Abominação da Desolação — Enciclopédia Bíblica Online
ABOMINAÇÃO DA DESOLAÇÃO
A expressão “abominação da desolação” encontra-se inserida nos contextos mais carregados de tensão escatológica e política das Escrituras Hebraicas e Gregas. O termo, em sua forma hebraica, emerge especialmente nos escritos tardios do Antigo Testamento, como o livro de Daniel (Dn 9:27; 11:31; 12:11), e é retomado no contexto apocalíptico do Novo Testamento (Mt 24:15; Mc 13:14), como também na tradição judaica pós-bíblica (cf. 1Mac 1:54).
Linguisticamente, a raiz da palavra “abominação” provém do hebraico שָׁקַץ (shaqats), verbo que significa “ser repugnante”, “aborrecer”, “tornar impuro”. Dessa raiz deriva-se o substantivo שִׁקּוּץ (shiqquṣ ou shiqquṭs), que expressa algo “imundo”, especialmente vinculado à idolatria — ídolos detestáveis, cultos gentílicos ou práticas religiosas consideradas abomináveis à fé israelita. A tradução grega no texto da Septuaginta é βδέλυγμα ἐρημώσεως (bdélygma erēmōseōs), expressão que funde o significado de repulsa (βδέλυγμα) com o de devastação ou desolação (ἐρημώσεως), como ocorre em Daniel 11:31 e 12:11. Esta forma grega é posteriormente reproduzida nos Evangelhos Sinópticos (Mt 24:15; Mc 13:14), e novamente resgatada por ecos neotestamentários, apenas alusivos, e não litero-lexical em 2 Tessalonicenses 2, 1 João 2 e 4, e Apocalipse 13 e 18, como expressão arquetípica da profanação final.
Em Daniel 11:31, a forma hebraica da expressão ocorre como וְנָתְנוּ הַשִּׁקּוּץ מְשׁוֹמֵם (wĕnātĕn haš-šiqqûṣ məšōmēm), que pode ser traduzido por “e estabelecerão a abominação que causa desolação”. Já em Daniel 12:11, lê-se לָתֵת שִׁקּוּץ שֹׁמֵם (lātēt šiqqûṣ šōmēm), isto é, “para pôr a abominação desoladora”. Em Daniel 9:27, o hebraico apresenta uma construção mais complexa: וְעַל כְּנַף שִׁקּוּצִים מְשֹׁמֵם (wĕʿal kənāp šiqqûṣîm məšōmēm), que pode significar “sobre a asa da abominação virá o desolador” (cf. RSV), ou “e numa ala do templo será colocado o sacrilégio terrível, até que chegue sobre ele o fim que lhe está decretado” (cf. NVI). O termo “asa” (kənāp) na versão RSV, é interpretado de forma variada: alguns exégetas o associam ao pináculo do templo, outros aos chifres do altar, ou mesmo às asas iconográficas dos deuses cananeus (cf. Baal Šamem) ou egípcios (como o disco solar alado). Há ainda sugestões de emenda textual, como “e em seu lugar” (wĕʿal kannô) ou “em sua base” (kannām), o que permanece objeto de debate filológico.
Apesar das incertezas filológicas, o sentido geral da expressão, em todos os textos daniélicos, aponta para um ato ritual ou político de extrema ofensa religiosa, um escândalo idolátrico que, ao ser instalado no templo, provoca não apenas sua profanação cultual, mas também sua ruína espiritual e social. A fórmula “abominação da desolação” não apenas indica um objeto ou ação impura, mas um catalisador de devastação — cultural, teológica, existencial. Como tal, é um símbolo de paródia blasfema da presença divina: em lugar da Shekinah, instala-se a idolatria, e em lugar da adoração legítima, a ruína.
