Estudo sobre Apocalipse 20:11

Estudo sobre Apocalipse 20:11



Sobre esse lugar de desgraça, que é atestado em Ap 17.8,11 com o nome “perdição” (rc, nvi, teb, bj) e é igualado em Ap 20.14; 21. 8 com a “segunda morte”, M. Rissi1000 escreve: “Também no presente caso devemos pensar no amor educador de Deus, que disciplina e deixa cair nos abismos da condenação e da expatriação divinas, a fim de, com irrestrita clemência, conduzir a criatura rejeitada ao arrependimento e, assim, a ser nova criação”. H. Schumacher sente que a idéia de que também Satanás “um dia glorificará o Cordeiro e o Pai” é quase “audaciosa demais”, mas não obstante vê-se forçado a essa expectativa por meio da Escritura: “E mesmo que ele seja o último de todos os que retornam ao lar; mesmo que ele tenha de sentir o juízo Deus com uma gravidade e duração como nenhuma outra criação… não se pode depreender da Escritura que o fogo preparado para ele… justamente não teria nenhuma finalidade de redenção.”1001 Também W. Michaelis considera o castigo no charco de fogo como “um prazo extraordinariamente longo, mas apesar disso delimitado”.1002

Essas manifestações fazem com que abordemos mais uma vez precisamente algumas expressões da presente passagem (Ap 20.10), e com que no decorrer do comentário fiquemos de olho na questão da reconciliação universal.
 
A favor de sua interpretação Schumacher apresenta o conceito “tormento”, “atormentar”. Primeiramente é importante para ele a origem da palavra.1003 O termo básanos era considerado um estrangeirismo no grego, sendo provavelmente de origem egípcia. Talvez sua raiz tenha parentesco com o “basalto” áspero, por meio do qual quem inspecionava moedas examinava a autenticidade de ouro e prata, friccionando-os. Portanto, originalmente o verbo traduzido com “atormentar” referia-se ao tratamento dado a um objeto de modo que algo fosse trazido à luz. Esse sentido persistiu parcialmente quando passou a ser usado para pessoas. A tortura, por meio da qual se visava extorquir declarações no inquérito, ou também as medidas de coerção, com as quais se arrancava dinheiro de um devedor, eram chamadas de básanos; o algoz era chamado basanistés (Mt 18.34).

Entretanto, será que o alvo a ser atingido pela tortura é a salvação do torturado? Acaso um tratamento assim é movido por uma intenção de bênção para com o supliciado? Era exatamente esse aspecto que cabia comprovar, e justamente esse momento de salvação não perfaz o conteúdo do vocábulo. Além disso, a história desse termo não parou nesse ponto. Básanos passou a designar simplesmente um tratamento físico ou psíquico duro,1004 sem a conotação de forçar declarações ou confissões. A LXX recorreu ao termo com frequência, sobretudo no livro de Ezequiel, tão próximo do Ap, para descrever o tormento no fim dos tempos e no além. De forma alguma os textos expressam a idéia com intenção salvadora.

 
A segunda expressão em Ap 20.10, que Schumacher (e Michaelis e E. A. Knoch de forma ainda mais determinada) interpretam no sentido de uma limitação do tormento, é a fórmula “até os tempos dos tempos”.
 
Michaelis vê no NT um esquema de dois éons [eras], a saber, o éon presente e o futuro. Contudo, o éon futuro não se perde no infinito, mas constitui um tempo delimitado, ao qual se segue outro período de tempo, que porém não deveria ser mais designado de “tempo” (pág. 42). O éon futuro limitado estaria subdividido em unidades menores, igualmente denominadas de “éons”, de sorte que o éon futuro se compõe de certa forma dos “éonzinhos” vindouros. Esses períodos parciais seriam novamente subdivididos, e também essas subdivisões teriam o nome de “éons”, segundo Michaelis. Em decorrência, “o éon vindouro” constitui uma definição coletiva para um sem-número de períodos pequenos e mínimos. De acordo com essa concepção, a afirmação de que Satanás está sendo torturado “até os éons dos éons” expressa que ele está sendo castigado durante todas as subdivisões menores do éon futuro. Depois disso, porém, é libertado.
 
E. A. Knoch chega ao mesmo resultado, porém explica a expressão de maneira diferente.1005 Assim como nós falamos do “livro dos livros” ou da “festa das festas”, assim também deveríamos entender os “éons dos éons”. Afinal, seriam os éons principais. Knoch não se acanha de determinar seu número. Segundo ele, dois éons se destacam de cinco existentes, como “os éons dos éons”, a saber, o éon presente e o primeiro éon futuro. Logo, no éon seguinte Satanás não seria torturado.
 
