Estudo sobre Apocalipse 20:13-15

Estudo sobre Apocalipse 20:13-15


O v. 13 salienta a globalidade do juízo. Realmente não resta nenhum morto em nenhum tipo de profundeza. Para nenhum deles tudo acabou com a morte, para todos vigora Hb 9.27: “vindo, depois disto, o juízo”. Parece que ao todo três moradas distintas de mortos são esvaziadas no fluxo da ressurreição geral de mortos. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além (“Hades” [teb, bj]) entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Observados mais de perto, os três lugares são coincidentes. Os mortos que, p. ex., estavam na “morte”, também estavam no “Hades”, porque a morte e o Hades são, como em Ap 6.8, um conceito duplo de difícil diferenciação.1021 No presente texto o mar não é um mar que faz parte da terra. De conformidade com o v. 11, o Mediterrâneo ou o Báltico obviamente desapareceram com a terra. Nesse versículo, mar constitui um conceito paralelo ao mundo dos mortos (cf. o comentário a Ap 20.8). Em decorrência, aqui o número três não possui o sentido de designar três lugares, mas sim caracterizar enfática e completamente um só lugar. A incursão acontece em todo o mundo dos mortos.
 
14 Pela circunstância de que todos os despojos da morte passaram para o poder de Deus e de Cristo, foi também destituída do poder a própria morte. Que acontecerá com ela agora? Então, a morte e o inferno (“Hades”) foram lançados para dentro do lago (“charco”) de fogo. Morte e Hades não são entendidos como espaço, mas como um poder que recebe a mesma sorte dos demais poderes hostis a Deus (Ap 19.20; 20.10,15). Pensando nesses inimigos de Deus reunidos no charco de fogo, Bengel exclama: “Que lamaçal enorme há de ser: Todo o mal e todos os maus reunidos num único lugar!”
 
Numa certa correlação com a morte há pouco condenada, na presente passagem o charco de fogo recebe um nome adicional. Esta é a segunda morte, a saber, o lago (“charco”) de fogo. O charco de fogo constitui uma segunda morte, visto que encerra pela segunda vez a vida das pessoas que foram lançadas nele. Apesar disso ele não representa uma mera repetição da primeira morte. As duas “mortes” são diferenciadas inicialmente pela circunstância de que a segunda morte nunca é apresentada como pessoa ou poder, mas sempre inequivocamente como lugar ou condição. Sobretudo a primeira morte aparece sempre como grandeza hostil a Deus, ao passo que a segunda morte como grandeza do juízo divino. Não há como exagerar na ponderação dessa diferença essencial. É por isso que a primeira morte também perturba o estado da consumação (Ap 21.4), enquanto a segunda morte faz parte dele (Ap 21.8).
 
Somente agora estabeleceu-se as premissas para encerrar a descrição do juízo final. E, se alguém não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago (“charco”) de fogo. Achar ou não achar pressupõe encobrimento e descreve uma revelação. Então será notório o que hoje ninguém sabe. Surgirão nomes no livro da vida que não eram esperados por ninguém. Por outro lado, haverá surpresas pelas lacunas: não foi achado! As concessões futuras de clemência e condenação por Deus não coincidem com as absolvições ou condenações atuais pelos humanos.
 
Quanto às condenações definitivas de Deus cabe lembrar mais uma vez que ninguém é condenado por puro destino, isto é, não, p. ex., com base numa lista arbitrária em que faltaria o nome dessa pessoa. Não é em vão que duas vezes foi dito (v. 12,13): julgado segundo as suas obras! A precipitação no charco de fogo, por isso, não é um azar inexplicável, desconexo, mas sim, um juízo concreto. Nos lugares em que se fala mais uma vez desses julgados, evoca-se concretamente sua vida sem Deus (Ap 21.8,27; 22.15). Abordamos em pormenores o charco de fogo especialmente no comentário a Ap 19.20 e no excurso 19, embora somente agora nos debrucemos sobre ele em relação a seres humanos.

 
Como já mencionamos, ele não é eliminado com a nova criação de céus e terra.1022 Sua existência harmoniza seguramente com a situação em que “Deus é tudo em todas as coisas” (1Co 15.28 [tradução do autor]). Justamente então haverá um “lá fora”, uma “eterna não-vida” (Guardini). Agostinho formulou uma palavra de sentido profundo: “Que grande desgraça é estar longe daquele que está em todo lugar!”
 
