Estudo sobre Apocalipse 20:3-4
Estudo sobre Apocalipse 20:3-4
Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele. Ele está cortado de toda atuação futura de três formas, por algemas, chave e selo. Nem no próprio abismo, nem sobre a terra, nem no céu ele é capaz de efetuar qualquer coisa. Em toda parte o Senhor da parusia está bem sozinho no comando. Para que o dragão não mais enganasse (“seduzisse”) as nações até se completarem os mil anos. Amarrar Satanás totalmente significa, portanto, que ele não pode mais suscitar novos anticristos (Ap 12.17b), nem imiscuir-se como sedutor na história. Finalmente está destituído do poder.
O versículo parece pressupor a existência de nações durante os mil anos. Do contrário, sobre o que afinal reinariam os entronizados e os que reinam (v. 4,6)? Para as interpretações que assumem esse fato resulta dessa maneira a ideia da continuação de um mundo de pessoas não convertidas, mas agora sem a mínima influência de Satanás. Ensina-se que, então, as pessoas seriam pecadoras tão somente a partir do próprio coração, razão pela qual também haveria ainda o castigo e a morte.959 Contudo a proclamação do evangelho teria, então, chances muito maiores, porque ficariam descartadas as ações satânicas adversas. Em decorrência seria possível esperar altas cifras de conversões. Os mil anos são considerados como incomparável tempo de missão. Além disso resulta dessa leitura que no reino dos mil anos pessoas ressuscitadas (da “primeira ressurreição” no v. 5) e as ainda não ressuscitadas dentre essas nações convivem na terra.960
Mais tarde haveremos de nos posicionar sobre vários pormenores. Aqui tão somente está em jogo a questão se o Ap pressupõe ou não, depois da parusia, a existência continuada das nações do mundo. Reflitamos mais uma vez sobre o sentido de Ap 19.17-21. A besta havia mobilizado todos os reis da terra e seus povos contra o Cordeiro. Em Ap 19.18 esboça-se, de maneira idêntica ao sexto selo (Ap 6.15), a humanidade sem Cristo. Não se pode ignorar o caráter abrangente daquelas formulações. Depois é dito que os dois líderes foram lançados no charco de fogo (19.20), enquanto o restante foi morto (19.21), para ressurgir do mundo dos mortos somente em Ap 20.12. Nesse ínterim, como salienta o v. 5, estão mortas todas as pessoas exceto os participantes da primeira ressurreição.
Os fatos são inequívocos. Naturalmente restam duas perguntas: sobre quem dominam, então, as testemunhas exaltadas no reino dos mil anos, e de onde vêm as nações do v. 8? Nesse instante, porém, tratava-se apenas de não responder a essas perguntas a partir do v. 3b de uma forma que contradiga a exposição do Ap feita até aqui e que leve a especulações que o texto não acompanha. Evidentemente o v. 3b é um dos “furos” pelos quais material estranho penetra facilmente no comentário. Primeiramente cabe-nos represar esse material estranho, ainda que permaneçam perguntas em aberto.
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A tríplice imobilização de Satanás, no entanto, ainda não constitui a subjugação visada por Deus. Depois disto, é necessário (“preciso”) que ele seja solto pouco (“por um pequeno”) tempo. Satanás deve ser divinamente refutado. É a esse interesse que alude a expressão é preciso (cf. o comentário a Ap 1.1). Não se deve conduzir o processo contra um Satanás paralisado e narcotizado, porém contra um Satanás solto e em plena forma. Então sua precipitação definitiva nas profundezas extremas será tanto mais convincente. Para que não se dê espaço à mínima dúvida quanto à legitimidade da sentença, todas as possibilidades de defesa são concedidas também ao que burlou o direito. É por isso que Satanás é solto mais uma vez, por um pequeno tempo.961 De certa forma o tempo vale para a duração do processo.
O v. 4 traz a única referência clara ao AT. Em Dn 7.9 Daniel viu como “foram postos tronos”. De modo mais sucinto lê-se aqui: Vi também tronos. No entanto, João não os viu, como Daniel, na sala do tribunal celestial, pois entre os entronizados está sentado também Cristo, que na verdade cavalgou para fora do céu (Ap 19.11). No presente capítulo trata-se, portanto, de “reinar sobre a terra” (v. 4,6).
