Estudo sobre Apocalipse 12:9

Estudo sobre Apocalipse 12:9


Às três ocorrências de “peleja” e “pelejar” no v. 7 correspondem aqui, no v. 9, as três repetições de “lançado”, “jogado” (cf. BLH) (“expulso” [BJ]). “Lançar” é um termo que já encontramos muitas vezes nas execuções penais do Ap. O condenado é identificado quatro vezes, ou seja, de todos os lados e à exaustão. E foi expulso (“lançado”) o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo (“Diábolos”) e Satanás. Essa forma de falar soa como um extrato da leitura de uma sentença. No início são referidos com exatidão os dados pessoais do condenado, sua origem e sua ação e omissão.

Ele é o grande dragão. “Dragão”551 designava sobretudo uma serpente gigantesca, e singularmente a serpente marinha e o monstro marinho. Isso pode ser lembrado pelo jato de água que esse dragão expele segundo o v. 15. Contudo, o aposto grande extrapola esse dragão acima de todos os seres naturais. Um gigantesco dragão gigante! Forma-se, pois, um quadro sobre uma grandeza que transcende toda a zoologia, a saber, sobre a realidade do satânico.552

No Ap Satanás é o adversário de Deus.553 Gostaria certamente de ser o antideus, mas não consegue mais que ser um “macaco de Deus” (Lutero). Se ele fosse antideus, estaríamos sob o dualismo de dois poderes autônomos. O povo de Deus tem de prestar atenção para que não conceda essa honra a Satanás. “Ele vive do respeito que lhe devotamos” (Lamparter). Por isso não nos cabe crer nele, mas resistir a ele (1Pe 5.9; Tg 4.7). Tampouco devemos querer imaginá-lo com exatidão, aprofundando-nos numa contemplação do satânico, visando a elaboração de uma doutrina detalhada sobre Satanás e espalhando ao nosso redor certezas de Satanás. Nem sequer quando outros demonstram a inexistência de Satanás discutiremos tenazmente com eles. Faz muito bem referir a afirmação de Goethe: “O povo não sente o diabo, nem mesmo quando ele o assedia”. Porém, quem se alonga no ensino sobre Satanás e os demônios não ganha absolutamente nada para a salvação. A Idade Média era exuberante em fé no diabo, mas foi muito pobre em reconhecimento de Cristo, sendo mantida em algemas pela violência, injustiça e ignorância.

Também aqui providenciamos tão somente um esboço esquemático do satânico, sem sistematizá-lo com todos os possíveis pontos de vista e questionamentos. O grande dragão também é chamado de antiga serpente. No ambiente de Israel a serpente554 desempenhava um papel inimaginável para nós. Ela era divulgada e conhecida em quase todos os lugares. Cultos à serpente são comprovadamente existentes desde 4.500 a.C. Diversas circunstâncias favorecem esses cultos: o olhar superior e hipnótico da serpente, sua mordida quase imperceptível, porém fatal, sua falsidade e rapidez, bem como a possibilidade de treiná-la.

Entretanto, ela não era encarada apenas como poder de destruição. Sobretudo os gregos a treinavam como animal doméstico e a veneravam como poder da vida. Pois a serpente está ligada de maneira especial à terra, vive em grotas e fendas, arrasta-se sobre o chão, parece comer terra. Era considerada como “alma” da terra, como divindade da terra. Uma vez, porém, que a terra é símbolo do que é maternal e feminino, a serpente aparece nas imagens das deusas de fertilidade.

Por habitar frequentemente perto de vertentes, a serpente parece estar relacionada com tesouros subterrâneos escondidos. Era reputada como um animal vidente, que profere oráculos. Os devotos lhe prestavam veneração sobretudo em fontes medicinais, uma vez que não somente possuía veneno, mas também o antídoto. Cf. a referência ao florescente culto à serpente salvadora (Asklépios) no comentário a Ap 2.13. Finalmente a observação de como a serpente perde a pele, parecendo rejuvenescer e renovar-se dessa maneira, tornava-a um símbolo do renascimento e da vida eterna.

Com elevada consideração geral do culto à serpente em todos os povos adjacentes, não causa espécie que Israel tenha considerado a serpente como representação do mundo gentílico.555 Advém daí a ojeriza radical contra as serpentes no AT. Ela jamais foi usada como animal doméstico, animal sacrificial ou alimento.556 Ela personifica o que é gosmento, cambiante, dúbio, assassino e, por isso, satânico.

A presente passagem registra uma identificação expressa com a serpente do paraíso, de Gn 3: a antiga serpente.557 Por mais velha que seja, ela jamais esqueceu sua inimizade contra Deus e tudo o que é divino.

Somente agora o verdadeiro nome do dragão e da serpente ecoa em dois idiomas (nota 386). Analisaremos inicialmente o termo hebraico Satanás. Ele originalmente especifica o opositor558 de maneira bem neutra. No sistema judicial israelita é possível que tenha existido o lugar planejado para acusador,559 que ficava à direita do acusado (Zc 3.1; Sl 109.6). Essa função social ainda não tem nada a ver com hostilidade e malícia. Também no livro de Jó “Satanás” ainda não tem conotação de maldade. Como um bom promotor, ele cuida para que não se confie simplesmente nas aparências, requerendo a tramitação das provas. Seu prazer diabólico no mal seria no máximo algo atribuído ao texto a partir de fora. Ele não é antagonista de Deus, mas serve à correta jurisprudência divina.

Somente com o desenvolvimento do judaísmo “Satanás” torna-se nome próprio do poder maligno ativo. Ele tem uma mentalidade hostil a Deus e aos seres humanos, sobretudo aos justos. Como repercussão do AT permanece que Satanás é uma criatura dependente de Deus, a saber, um príncipe de anjos.

