Peculiaridades e Problemas na Carta aos Hebreus

Peculiaridades e Problemas na Carta aos Hebreus

Peculiaridades e Problemas na Carta aos Hebreus


O autor e os destinatários de Hebreus (Hb) não se deixam definir com mais propriedade. Da mesma forma, ignoramos o local e a época da redação da carta. Em alguns manuscritos antigos indica-se Roma e Atenas como locais do remetente, contudo não podemos atribuir grande valor histórico a essas referências. Também a data em que a carta foi escrita não pode ser definida com exatidão. Geralmente presume-se uma data após o ano 67, o presumível ano do falecimento do apóstolo Paulo. Com certeza a carta foi escrita antes da última década do primeiro século, visto que o presbítero de Roma, Clemente, ao redigir sua carta à igreja em Corinto no ano de 97 fez uso de Hebreus.

Contudo, não é a ausência destes dados que caracteriza a peculiaridade de Hebreus. Antes, é o seu “caráter literário”. Os apóstolos Paulo e Pedro escrevem em suas cartas tudo o que pesa sobre o seu coração. Além de reflexões teológicas elaboradas encontramos nelas sempre um grande número de orientações práticas para nossa vida diária de fé. Em suas cartas espelha-se a situação interior e exterior das primeiras comunidades cristãs com suas alegrias e aflições, suas lutas e dificuldades. Em contraposição, em Hebreus deparamos com uma reflexão teológica progressiva. Um tema uniforme é executado por meio de uma estruturação artística. Essa diferença essencial de Hebreus em relação às demais cartas do NT repetidamente desencadeou a suposição de que Hebreus poderia ser não uma carta e sim uma pregação transmitida por via escrita. Realmente parece confirmá-lo o uso freqüente de “palavra” e “falar” e a ausência dos conceitos “carta” e “escrever”. Em datas mais recentes, O. Michel (pág 4) e J. Schneider (pág 10) defenderam a opinião de que Hebreus seria uma prédica, respectivamente uma homilia do primeiro cristianismo, um discurso espiritual edificante com decorrências práticas, que possivelmente foi pensado para um círculo mais largo de leitores.

Cabe considerarmos, porém, que já na Antigüidade – assim como em nosso tempo – desenvolveram-se várias formas de carta com estilo diferente, de maneira que nem todas as cartas tinham de ser necessariamente formuladas no estilo como o preferia, p. ex., o apóstolo Paulo. Da história da formação do cânon sabemos que a igreja antiga contava Hb entre as cartas apostólicas. Assim, Orígines e Eusébio, apesar de chamarem atenção para as peculiaridades lingüísticas e de conteúdo de Hb, falam dela como carta (no grego: epistolé). Também Atanásio, em sua 39ª carta pascal do ano de 367, relacionou Hb entre as cartas do NT (como carta de Paulo). Esse fato comprova que naquele tempo a singularidade literária de nossa carta não foi sentida como algo fora do estilo.

Das possíveis informações sobre o autor e os destinatários resulta o quadro de que se trata de uma missiva direta a uma igreja ou a um círculo de fiéis. Através da forma da redação ele fala com intensidade para uma determinada situação eclesiástica. As palavras de Hb 13.22ss não proporcionam imperiosamente a impressão de serem casuais, mas mostram que foi intencional a instrução dos fiéis pela presente forma escrita de uma carta.

Outro problema surge em Hb pelo fato de que não podemos determinar com segurança seu objetivo e seu alvo. Com toda a certeza Hb tem em vista cristãos que, cansados e decepcionados, tendem para a apostasia. Dessa circunstância resultou o seguinte raciocínio: toda apostasia da fé inclui a pergunta: “Apostasia – para onde?” A resposta parece evidente: de volta para o judaísmo! Em muitos círculos de cristãos sérios pensouse que Hb seria dirigida exclusivamente a judaico-cristãos. Pensava-se que em Hb 6.10 falava-se de judeus em vias de terem uma recaída, impressionados pelo culto em Jerusalém, e que se desligavam interiormente da comunidade dos fiéis. Por isto, as advertências e exortações de Hb não podiam ser pertinentes para “cristãos dentre os gentios”. Não podemos partilhar essa convicção, por diversas razões.

