Estudo sobre Apocalipse 12:14-17

Estudo sobre Apocalipse 12:14-17


Então João vê a terceira grande metáfora da preservação da igreja. De acordo com Ap 7.3 ela recebeu um selo, e com Ap 11.1 uma medida. Agora ela recebe asas. E foram dadas à mulher as duas asas da grande águia. Na verdade ela tinha, segundo o v. 6, um lugar de refúgio, “o deserto”. Mas como chegar até lá? Afinal, o dragão dominava sobre a terra (v. 12,13) e todas as estradas. Contudo Deus dispõe para ela de um caminho milagroso, a saber, a via aérea. Na Antiguidade voar ainda era algo admirado de maneira muito diferente de hoje. A águia, porém, é a rainha de todos os pássaros, uma imagem de gloriosa independência e facilidade para superar obstáculos e perigos terrenos. Além disso, deixa os filhotes participar disso, fazendo-os montar nela ou estendendo suas asas sobre eles. “Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas” (Sl 36.7). “À sombra das tuas asas, eu canto jubiloso” (Sl 63.7). No entanto, o artigo definido antes de “duas asas” parece revelar que estão diante dos olhos de João duas determinadas asas gigantescas. Já aconteceu uma vez que o povo de Deus tinha atrás de si o inimigo mortal que o perseguia e não sabia como poderia alcançar o refúgio do deserto. Então Deus concedeu maravilhosas “asas”: “Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a mim (ao Sinai)” (Êx 19.4; Dt 32.11-13).580

O povo de Deus do fim dos tempos tem o mesmo Deus de outrora, dos tempos iniciais. Novamente Deus levará sobre asas de águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar, aí onde é sustentada durante um tempo, dois tempos e metade de um tempo, fora da vista da serpente. Já na apreciação do v. 6 fomos advertidos a não gerar uma ideia geográfica desse lugar no deserto. A igreja pode morar geograficamente em Pérgamo, “onde está o trono de Satanás” (Ap 2.13), e, apesar disso, vencer (Ap 2.17) sem emigrar. Junto ao trono de Satanás existe uma preservação diante do trono de Satanás (cf. Jo 17.15). Ela não somente existe para um tempo determinado, para depois sucumbir à pressão incessante, e sim com uma sustentação por todo o tempo e por épocas sempre novas (quanto aos três e meio tempos, cf. o excurso 7). No mesmo espírito Paulo escreve em 1Co 3.22,23: “sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e vós, de Cristo”.

Então, a serpente arrojou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio. Será que devemos imaginar um monstro marinho, que lança do mar o seu jato de água? Contudo, conforme os v. 13,17, a cena se desenrola sobre a terra. Na verdade, tudo é um “sinal”, também essa água, que é expressamente definida mais de perto como um rio. Assim como o Eufrates pode representar a Babilônia, assim o “rio”, i. é, o Nilo, representa o Egito. “Foste como um dragão nos mares” (rc), é dito em Ez 32.2 a respeito de Faraó, “e bufavas com os teus rios” (tradução do autor). O rio Nilo significava a força e o orgulho do Egito (Ez 29.3-5).

A terra, porém, socorreu a mulher; e a terra abriu a boca e engoliu o rio que o dragão tinha arrojado de sua boca. Em muitas outras passagens do Ap a terra está contraposta ao céu como local do pecado. No atual contexto, porém, ela é distinguida do mar, que é contrário a Deus e portanto maligno (Ap 21.1). Por isso a terra concretiza o elemento bom. Também em Nm 16.30; 26.10; Dt 11.6 ela é a serva submissa de Deus. Procedente da criação, ela se evidencia como aliada da comunidade do Messias. Criação e redenção não requerem ser vistas em contraste. A fé se afasta unicamente do que é não natural. Entretanto, ela poderia ter um relacionamento quase de companheira para com a natureza, pois se coloca do lado dela e louva o Criador como a própria fé, conforme enaltecem os salmos. No atual contexto a criação ajuda a igreja duramente assediada. Desde os tempos do AT a comunidade experimentou muitos exemplos de como forças da natureza estavam milagrosamente a seu serviço (P. ex., Êx 14.21; 1Rs 17.4). Elas não servem ao diabo, a esse intruso, mas justamente aos legítimos senhores sobre a terra (Ap 5.10). Essa nova confirmação da igreja seguramente deixará seu perseguidor extremamente furioso.

Irou-se o dragão contra a mulher. Todos os milagres de preservação em conjunto não conseguem transformá-lo e levá-lo a parar. Ele continua sendo dragão e se enfurece sem cessar. Ele já se irou no v. 4 contra o Messias, no v. 7 contra Miguel, no v. 12 contra os moradores da terra, e agora e reiteradamente contra a mulher.