De fato ambos os sistemas não podem ser depreendidos da expressão “os éons dos éons” e causam impressão de certa complexidade. Quando consideramos que a expressão é documentada antes e depois de Cristo, entre judeus e gentios, em Paulo, Pedro, João e na carta aos Hebreus, de sorte que servia para a comunicação geral (cf. nota 133), tão somente podemos considerar impossíveis as leituras especiais de Michaelis e Knoch. No fundo são também apresentadas sem referências bíblicas, formadas a partir dos conceitos de intérpretes modernos.
 
Schumacher é de longe mais cauteloso. Ele constata acuradamente que o plural simples ou reduplicado de éon deve ter, na “grande maioria das passagens”, um sentido cronologicamente ilimitado (pág. 142). Depois prossegue assim: “Contudo também ocorrem exemplos para o uso cronologicamente aprazado”, citando Lc 1.33 (plural simples “até os éons”); Ap 11.15; 22.5. Esses três textos tratam da soberania de Cristo, que, afinal, teria um término conforme 1Co 15.25: “Ele tem de governar como Rei até que deponha a seus pés todos os seus inimigos” (tradução do autor). Depois ele entrega seu domínio ao Pai. Schumacher deduz disso, à pág. 143, literalmente “que o senhorio de Cristo um dia terá um fim”.1006

Mantendo essa declaração na memória, leiamos o primeiro dos três exemplos, Lc 1.33: “ele reinará para sempre (‘até os éons’) sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim”. Será que se pode oferecer justamente essa passagem como prova de que o senhorio de Cristo “um dia terá um fim” e que a fórmula dos éons está sendo usada, no presente texto, como “cronologicamente aprazada”? Nesse ponto Schumacher deve ter cometido um equívoco.
 
Aliás, não se forma uma contradição com 1Co 15.25, porque Paulo diz com muita exatidão o que um dia acabará no tocante ao senhorio de Cristo. É a incumbência de luta, que constitui um determinado período do senhorio de Cristo, ou seja, a subjugação de todos os inimigos. Essa incumbência não o ocupará durante toda a eternidade. Mas o Senhor Jesus Cristo também não tirará nada para si quando terminar essa etapa com sucesso, mas se colocará de novo humildemente à disposição de Deus, “para que Deus seja tudo em todos” (1Co 15.28). A linha de Fp 2.6-8 não se interrompe nem na parusia. Esse é o testemunho peculiar de Paulo em 1Co 15.25. De modo algum Paulo visa ensinar que Cristo um dia deixaria de reinar e passaria a uma condição de não reinar. É nesse sentido genérico que há pouco o primeiro dos três exemplos referidos por Schumacher (Lc 1.33) ressaltou: “Seu reinado não terá fim”. Desse senhorio cronologicamente ilimitado de Cristo ao lado de Deus fala também o segundo exemplo, Ap 11.15: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor (conforme o Sl 2 deve ser referido a Deus!) e do seu Cristo (‘Ungido’), e ele reinará (com Deus!) pelos séculos dos séculos (‘até os éons dos éons’)”. Jamais, em toda a eternidade, Deus tornará a enviar o Cordeiro do trono. A entronização e a soberania do Cordeiro não têm prazo. É com essa declaração que culmina a seção narrativa do Ap (22.5). É incompreensível que Schumacher cite esse versículo como terceira prova de um sentido cronologicamente limitado da fórmula dos éons.
 
Ainda que não nos tenha sido apresentada nenhuma referência em que o plural duplicado de “éon” expresse um prazo, talvez Ap 20.10 fosse a primeira? Ela se encontra numa certa relação com Is 34.10, onde se afirma sobre a terra de Edom: “subirá para sempre a sua fumaça; de geração em geração será assolada, e para todo o sempre ninguém passará por ela”. Sem a menor dificuldade pode-se deixar claro que hoje essa faixa de terra não queima mais e está novamente habitada. A lxx já atenua o texto, traduzindo que Edom ficaria deserto por “longo tempo”. Com base nessa e em outras passagens semelhantes do AT, referentes ao fogo inextinguível, Schumacher afirma que se trata de um fogo de castigo perene, a saber, que “não se apaga enquanto todo o trabalho não estiver realizado, até que o respectivo alvo de Deus for atingido” (pág. 151). Trata-se da ideia da execução cabal, não da infinitude cronológica. Esse sentido, introduzido em Ap 20.10, produz novamente o aprazamento do castigo de Satanás.
 
Em inúmeros textos já fomos impactados pelo fato de que o próprio João é profeta e formula sua própria palavra. Também no presente caso ele de forma alguma copiou, uma vez que em Is 34.10 já falta a formulação plena “até os éons dos éons”. Mas é justamente ela que está em questão. Em João ela vem a ser uma expressão consolidada, que ele faz ressoar doze vezes sem modificações, sempre em locais especialmente importantes. Através desta homogeneidade ele interliga essas passagens entre si, e não deveríamos ouvir uma sem atentar para as demais.
 
