A Lei no Evangelho de Mateus

A Lei no Evangelho de Mateus

A Lei no Evangelho de Mateus

Em Mateus, o tópico da lei levanta algumas questões desafiadoras, mas antes de nos lançarmos em alguma delas é proveitoso reservar um momento para definir o próprio termo. Em geral, o termo “lei” se refere ao aspecto legislativo do Antigo Testamento, expresso, principalmente, nos cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco. Os saduceus, por exemplo, usam essa parte da Bíblia como a autoridade para decidir questões de teologia e prática. Por sua vez, os fariseus, ao mesmo tempo em que aceitavam a autoridade do Pentateuco e do restante do Antigo Testamento como importantes para a teologia e a prática, viam com igual simpatia a tradição escrita de interpretação e aplicação das Escrituras. Essa tradição se desenvolveu em resposta às perguntas sobre o comportamento apropriado ou assuntos não tratados de forma específica pelos textos bíblicos. Além disso, os fariseus reconheciam que os exílios nacionais passados, em parte, foram precipitados pelo fracasso de Israel de viver em fiel concordância com a lei do Antigo Testamento que receberam. A tradição oral, a fim de prevenir contra a repetição dessas tragédias e de inculcar a preocupação com o viver justo em geral, também desenvolveu linhas paralelas que tentavam proteger o povo de violar a lei de Deus, por ignorância ou involuntariamente. Pode-se também se referir a esse conjunto de tradição legal como lei, apesar de Mateus usar o termo “tradição” (paradosis) para descrever a tradição oral (15.2,3,6). Assim, a lei, em geral, refere-se à porção legislativa do Antigo Testamento.

A apresentação dessa questão da lei por Mateus é carregada de tensões intrigantes. Por exemplo, Jesus, na primeira parte do Sermão do Monte, afirma de forma inequívoca que Ele não veio para “destruir a lei ou os profetas; [...] mas cumprir” (5.17). Essa parece ser uma afirmação bastante clara de que, em geral, o Antigo Testamento continua válido, embora se possa dizer que o cumprimento das profecias específicas implique que, nesses casos, a aplicabilidade imediata, no mínimo, chegou ao fim. O versículo seguinte também parece assumir uma visão de longo termo da validade da lei, afirmando que “até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo seja cumprido” (5.18). Mais uma vez, a frase “sem que tudo seja cumprido” deixa espaço para manobrar certos pontos; todavia, é difícil escapar da longevidade subentendida pelo fato de que o céu e a Terra ainda permanecerão por um pouco mais de tempo (pelo menos, até o retorno de Cristo).

O versículo seguinte parece igualmente preciso e inequívoco: “Qualquer, pois, que violar um destes menores mandamentos e assim ensinar aos homens será chamado o menor no Reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no Reino dos céus” (5.19). É possível que esses “mandamentos” antecipem o ensinamento de Jesus que logo se seguiria. No entanto, é mais provável que o contexto aponte na direção dos mandamentos do Antigo Testamento, embora as palavras seguintes de Jesus em que fala sobre os discípulos excederem a justiça dos escribas e fariseus (v. 20) possa ter o intuito de orientar o leitor para a antítese que se segue (5.21-48). Todavia, é difícil escapar à noção de que esses versículos equivalem a um endosso retumbante da lei e a uma afirmação de sua validade permanente. Não obstante, um problema dessa visão repousa no fato de que os extratos do ensinamento de Jesus apresentados após essas passagens (5.21-48) parecem, em diversas ocasiões, ir além das prescrições da lei do Antigo Testamento ou apenas deixá-las de lado como não mais aplicáveis. Os comentários sobre juramentos (5.33-37), por exemplo, acabam por deixar de lado várias prescrições do Antigo Testamento sobre fazer o juramento e cumpri-lo (por exemplo, Lv 19.12; Nm 30.2-15; Dt 23.21-23; SI 50.14) e, em vez delas, prescreve-se um cândido: “Sim, sim; não, não”, acrescentando que qualquer coisa a mais “é de procedência maligna” (Mt 5.37). Claro que se pode entender isso como uma forma positiva de dizer que Deus está interessado na integridade e simplicidade do discurso, enquanto a legislação do Antigo Testamento estava preocupada em limitar a duplicidade.

