Estudo sobre Apocalipse 19:5-8
Apocalipse 19:5-8
Talvez seja um servo908 nos degraus do trono que conduz a liturgia celestial, convidando agora um novo grupo a aderir ao aleluia. Saiu uma voz do trono, exclamando: Dai louvores ao nosso Deus909 todos os seus servos, os que o temeis. A designação dupla do povo de Deus como aqueles que servem a Deus e o temem tem sua origem no AT (cf. Sl 134.1; 135.1; cf. o exposto sobre Ap 11.18). Outra dupla de termos novamente forma o número quatro, que muitas vezes já serviu no Ap para abranger a totalidade: os pequenos e os grandes (cf. nota 516).
A resposta não tarda. Então, ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de muitas águas e como de fortes trovões.910 Essa descrição tríplice da voz deles, que assinala um ponto culminante como em Ap 14.2, reúne a força de todos os elementos. A totalidade dos servos de Deus, que em qualquer tempo e lugar serviram a Deus, canta, agora não mais com voz quebrada e lamentosa, porém com voz retumbante: Aleluia! Pois reina (“tornou-se Rei”) o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso. Ao sentido desse grito de vitória e de seus paralelos no Ap está dedicado o excurso 8. Quanto ao título Todo-Poderoso, cf. nota 137.
Assim como o coro de anjos desenvolveu a vitória de Deus, embora para seu lado negativo, a saber, como subjugação da Babilônia (v. 2), assim também faz agora o coro dos servos de Deus, a saber, para o lado positivo, ou seja, como bodas do Cordeiro (v. 7).911
Alegremo-nos, exultemos,912 estimulam-se mutuamente. Não deverá ser um triunfo feio, pois de imediato é dito: e demo-lhe a glória.913 Porque são chegadas as bodas do Cordeiro.
No decorrer do tempo a expressão bodas do Cordeiro tornou-se corriqueira em círculos cristãos, contudo não tinha precedentes quando João a escreveu e não era menos inaudita que “ira do Cordeiro” em Ap 6.16. O AT não conhece nem um casamento914 de Israel com Deus nem com um Cordeiro de Deus. Sem dúvida o “matrimônio” era uma metáfora recorrente para a aliança de Deus com seu povo (primeiro em Os, depois em Jr, Ez e Is). Nessa ilustração, porém, evitava-se cautelosamente a união conjugal como ponto de comparação, a fim de não ser de forma alguma comparável às “núpcias sagradas” dos cultos de fertilidade gentílicos (cf. o comentário a Ap 2.14). Também o judaísmo tardio conscientemente guardava distância da atividade erótica dos cultos.915 Contudo, surge agora a palavra “bodas”. Os rabinos ensinavam que no monte Sinai Moisés, como condutor da noiva, teria encaminhado a noiva ao noivo.916 Compreendiam a lei como contrato matrimonial de Deus com Israel, e após a ressurreição dos mortos o Messias conduziria, como segundo Moisés, o povo de Israel para as verdadeiras bodas. Logo Jesus sabia que seus ouvintes estavam preparados quando usava parábolas e metáforas para lhes falar do banquete messiânico das bodas.
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Entretanto, em Jesus dois aspectos saltam à vista. O Messias não é o condutor da noiva, mas o noivo, sendo que a noiva passa para segundo plano.917 Várias vezes lemos nos evangelhos a respeito de núpcias sem a menção da noiva.918 Assim, como no AT, afasta-se novamente da comparação a relação conjugal. Tão-somente a alegria das bodas vale como ponto de comparação. Ela determina toda a comunhão e preenche todos os convidados. Sob esse aspecto tampouco a noiva é algo especial, mas apenas uma entre muitos, de maneira que não carece de uma menção especial.
Precisamente esse, porém, constitui também o sentido da menção das bodas em nosso versículo: alegria sobre alegria, alegria efusiva pela salvação! Naturalmente a noiva está sendo mencionada aqui (assim como em Ap 21.2,9). Contudo já no v. 9 a figura muda, e os fiéis aparecem, ao invés de como noiva, como convidados das bodas. Uma vez que o ponto de comparação é a alegria, esse fato não representa uma ruptura, pois a alegria une a noiva e os convidados.
A menção da noiva do Cordeiro é importante acima de tudo como imagem oposta à prostituta Babilônia. De um modo diferente, no entanto, ela também se contrapõe à mulher de Ap 12.1. Aquela mulher que clama simbolizava a igreja em sua aflição atual, a noiva porém representa-a na alegria futura. Em decorrência, a tônica continua sendo a alegria, exultação por tanta salvação, por tanta paz e vida.
