Estudo sobre Apocalipse 22:18-20
Apocalipse 22:18-20
O reaparecimento enfático desse “eu”, eu… testifico, depois do “eu, Jesus” no v. 16 com certeza significa que o próprio João volta a usar da palavra. Depõe em favor dessa leitura também o modo pelo qual é feita menção de Deus nos v. 18,19. O sentido desses versículos, afinal, reside no fato de que aquele que violar a mensagem de João, fere a majestade de Deus.1107
Se alguém… fizer qualquer acréscimo a tudo isso, Deus lhe acrescentará os flagelos (“as pragas”) escritos neste livro; e, se alguém tirar qualquer coisa (“algo”) das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte (“o seu quinhão”) da árvore da vida (“da madeira da vida”) da cidade santa e das coisas que se acham escritas neste livro (“e da cidade santa, os quais estão descritos no presente livro”). A comparação com Dt 4.2; 12.32; Jr 26.2; Pv 30.6; Ec 3.141108 mostra que João fez uso de uma fórmula consolidada e muito conhecida, a chamada fórmula canônica. Por meio dela um acervo de palavras é declarado como intocável. Como texto sagrado, deve ser “observado” assim como é (Ap 1.3; 22.7). Ai dos revisores posteriores que o alteram, tratando-o como outros textos e seu autor como um igual a eles. Deus está pessoalmente por trás do presente autor. Como tal, o autor não é um parceiro de discussão que traz a sua contribuição, eventualmente retirando-a novamente, para voltar a oferecê-la, modificada, ao debate. Seu escrito apresenta-se como autoridade e norma. Quem não o cumpre como tal causa o mais grave dano à igreja, porque faz com que ela e todos os seus diálogos percam a orientação.
A sensibilidade moderna contra tudo o que é autoridade com certeza tem seus motivos. Por isso não deveríamos contradizê-la irrefletidamente. Talvez se tenha falado por tempo demasiadamente longo de Deus, o “Pai”, sem ao mesmo tempo distingui-lo enfaticamente de pais terrenos, que de fato são maus (Mt 7.11); ou do “Senhor” Jesus Cristo, sem destacá-lo diante de senhores terrenos que exercem poder (Mt 20.25-28). Isso significaria, porém, que no fundo o protesto não se dirige tanto contra a verdadeira autoridade de Deus e o senhorio de Cristo, pois por meio dessas distorções praticamente não se pôde visualizá-los. Pelo contrário, o ser humano está cansado da autoridade oriunda de seu próprio mundo sem Deus. Por isso, tem tanto maior necessidade do senhorio libertador de Deus e do Cordeiro.
Originalmente “cânon” é a vara de medir ou o fio de prumo, no caso dos operários da construção. Depois o termo foi aplicado a valores intelectuais: “cânon” como medida de avaliação que não engana, como critério, p. ex., em Gl 6.16. A disputa sobre a doutrina e vida genuinamente cristãs, uma disputa que começou cedo, demandou normas compromissivas. A partir da metade do século iv tornou-se usual chamar de “cânon” a coletânea (basicamente já definida desde o ano 200) de escritos bíblicos, diferenciando-a de outros escritos religiosos. O “cânon” era considerado “palavra de Deus” em sentido proeminente. Nele tinha de ser medido tudo o que visava ser verdadeiramente divino, espiritual e cristão.1109
O último escrito do NT é o único que já afirma sua validade canônica com todas as formalidades.1110 João não tem reservas ao levar integralmente a sério a primeira frase de seu livro: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer”. Nesse livro são iluminadas validamente de uma vez por todas a natureza e a configuração do tempo entre a Ascensão e a parusia. Contradizer essa visão significaria profecia falsa e um posicionamento fora da igreja cristã.
Propositadamente falamos de uma fórmula de canonização. Assim como um marco limítrofe não substitui a divisa nem uma placa de trânsito substitui o caminho, assim uma fórmula não isenta de uma reflexão penetrante e sensata. Irrefletido e insensato seria, p. ex., no presente caso, condenar todo copista que por engano exclui uma palavra do original, todo tradutor da Bíblia que acrescenta um termo explicativo, ou todo comentarista que explica uma seleção do Ap. Pelo contrário, os v. 18,19 incidem sobre a falsificação intencional da mensagem. Sem dúvida essa mensagem não pode ser separada do acervo de palavras, e por isso requer-se de fato todo o cuidado para copiar, traduzir e interpretar. Não obstante, a conexão entre conteúdo e forma não é mecânico e rígido. Cada tradutor precisa necessariamente verter todo o acervo terminológico para dentro de outro corpo linguístico, para que justamente desse modo a mensagem torne a evidenciar-se com clareza.
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Assim, seria um equívoco grosseiro usar a advertência de João contra as citadas alterações, deficiências e falhas. O resultado apenas seria o oposto do que o anjo deseja no v. 10: pelo mero temor de cometer erros o livro não seria mais tocado, nem explicado, nem divulgado.1111
No entanto, continua sendo essencial a advertência a todos os intérpretes uma vez tocados pela mensagem profética desse livro, que não tentem ser mais “evangélicos”, “cristãos” ou “bíblicos” que esse João. Um acredita que entende mais de amor e ameniza as afirmações de juízo do livro. Outro acredita conhecer melhor a natureza do mundo e exibe um quadro não tão sombrio, abrandando os juízos severos. Ou o comentarista simplesmente se afasta com um gesto brusco de uma mensagem assim, porque nossa época, afinal, pede um otimismo ousado e elegante. Nesses casos e em outros semelhantes não sucede algo insignificante, pois esses momentos da mais íntima infidelidade não nos demitem da verdade desse livro. Quem teve um encontro com esse livro permanece acoplado a ele, para salvação ou perdição. Ao que quebrar essa palavra, ela o quebrará, assim como ela guardará ao que guardar essa palavra (Ap 3.10).