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Portanto, o ensinamento de Jesus representa a contraparte positiva da lei, a consumação da justiça em face da tentativa do Antigo Testamento de limitar o mal. Sem dúvida, há algo nessa argumentação, porém, é difícil não perceber como, de fato, ela torna certas porções da legislação do Antigo Testamento obsoletas. O mesmo ponto de vista aparece na seção seguinte que diz respeito ao limite da retribuição (5.38-42). O Antigo Testamento estipula a retribuição no que se pode chamar de retaliação do mesmo tipo e grau: “Olho por olho e dente por dente” (Êx 21.24; Lv 24.20; Dt 19.21).44 Mas Jesus proscreve a retribuição de qualquer tipo: Ele diz que não deve haver retaliação para as obras más.45 Em bora possamos ver isso como um contraste entre o que era necessário à manutenção da estrutura da sociedade do Antigo Testamento e os privilégios pessoais abertos aos que vivem na era do Novo Testamento, permanece o fato de que essa questão gera certo desconforto com a argumentação de que a lei deve ser cumprida.

Talvez as pessoas familiarizadas com o Antigo Testamento que lêem Mateus 5 se sintam um tanto confusas se tiverem de decidir qual a resposta apropriada às perguntas sobre a validade da lei para os discípulos de Jesus. Antes de tentar resolver essa questão, pode-se acrescentar o problema da lei oral e seu tratamento em Mateus como mais um fator complicador desse dilema. Em vista do que Jesus disse sobre as tradições dos fariseus, conforme registrado em Mateus 15.1-20, o assunto pareceria estar claro. Jesus, em resposta à pergunta dos discípulos a respeito dos fariseus e seus escrúpulos, disse: “Deixai-os; são condutores cegos” (v. 14). Contudo, Mateus registra estas palavras como introdução ao pronunciamento dos sete “ais” dirigidos aos escribas e fariseus: “Então, falou Jesus à multidão e aos seus discípulos, dizendo: Na cadeira de Moisés, estão assenta dos os escribas e fariseus. Observai, pois, e praticai tudo o que vos disserem” (23.1-3). Mais adiante, no mesmo capítulo, há uma declaração alinhada às afirmações de 5.17-20. Jesus fala para os escribas e fariseus: “[...] dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer essas coisas e não omitir aquelas” (23.23). O que um discípulo deveria concluir a respeito de observar pessoalmente a lei? E mais, o que um discípulo judeu cristão deveria concluir sobre ser adequado o relacionamento com o judaísmo que exige a observação da lei do Antigo Testamento e, para todos os propósitos práticos, também a atenção à lei oral? A luz das declarações registradas em Mateus, os líderes religiosos judeus devem ser abandonados ou obedecidos? Talvez o conselho de Jesus a respeito do pagamento da taxa do templo (17.24-27) aponte para a forma de resolver esse dilema.

O recolhimento dessa taxa de dois didracmas parece se basear na estipulação de Êxodo 30.11-16 de que todo judeu acima de vinte anos deve ofertar a metade de um siclo para o “serviço da tenda da congregação” (Ex 30.16). O pagamento de uma moeda de dois didracmas gregos satisfaz essa obrigação já que equivale mais ou menos à metade de um siclo. Apesar de essa taxa ou oferta obrigatória talvez ter sido determinada esporadicamente no curso da história de Israel, ela parece ser vista, na época de Jesus, como fundamentada na lei e, portanto, uma obrigação justa dos judeus para auxiliar o serviço do Templo de Jerusalém. Pedro, pelo menos, quando questionado sobre esse ponto pelos coletores de taxa, ou publicanos, não hesitou em afirmar que Jesus pagava a taxa. Todavia, mais tarde, Jesus pergunta-lhe: “Que te parece, Simão? De quem cobram os reis da terra os tributos ou os impostos? Dos seus filhos ou dos alheios?” (17.25). Pedro responde: “Dos alheios. Disse-lhe Jesus: Logo, estão livres os filhos”; Ele (de forma milagrosa) faz com que Pedro consiga a quantia para pagar a taxa em nome deles dois (w. 26,27). Em vista da forma como a resposta de Jesus para Pedro é apresentada, os filhos isentos (eleutheros, “livres” da obrigação) se referem a Jesus e a Pedro, veja o uso da primeira pessoa do plural do versículo 27. Eles, aparentemente, representam a irmandade mais ampla de discípulos associados a Jesus, descritos, antes, por Ele como “meus irmãos” (12.49) ou “filhos do Reino” (13.38). Os publicanos, como representantes do judaísmo, são as pessoas que Jesus não quer “escandalizar”. Os versículos seguintes usam (18.6,8,9; junto com o substantivo skandalon no v. 7) diversas vezes a palavra traduzida por “escandalizar” (skandalizõ) a fim de enfatizar a importância de não se fazer nada que possa ser um impedimento para o relacionamento de outro indivíduo com Deus ou criar um obstáculo para isso.