Depois Daniel viu Deus (v. 9) e a corte judicial do céu tomarem lugar (v. 10,26), mas não o Filho do Homem e os santos, que naquele livro não recebem função de juízes. Em contrapartida, no Ap Deus aparece somente dois trechos adiante, assentado no trono branco para julgar. Em quem devemos pensar, portanto, no presente versículo, quando João escreve: e nestes sentaram-se seres? Será cabível simplesmente copiar de Daniel a interpretação de que são anjos?962 De acordo com a perspectiva geral de João, eles são a igreja vitoriosa. É ela que deverá sentar-se “comigo” (Ap 3.21) no trono. A essa palavra corresponde aqui a expressão “com Cristo”. Por que, no entanto, João não o expressa de forma direta? Ele gosta de primeiro sugerir uma coisa e depois esclarecê-la gradativamente. Por isso ele inicialmente fala do trono (cf. também nota 928), depois das pessoas que tomam assento e depois de sua função. Somente então segue-se uma descrição clara de quem são as pessoas referidas e, no v. 5, uma delimitação contra pessoas não referidas. Finalmente, acaba identificando os entronizados com a igreja de sacerdotes de Ap 1.6.
Além disso, menciona, de modo muito semelhante a Dn 7.22 (primeiramente ecoando literalmente): foi lhes dada autoridade de julgar (“foi lhes dada decisão judicial”).963 Essa formulação, no entanto, pode ter dois significados linguísticos. De acordo com o contexto, em Daniel ela significa que se concede aos santos até então oprimidos o direito do alto do trono de Deus. No Ap, porém, o povo de Deus não é objeto, mas sim sujeito do juízo, motivo pelo qual também tomou assento não diante dos tronos, mas sobre eles. As funções judiciais são transmitidas aos próprios santos. É por isso que concordamos com a tradução de W. Bauer: E foi-lhes dada autoridade para o juízo. Apesar de todos os pontos de tangência, João não repete a visão de Daniel, mas recebe uma profecia genuína. Não obstante, a mensagem básica é comum a ambos os profetas: o povo de Deus, até então ignorado e oprimido, recebe majestade régia, junto com o Messias e por ocasião da manifestação dele.
No v. 4b segue-se a designação precisa dos próprios entronizados. A minuciosidade desses fatos denota um sentido básico da visão do reino dos mil anos: a reabilitação das testemunhas de Jesus.
São referidos dois grupos. Vi ainda as almas dos decapitados (com o machado) por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus. Com toda a certeza as “almas” vistas lembram os mártires de Ap 6.9. Lá eles haviam sido “chacinados”, aqui “decapitados com machado”.964 Naturalmente não se conta apenas as vítimas de um determinado tipo de execução. Estão incluídas testemunhas que renderam sua vida de outra maneira, p. ex., sendo estraçalhadas na arena por animais selvagens. Contudo a alusão ao uso contemporâneo não deixa de ser digna de nota.
Além dos mártires965 constam ainda os que dizem não por razões de fé, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão. É toda a igreja verdadeira, que não somente foi crente, mas também, na ocasião certa, descrente de todo coração, que não apenas diz sim, mas também não (quanto a pormenores, cf. o comentário a Ap 13).
E reviveram novamente… durante mil anos não se refere a uma situação que dura mil anos,966 mas sim a um acontecimento por ocasião do começo da parusia. O prazo é determinado pelo próximo versículo. É por isso que a interpretação alegórica, que exerce influência desde Agostinho e segundo a qual se estaria aludindo aqui ao reavivamento espiritual no renascimento (batismal) do cristão, deve ser descartada.
João retorna mais uma vez à função dos mártires. E reinaram com Cristo (“Messias”) durante mil anos (“E governaram como reis com o Messias durante mil anos” [tradução do autor]). Com base no idioma hebraico, “governar como reis” pode ser usado para “julgar” (v. 4a) e vice-versa.967 Julgar é considerada a função mais proeminente do governante. A produção de justiça por meio de decisões constitui a tarefa primordial do regente. Contudo, a palavra definitiva e talvez surpreendente a respeito do reinado das testemunhas de Jesus é declarada somente no v. 6: então toda a sua ação redundará em sacerdócio, de maneira que não deveríamos solidificar demasiadamente em nós a ideia do reinado (cf. nota 129).
Ressoa duas vezes não apenas a profecia de que as testemunhas reinarão, mas igualmente o acréscimo essencial com Cristo (v. 6: “com ele”). Essa expressão poderia ser caracterizada de única “referência de lugar” do trecho. A pessoa está entronizada onde Cristo se encontra. Entretanto, agora Cristo não está mais entronizado no mais abscôndito céu, mas ingressou na vida pública do mundo.
Esse “junto de Cristo” também é importante para Paulo (1Ts 4.17; Cl 3.4; cf. Fp 1.23). O governo das testemunhas é expressamente “governar com”. Elas são membros de uma federação cristocêntrica de governo, dentro da qual lhes foi atribuída a função do sacerdócio. De eternidade a eternidade elas continuam sendo sacerdotes do Rei (cf. também Ap 22.3-5), sem que elas próprias sejam reis.