Nos contextos veterotestamentários não proféticos, o substantivo plural שִׁקּוּצִים (shiqqutzim) aparece em Deuteronômio 29:17; 2 Reis 23:24; Isaías 66:3; Jeremias 4:1; 7:30; 13:27; 32:34; Ezequiel 20:7–30; Oseias 9:10; Zacarias 9:7 — sempre associados a ídolos, práticas cultuais pagãs ou contaminações espirituais que afrontam diretamente a aliança com YHWH. Assim, a expressão se transforma em um marcador teológico da apostasia terminal.
No Novo Testamento, os evangelistas sinóticos preservam a expressão em termos quase literais da LXX. Mateus 24:15 apresenta: “Quando, pois, virdes a ‘abominação da desolação’, de que falou o profeta Daniel, no lugar santo (quem lê entenda), então os que estiverem na Judeia fujam para os montes”. Marcos 13:14 diz: “Quando, pois, virdes a ‘abominação da desolação’ estar onde não deve (quem lê entenda), então os que estiverem na Judeia fujam para os montes”. A fórmula parentética “quem lê, entenda” sugere uma codificação deliberada do texto, que pode apontar para eventos contemporâneos sensíveis à comunidade cristã do primeiro século, como a profanação do templo pelos romanos ou as disputas internas dos zelotes. Lucas, por sua vez, reinterpreta a tradição daniélica dizendo: “Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei que está próxima a sua desolação” (Lc 21:20), substituindo a linguagem simbólica da “abominação” pela descrição factual da investida militar romana.
A ambiguidade do participial masculino ἑστηκότα (hestēkota, “de pé”, em Mc 13:14) em associação com o neutro βδέλυγμα (bdélygma, “abominação”) já aponta para a possibilidade de que o evento descrito seja encarnado em uma figura pessoal, um agente da profanação, seja ele um imperador, general, ou um tipo escatológico de anticristo. O paralelismo com 2 Tessalonicenses 2 (o “homem da iniquidade” que se assenta no santuário de Deus) reforça essa leitura antropomórfica do evento profanador. Em Apocalipse 13 e 18, essa figura se expande em dimensão política, como a Besta que ataca o povo de Deus, já não no Templo de Jerusalém, mas na comunidade da nova aliança.
I. A Profanação do Templo sob Antíoco IV Epifânio
O pano de fundo histórico imediato para a formulação da expressão “abominação da desolação” encontra-se na crise provocada pelas ações do rei selêucida Antíoco IV Epifânio, cuja política agressivamente helenizadora resultou na mais grave profanação do templo de Jerusalém desde sua edificação. Este evento, ocorrido em 167 a.E.C., constituiu o núcleo histórico que o livro de Daniel projeta e reinterpreta em chave escatológica, sendo mais tarde retomado pelos evangelistas sinóticos como paradigma da ruína final.
Antíoco IV, filho de Antíoco III, assumiu o trono da Síria em 175 a.E.C., após o assassinato de seu irmão Seleuco IV. Figura contraditória, Epifânio alternava gestos de liberalidade teatral com acessos de crueldade e perseguição. Seu epíteto “Epifânio” (θεὸς ἐπιφανής) significa “deus manifesto”, título que aparece em suas moedas e revela seu projeto ideológico de autodeificação, frequentemente associado a imagens solares triunfais, como o deus Hórus no horizonte, dentre outras deidades solares, identificado pelos egípcios como a aurora divina. Tal autoimagem refletia-se em sua política de unificação religiosa imperial, na qual os cultos locais eram subordinados a divindades greco-romanas — como Zeus Olímpico — como forma de padronização simbólica e de controle político.