O que Jesus disse para Pedro é que os discípulos devem se considerar livres dessa estipulação da lei, uma prescrição do Antigo Testamento. Essa só pode ser uma observação feita em vista da prevista destruição do Templo (24.1,2). Contudo, é difícil escapar da implicação de que o que se aplica a um aspecto particular da lei também se aplica a toda ela. Por conseguinte, a extrapolação é que as ordenanças do Antigo Testamento, embora válidas para Israel, não se aplicam a Jesus e seus discípulos. Embora isso, de fato, possa ser, em teoria, uma indução válida, a prática que Jesus recomenda, pelo menos nesse caso, é a submissão a um preceito da lei. Ele recomenda isso a fim de não escandalizar os judeus aos quais Ele e os discípulos tentam ministrar. Por essa razão, talvez a visão de Mateus sobre o assunto seja que, apesar de as ordenanças específicas da lei não serem matéria de obrigação para Jesus e seus seguidores, a lei deve ser observada a fim de se manter um relacionamento com os judeus e aproveitar as oportunidades para ministrar que ela propicia.

Quem escolher não se submeter à lei é livre para fazer isso (“estão livres os filhos”), mas essa decisão pode escandalizar os judeus e, por fim, acabar com as oportunidades para ministrar entre eles. Observamos algumas das consequências de decisões como essa no que é dito sobre o relacionamento de diferentes grupos da Igreja Primitiva com os judeus. Aparentemente, o grupo de cristãos que permaneceu em Jerusalém, em torno de Tiago, era escrupuloso em relação à observância da lei (At 21.18,20). Estêvão era menos cuidadoso em alguns assuntos ou, talvez, menos reservado no discurso sobre algumas coisas (At 6.13,14). A esse respeito, todavia, retrata se Estêvão falando e agindo de forma semelhante à de Jesus. Paulo, por sua vez, parece ter aceito o fato de que estava livre da obrigação de observar a lei, embora, em algumas ocasiões, tenha se comprometido, de boa vontade, a sua observância. E, nesses casos, parece que tinha a finalidade de manter as oportunidades de ministrar para judeus (1 Co 9.19-21). Essa abordagem era inerentemente difícil de realizar e, por fim, trouxe-lhe problemas com certos judeus de Jerusalém que pretendiam acabar com esse tipo de comportamento e, assim, acabar com a carreira missionária dele. Eles foram impedidos de alcançar esse objetivo apenas por causa da intervenção romana (At 21.27-32). Vinhetas como essas ilustram por que pontos de vista distintos sobre o papel da lei não são resolvidos com facilidade. Apesar de talvez ter havido concordância teórica a respeito da libertação da lei em geral na comunidade cristã, parece que quando o assunto passou para a esfera da implementação prática, houve abordagens com diferenças relevantes.

Aprofunde-se mais!

Ao mesmo tempo em que Mateus não contesta a legitimidade da abordagem prática de Paulo, a orientação geral de seu Evangelho parece estar mais de acordo com o caminho seguido por Tiago. A permanência de referências às práticas judaicas em vários pontos do Evangelho (por exemplo, adoração no Templo, 5.23,24; esmola, 6.2-4; jejum, 6.16-18; taxas do Templo, 17.24-27; e observação do sábado, 24.20) e o firme endosso à prática da lei em 5.17-20 sugerem que Mateus via com simpatia os que escolhiam viver à luz da lei e dos preceitos do judaísmo. No entanto, ele reconhece que as observâncias exteriores são indiferentes para Deus. Isso é demonstrado na ênfase sobre a necessidade de haver justiça que exceda “a dos escribas e fariseus” (5.20), reconhecimento de que, em última instância, o relacionamento com Deus é um assunto do coração que apenas Ele pode avaliar.