A conhecida citação do Talmude babilônico fornece um resumo de sua atuação:560 “Satanás desce e seduz, sobe e acusa, toma poder e toma a alma”. Primeiro, portanto, ele seduz para o pecado, fazendo de Deus e do pecado algo inócuo, e do pecado algo desejável, como em Gn 3. Tão logo tenha levado o ser humano a pecar, ele corre ao tribunal celeste, a fim de levantar uma acusação vigorosa contra aquele que ele próprio atiçou, requestou e convenceu. Na mais “santa” indignação e sob apelo aos mandamentos de Deus ele demanda justiça punitiva. Com autorização ele retorna e executa o castigo, matando o pecador. Assim, alcançou o seu alvo: a morte do ser humano, que Deus na verdade criou para a vida.

Segundo o ensino judaico, porém, atua diante do tribunal celestial também um defensor de Israel, a saber, o arcanjo Miguel. Ele relata diante do trono de Deus as virtudes dos judeus. Ele também pode rechaçar a Satanás. Mas, caso após caso, este torna a levantar-se a cada oportunidade, a fim de acusar novas vitimas por ele seduzidas e alcançar poder sobre elas.

Como sedutor Satanás trabalha, portanto, com a mentira, e como executor, com violência, mas como acusador ele trabalha com a verdade. Nenhum sistema de poder despreza uma certa legalidade. Toda mentira que visa obter sucesso necessita de uma pitada de verdade. Por isso o poder essencial de Satanás está fundado sobre sua função intermediária. Em momento algum ele é tão satânico como na acusação, quando ele estabelece poderosamente a separação de Deus e erige às alturas do céu a parede da culpa entre Deus e os pecadores.


Será que Jesus e os apóstolos simplesmente adotaram essas ideias judaicas? De acordo com o evangelho foi apagada a terrível função acusadora de Satanás. É o que significa a doutrina da precipitação de Satanás.561 Sua força essencial está quebrada. A isto é que se refere, no v. 9, a exclamação jubilosa três vezes repetida: “lançado”, “deposto”, “expulso!” É verdade que ele continua rondando como mentiroso e assassino,562 contudo foi-lhe cassada a posição legal. Ele se precipitou na ilegalidade. Por isso seu reino não dura.

Muitas vezes a designação grega diabo (“diábolos”) é vertida para “o que traz confusão”. Ele gera mal-entendidos numa comunidade por meio de difamação e espírito beligerante, e ama o caos. Talvez também seria apropriada a tradução com “o que traz separação”.563 Ele gera afastamento entre Deus e as pessoas. Contudo a palavra entrou na Bíblia como tradução de “Satanás”, de modo que deve ser entendida em sentido idêntico.

O final do v. 9 destaca expressamente a função sedutora, ou seja, a natureza de serpente. O sedutor de todo o mundo. Em todas as seduções em todos os tempos e todos os lugares ele é o sedutor.564 Por intermédio dele infundiu-se um “espírito de engano” (1Jo 1.8; 2.26; 3.7), de maneira que um seduz ao outro e um é seduzido pelo outro (2Tm 3.13). Nessa situação pressupomos e esperamos mentiras, e acabamos acreditando somente nelas. Numa atmosfera assim o Senhor Jesus Cristo declara: “Quanto a mim, é porque digo a verdade que não me acreditais” (Jo 8.45 [TEB]).



Notas:
551. Em grego drakõn, derivado de “olhar”; chamava atenção o olhar hipnótico da serpente. “Dragão” ocorre no NT 13 vezes, somente no Ap. De acordo com Ap 12.14,15 pode-se usar também “serpente” ao invés de “dragão”.

552. Na LXX ainda não é usado “o grande dragão” como designação de Satanás. Nela “dragão” refere-se a terríveis monstros marinhos como criaturas entre criaturas ou, no contexto do simbolismo animal, a poderes universais ou individualizações de forças hostis a Deus. Quanto ao “dragão” como conceito originário nas lendas dos povos, cf. excurso 9a.

553. Karl Heim tornou frutífera essa visão sobretudo em seus livros Jesus der Herr [Jesus, o Senhor] e Jesus, der Weltenvollender [Jesus, o Consumador dos mundos].

554. Em grego õphis, derivado de “picar”, da mesma raiz de échis e échidna. Todas as três palavras para serpente também ocorrem no Ap.

555. É o que também relata Gn 3: invasão do mundo gentílico na família criada por Deus.

556. No nt, cf. Rm 1.23; At 10.12; aqui herpeta, i. é, répteis, uma expressão também usada para serpentes (cf. Bauer, Wörterbuch).

557. Também os judeus designaram assim a serpente do paraíso (Bill referente o texto).

386. Ap 1.7 (Amém – sim, certamente); Ap 12.9 (Satanás – diabo); Jo 1.38 (Rabi – Mestre); Jo 1.42 (Cefas – rocha); Jo 4.25 (Messias – Cristo); Jo 9.7 (Siloé – enviado); Jo 19.13 (Gabatá – pavimento); Jo 19.17 (Gólgota – Calvário).

558. Podia ser chamado de “Satanás“ um adversário na luta bélica (1Sm 29.4), na vida privada (Sl 71.13), mas igualmente o anjo que se opôs a Balaão (Nm 22.22,32).

559. É a opinião de v. Rad, Ki-ThW, vol. ii, pág. 71.

560. Bill i, pág. 139.

561. No NT ela ocorre em Lc 10.18; Jo 12.31; 16.11.

562 Como é dito repetidamente nos cap. 2,3, bem como em Jo 8.

563 Conforme Foerster, Ki-ThW, vol. ii, pág. 69.

564 O NT fala de profetas de mentira, cristos de mentira, irmãos de mentira, testemunhas de mentira, mestres de mentira e apóstolos de mentira.