O contexto religioso interno da Judeia já se encontrava dividido entre os hassidim (os “piedosos”, ou חֲסִידִים (ḥasidim), cf. 1Mac 2:42; 7:13), defensores do ideal legalista tradicional, e os helenistas, muitos dos quais pertenciam à elite sacerdotal. A cisão tornou-se institucionalizada quando Jasão (forma helenizada de Josué), irmão do sumo sacerdote Onias III, subornou Antíoco para obter o sumo sacerdócio, prometendo apoio político e uma agenda cultural helenista. Jasão estabeleceu em Jerusalém um ginásio e promoveu festivais em honra a Heracles, inclusive com oferendas enviadas à sua celebração em Tiro. Sacerdotes passaram a abandonar o altar para participar dos torneios na palestra, e muitos jovens tentaram reverter sinais de circuncisão — uma abominação aos olhos da tradição mosaica. A partir desse ponto, a estrutura religiosa da Judeia começou a ser corroída por práticas pagãs promovidas a partir da liderança religiosa local.
Diante de revoltas internas e disputas entre Jasão e seu sucessor, Menelau, Antíoco decidiu intervir militarmente, invadindo Jerusalém e saqueando o templo. Em 169 a.E.C., foi emitido um decreto que proibia todos os ritos judaicos: o sábado, a circuncisão e a leitura da Torá tornaram-se passíveis de pena de morte. Na capital, um altar pagão foi erguido sobre o altar de holocaustos, e no dia 25 de Chisleu, segundo 1Mac 1:54, um sacrifício foi oferecido em honra a Zeus Olímpico. Esta ação constitui a abominação da desolação em seu sentido mais direto e histórico. De acordo com 2Macabeus 6:1–5, o templo foi rededicado a Zeus, e os judeus foram obrigados a participar de procissões em honra a Dionísio, usando coroas de louros, em uma completa inversão da lógica cúltica de Israel.
A expressão usada em 1Macabeus 1:54 é βδέλυγμα ἐρημώσεως (bdélygma erēmṓseōs), espelhando a LXX de Daniel. O autor provavelmente evita o uso direto do nome da divindade pagã, substituindo-o por um termo de carga teológica pejorativa (shiqquṣ), como forma de paródia idolátrica — prática comum no hebraico bíblico, como se observa, por exemplo, na substituição de Baal por bôšet (“vergonha”) em nomes compostos (cf. 2Sm 4:4). Tal substituição visa ao desprezo retórico e à anulação do poder do nome pagão, transformando-o em símbolo de impureza e devastação.
A forma exata da “abominação” permanece objeto de debate. Embora não haja menção explícita a uma estátua de Zeus erguida no templo, tanto a tradição cristã quanto a judaica posterior sustentam essa possibilidade. Josephus, em Antiguidades Judaicas 12.252, descreve a construção de um altar pagão sobre o altar dos sacrifícios, e o silêncio de 1Macabeus 4:43 quanto à destruição de um ídolo pode indicar a presença de uma estrutura cultual não antropomórfica. A despeito da forma precisa, o ato foi recebido como o ponto máximo de profanação e provocou resistência heroica sob a liderança de Matatias e seus filhos — culminando na revolta dos Macabeus e na purificação do templo em 164 a.E.C., evento posteriormente celebrado na festa de Hanucá.
A “abominação da desolação” nesse contexto é, portanto, o símbolo por excelência da inversão cúltica, da transformação da casa de YHWH em palco da idolatria e da perda da presença divina. Sua memória gravou-se na imaginação religiosa judaica e cristã como paradigma escatológico de impiedade suprema. Conforme observou Rowley (1932, p. 265), o verbo hebraico שָׁמֵם (shamem, “ficar desolado”) pode também evocar horror, consternação ou loucura — possibilidade que reforça a leitura do ato como evento não apenas de ruína física, mas de trauma espiritual profundo.
A tradição daniélica e a memória macabaica tornam-se, assim, o arquétipo narrativo e teológico pelo qual os evangelistas sinóticos reinterpretam os eventos contemporâneos e futuros, como veremos na Parte III, dedicada ao uso da expressão no Novo Testamento e suas possíveis interpretações históricas e escatológicas.
