Estudo sobre Apocalipse 20:12
Estudo sobre Apocalipse 20:12
Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Essas pessoas também gostariam de ter fugido diante da face do Entronizado,1013 mas parece que uma voz estrondosa os impede: “Parados!” Permanecem imóveis, obrigados a ficar diante de seu Juiz. Portanto, enquanto tudo é demitido para o nada – o ser humano não o é. Ele “sobrevive” a todas as dissoluções, inclusive à dissolução na morte, talvez desejada por ele. Ele não pode nem mesmo “dar um fim a si mesmo” pelo suicídio, nem a morte lhe dá um fim. Deus reservou a si próprio dar o fim a tudo. Ele será o Último, assim como foi o Primeiro. Em consequência, num gesto geral de fuga, as pessoas ficam como que coladas ao solo diante de Deus.1014
Estão aí, sem distinção, lado a lado, os grandes e os pequenos (cf. nota 516). Por isso, não é bem correto constatar aqui o acontecimento de um juízo apenas individual. Com certeza cada pessoa é julgada separadamente, mas cada um diante de todos. Lado a lado e um diante do outro, são revelados diante de Deus. O juízo sobre o indivíduo transforma-se em juízo sobre a sociedade.
Contudo, será que ao se falar dos mortos realmente se refere a pessoas ressuscitadas? M. Rissi responde negativamente. “As pessoas estão diante do trono em sua condição de mortos”.1015 Conforme Rissi, a segunda ressurreição acontece somente depois da segunda morte no charco de fogo. Como a primeira ressurreição encerrou a primeira morte, assim a segunda ressurreição encerra a segunda morte, igualmente como uma “realidade geradora de salvação”. Contudo, por maior que seja a simplicidade persuasiva dessa compreensão, ela dificilmente pode ser sustentada pela exegese. De acordo com o v. 13 o fato de os mortos estarem parados perante o trono pressupõe que a morte e o reino dos mortos perderam o poder. Portanto, Jesus empenhou integralmente seu poder das chaves de Ap 1.18, colocando em pé, em virtude da sua ressurreição, a todos os mortos. Não é em vão que se afirma que “estão em pé”, ao invés de jazerem nas sombras da morte.
À mudança de posição agrega-se uma expressa mudança de lugar: não estão em pé no reino dos mortos, mas sim diante do trono. Finalmente, também o prazo da ressurreição geral é fixado pelo v. 5. Ela não se realiza depois da precipitação no charco de fogo, mas depois de completados os mil anos. Por isso a ausência da expressão “segunda ressurreição” não deve incomodar-nos no presente texto. A continuação da contagem fica por conta do próprio leitor.
Somente por meio dessa ressurreição individual é que a ressurreição de Jesus chega ao descanso. A Páscoa avança irresistivelmente, passando da primeira ressurreição para a segunda ressurreição, a ressurreição geral, até que tenha alcançado também o último dos membros da humanidade. De acordo com Paulo, quem não confessa essa ressurreição em seu credo já está negando o começo dela na ressurreição de Jesus Cristo. Tudo isso está tão interligado em sua substância porque o poder de destruição da morte também recai sobre o todo, não deixando de fora nenhum membro da humanidade. O movimento contrário de Deus na verdade ficaria retido numa vitória parcial, se ele fosse paralisado diante de um grupo qualquer de mortos. Por isso é preciso que todos os focos de resistência do inimigo sejam debelados, derrubados de suas fortificações e também desalojados das últimas profundezas por ele defendidas. Do contrário, o evangelho não seria evangelho.
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É precisamente diante dos mortos que se mostra se temos uma mensagem de vitória, pois a morte constitui o contraste mais brutal contra o Deus vivo, sendo por isso também um golpe terrível contra a fé em Deus. Sofrer com dores extremas, sentir as tribulações cheias de dúvida ou também jazer inconsciente no leito parecem sofrimentos ínfimos se comparados com o evento da própria morte, esse “machado do nada” (E. Bloch). Enquanto os mortos estiverem mortos, haverá esse ateísmo da experiência, quase onipotente, cujo hálito cada um de nós certamente já sentiu alguma vez. Em tais momentos, tudo o que não for confissão da ressurreição de Jesus em toda a sua amplitude poderá ter o efeito de um discurso irresponsável.1016
E os mortos foram julgados. Deixando por ora de lado a forma e o modo do juízo final, confrontamo-nos inicialmente com a grande seriedade desse fato em si. Está acontecendo o juízo! (v. 12,13). A Bíblia não atesta nenhuma situação em que se contorne o mal. Tampouco o amor de Deus torna supérflua a atitude prática diante do mal. Ele submete cada vida vivida à apreciação e dá uma resposta a cada provocação emitida. No final, não haverá ponto sobre o qual não tenha se pronunciado. Depois de uma reticência de milênios, a história da humanidade é repassada cabalmente.