Também merece atenção a peculiaridade de que aqui “Cristo” não é cognome de Jesus, como tantas vezes no NT, mas sim o título que designa o cargo do rei salvador judaico, em conformidade com seu uso original. Vem daí a tradução com o Messias.968 O judaísmo tardio ensinava que este Messias governaria o mundo das nações a partir de Jerusalém e com auxílio da nação de Israel. De fato, porém, há comentaristas que inserem esse pensamento judaico sem ressalvas na compreensão de Ap 20.1-6 (excurso 18a). No entanto há duas observações no texto que permitem constatar que essa teologia da nação judaica é submetida a um choque quase intencional. Inicialmente os que estão entronizados com o Messias foram descritos com toda clareza como os que no passado testemunharam de Jesus. Não há qualquer menção ao sangue judaico.969
No mesmo contexto – e com isso retornamos a uma das perguntas levantadas acima – ocorre aquela intrigante lacuna de informação sobre pessoas governadas e pessoas evangelizadas e convertidas. Existem meramente ressuscitados e mortos. É verdade que o povo desse Messias obtém a glorificação, porém sem o cumprimento de anseios nacionalistas ou confessionais.
Portanto, estar entronizado e governar relaciona-se unicamente ao que diz respeito aos sujeitos, não porém aos objetos. João vê essas atividades unicamente porque deve testemunhar o estado glorificado da igreja, da forma como passou a vigorar com a parusia. Quem afirma mais do que isso não explica, mas implica (cf. também o comentário a Ap 22.5).
Restam ainda as palavras finais do v. 4: Eles reinaram com o Messias durante mil anos (cf. o que já expusemos sobre o v. 2).
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Apocalipse 20:3-4
Notas:
959 Segundo Schumacher, Tausendjähriges Reich, p. 204, intensifica-se até a responsabilidade das pessoas nessa situação, porque o pecado não está mais sob a paciência de Deus. “Quem peca morre no dia seguinte.” Disso resulta na verdade o fato de que existem somente pessoas sem pecados e pessoas mortas, e no meio delas aquelas às quais resta viver somente um dia.
960 Novamente isso é defendido por Schumacher, op. cit., p. 195. Ele ilustra a situação com os quarenta dias de Jesus entre a ressurreição e a ascensão. Os ressuscitados aparecem apenas ocasionalmente aos não ressuscitados, aparecem e desaparecem atravessando paredes, movem-se pelo céu, na terra e debaixo da terra e não têm mais impulsos sexuais.
961 Novamente o presente trecho tem pontos de tangência com o cap. 12 (v. 12).
962 Assim fazem Bousset, Holtzmann e outros.
928 Repetidamente ele descreve primeiro o contexto de um personagem que surge na visão, e depois o próprio personagem, p. ex., em Ap 1.12; 4.2,4; 6.2-8; 14.14; 20.4.
963 Em grego, krima didónai.
964 No tempo em que Roma era uma república, os romanos executavam os condenados com o machado, preservando o método ainda no primeiro século. Depois porém os executavam à espada.
965 De acordo com Rissi e Bietenhard essa segunda formulação consiste apenas de uma designação mais específica do primeiro grupo.
966 Para a forma correspondente (ezésan), cf. em Ap 2.8; 13.14; 20.5; Rm 14.9. Paralelos do assunto encontram-se em Ap 11.11 e 1Ts 4.16,17.
967 É o que demonstram Stauffer, Berkhof, Rissi, Bietenhard e Herntrich em Ki-ThW vol. iii, pág. 922. Como exemplo, cf. 2Sm 8.15. Também em Ap 22.3-5 os termos são trocados.
129 Aqui como também em Ap 5.10 deve-se preferir a versão “reino” (contra o texto revisado de Lutero). – Os membros da igreja atual nunca são chamados de “reis” no NT, nem tampouco se fala de seu “governo real”. O verbo “governar como rei” na verdade é relacionado com eles na forma futura (Ap 5.10; 22.5; 1Co 4.8; Rm 5.17), contudo nem mesmo então eles serão reis no sentido absoluto, mas apenas co-regentes de Deus e do Cordeiro, como demonstram Ap 3.21; 20.4-6; 2Tm 2.12. Deveria desaparecer entre cristãos um certo linguajar elevado de que “reinarão”. Eles são sacerdotes e devem continuar sendo os mesmos até a data de Ap 22.3.
968 O Ap não usa artigo definido no caso do nome próprio; passagens correspondentes sobre o Cristo em Ap 11.15; 12.10.
969 Schumacher opina que o papel de Israel no reino dos mil anos era tão óbvio que poderia ser omitido no texto (op. cit., p. 197).