Insurgem-se em nós objeções contra a mensagem de que há uma perdição eterna. Por isso ainda acrescentaremos uma breve observação exegética. Em Ap 19.1-6 ressoaram quatro aleluias sobre o juízo de punição de Deus e sobre a coluna de fumaça que sobe eternamente, e Ap 18.20 convoca para uma alegria radiante sobre os castigos de Deus. Nesse caso e em casos semelhantes trata-se de um júbilo depois da parusia. Somente depois da revelação final, ou seja, sob premissas substancialmente novas e à luz de novos reconhecimentos e compreensões, os humanos são capazes de dar razão ao Juiz, fazendo-o voluntária e alegremente, exultando e glorificando-o por ter feito tudo de modo excelente. Hoje, no entanto, está em jogo não o aplauso pleno, mas a confiança total de que Deus e o Cordeiro serão Juízes justos. Afinal, onde as perguntas da humanidade e da natureza humana estariam melhor acolhidas do que na glória de Deus e do Cordeiro?
 
Deveríamos levar a palavra profética um pouco mais a sério do que nossos sentimentos não proféticos, que na realidade um dia estarão descartados. Por mais autoritários que se apresentem os veredictos decorrentes do sentimento humano,1023 de forma alguma podemos nos confiar a eles, permitindo-lhes que interfiram na exegese.
 
Finalizando, retomamos a pergunta que nos propusemos na observação preliminar a esse trecho: será que o juízo final também admite desfechos positivos, embora apenas atinja aquelas pessoas que não participam da primeira ressurreição? Acaso o livro da vida diante do trono branco serve meramente para comprovar que os julgados, um após o outro, não estão anotados nele?
 
É importante notar que o v. 15 não afirma: Porque não foram achados escritos no livro da vida…, mas: Quando alguém não foi achado escrito no livro da vida… A cadência da linguagem praticamente força um prolongamento que tenha em vista um resultado positivo. Por que, no entanto, o caso positivo acaba de fato não sendo formulado?
 
Ele é formulado, sim! É evidente que não nos podemos deixar impressionar demais pela subdivisão de capítulos feita na Idade Média, interrompendo o pensamento no final do v. 15. O ciclo de visões continua diretamente sem um corte profundo, e já o versículo seguinte (Ap 21.1) contrapõe o charco da perdição ao mundo da salvação. Nesse mundo da salvação não apenas surge a “noiva do Cordeiro” (Ap 21.2), não apenas o povo único de Deus, mas também os “povos” de Deus (Ap 21.3; cf. 21.24,26; 22.2). A humanidade renovada, portanto, abrange mais do que apenas os fiéis, e a graça de Cristo atinge também no juízo final outras multidões.
 
Contudo, acaso Mc 16.16 não diz: “quem, porém, não crer será condenado”? Conforme essa palavra, não se perdem todos os descrentes? Naquele contexto a afirmação refere-se a ouvintes da pregação. Acerca dos demais Paulo escreve, desculpando-os: “E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10.14). Existe descrença por desconhecimento, razão pela qual existem pessoas cuja falta de fé Deus não acusa, isentando-as pessoalmente. Motivo de condenação é somente a descrença daqueles que ouvem o evangelho de forma convincente e que por isso puderam crer. É para eles que se diz: “quem, porém, não crer será condenado”.
 
Lembremo-nos dos milhões e milhões de pessoas antes e depois do nascimento de Cristo, aos quais jamais foi anunciado o senhorio de Cristo, e também das crianças menores morridas prematuramente, das massas na Europa cristianizadas apenas de forma superficial, que nunca foram expostas a uma verdadeira situação de decisão. Ouviram o nome “Cristo! Cristo!” até enjoar, sem jamais o terem encontrado no Espírito Santo. Finalmente, pensamos também naqueles que de fato receberam um testemunho plenamente válido, mas que não tinham capacidade de decisão, ou seja, um exército dos doentes mentais e psicopatas. Todos eles estarão diante do trono branco, e Deus também leva profundamente a sério o que fizeram e deixaram de fazer. Mas também para eles vale o “outro livro”. Ele não será de antemão fechado para eles, como se o sangue do Cordeiro não pudesse valer para eles. Não, esse livro também é “aberto” expressamente, pelo que igualmente para eles se abre a possibilidade de alcançar participação no mundo da salvação de Cristo. Em decorrência, o juízo no âmbito exterior à igreja acontece sob o signo de ambos os livros. Deus está em condições de julgar com justiça todas as ações, até as mais íntimas decisões da consciência (Rm 2.1-16), bem como de reconhecer quem um ser humano seria se tivesse sido confrontado com toda a clareza com Cristo. Por isso, até mesmo o juízo diante do trono branco decididamente terá desfechos diversos.
 