II. A Expressão nos Evangelhos e no Novo Testamento
A menção à “abominação da desolação” nos Evangelhos Sinópticos representa uma ponte entre o evento histórico ocorrido no século II a.E.C. sob Antíoco IV Epifânio e as crises vividas pelos judeus e cristãos do primeiro século da era cristã. O texto de Mateus 24:15 afirma: “Quando, pois, virdes a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, no lugar santo (quem lê entenda)…”; Marcos 13:14 apresenta: “Quando, pois, virdes a abominação da desolação estar onde não deve estar (quem lê entenda)…”. A advertência é acompanhada da ordem urgente para que os que estiverem na Judeia fujam para os montes — um claro eco de 1 Macabeus 2:28, quando Matatias e seus filhos fogem para o deserto diante da perseguição.
Os evangelistas utilizam diretamente a terminologia da Septuaginta: τὸ βδέλυγμα τῆς ἐρημώσεως (to bdélygma tēs erēmōseōs), reiterando a linguagem profética de Daniel. Notavelmente, Marcos emprega o particípio masculino ἑστηκότα (hestēkota, “de pé”) com o substantivo neutro βδέλυγμα, o que sugere uma personificação: a abominação não é apenas um objeto cultual ou um evento, mas uma figura ativa, um agente de profanação. Aparentemente, trata-se de uma referência velada a uma figura histórica ou escatológica específica, o que é coerente com o contexto de perseguição e ambiguidade política da época de redação do evangelho, possivelmente entre 66–70 d.E.C.
O Evangelho de Lucas, por sua vez, evita a expressão técnica “abominação da desolação” e adota uma formulação mais clara e histórica: “Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei que está próxima a sua desolação” (Lucas 21:20). Isso sugere que Lucas interpreta a “abominação” de Daniel como o cerco e destruição de Jerusalém pelas legiões romanas, culminando na destruição do templo em 70 d.E.C. Essa releitura parece orientada pela teologia lucana, que distingue nitidamente entre eventos históricos (como a queda de Jerusalém) e eventos escatológicos (como a vinda do Filho do Homem). Assim, Lucas talvez vise corrigir ou reinterpretar a tradição de Marcos à luz da história já cumprida.
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“Assim, quando vocês virem ‘o sacrilégio terrível’, do qual falou o profeta Daniel, no lugar santo — quem lê, entenda — então, os que estiverem na Judéia fujam para os montes.” (Mateus 24:15,16 NVI) |
A presença da fórmula “quem lê, entenda” (Mt 24:15; Mc 13:14) é reveladora. Ela indica uma mensagem codificada, direcionada a leitores informados, familiarizados com os textos proféticos de Daniel. Provavelmente, os autores dos evangelhos esperavam que os crentes compreendessem a analogia entre o evento de Antíoco e os acontecimentos contemporâneos: a destruição de Jerusalém, a violação do templo, e possivelmente as disputas violentas entre as facções judaicas (cf. Josefo, Guerras Judaicas 4.196–207; 377–394).
Diversas interpretações históricas têm sido propostas para identificar a “abominação” a que se referem os evangelhos:
A tentativa de Calígula (39–40 d.E.C.) de colocar sua estátua no templo de Jerusalém — ação que gerou uma crise profunda, mas não foi levada a cabo devido à morte do imperador.
A entrada das legiões romanas com seus estandartes idolátricos em Jerusalém e no próprio templo, em 70 d.E.C., durante a guerra judaico-romana — estandartes estes que traziam imagens dos imperadores e eram objeto de culto (cf. Josefo, Guerras 2.175).
A violência interna entre facções judaicas (como os zelotes) e os sacerdotes, que profanaram o próprio templo durante a guerra civil, tornando-o campo de batalha (cf. Guerras 4.196–207).
A presença de um agente escatológico, como o “anticristo” ou o “homem da iniquidade” de 2 Tessalonicenses 2:3–4, que “se assenta no santuário de Deus como se fosse Deus” — o que levaria a uma leitura escatológica, não meramente histórica, da expressão.