Nesse juízo não ressoa nada além da voz do Juiz. Dos julgados diz-se tão somente que eles estão em pé diante dele. Não dizem nada (Jó 9.3), não respondem nada nem são interrogados sobre mais nada. Reiteradamente diz-se que se julga conforme o que “foi escrito”, não conforme o que dizem. Agora estão diante de um fórum que não depende mais de interrogatórios e suas inevitáveis fontes de equívocos. É verdade que várias pessoas podem ter reunido argumentos sobre tudo o que pretendem dizer a Deus naquela hora. Contudo, então ninguém terá mais nada a dizer. Também ficam de fora explicações adicionais sobre qual era, afinal, nossa intenção e sobre o que outros fizeram. Tudo é manifesto.
Esse inacreditável “Deus sabe!” é pregado agora pela visão dos livros. Então, se abriram livros. Ainda outro livro… foi aberto. Duas espécies de livros constituem o fundamento desse juízo. De uma espécie existe apenas um único exemplar, da outra há vários.1017 Conforme o v. 15, o livro único contém nomes. Nos demais livros estão catalogadas as obras dos acusados.
Na Antiguidade, a posse de livros não era algo para qualquer um, mas uma prerrogativa de senhores e reis. Visto que no AT Deus podia ser chamado de Rei, também era possível que se dissesse em sentido figurado que ele mantinha no céu livros, listas e crônicas, e que mandava realizar registros e eliminações de graves conseqüências.1018 Em decorrência, esses livros representam o conhecimento poderoso de Deus. Tudo o que as pessoas praticam, dizem ou também apenas pensam é notado por ele. Ele não está ausente em nenhuma das nossas ações. Por isso não existe nenhum pecado sem espectador – Deus nos observa; nenhuma atrocidade realmente secreta – Deus tem conhecimento dela. Tudo também permanece vivo na presença dele, enquanto nós, por causa de nossa memória fraca, recuperamos rapidamente uma boa consciência e voltamos a nos comportar de forma inescrupulosamente segura.
Por isso, ao encontrar-se com ele, o ser humano encontra-se ao mesmo tempo com seu próprio passado, como se fosse presente. Nada estará no passado, liquidado e esquecido. Será um julgamento em que o Juiz não terá de acrescentar nada e o acusado não poderá acrescentar nada. Basta abrir os livros.
Duas vezes esse juízo é designado de julgamento segundo as obras. Nada mais tem validade além dos dados objetivos da própria vida vivida, sem qualquer interferência. Enquanto os tribunais humanos no fundo sempre julgam pelo que ouvem de um lado ou de outro, bem como pela apreciação pessoal,1019 motivo pelo qual não julgam diretamente a partir do que aconteceu, o juízo final de Deus será o julgamento mais justo que jamais foi realizado. Ninguém será condenado como alguém que ele nem sequer é. Cada pessoa será obrigada a identificar-se realmente consigo própria e com nada além dela mesma e da vida vivida por ela pessoalmente.
Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. Esse livro da vida, que conforme Ap 3.5 contém os nomes dos membros do povo de Deus, possui claramente uma grande importância para o Ap.1020
Para podermos apreender o conceito de forma evangélica, é útil a comparação com a história das religiões.
No Oriente antigo acreditava-se em geral em tabelas celestiais do destino. Os destinos dos humanos na terra não são nada mais que um reflexo dessas anotações. Aqui acontece somente o que está escrito nelas. O ser humano na terra é pessoa apenas de forma aparente. Tem capacidade apenas aparente de querer e não querer. Na verdade tão somente tem capacidade de ter de fazer. Contudo, na versão bíblica esse quadro é liberto do fatalismo. Por mais profundamente que a pessoa esteja mergulhada na certeza da eleição, nunca prevalece o pensamento de que a condição humana da pessoa seja mutilada. Nunca o ser humano se torna uma parte da natureza que se desenrola segundo as leis naturais. Pelo contrário, Deus convive com ele em parceria viva. Sem dúvida Deus é, nesse relacionamento, o infinitamente sublime, que toma a iniciativa e a segura eternamente nas mãos. No entanto, precisamente dentro dessa comunhão o ser humano torna-se integralmente ser humano e responsável até o extremo (cf. qi 46).
Quando, p. ex., o nome de uma pessoa é apagado do livro da vida conforme Ap 3.5, isso não acontece inesperadamente como um raio em céu aberto. Pelo contrário, apaga-se o nome daquele que, ao invés de perseverar até a vitória na luta com o mundo, fecha um acordo de paz confortável.
