Estudo sobre Apocalipse 20:7-10
Estudo sobre Apocalipse 20:7-10
Novamente João está transmitindo uma mensagem que se imiscui claramente em considerações correntes daquele tempo. Encontram-se pontos de contato tanto com Ez 38,39,991 quanto também com outras idéias que moviam intensamente o judaísmo.992
7 Quando, porém, se completarem os mil anos – assim começa o v. 7. Como já no v. 3, João ressalta que nesse número “mil” de fato se trata de mil. Eles não sofrem nem interrupção nem distorção. Satanás não alcança a liberdade sob circunstâncias dramáticas, p. ex., desvencilhando-se de amarras, mas somente volta à cena quando chega sua vez, conforme o “é necessário” divino (v. 3). Por essa razão não nos cabe introduzir qualquer componente trágico nesses versículos.993 Eles apontam para o juízo definitivo sobre o dragão. No entanto, faz parte do conceito bíblico do juízo a ideia de ser desvendado. O condenado tem de ser manifesto como malfeitor, da mesma forma como também o Juiz tem de ser manifesto como justo. Tudo tem de ser trazido à luz. Juízo justo não tolera a escuridão sob nenhum aspecto. Conforme 19.11-16 o Juiz já foi revelado, da mesma forma como em 20.1-6 os assistentes do júri. Agora é a vez do acusado principal. É nesse sentido que Satanás será solto da sua prisão. Sua soltura serve ao seu desmascaramento derradeiro.
E sairá a seduzir as nações… a fim de reuni-las para a peleja. Será que aqui ocorre uma estranha “duplicação” da expedição bélica de Ap 19.19, ou um último estertor, de sorte que o cavaleiro sobre o cavalo branco de fato ainda não derrotou totalmente as nações? Ou será que, contra o que diz o v. 5, temos de contar com povos restantes que até então permaneceram neutros, não tendo nem seguido ao anticristo (ou seja, contra Ap 13.3,4,7,8,12!) nem aderido ao Cordeiro no reino dos mil anos, de maneira que Satanás agora podia propagandear uma segunda expedição?
No presente caso, felizmente não nos cabe expor conjeturas, pois o texto diz com bastante exatidão quem se tem em mente ao dizer “nações”. Antes, porém, de darmos atenção à tríplice caracterização, sigamos uma vez a hipótese mencionada por último e acompanhemos os pensamentos de uma determinada escola interpretativa. Segundo ela, depois da parusia o Israel missionário viverá na terra cheia de nações, durante uma época histórica de mil anos e será abençoado com sucessos missionários jamais conhecidos.994 Deus colocará novas necessidades nos corações, de modo que também os mais empedernidos compreenderão. Povos inteiros se converterão coletivamente ao Senhor, e a terra toda estará cheia do entendimento do Senhor. Então tudo será o inverso de hoje. Enquanto naquele tempo restará apenas uma minoria renitente, as massas afluirão dispostas a se converter, ajuntar-se-ão ao evangelho e servirão ao Senhor com alegria. – Quem aceita tudo isso ao pé da letra e depois se submete ao impacto do v. 9 terá grandes dificuldades. As pessoas que depois da soltura de Satanás se evidenciam como sendo verdadeiramente crentes perfazem tão somente a população de uma única cidade. O número das demais, no entanto, é como a areia do mar. Portanto, os mil anos de evangelização universal sob condições ideais na verdade não transformaram nada. Nesse caso, ainda seria sensato designar de poderosos avivamentos e bênçãos aqueles supostos fenômenos no reino dos mil anos, pelos que se alega esperar?
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Voltamos a acompanhar o texto. As nações seduzidas são oriundas dos quatro cantos da terra. Os limites da terra contrastam com a “largura da terra” (v. 9 [rc]), i. é, com a superfície da terra propriamente dita, habitável. Logo, trata-se de nações que habitam atrás do horizonte, no abismo (cf. nota 368), motivo pelo qual também precisam primeiramente “subir à superfície” (v. 9), a fim de chegar à área colonizada da terra.