A dificuldade de definir a abominação como um evento único decorre da própria polissemia da expressão e da sua função simbólica. Assim como o Daniel pós-exílico reinterpretou o trauma da profanação macabaica como figura de uma abominação futura, os autores dos evangelhos reinterpretam a destruição do segundo templo como novo ato de desolação, paralelo ao de Antíoco — porém agora visto à luz da vinda iminente do Filho do Homem (cf. Mt 24:30; Mc 13:26). O texto, portanto, é deliberadamente tipológico: o passado ilumina o presente e antecipa o futuro.
Conforme observado por diversos estudiosos, a associação entre Daniel, a “abominação da desolação” e a vinda do Reino de Deus é profunda. A visão do Filho do Homem em Daniel 7:13–14 (“com as nuvens do céu vinha um como o Filho do Homem... e o seu domínio é eterno”) torna-se matriz escatológica para a pregação de Jesus. A “abominação”, nesse quadro, marca o limiar do juízo e da restauração — seja histórica (no exílio babilônico, na revolta macabaica, na destruição do templo em 70), seja escatológica (na vinda final do Filho do Homem).
III. Continuidade Escatológica no Restante do Novo Testamento
Embora a expressão “abominação da desolação” não apareça literalmente fora dos Evangelhos, a tradição daniélica que a fundamenta reverbera amplamente nos escritos apostólicos. Em Paulo, a profanação é menos geográfica (templo de Jerusalém) e mais conceitual/espiritual/universal, reforçando a ideia de que o “templo de Deus” pode ser a igreja ou o próprio corpo de crentes, conforme ele ensina em outros lugares (1 Cor 3:16, 6:19). A punição não recai sobre uma calamidade político-militar no templo físico, mas sobre um princípio espiritual e moral de rebelião contra Deus, cujo ápice é a profanação do sagrado e a substituição da verdade por mentira no ‘templo de Deus’ — seja ele o corpo de crentes ou a Igreja, no sentido mais amplo.
Em 2 Tessalonicenses 2, Paulo descreve a figura do “homem da iniquidade”, ou “filho da perdição”, que se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de sentar-se no templo de Deus, apresentando-se como se fosse Deus. Trata-se de uma encarnação personalista e escatológica do mesmo tipo de profanação que, em Daniel, toma a forma de um ato idolátrico devastador.
A linguagem paulina parece evocar diretamente Daniel 11:36–37, onde se fala de um rei soberbo que se exalta acima de todos os deuses, e também Daniel 9:27 e 12:11, com suas referências ao fim do sacrifício regular e à instalação da abominação. O fato de Paulo empregar expressões como “mistério da iniquidade” e “manifestação de sua vinda” aproxima essa figura da teologia apocalíptica que permeia também os escritos joaninos e o Apocalipse, embora em 2 Tessalonicenses não haja qualquer menção direta à destruição de Jerusalém ou ao templo histórico. Isso indica que a ênfase paulina não recai sobre uma calamidade político-militar, mas sobre um princípio espiritual e moral de rebelião contra Deus, cujo ápice é a profanação do sagrado e a substituição da verdade por mentira. A raiz daniélica é evidente, mas seu fruto é mais escatológico que histórico.
Na tradição joanina, esse mesmo princípio se encarna na figura do anticristo, nomeadamente em 1 João 2:18 e 4:3, onde se afirma que muitos anticristos já apareceram e que todo espírito que não confessa a Jesus não é de Deus, mas do anticristo, o qual já está no mundo. Diferente da abordagem sinóptica, aqui não há uma referência direta ao templo ou à cidade de Jerusalém, nem a um objeto de idolatria visível. A profanação desloca-se do espaço cultual para a esfera doutrinária e espiritual, revelando que a “abominação” não é apenas um evento externo, mas uma negação interna e pessoal da verdade encarnada em Cristo. O anticristo, nesse sentido, não precisa estar “no lugar santo” fisicamente, pois ocupa o santuário da consciência e da fé.