Consequentemente, a ideia bíblica da eleição combina decididamente com o apelo à obediência voluntária. Em Êx 32.33 destaca-se radicalmente o princípio: “Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim” (e não o inocente). Ap 13.8; 21.27 mostra a estreita ligação do “livro” com o evangelho, onde ele se torna o “livro do Cordeiro”. Jesus mesmo é quem faz as anotações nesse livro, no juízo é a sua voz que lê os nomes nele anotados (Ap 3.5). É por isso que também no presente trecho a abertura do livro pode ser considerada como indício da atuação decisiva de Jesus no juízo final. Sem dúvida esse indício é apenas indireto, mas indireto era também no v. 11 o falar sobre Deus.
Observado mais de perto, portanto, um quadro formalmente bem fatalista foi esvaziado e preenchido com o evangelho. Tornou-se uma expressão de que pertencemos a Jesus por graça, porém não entendida como em termos de destino, e sim em termos de fé. Esse entendimento também é corroborado no presente trecho pelo fato de que o juízo segundo o livro da vida está ligado ao juízo segundo os livros das obras. Pois, se a prática do bem ou do mal fosse destino, os autores não poderiam ser responsabilizados com tanta seriedade.
É imperioso que quem busca a verdade precise combinar dois pensamentos, a saber, o juízo segundo as obras e a justificação por graça. No entanto, esses dois pensamentos são de fato conciliáveis? De acordo com o pensamento bíblico, a justificação por graça justamente pressupõe que Deus levou as obras tão a sério que elas conduziram à condenação. O ato de graça não contradiz a sentença judicial. Por isso, Deus não diz ao condenado: “Eu te condeno injustamente. Eu me corrijo!” Pelo contrário: “A sentença foi proferida com razão, mas tenho graça para contigo!” Dessa forma a graça sem obras por um lado anula a sentença segundo as obras, por outro lado ela ao mesmo tempo inclui a legitimidade do juízo segundo as obras. É por isso que receber clemência também leva à boa obra, como é esperada repetidamente em Ap 2,3.
Ninguém, portanto, escapa do juízo segundo as suas obras. Justamente quem recebe graça precisa ter conhecimento do castigo que mereceu, para que a graça apareça como graça e seja recebida como graça. É por esse motivo que aqueles dois pensamentos, aqui expressos na metáfora das duas espécies de livros, constituem um marco da doutrina cristã devido ao modo como estão interligados.
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Apocalipse 20:12
Notas:
1013 Em decorrência, “postos em pé” não pode ser reproduzido, como em Ap 6.17, por “ser aprovado”.
1014 No livro apocalíptico de Enoque lê-se descrição semelhante: “Em verdade, vi-os todos algemados em pé diante dele” (90.23).
516 Essa é uma descrição muito frequente para englobar a todos, cf. Michel, Ki-ThW vol. iv, pág. 651,54ss; no Ap, p. ex., 13.16; 19.5,18; 20.12.
1015 M. Rissi, Was ist…, pág. 124 e 127; Die Zukunft der Welt, pág. 94.
1016 Em 1Co 15 e também aqui no Ap a ressurreição não é abordada sob o enfoque da consumação salvadora dos fiéis, mas sob o enfoque de que Cristo tem de governar até que de fato todos os seus inimigos estejam a seus pés. É por essa razão que os mortos viverão. Nesse ponto nossa proclamação deveria tornar a ser mais rica e abrangente.
1017 O judaísmo ensinava que existiam dois livros das obras. Num são registrados os atos de cumprimento da lei, no outro as transgressões, Schrenk, Ki-ThW, vol. i, pág. 619, nota 23.
1018 Êx 32.32,33; Sl 69.28; Sl 139.16; Is 65.6; Jr 22.30; Ml 3.16; Dn 7.10; 12.1. O judaísmo elaborou ideias muito pormenorizadas e maciças acerca da contabilidade celestial. Dois anjos fazem registros diários, que são lidos ao pecador na hora da morte ou no juízo final. Contudo não fazem ideia de que também sobre eles próprios são realizados registros.
1019 A ideia contrária ao juízo segundo as obras é um juízo com acepção da pessoa, o que Deus não pratica. O julgamento implacável ocorre também em Ap 2.23; 18.6; 22.12; Rm 2.5-11; 2Co 11.15; 2Tm 4.14; At 10.34; 1Pe 1.17; e no at: Sl 28.4; 62.12; Pv 24.12; Is 59.18; Jr 17.10. – Uma criança orou do modo como muitas pessoas pensam: “Querido Deus, fecha ambos os olhos, para que eu entre no céu”.
1020 Ocorre seis vezes no Ap: 3.5; 13.8; 17.8; 20.12,15; 21.27; cf. Lc 10.20; Fp 4.3; Hb 12.23.