E foi pelejar com os restantes da sua descendência (“semente” [rc]). Essa guinada, voltando-se contra os descendentes da mulher não contém uma desistência da ira recém-mencionada contra a mulher. O leitor atento percebe que nessas ações bélicas justamente se desenvolve aquela ira, sem sequer trocar de alvo. O combate aos restantes é ira contra a mulher. Continua em jogo a perseguição do povo único de Deus, para o qual naturalmente há duas ilustrações à disposição: a metáfora da mulher para sua invulnerabilidade, a figura dos restantes para a ameaça a que está exposta.581

Consequentemente, não podemos separar a mulher de sua descendência (“semente”), assim como não se separa uma cidade de seus habitantes (cf. o comentário a Ap 12.1). Também a expressão “restantes” não se distingue da mulher, mas do Filho no v. 5. É a diferença entre o Primogênito e os muitos irmãos em Rm 8.29 (cf. também nota 579).

O nefasto ir do dragão para guerrear já aponta para Ap 13.7. Fica, portanto, preparado o capítulo central do Ap.


Ouvimos, ainda, a caracterização dos combatidos pelo dragão, que no cap. 13 aparecerão como os “santos”. São eles os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus. Essas expressões duplas são típicas para o livro inteiro, que começou com elas já em Ap 1.2, anunciando nelas sua fórmula fundamental “Deus e o Cordeiro”. A novidade no presente local é tão somente o fato de que “mandamentos de Deus” (ainda em Ap 14.12) são inseridos agora para “palavra de Deus” (Ap 1.2,9; 6.9; 20.4). Isso se encaixa bem na moldura do trecho de Ap 8.2, que é perpassado de tópicos da história do Israel antigo. Quando esse povo estava reunido no Sinai, trazido por “asas de águia”, ele recebeu os mandamentos de Deus como sinal de salvação (qi 35). O novo Israel recebe o “novo mandamento”,582 novo porque não é concedido do alto do Sinai, mas sim do alto da cruz de Cristo. No entanto, mais uma vez os “mandamentos” são propriamente um sinal de salvação, confirmação de que essa gente pode ser verdadeiramente povo de Deus, ou seja, ser amada, libertada e vocacionada. É por isso que esse novo mandamento e a nova obediência respiram paz e felicidade.

O dragão somente pode perseguir uma igreja assim. Afinal, com ela o amor e a soberania de Deus se alongam para dentro do âmbito de poder do dragão, interferindo em suas reivindicações.583 Na negativa da igreja, que obedece mais a Deus, o dragão reconhece a voz daquele que é seu Senhor e Juiz (v. 9). Ela grassa furiosamente contra essa voz. Por isso ele também investe contra a comunidade cristã.
17b A informação de que o dragão se pôs em pé sobre a areia do mar não deve nos levar a imaginar que, derrotado, ele se retira da terra (contra Lohmeyer). Pelo contrário, ele se excede e toma impulso para o golpe destruidor contra a igreja testemunha e obediente. Ao se postar junto ao mar,585 ele assume o seu elemento, tornando-se integralmente um dragão terrível. Já Ap 12.12 falou sobre seu vínculo com esse mar, vínculo este que agora adquire importância central.



Notas:
581. Uma, pois, é uma figura de sua essência em Cristo, a outra é um quadro de sua experiência no mundo. Ambos os aspectos valem decididamente para cristãos de origem judaica e gentílica, e para ambos vale também a continuação, segundo a qual os perseguidos cumprem os mandamentos de Deus e possuem o testemunho de Jesus. Referir a “mulher” a judaico-cristãos e a “descendência” (“semente”) a gentílico-cristãos (como pensam, p. ex., Rissi, Bousset) rompe todas as correlações do presente texto (cf. também o comentário a Ap 19.9).

579. Sua participação na história da vitória messiânica poderia também ser vista no fato de que ela tem “semente” (v. 17 [rc]), ou seja, que ela se dissemina entre todos os povos, línguas, nações e tribos (Ap 5.9; 7.9). Por trás dessas conversões em numerosos lugares aparece o poder do Messias: “Edificarei a minha igreja!” Por isso, no v. 17, a investida do dragão contra essa igreja de dimensões mundiais.

582. Essa interpretação é garantida pelo acréscimo de que também possuem o testemunho de Jesus. São precisamente os escritos de João que evidenciam que de forma alguma mandamento e evangelho precisam ser opostos. Nesses escritos “mandamento” aparece como palavra preferencial. Cada uma das cartas de Paulo igualmente mostra a intensidade com que o evangelho atualiza os mandamentos de Deus.

583. Segundo Deissmann, Licht vom Osten, pág. 322, os editos imperiais no contexto do culto ao imperador eram designados de “mandamentos divinos”. Isso constitui aqui uma correspondência contemporânea para os primeiros leitores do Ap.

584. Parecem ter peso maior as versões textuais que trazem “nome” em lugar de “nomes” (como defendem Bousset, Rissi, e também a edição do Novo Testamento Grego de 1966).

585. Quase todos os intérpretes antigos ainda seguem a versão textual “e eu me posicionei sobre a praia do mar”. Contudo, nas demais vezes João nunca muda sua posição sem que fosse instruído para isso (Ap 4.1; 11.1; 10.8; 17.3; 21.9).

580. Bengel pensava que, baseado em Ez 17, se deveria cogitar um poder político, a saber, o Império Alemão com a águia em seu brasão do reino.