O Apocalipse de João, por sua vez, elabora a teologia da abominação em termos simbólicos e visuais que remetem tanto a Daniel quanto às experiências históricas do primeiro século. Em Apocalipse 13, a figura da Besta que emerge do mar carrega implicações políticas e religiosas: trata-se de uma potência imperial, adornada com nomes blasfemos, que recebe adoração universal, imita feridas de morte e promove sinais prodigiosos. Essa figura não apenas exige culto, mas institui uma imagem animada que fala e mata os que não a adoram (Apocalipse 13:14–15), o que evoca diretamente a lógica da “abominação” como idolatria imposta por força do império. O capítulo 18 do mesmo livro descreve a queda de Babilônia, a grande meretriz, associada à sedução dos reis da terra, ao derramamento de sangue dos santos e à idolatria generalizada — o clímax de um sistema que substitui o verdadeiro culto pelo culto da besta, representando a desolação espiritual total do mundo apóstata.
Não obstante, é preciso observar que, embora Apocalipse seja posterior à destruição de Jerusalém e trate mais frequentemente da perseguição ao povo de Deus no sentido amplo (isto é, à Igreja), seus símbolos ainda ecoam a memória do templo e de sua profanação, mesmo que transpostos a outra dimensão. A relação entre Daniel e Apocalipse é orgânica: a figura das bestas, o tempo de perseguição (1260 dias, 42 meses), os santos entregues ao poder inimigo, tudo remete ao modelo inaugural da abominação no templo, agora reinterpretado em escala universal. É possível, portanto, considerar que, na teologia de João, a “abominação da desolação” adquire sua forma mais plena: ela se torna o sistema mundano que imita o divino, destrói o verdadeiro culto e se senta como Deus no trono da história.
Esse desdobramento do tema não é exclusivo da literatura joanina. A própria recepção patrística e a tradição exegética da Igreja Primitiva ampliaram ainda mais o escopo semântico da “abominação”. Pais da Igreja como Irineu, Hipólito e Eusébio interpretaram a expressão como prenúncio da vinda do Anticristo e da grande apostasia, associando-a não apenas à destruição de Jerusalém, mas ao declínio moral e espiritual do mundo nos últimos dias. Ainda que essas leituras tenham sido historicamente condicionadas, elas mostram que o conceito permaneceu fértil como símbolo da inversão suprema: onde deveria haver santidade, instala-se o pecado; onde deveria reinar o Cordeiro, ergue-se a Besta; onde deveria estar o culto verdadeiro, floresce a idolatria.
IV. Significado Teológico e Hermenêutico da Expressão
A expressão “abominação da desolação”, longe de se limitar a uma referência histórica particular — seja o altar de Zeus no templo em 167 a.E.C., seja os estandartes romanos em 70 d.E.C. —, adquire nas Escrituras e na tradição interpretativa uma espessura simbólica e uma plasticidade hermenêutica que lhe permitem operar como um arquétipo escatológico. Ela representa, em sua essência, o momento culminante da inversão cultual: aquilo que deveria ser o ápice da santidade torna-se o centro da profanação; o lugar da presença de Deus é usurpado por um poder que o nega, e o templo — seja físico, espiritual, ou antropológico — torna-se deserto, vazio de glória, habitado pela desolação.
Essa inversão não é apenas um evento pontual, mas uma estrutura simbólica que se reatualiza em diferentes momentos da história da salvação. Em Daniel, ela é a culminância do domínio pagão sobre o povo de Deus. Nos Macabeus, é o ápice da opressão helenista. Nos Evangelhos, é o prenúncio da ruína de Jerusalém e do advento do juízo messiânico. Em Paulo, é a encarnação escatológica da rebelião. Em João, é o sistema mundial que rivaliza com o Cordeiro. Em todos esses contextos, a abominação da desolação é, teologicamente, o ponto de saturação do pecado no espaço que pertence a Deus. Seu caráter não é meramente idolátrico, mas teológico: ela é a antítese do culto, a anti-presença, o anti-santo.