Já no AT o limite da terra constitui um conceito. De lá vem a desgraça sobre o mundo vivo. Lá, nas bordas do disco da terra, as pessoas antigas localizavam o mar do caos, o mundo de morte e de separação dos bons poderes de Deus. É por isso que o orador do Sl 61.2, abatido, clama dos “confins da terra” a Deus. Lá, “nos confins dos mares”, as pessoas também situavam a entrada no reino dos mortos (Sl 139.8,9).
Também em Ap 7.1 os “quatro cantos da terra” constituem a origem da tempestade de destruição. Em Ap 13.1 o destruidor sobe do mar ali situado, e em Ap 20.13 esse mar aparece, como no Sl 139.8,9; 18.5,6, paralelo ao mundo dos mortos. Segundo Ap 21.1, a nova criação traz expressamente um novo mundo sem essa borda de caos.
Por isso, sustentamos (com Rissi) que essas “nações” são oriundas dalém da terra habitável e povoam o submundo. Agora são elas que estão sendo mobilizadas. No cap. 13 Satanás já havia mandado subir as duas bestas. Agora ele promove uma liquidação total. Ele lança à frente de batalha tudo o que possui. Depois que em Ap 19.11 o céu inteiro saiu em marcha, agora também todo o mundo da perdição se posiciona. Céu e terra se exaurem.
Uma segunda definição confirma essa interpretação. Esses povos chamam-se Gogue e Magogue. Ambos os nomes ocorrem em Ez 38.2; 39.1,6. Naquele texto Gogue é um príncipe extraordinariamente poderoso do limite setentrional do mundo então conhecido (Ez 38.15; 39.2), a saber, um líder de bárbaros da inóspita montanha do Cáucaso, que as pessoas da área de civilização percebiam como origem do caos. A expressão “povo do Norte” tinha um som alarmante (Jr 6.22-26, nesse trecho também igualado a “confins da terra”). Joel designa o inimigo simplesmente como “do Norte” (Jl 2.20). Em Ezequiel o povo do Norte se alia a muitos outros povos que vivem ao redor do Israel restaurado. O causador da expedição bélica, no entanto, é Deus (Ez 38.4; 39.1,2). Ele tem o objetivo de levar à destruição os inimigos do povo de Deus e para isso faz uso de sua ganância pelas riquezas de Israel (Ez 38.10-12). Em decorrência, Gogue se aproxima em marcha com seus exércitos e é destruído sobre as montanhas de Israel por meio de terremotos, granizo, fogo e enxofre, assim como por assassinatos mútuos e por pestes (Ez 38.19-22). Os israelitas, porém, poderão fazer fogo durante sete anos com os armamentos que ficaram espalhados (Ez 39.9,10).
Esses capítulos, plenos de pormenores geográficos, etnográficos e históricos, foram alvo de vivo interesse do judaísmo (cf. Bill, no comentário ao texto). Nessa elaboração salta à vista que os rabinos fizeram a justaposição dos dois nomes “Gogue e Magogue”,995 utilizando a ambos como nomes de povos. Simplesmente tornaram-se uma expressão dupla996 para exércitos terríveis e hostis a Deus. O Ap interpela pessoas rodeadas por essas considerações e que assim entendiam os dois termos. Não são povos históricos de um ou outro lugar que sobem de todos os lados, mas sim multidões do abismo.
O número dessas é como a areia do mar, superando assim o número dos seres demoníacos em Ap 9.16. A locução metafórica997 é proverbial para quantidade inconcebível e extrapola todas as medidas conhecidas. Também essa terceira caracterização não nos autoriza a pensarmos em povos do mundo conhecido.
Ao anúncio de contornos proféticos nos v. 7,8 segue-se agora, a partir do v. 9, a descrição de uma visão. Marcharam, então, pela (“para a”) superfície da terra, a saber, para o mundo dos seres vivos (cf. Hc 1.6; Is 8.8; Ez 38.12,16). E sitiaram o acampamento dos santos e a cidade querida. Essa designação dupla para o povo de Deus é composta por uma formulação que evoca o tempo de Israel no deserto e uma segunda que pressupõe a época do reinado.998
É impossível ignorar que a expressão cidade querida denota um afeto profundo e torna totalmente desnecessário citar o nome da cidade, como também em Ap 11.2 não foi preciso declarar de que cidade se tratava ao mencionar-se a “cidade santa”. Ela é o cerne de Jerusalém, que jamais carece de reconstrução999 por nunca ter sido destruída (cf. o comentário ao texto), a saber, aquele Israel que aceitou seu Messias e que havia sido completado por membros dentre os povos gentios.