Os detalhes dos desfechos causarão surpresas (cf. acima). Sob essa premissa situa-se o discurso metafórico acerca do julgamento dos povos em Mt 25.31-46. A primeira surpresa é o grupo dos mais humildes irmãos de Jesus, que é notado em bloco, sendo que no contexto do linguajar de Mateus se trata nitidamente de uma designação para os discípulos (cf. o comentário a Ap 3.8). É a comunidade de discípulos, até então não reconhecida, mas que confessa a Jesus, e que por isso teve de passar por sede, nudez, miséria, perseguição e prisões. Agora, porém, o Senhor da parusia declara-se solidário com eles de forma impressionante. Agora eles não são mais alvo de juízo. Visível e glorificada, essa igreja é colocada ao lado do Juiz. São flagrantes as linhas de conexão com Ap 20.1-6.
 
O restante da humanidade não é simplesmente uma massa de perdidos. Um grupo é colocado à direita do Juiz, o que é motivo de surpresa para eles próprios. Essas pessoas não sabem nada sobre um relacionamento pessoal com Cristo durante a vida terrena. Nunca foram confrontados com ele. Porém encontraram-se com cristãos, a saber, com aqueles “pequeninos”, e haviam se decidido por um comportamento humano frente a esses caçados e escoriados. Exatamente isso lhes é imputado como uma decisão por Cristo. Então essas pessoas agraciadas serão como quem sonha, e serão conduzidas para dentro do mundo de bênçãos escatológicas de Deus.
 
Um último grupo está à esquerda do Juiz. Em sua vida terrena eles tampouco não sabem nada a respeito de Jesus e, fazendo-lhes justiça, o Juiz não os acusa disso. Contudo são interpelados a respeito de sua atitude desumana e da falta de fraternidade em um plano meramente mundano. São encaminhados ao tormento eterno. Também agora vigora Mt 12.37b: “pelas tuas palavras, serás condenado!” Todo aquele que nesse mundo falar de justiça, atitude humanitária e paz – seja ele cristão ou não – está com isso definindo o padrão do julgamento para si mesmo. Nessa questão Deus não tolera discursos vazios.


Notas:
1021 Em Ap 1.18 aparece igualmente essa expressão dupla, embora numa acepção um pouco diferente (cf. nota 168).

1022 É o que também admite W. Michaelis, mas depois especula acerca de uma segunda nova criação após a primeira (pág. 112-113), a respeito da qual naturalmente “obtemos nenhuma ou muito pouca informação” (pág. 121), cf. nota 1042.

1023 Um exemplo pode explicitar a relatividade desses veredictos. Schleiermacher (1768-1834), o mais influente teólogo do século xix, que restaurou a doutrina da reconciliação universal a partir da mentalidade do idealismo alemão, inferiu: se existir uma condenação eterna, não existe bem-aventurança eterna, pois como alguém pode ser perfeitamente bem-aventurado, se ele souber que ao mesmo tempo outras pessoas são atormentadas dia e noite. Sua bem-aventurança estaria sendo turbada dia e noite. Esse raciocínio repetidamente causou comoção. Em contraposição, o judaísmo podia sentir como intensificação da bem-aventurança dos justos a situação em que eles pudessem vislumbrar o tormento dos rejeitados: “Do alto lanças teu olhar e vês o inferno de teus inimigos, reconhecendo-os e agradecendo repleto de alegria” (Ascensão de Moisés 10.10). “A segunda alegria (das sete alegrias dos justos) é que contemplam os caminhos tortuosos sobre os quais precisam vagar as almas dos ímpios, bem como o castigo que resta a eles” (4Esdras 7.93). Aliás, nessas manifestações torna-se flagrante que a doutrina da reconciliação universal não constitui uma deturpação judaica, mas exibe na testa a marca do pensamento grego. Orígenes (155-254), o primeiro grande teólogo sistemático dessa orientação, afirmou pessoalmente que os filósofos não deixaram de ter participação na sua doutrina (Oepke, Ki-ThW, vol. i, pág. 391). Os anos de estudos filosóficos do jovem Orígenes com o famoso neoplatônico Amônio Sakkas dificilmente serão superestimados em sua importância. Ele ensinava que todas as coisas se desenvolvem de volta à sua origem, ou seja, para Deus. Por isso o mal não pode possuir uma realidade duradoura. Como todos os pecados, todo castigo e toda dor, trata-se apenas de uma transição sombria, que a providência de Deus apesar de tudo reverte para o melhor. Evidentemente essa mensagem de reconciliação não se fundamenta na história de Jesus, mas numa filosofia acerca de Deus.