Essa lógica permite compreender por que a linguagem da abominação não é inteiramente delimitada no texto sagrado. Em vez de oferecer uma definição precisa, o termo opera como uma categoria de percepção espiritual. Sua ambiguidade é deliberada: mais do que nomear um objeto, ela convida à vigilância. O leitor que “entende” (Mt 24:15; Mc 13:14) é aquele que possui discernimento escatológico para reconhecer, em sua geração, o tipo de profanação que Daniel anunciou. A expressão se torna, assim, não apenas uma referência profética, mas uma lente hermenêutica por meio da qual os cristãos são chamados a perceber os sinais do tempo, as corrupções do culto e os usurpadores do trono divino.
Além disso, o uso recorrente do termo “desolação” (šōmēm, erēmōsis, apōleia) conecta o fenômeno da profanação à experiência da ausência de Deus. A abominação não é apenas algo ofensivo; ela é devastadora porque desloca a glória, dissolve a presença, consome o sagrado. Onde ela se instala, resta apenas o vazio, o horror, o exílio espiritual. Por isso, sua presença no “lugar santo” é insuportável — não apenas por sua impureza, mas porque sua existência é uma negação da Aliança. A desolação que se segue é não apenas política ou militar, mas cultual e cósmica.
Na tradição exegética judaica, essa associação entre idolatria e desolação já estava presente nos textos proféticos: Jeremias, Ezequiel e os livros históricos associam reiteradamente a introdução de ídolos (muitas vezes referidos com o próprio termo שִׁקּוּצִים [shiqquṣim]) ao afastamento da presença divina, à destruição do templo e à ruína do povo.
A abominação, portanto, é o sinal visível do colapso do relacionamento entre Deus e seu povo. Na tradição cristã, essa lógica se expande: a abominação não está mais restrita ao templo físico, mas pode ser instalada no “templo do Espírito” — seja o corpo individual (1Co 6:19), a comunidade eclesial (Ef 2:21), ou a fé doutrinária (1Jo 4:3). Por isso, o combate contra a abominação é, no Novo Testamento, tão espiritual quanto histórico: trata-se de resistir ao engano, preservar a adoração verdadeira e manter o templo puro para a vinda do Senhor.
Essa perspectiva escatológica também implica que a abominação da desolação, embora sempre associada à destruição, é também sinal do fim iminente do domínio do mal. No discurso escatológico de Jesus, o aparecimento da abominação precede a fuga, o sofrimento, e por fim, a manifestação do Filho do Homem com poder e glória (Mt 24:30). Assim, o horror da profanação antecede a restauração da presença. A desolação, paradoxalmente, é o prenúncio da visitação divina. No esquema apocalíptico, é necessário que o templo seja desolado para que o verdadeiro templo — o corpo do Cristo ressuscitado e glorificado, e nele o novo povo — seja edificado sem mancha.
Por fim, a permanência da expressão no imaginário teológico ao longo dos séculos, inclusive na exegese patrística e na escatologia reformada e moderna, comprova sua força paradigmática. A abominação da desolação é o tipo absoluto da apostasia, da blasfêmia institucionalizada, do império que se deifica e exige adoração. Ela é, em todos os seus ciclos históricos, o prenúncio de que Deus visitará seu povo — seja em juízo, seja em salvação. E por isso, sua lembrança é perpetuada, sua imagem é recorrente, e sua compreensão, sempre urgente.
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GALVÃO, Eduardo M. “Adominação da Desolação”. In.: Enciclopédia Bíblica Online. Biblioteca Bíblica [Aqui você coloca o ano. Não coloque o ano em que foi postado que consta no link (2025), mas o ano que aparece da última atualização que fica debaixo do título da postagem; ele marca a data da última atualização/edição, já que a maioria das páginas estão em constante atualização]. Disponível em “cole aqui o link do artigo”. Acessado em [Coloque aqui a data em que você acessou o link do artigo, com dia, mês e ano. Note que a data que você acessa é diferente da data que consta da última atualização da página.]