Submetemo-nos à impressão compacta dessas doze afirmações. De acordo com o Ap, portanto, que é que dura “até os éons dos éons”? De acordo com Ap 4.9,10; 10.6; 15.7 é que Deus está vivo, de acordo com Ap 1.18, que Cristo está vivo. De acordo com Ap 5.13 é a glorificação de Deus e do Cordeiro, de acordo com Ap 7.12 é a glorificação de Deus, conforme Ap 1.6 é a glorificação de Cristo, de acordo com Ap 11.15 é o senhorio de Deus e do Cordeiro, e conforme Ap 22.5 é a soberania sacerdotal dos servos de Deus. Essas são dez passagens inequívocas, que praticamente perderiam a força de expressão se introduzíssemos nelas um prazo. Não é possível que expressem outra coisa que não duração infinita.
De modo enfático informa-se exatamente a mesma duração para o juízo sobre a trindade satânica (Ap 19.3; 20.10), e conforme a passagem sem artigo em Ap 14.11 também para os adoradores da besta. Ademais, não constatamos nenhum indício de que o sentido desse “refrão” seja oscilante. Ele possui uma grande e intencional força e nitidez litúrgica. Eventualmente cabe-nos mudar nossas ideias, mas não alterar o texto. Ele declara com toda a nitidez: a condenação de Satanás no charco de fogo dura tanto tempo quanto a vida e o reinado de Deus e do Cordeiro e quanto sua glorificação pelos servos de Deus. Jamais o charco de fogo se abrirá na direção de um novo mundo de salvação. Justamente os capítulos da consumação (cap. 21,22) permitem perceber a falta de qualquer indício dessa possibilidade. Pelo contrário, excluem-na em definitivo.




Notas:
1000 M. Rissi, Was ist…, pág. 127. Cf. também p. 111: “A morte é redimida de um poder angelical destrutivo e hostil a Deus para tornar-se um poder benigno e pacífico”.

1001 H. Schumacher, Allversöhnung, pág. 168.

1002 W. Michaelis, Versöhnung des Alls, pág. 110-111. Sobre o uso que Michaelis faz de Ap 21.5 como argumento, cf. nosso comentário àquele texto.

1003 Exposto aqui segundo J. Schneider, Ki-ThW, vol. i, pág. 560.

1004 Mt 8.6 (enfermidade); Mc 6.48 (furacão); 2Pe 2.8 (dor psíquica).

1005 Em: Unausforschlicher Reichtum, maio de 1935, pág. 105.

133 A palavra que aqui reproduzimos com “século” e “épocas”, muitas vezes vertida para “eternidades”, designa no singular o “tempo mais longínquo” estendido para frente e para trás, ou seja, a época muito antiga ou o futuro distante. Ela pode, mas não precisa necessariamente, perder-se no infinito, i. é, em cada situação é o contexto que decide se o termo adquire a conotação de eternidade (tempo interminável) ou não. O plural muitas vezes ocorre como plural potenciador no linguajar efusivo das doxologias. Isso vale quase sempre a respeito da intensificação máxima possível em forma do plural duplicado (além de Ap 1.6 ainda em 11 referências nas doxologias do Apocalipse): “até os mais distantes tempos dos tempos mais distantes”, como consta na lxx (p. ex., Sl 41.13; 90.2; 103.17; 106.48; 1Cr 16.36; 29.10), em escritos apocalípticos (p. ex., Enoque 103.4; 104.5), em autores do nt (p. ex., 1Tm 1.17; Hb 1.8; 1Pe 4.11; 5.11). Essa formulação obviamente era usada e entendida como paráfrase poética da infinitude de Deus e de sua glória que dura além de todos os tempos. Foram somente pessoas da Modernidade que tiveram a idéia de que aqui haveria uma limitação a determinados prazos de tempo no plano de Deus. Um exegeta ensina que “tempos dos tempos” seria uma designação para duas de cinco etapas que se poderia comprovar na Bíblia, a saber, para o atual éon maligno e o éon subseqüente da soberania de Cristo, que termina com a entrega do reino ao Pai. Outras passagens da Escritura apontam com certeza para um decurso de éons que podem ser distinguidos um do outro. A expressão que estamos comentando aqui, porém, destaca uma ausência de diferenças: por todas as evoluções futuras perdura a glória de Jesus.

1006 Em contrapartida, Schumacher escreve corretamente em seu livro publicado em 1964, Das tausendjährige Reich, que seria inquestionável que o reinado de Cristo “em última análise não tem fim” (pág. 179).