Sua esposa919 a si mesma já se ataviou (“se preparou”). Nenhuma noiva sem ornamento (Ap 21.2)! O fato de que ela se enfeita a si mesma também não é negado pelo versículo seguinte, embora passe a ser iluminado mais profundamente. Pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo (“batista”), resplandecente e puro. De três maneiras a ausência de cor em suas vestes é descrita. Por si só a batista não é saturada de cor como a púrpura ou o escarlate da prostituta Babilônia em Ap 17.4, mas um tecido branco de linho. Expressamente se diz que é puro, ou seja, sem cor e manchas. Além disso, tem uma claridade brilhante, ofuscante. Tem a característica da luz transfigurada, como também a vestimenta dos anjos em Ap 19.14.920
João explica, por meio de uma intercalação: Porque o linho finíssimo (“a batista”) são os atos de justiça dos santos. Eles contrastam com os atos de injustiça da prostituta (Ap 18.5).921 Entretanto essa auto-ornamentação foi possibilitada à noiva através de uma dádiva divina. Pois lhe foi dado vestir-se, de sorte que ela não se veste de méritos próprios, mas sim da clemência divina. No presente texto a exegese deve considerar Ap 3.18. Segundo essa palavra, Jesus já concede na época atual vestes puras e uma vida santificada. Sua clemência hoje não apenas consiste de boas palavras, mas de força para boas ações. É por isso que a ação possibilitada pela graça não honra o receptor, mas sim o Doador. Assim a noiva se apresenta ataviada. Ela se enfeitou a si mesma, porém não a partir de si mesma. Ela constitui algo “para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.6,12,14).
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Apocalipse 19:5-8
Notas:
908 Não será a voz do Cordeiro (contra Bousset), porque o Cordeiro dificilmente se une aos demais com a expressão “nosso Deus”.
909 Assim também a LXX traduz a expressão hebraica “Halleluja“ (v. 1).
516 Essa é uma descrição muito frequente para englobar a todos, cf. Michel, Ki-ThW vol. iv, pág. 651,54ss; no Ap, p. ex., 13.16; 19.5,18; 20.12.
910 Uma caracterização semelhante também ocorre para a voz de Deus (Ez 1.24), de Cristo (Ap 1.15), dos anjos (Ap 14.2; 19.6; Ez 1.24; 10.5) e até dos ímpios (Is 17.12; cf. Holtz, p. 124, nota 5). A expressão em si, portanto, é neutra. Aqui o conteúdo do cântico confirma que se deve pensar na igreja.
137 Na lxx, “Todo-Poderoso” é palavra que substitui o antigo e recorrente título de Deus “Senhor dos exércitos” (279 vezes no at). Era assim que Israel chamava seu Senhor quando tinha em vista a destruição dos deuses contrários e, sobretudo, a vitória final. Cf. também a nota 132.
911 A vinda da ira (Ap 11.18; 14.7) está contraposta à vinda das bodas (Ap 19.7). Ambos os lados são inseparáveis.
912 Estímulos análogos em Ap 12.12; 18.20, cf. Ap 11.10. A dupla de palavras também ocorre em Mt 5.12; 1Pe 4.13 e nos salmos.
913 “Dar glória” ocorre, no mais, sem o artigo: Ap 4.9; 11.13; 14.7 e 16.9.
914 Na LXX o termo ocorre unicamente em Gn 29.22; Et 2.18; 9.22 e com frequência apenas nos escritos apócrifos [deuterocanônicos].
915 Cf. Holtz, p. 188, nota 4.
916 Bill i, p. 517,970.
917 Cristo como noivo: Jo 3.29 (lá também os discípulos como “noiva”); cf. 2Co 11.2.
918 Como, p. ex., Jo 2.1-12; Mc 2.19; Mt 22.1-14; 25.1-13.
919 Conforme o direito matrimonial semita, a noiva podia ser chamada de “mulher”, “esposa” a partir do noivado (assim também em Ap 21.9).
920 Cf. Mt 28.3; Mc 16.5; Jo 20.12; At 1.10; Ap 4.4.
921 Schlatter explica esses atos de justiça como os juízos de Deus em favor dos santos, por meio dos quais ele torna evidente o direito deles, até então tão desentendido. Conforme Frey eles são as sentenças de Deus, por meio das quais os santos são justificados. Contudo, essas leituras dificilmente correspondem ao sentido singelo do presente texto.