos os casos afirma-se que alguém entra nele, mas em nenhum caso, que alguém sai dele. Em Ap 20.14 encontramos a equação: lago de fogo = segunda morte (cf. excurso 19).
Os restantes foram mortos com a espada que saía da boca daquele que estava montado no cavalo (cf. o exposto sobre o v. 15). Em contraposição ao v. 20, expressa-se aqui uma certa atenuação. É verdade que os restantes morrem no encontro com o Juiz. Sua vida, vivida na hostilidade contra Cristo, termina tão ignominiosamente quanto possível. E todas as aves se fartaram das suas carnes. Por outro lado, há pouco, no versículo precedente, enfocou-se mais uma vez a sedução pela besta. Portanto, muito do que fizeram em vida foi obra da besta. Em última análise, porém, não são julgados segundo as obras da besta, mas segundo suas próprias (Ap 20.12).
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Apocalipse 19:17-21
Notas:
948 Considerando que por trás desse texto estão os capítulos de Ez 38,39, entendidos como antimessiânicos já no judaísmo (cf. o exposto sobre Ap 6.2), poderíamos pensar numa batalha “nos montes de Israel” (Ez 38.8; 39.4). Contudo, falta qualquer ponto de referência para isso. De forma geral o Ap diverge de Ez: em Ez 39.4 o líder Gogue também deverá ser devorado, mas aqui a besta expressamente não o será. Em Ez 39.17 o profeta deve chamar os abutres, aqui é um anjo que o faz. Em Ez 38.11 trata-se de um assalto ao Israel pacífico, aqui estão contrapostos dois exércitos, um são os anjos, não os israelitas.
949 A forma “exército” no singular não deveria ser identificada com o “pequeno rebanho”, que se defrontaria com a imensa superioridade numérica dos “exércitos” (plural!). No presente texto o singular dificilmente possui alguma importância, visto que no v. 14 é substituído pelo plural.
950 Em grego limné pode significar “lago” (p. ex., para o Lago de Genezaré) ou também “tanque” (p. ex., para o tanque de Betesda). Não obstante, parece que na presente locução está afastada a idéia da água. O vale do Hinom estava permanentemente sem água (cf. abaixo). Assim, preferimos a tradução mais tradicional de “charco”, que significa um pântano ou lodaçal.
A expressão charco de fogo era conhecida no mundo do Ap. O judaísmo referia-se com ela à geena (Bill iv 2, p. 1077; cf. “geena de fogo” em Mt 5.22 [teb, bj]; 18.9 [teb, bj]), a forma grega da expressão hebraica para “vale do Hinom” (Hinom é um sobrenome). Esse vale, que se estendia pela muralha ao Sul de Jerusalém, já era mal-afamada desde os tempos mais antigos, porque ali os israelitas certa vez ofereceram sacrifícios de crianças a Moloque (2Rs 16.3; 21.6). Mais tarde, até os dias de hoje, a baixada maldita serviu como depósito de lixo, dejetos e carniça. Por isso o portão desse lado da cidade é chamado de “portão do esterco”. De acordo com a tradição, o lixo era incendiado. Consequentemente, o local com fumaça incessante era considerado como o lugar mais abjeto do mundo em todos os sentidos. Todo judeu o entendia perfeitamente. Desde o século ii a.C. o nome era usado para designar o inferno escatológico de fogo. O termo alemão Hölle [em português: “inferno”] é derivado da deusa germânica dos mortos de nome Hel, de modo que Hölle tinha originalmente o mesmo sentido que o termo grego hades, a saber, o mundo dos mortos. No entanto, o cristianismo reinterpretou o termo Hölle/inferno como lugar de castigo no fim dos tempos, de modo que hoje ele não pode mais servir como tradução de hades. Infelizmente a revisão da Bíblia de Lutero de 1956 não levou esse fato em conta, de maneira que a diferença entre o reino dos mortos e o lugar de perdição permanece nebulosa para leitores de hoje.
951 A partir da destruição de Sodoma e Gomora, o enxofre, conhecido desde tempos antigos na região do rio Jordão, aparece repetidamente na linguagem jurídica: Is 30.33; 34.9; Ap 9.17; 14.10. Também a besta em Dn 7 é precipitada no fogo.