Paulo: Aflições e Provações — Enciclopédia da Bíblia Online

PAULO: AFLIÇÕES E PROVAÇÕES

Paulo faz referência reiterada às próprias provações e aflições, por vezes organizando-as em catálogos dentro das cartas. Entre os golpes de sua carreira apostólica, a perseguição movida por compatriotas judeus parece ter-lhe sido especialmente penosa. Ainda assim, as cartas deixam entrever uma disposição teológica positiva frente ao sofrimento, lido como participação na obra de Cristo e como disciplina que engendra perseverança, caráter provado e esperança.

1. Catálogos de Aflições.

As provações de Paulo são múltiplas e heterogêneas, como atestam os catálogos que pontuam suas cartas (Romanos 8:35; 1 Coríntios 4:9–13; 2 Coríntios 4:8–9; 2 Coríntios 6:4–5; 2 Coríntios 11:23–29; 2 Coríntios 12:10). Esses elencos, além de informativos, cumprem função retórica: configuram um “catálogo de perístase”, forma conhecida no mundo helenístico para expor circunstâncias adversas de modo a construir ethos e demonstrar autenticidade de missão; Paulo, porém, subverte a teleologia clássica desse gênero, pois em vez de celebrar a autossuficiência, confessa fraqueza a fim de destacar o poder de Cristo (2 Coríntios 12:9–10). Estudos recentes sobre 2 Coríntios 10–13 tratam explicitamente a seção como perístasis e mostram como ela opera na estratégia do “Discurso do Insensato” (2 Coríntios 11:23b–12:10).

1.1. O catálogo mais abrangente.

Em 2 Coríntios 11:23–29, Paulo oferece o elenco mais minucioso. Primeiro (11:23b–25), descreve prisões, açoites e perigos de morte: cinco vezes recebeu dos judeus a flagelação sinagogal de “quarenta menos uma”, três vezes sofreu o castigo de varas por gentios, passou por um apedrejamento e por três naufrágios. Depois (11:26), relata os riscos de viagens incessantes: rios, assaltantes, hostilidade tanto de judeus quanto de gentios, perigos em cidade e deserto, no mar e entre “falsos irmãos”. Em seguida (11:27), aponta o desgaste físico e material — vigílias, fome e sede, frio e falta de abrigo. Por fim (11:28–29), eleva o olhar do corpo à mente: a carga diária de ansiedade por todas as igrejas. Dois enquadramentos históricos iluminam esses itens. A contagem de trinta e nove açoites corresponde à prática rabínica que, precavendo-se contra transgressão do limite de quarenta em Deuteronômio 25:2–3, fixou o máximo em “quarenta menos um”, como registram a Mishná Makkot 3:10 e seus comentadores. Já o “açoite com varas” remete ao ambiente penal romano: os lictores portavam fasces como símbolo do poder coercitivo dos magistrados, e as leis Valéria e Pórcia garantiam ao cidadão romano o direito de apelação e proteção contra flagelações degradantes, o que explica o tumulto quando Paulo invoca a cidadania em episódios como os de Atos 16 e Atos 22.

Paulo: Aflições e Provações

1.2. Paralelos na literatura antiga.

Moralistas helenísticos descrevem a dureza como prova formadora de caráter. Em Epicteto, os Discursos retornam ao motivo do exercício da alma para suportar agruras com serenidade e distinção entre o que está sob nosso poder e o que não está; o conjunto permite ver como a adversidade funciona como “matéria-prima” da virtude (cf. Discourses, coleções canônicas). Em Sêneca, as Epistulae Morales ad Lucilium insistem que a dor pode ser ocasião de fortaleza e de governo de si, tema tangenciado já nas cartas iniciais e ao longo da coleção; a recepção moderna frequentemente destaca esse fio, mas a matriz é antiga e coerente com o ideal estoico. Em Dio Crisóstomo, encontra-se a formulação explícita de que suportar a dureza “submete a virtude à prova” (Discurso 3.3), sinal de um topos amplamente difundido. À primeira vista, os catálogos paulinos se aproximam desse horizonte: lista-se o que se padeceu para modelar perseverança. Mas a divergência é essencial. Paulo admite o impacto real das aflições (2 Coríntios 1:8–9), recusa o elogio do domínio de si e glorifica o fato de que o sustento vem “do poder de Cristo” (2 Coríntios 12:9–10). Em termos de forma, Paulo adota um gênero reconhecível; em termos de finalidade, o adapta segundo o Antigo Testamento (o justo sofredor), a expectativa apocalíptica (dores escatológicas) e, sobretudo, a sua teologia da cruz, na qual o ministério se configura à morte e vida de Jesus — ponto largamente assinalado pela pesquisa retórica e exegética sobre 2 Coríntios.