Desceu, porém, fogo do céu e os consumiu, a saber, os exércitos demoníacos que se aproximavam. O judaísmo descrevia um ataque dramático, três vezes repetido, dos povos Gogue e Magogue, bem como uma peleja de fúria explosiva. O presente texto não traz nada disso. Não ilustra nem um detalhe sequer. Apresenta simplesmente a intervenção do céu. Anuncia unicamente o cerne substancial das coisas. É digno de nota que aqui não se forma, como em Ap 19.21, o quadro de uma campo de cadáveres. Tudo desaparece como uma assombração: consumido! Nada resta, pois, para ser devorado pelos abutres. Realmente nada que pudesse reaparecer na ressurreição dos mortos no v. 12. Não nos é dada mais nenhuma notícia do paradeiro desse séquito de Satanás.
Interessa muito, porém, o destino que terá o diabo. O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro do lago (“charco”) de fogo e enxofre. A frase subseqüente cria um acoplamento com Ap 19.20: onde já se encontram não só a besta como também o falso profeta. Agora a grandeza satânica foi atingida pelo juízo merecido em todas as variações, em sua trindade satânica. E serão atormentados de dia e de noite. A formulação é explicada em Ap 4.8 em outro contexto: “não têm descanso”. Esse aspecto ininterrupto do castigo corresponde à acusação incessante anterior contra os servos de Deus em Ap 12.10. Entretanto, alonga-se também para um tempo indeterminado: pelos séculos dos séculos (“até os tempos dos tempos” [tradução do autor]). Lemos igualmente a respeito do fogo eterno, “preparado para o diabo e seus anjos”, em Mt 25.41.
Índice:
Apocalipse 20:7-10
Notas:
991 Contraposição: Ez 37: ressurreição de Israel e reino messiânico Ap 20.4-6: reino dos mil anos Ez 38,39: assédio de Gogue e sua destruição Ap 20.7-10: assédio de Gogue e Magogue Ez 40–48: novo templo, cidade santa e terra santa Ap 21,22: nova criação, Jerusalém celestial
992 Como, p. ex., em 4Esdras, o esquema: reino messiânico – ressurreição para o juízo – novo mundo (cf. Kuhn, Ki-ThW, vol. i, p. 790, nota 3).
993 Schumacher e outros apresentam a exibição de Satanás sob o aspecto da decepção: era tão glorioso o milênio, eram tão poderosas as bênçãos para todos, porém os cidadãos do reino não teriam superado a provação. Ficou provado que, afinal, boas circunstâncias não tornam bom o ser humano. Por fim ficaria manifesta uma carência interior e a corrupção da pessoa. – Nada disso, porém, se encontra no texto. Não se trata de revelar o que são as pessoas, mas sim o que é Satanás.
994 Os pensamentos seguintes ocorrem detalhadamente, p. ex., em Pache, Die Wiederkunft Jesu Christi, Wuppertal, 1955, 2ª ed., pág. 316-318.
368 Em grego abyssos, a “profundeza imperscrutável” (da terra ou da torrente marinha).
995 Em Ez eles foram reunidos apenas em Ez 38.2, mais precisamente na forma “Gogue, da (‘na’) terra de Magogue”.
996 Parece que se tratava de mera associação sonora, de palavras ligadas entre si pela “intenção deliberada da rima” (Albright, citado por Kuhn, Ki-ThW vol. i, 292, nota 15).
997 P. ex., Gn 22.17 para a descendência de Abraão, Gn 41.49 para abundância de safra, Js 11.4; Jz 7.12; 1Sm 13.5 para exércitos inimigos, 2Sm 17.11; 1Rs 4.20; Is 10.22; 48.19 para o exército de Israel.
998 Nos textos de Qumran a comunidade da aliança chama-se de “acampamento” ou “exército dos santos” (Rissi, Was ist…, pág. 121, nota 428). Quanto a “cidade querida”, cf. Jr 11.15; 12.7; Is 43.4; Sl 78.68; 87.2.
999 Em contrapartida, reconstruir Jerusalém na Palestina era extremamente importante para o judaísmo.