No ano 70 o templo em Jerusalém foi destruído, o estado judeu foi aniquilado, o culto judaico foi proibido. Não se deve inferir que a carta tenha sido escrita antes do ano 70 do fato de que a destruição de Jerusalém não é mencionada em Hb. Não é possível depreender que o autor esteja pensando no sacrifício do templo das palavras de Hb 8.4 e 9.6,7, nas quais se fala do serviço de sacrifícios na forma verbal do presente. O presbítero Clemente escreve de forma idêntica aos coríntios quando interpreta o AT, apesar de saber perfeitamente que o templo virou cinzas há quase três décadas. Pelo contrário, as palavras de Hb 2.3 e

13.7 tornam bem plausível que se defina a cronologia de Hb para depois do ano 70. Com isso Hb teria surgido numa época em que, devido à destruição do templo, todo o serviço de sacrifícios teria se tornado inviável. Além disso – como já dissemos – observamos que em Hb não se dá importância aos eventos históricos do templo de Jerusalém e de suas ordens. Pelo que se nota, o contraste entre judaico-cristãos e gentílico-cristãos sequer está em foco em Hb. Seu tema não é a libertação interior do serviço sacrificial judaico de um grupo de judaico-cristãos em vias de recaírem, mas é unicamente a glória do eterno Sumo Sacerdote Jesus Cristo. Além disso, não possuímos nenhum indício, a partir das fontes do cristianismo primitivo, de que judeus que vieram a crer em Cristo apostataram dele e voltaram novamente ao culto de sacrifícios. A carta aos Hebreus mostra o entendimento da interpretação apropriada do AT, a saber, que a partir do cumprimento torna-se claramente perceptível tudo o que foi dito com vistas ao cumprimento. Ela evidencia que Jesus Cristo apenas pode ser entendido corretamente pela mediação do AT, mas que inversamente também o AT adquire seu verdadeiro sentido apenas por meio de Jesus Cristo.

De acordo com o testemunho do NT não pode haver na comunidade nenhuma diferença essencial entre judaico-cristãos e gentílico-cristãos, todos são membros do mesmo corpo, aos quais é dirigida de igual modo a palavra de Deus (Ef 2.14-18). Desde os tempos mais antigos Hb foi conhecida nas comunidades cristãs, foi lida e obteve aceitação. Por meio de sua inclusão no cânon do NT, os homens responsáveis das igrejas decidiram sob a direção do Espírito Santo que também Hb constitui um patrimônio compromissivo de todo o cristianismo. O grupo de fiéis a que é dirigida a carta está diante de problemas da segunda e terceira gerações, problemas que se repetem a cada dia nas comunidades locais dos fiéis. É precisamente sob este aspecto que a presente carta pode repetidamente mostrar à igreja de Jesus em todos os tempos o caminho certo para sair das dificuldades.

Qual é o alvo que o apóstolo persegue com sua carta? Que deseja ele alcançar junto de seus leitores? Na tentativa de responder a essas perguntas, manifestaram-se muitas suposições. Como já foi exposto, vários estudiosos pensaram que o apóstolo queria prevenir cristãos judaicos de apostatarem de volta para o judaísmo. Outros visualizaram em Hb um desafio a judaico-cristãos excludentes, para que se dediquem à missão mundial. Outros, por sua vez, pensam que Hb teria o objetivo de expor o significado universal da fé cristã a uma comunidade predominantemente gentílico-cristã, ou ainda que ela estaria refutando uma forma inicial da heresia, introduzida na comunidade por gnósticos. Theodor Zahn definiu de modo bastante genérico que o objetivo de Hb seria proteger os leitores diante do perigo de decaírem da confissão cristã. “Não uma fé errada, mas descrença é o perigo em que eles estão prestes a cair”. De maneira mais cautelosa expressa-se Eduard Riggenbach, ao declarar que a “finalidade principal de Hb seria manter e fortalecer os leitores na ligação com Cristo”.

Hermann Strathmann considera como alvo de Hb a superação da devoção vinculada ao templo por meio de Cristo. Poderíamos continuar nessa listagem, mas reconhecemos claramente que até o momento não fomos além de conjeturas ao tentar responder a essa pergunta. Nenhuma das respostas citadas pode ser comprovada inequivocamente como certa. Será que a solução do problema poderia eventualmente consistir na síntese de várias das respostas antes tentadas? Gostaríamos de aderir a Otto Michel, que vê a “ponta do pensamento teológico” nas exortações, que visam preparar a disposição da comunidade para o sofrimento. Alvo de Hb é fortalecer os fiéis para a luta de fé no sofrimento antes que comece o martírio. Com isso, porém, a carta ganha tanto maior importância quanto mais a trajetória da igreja se aproxima do tempo escatológico e, com isso, do sofrimento e da perseguição, como a Escritura prenuncia. Não por último, é a extraordinária apresentação da pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo que faz de Hb uma dádiva preciosa do Espírito Santo à sua igreja, de maneira que Heinrich Thiersch (1817-1885) chegou a escrever: “De todas as cartas da coletânea canônica, esta penetra mais profundamente. Ela realmente oferece comida forte para adultos em Cristo, e sem que a igreja assimile vivamente essas verdades não haverá crescimento para a perfeição”.

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Fonte: Carta aos Hebreus, Comentário Bíblico Esperança