Mais uma vez o Senhor Jesus Cristo declara que ele mesmo é responsável por esse livro, repetindo pela última vez o tema básico que soou por todos os seus capítulos. Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente (“Sim”), venho sem demora (“venho numa rapidez”). Por meio do sim de intensificação ele quebra toda e qualquer objeção. A promessa está patente de modo radiante. Ele vem com certeza.
É provável que na sua resposta João tenha esperado que toda a igreja fale em coro: Amém! Vem, Senhor Jesus! A asserção hebraica Amém coincide, em seu sentido, com o sim aqui pronunciado pelo Senhor. Ambas as fórmulas de asserção se encontram juntas em Ap 1.7, precisamente nos lábios de João. Agora surgem separadas, distribuindo-se ao Senhor e à igreja que responde. Trazem uma consonância na palavra e na resposta, uma confluência e imbricação profundas: Sim, eu venho – sim, vem, Senhor!
No cristianismo primitivo não apenas o “Amém” hebraico detinha conotação de fórmula. Também a breve frase seguinte “Vem, Senhor Jesus!” fazia parte, na forma do maranata aramaico, do linguajar litúrgico.1112 O pedido é de suma gravidade. Nas passagens referidas ele consistentemente denota a característica de uma palavra de advertência contra o cristianismo falsificado e adaptado por conta própria.1113 A expressão significa o chamamento do Juiz e na prática solicita, com o desaparecimento do presente mundo, que também termine o cristianismo em sua forma historicamente constituída. Por isso, quem ora dessa maneira, em boa parte também ora contra si próprio. Pois que restará quando vier o Senhor? Essa questão requer ser avaliada inclusive com o juízo nela contido referente à própria pessoa. É por isso que não é tão fácil pronunciar o sim ao maranata. Somente o poder do Espírito Santo poderá produzi-lo em nós (cf. o comentário ao v. 17).
Em conjunto com a saudação de abertura em Ap 1.4 o final a graça do Senhor Jesus seja (“esteja” [bj, blh, vfl]) com todos emoldura o livro, dando-lhe o cunho de uma autêntica carta. Ele evoca os versículos finais de diversas cartas do NT.1114 Enquanto, porém, os votos daquelas são enriquecidos de uma ou outra forma, o presente destaca-se por seu tom lacônico.
Em lugar do “convosco” na saudação de abertura aparece agora “com todos”. Nesse detalhe pode residir uma ampliação intencional além das sete igrejas arroladas em Ap 1.11, de forma muito análoga com o que já ocorreu nos ditos de gravação das mensagens às igrejas e em passagens como Ap 2.23. João saúda “todos os santos”, como acrescenta um manuscrito. Seu voto de bênção abençoa muito mais pessoas do que João poderia ter diretamente diante de si. Toda pessoa que foi capaz de ler até esse último versículo tem o direito de saber que é procurada e tocada pela graça do Senhor Jesus Cristo, que é, que era e que virá.
Será que o tom da graça não se fez um pouco de rogado, depois de tantas e implacáveis exortações ao arrependimento? Não se deve pôr atadura em feridas enquanto ainda houver impureza nelas. Em consequência, curvamo-nos em todos os aspectos ao serviço profético de João. “Bem-aventurado aquele que guarda (“cumpre”) as palavras da profecia deste livro”.
Índice:
Apocalipse 22:18-20
Notas:
1114 Rm 16.24; 2Co 13.14; 2Ts 3.18; Ef 6.24; 1Pe 5.14.
1107 Palavras finais análogas em escritos de João: Jo 20.31; 21.24; 1Jo 5.13; 2Jo 12; 3Jo 13.
1108 Passagens análogas também em escritos posteriores, p. ex., no Didaquê 4.13.
1109 Ainda que o termo “cânon” tenha sido usado apenas no século iv, a igreja jamais ficou sem cânon propriamente dito. Desde o começo havia o AT, o testemunho oral e, depois, também o testemunho escrito dos apóstolos, com poderes normativos. Por isso não é historicamente correto dizer que somente a igreja posterior “criou” o cânon, motivo pelo qual a igreja estaria acima do cânon. Pelo contrário, a igreja se curvou sob a força da norma em vigor. Cristo, o evangelho e os apóstolos existiram antes da igreja.
1110 “Em função disso a presente passagem… alcançou a maior importância para a história do cânon” (Hadorn, pág. 220). João tornou-se, de certa forma, o “fundador do cânon do NT” (Windisch, citado por Lilje).
1111 Igualmente trata-se de um equívoco quando de Wette fala aqui de uma advertência “severa demais” ou quando Lutero constata uma autoconsciência insuportável. Em Gl 1.5-9 Paulo não fala num tom menos incisivo que João.
1112 1Co 16.22; Fp 4.5; Didaquê 10.6.
1113 Com certeza Lilje não reproduz o tom certo quando fala seguidamente, nesse contexto, do “anseio” e de uma “teologia da saudade”.