2. Perseguição por parte de judeus.

Entre os múltiplos sofrimentos, a perseguição “por causa do evangelho” ocupa lugar recorrente: Paulo foi hostilizado por judeus, gentios e falsos irmãos (2 Coríntios 11:26), mas as referências a perseguições vindas de judeus são especialmente frequentes (Romanos 15:31; 2 Coríntios 11:24, 26; Gálatas 5:11; 1 Tessalonicenses 2:14–16). A leitura histórica de 1 Tessalonicenses 2:14–16, em particular, exige cautela: há defesa da autenticidade e argumentos de interpolação, debate mapeado tanto por revisões recentes quanto por estudos clássicos; reconhecer o estado da questão é requisito de uso responsável do texto.

2.1. Ele pregou a fé que outrora tentou destruir.

Conforme Atos 9:1–2, Paulo antes perseguia a Igreja com autorização do sumo sacerdote; após o encontro com Cristo, passou a anunciar aquilo mesmo que combatia (Gálatas 1:23). A inversão pública de lado — do zelo contra a comunidade de Jesus ao zeloso serviço do evangelho — explica a antipatia de lideranças judaicas e parte da perseguição subsequente, como a própria narrativa lucana mostra.

2.2. Ele relativizou seu capital religioso.

A conversão redefiniu seu sistema de valores: aquilo que contava como ganho no judaísmo — linhagem, observância, zelo — torna-se “lixo” diante da excelência do conhecimento de Cristo (Filipenses 3:4–8). Se esse reordenamento era conhecido e ensinado por ele, é compreensível o antagonismo de compatriotas que viam nisso desqualificação simbólica de capitais identitários caros à comunidade.

2.3. Ele derrubou barreiras cultuais pela mesa comum.

Em Antioquia, Paulo confronta a recusa de comensalidade entre judeus e gentios motivada por escrúpulos de pureza (Gálatas 2:11–21). A defesa de uma só mesa sob o senhorio de Cristo minava fronteiras que, para muitos, preservavam marcadores identitários decisivos, o que explica resistências e hostilidades da parte de zelosos da Lei.

2.4. Ele não pregou a circuncisão.

Aqui, Paulo é explícito: se ainda pregasse a circuncisão, o escândalo da cruz estaria neutralizado e ele não seria perseguido (Gálatas 5:11). Ao afirmar que sinais identitários não justificam, o evangelho paulino altera equilíbrios teológicos e sociais e, por isso mesmo, provoca reações.

2.5. Ele não afrouxou as exigências éticas.

A imputação de que sua doutrina “relaxa” a moral é repelida como blasfema (Romanos 3:7–8). Ainda que infundada, a percepção circulou entre adversários e provavelmente contribuiu para a perseguição. De toda sorte, Paulo não maquila as feridas: confessa ter sido “sobrecarregado acima das forças” (2 Coríntios 1:8–9), mas atribui a perseverança à ação de Deus — jamais a um triunfo da autarquia.

3. A atitude de Paulo diante das provações e aflições.

Paulo não propõe uma teodiceia sistemática do sofrimento, mas suas cartas revelam linhas de compreensão que situam a dor no horizonte do chamado apostólico e da conformação a Cristo.

3.1. Destino e privilégio dos crentes.

Para animar os filipenses, recorda que lhes foi concedido não apenas crer, mas também sofrer por Cristo (Filipenses 1:29); aos tessalonicenses, lembra que “fomos destinados” a enfrentar tribulações (1 Tessalonicenses 3:3–4; cf. 2 Timóteo 3:12). A aflição não é excentricidade biográfica, e sim traço constitutivo da vocação cristã num mundo refratário ao evangelho.

3.2. Participação nos sofrimentos de Cristo.

Em Colossenses 1:24, Paulo fala em “completar” em seu corpo “o que falta” das tribulações de Cristo “em favor do seu corpo, que é a Igreja”. Longe de sugerir déficit expiatório na cruz, o enunciado descreve participação apostólica: o ministro padece para que os eleitos recebam o evangelho (cf. 2 Timóteo 2:10). A literatura paulina contemporânea tem enfatizado essa chave participatória, sob o signo da cruciformidade, como eixo da espiritualidade de Paulo — leitura coerente com seus catálogos de perístasis e com 2 Coríntios 4:7–12.

3.3. A disciplina das aflições.

Justificados, “gloriamos-nos nas tribulações”, porque estas produzem perseverança, caráter provado e esperança (Romanos 5:3–4). A disciplina da dor não anestesia o sofrimento, mas o recontextualiza sob a mão de Deus. Quando desesperou da própria vida, Paulo aprendeu a não confiar em si, e sim em Deus que ressuscita os mortos (2 Coríntios 1:8–9) — essa é a conversão do coração que transforma feridas em escola de confiança.

3.4. Sofrimento e consolação.

O “espinho na carne” não foi removido; Paulo ouviu: “Basta-te a minha graça, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Coríntios 12:8–9). Assim, ele entende que é consolado para consolar: o “Deus de toda consolação” conforta seus servos para que estes sejam instrumentos de conforto a outros em toda tribulação (2 Coríntios 1:3–7). Nesse paradoxo apostólico, a fraqueza que acolhe o poder de Cristo torna-se fonte de edificação para a Igreja.

Bibliografia

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GALVÃO, Eduardo. Paulo: Aflições e Provações. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

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