ADÃO — Enciclopédia Bíblica Online
ADÃO
Adão אָדָם (ʾāḏām), segundo a Bíblia, é apresentado como o primeiro ser humano criado por Deus, moldado do pó da terra e animado pelo sopro divino, conforme o relato de Gênesis 2:7. Ele é tanto o início da genealogia da humanidade quanto o arquétipo teológico do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26–27), com a vocação de representar o domínio divino sobre a criação. Sua figura atravessa as Escrituras como o ponto de origem da condição humana — dotada de dignidade, responsabilidade e liberdade — mas também como o agente da queda, cuja desobediência introduz o pecado e a morte no mundo (Romanos 5:12). Adão é, portanto, uma figura central e tipológica fundamental, cujo papel inaugural na narrativa bíblica é retomado por Jesus Cristo, o “último Adão” (1 Coríntios 15:45), na obra de redenção e nova criação.
I. Etimologia do Nome
O nome “Adão” provém do hebraico bíblico אָדָם (ʾāḏām), termo que pode designar tanto o nome próprio do primeiro ser humano quanto, de forma genérica, a humanidade (humano, homem, gente). Sua etimologia tem sido tradicionalmente vinculada à raiz triliteral semítica א־ד־ם (ʾ-d-m), cuja esfera semântica gira em torno da ideia de “vermelhidão”, “sangue” e “terra”. Essa associação, contudo, não é simples nem consensual, e sua análise demanda uma abordagem diacrônica e comparativa entre as línguas semíticas.
O nome Adão deriva da raiz ʾdm. Esta raiz ocorre cerca de 605 vezes na Bíblia hebraica. Também é encontrado em material epigráfico hebraico contemporâneo e em hebraico posterior, incluindo os Manuscritos do Mar Morto. Como verbo, a raiz ʾdm significa “ser vermelho” (Is 1:18, etc.). Está associado à cor vermelha ou marrom em palavras como ʾādōm, “vermelho, marrom” (Zc 1:8, etc.); ʾōdem, “rubi” (Ez 28:13, 17; 39:10); ʾĕ̆dôm, “Edom”; ʾădamdām, “avermelhado” (Lv 13:19, 24, 42–43, 49; 14:37); e a conhecida palavra para “terra, solo”, ʾădāmâ (Gn 2:5, etc.).
A palavra ʾādām é usado com quatro sentidos no texto hebraico: um termo genérico para humanidade; um termo específico para um indivíduo do sexo masculino; um nome pessoal; e um nome de lugar. Outros usos foram sugeridos: “pele, couro, couro” (Os 11:4); e “terra, terra, estepe” (Gn 16:12; Jó 36:28; Jr 32:20; Zc 9:1). No entanto, os quatro sentidos identificados acima também se adequam a todas essas ocorrências. Portanto, não há necessidade de significados adicionais que possam ser introduzidos a partir de formas cognatas em outras línguas semíticas ou de outras formas da raiz em hebraico. O nome do lugar ʾādām ocorre em Josué 3:16, onde descreve um local no Vale do Jordão geralmente identificado com Tell ed-Dâmiyeh. Os três primeiros usos são encontrados no Pentateuco. Na verdade, eles ocorrem nos primeiros quatro capítulos de Gênesis.
No hebraico bíblico, o adjetivo אָדֹם (ʾāḏōm) significa “vermelho”, como em Gênesis 25:30 (“me dá deste guisado vermelho”) e está diretamente relacionado ao substantivo דָּם (dām), “sangue”. A raiz ʾ-d-m aparece como verbo no sentido de “ser vermelho” (ʾādōm), e essa coloração é sugestiva tanto do tom da terra quanto da aparência da pele humana. A palavra אֲדָמָה (ʾăḏāmāh), “solo”, é o substantivo feminino derivado da mesma raiz, formando o célebre jogo de palavras em Gênesis 2:7: “formou o Senhor Deus o homem [ʾāḏām] do pó da terra [ʾăḏāmāh]”.
O paleo-hebraico, embora não contenha registros lexicais independentes do termo “Adão”, apresenta, por via epigráfica e grafemática, formas ortográficas do nome 𐤀𐤃𐤌 (ʾ-d-m) que refletem a mesma estrutura triliteral. O ideograma pictográfico proto-semítico que deu origem à letra alef (𐤀), figura um boi ou cabeça, símbolo de força e origem, e compõe com dalet (𐤃) e mem (𐤌) a ideia de algo que se move da terra e do sangue à consciência do humano.
No aramaico bíblico e targúmico, o termo ܐܕܡ (ʾăḏām) também significa “homem” ou “ser humano”, e é empregado em contextos análogos aos do hebraico. Além disso, o substantivo ܕܡ (dam) designa “sangue”, reforçando a associação semântica entre “homem” e “sangue”. No Targum Onkelos, a figura de Adão é mantida com o nome ܐܕܡ (ʾadam), e a terra é chamada ܐܕܡܬܐ (ʾăḏamtā), mantendo o paralelismo hebraico.
Em acadiano, a raiz correspondente adāmu aparece com significados como “sangue” (adamu), “vestimenta vermelha” ou “pigmento”, enquanto adamātu significa “terra escura ou avermelhada”, muitas vezes utilizada para tingimento de tecidos. Embora a palavra usual para “homem” no acadiano seja awīlum (𒇽𒉌𒇷) ou amēlu (𒂟), a presença da raiz ʾ-d-m em termos de coloração e substância corporal reforça a conexão visual e física entre o humano e o solo fértil da Mesopotâmia.
No ugarítico, o termo 𐎀𐎄𐎎 (ʾdm) aparece com o sentido de “ser humano” ou “homem”, sendo usado inclusive para referir-se à humanidade como um todo. No mito de Baal, o deus supremo 𐎛𐎁 (ʾil, El) é intitulado 𐎓𐎁 𐎀𐎄𐎎 (ʾab ʾdm), “pai da humanidade”, denotando que já havia, no século XIII a.C., uma concepção estruturada de ʾdm como arquétipo humano.
O siríaco, forma literária do aramaico do cristianismo oriental, utiliza ܐܕܡ (ʾāḏām) para o nome próprio e ܐܢܫܐ (ʾenāšā) para o termo genérico “homem”. A grafia ܐܕܡ é mantida nos escritos patrísticos siríacos (por exemplo, Efrém da Síria), e a associação com ܕܡ (dam, “sangue”) é explorada em interpretações tipológicas entre Adão e Cristo.
No árabe clássico, a forma آدَم (ʾĀdam) é o nome próprio do primeiro ser humano e aparece no Alcorão em diversas passagens. A raiz ʾ-d-m (آ د م) não é produtiva em termos de morfologia verbal em árabe, mas alguns gramáticos medievais derivam o nome Ādam de أَدِيم (ʾadīm), significando “superfície”, especialmente “superfície da terra” ou “pele do solo”. Isso sugere uma conexão semântica com o conceito de que Adão foi formado da “crosta da terra”, ecoando o paralelo hebraico entre ʾāḏām e ʾăḏāmāh.
Assim, a etimologia do nome “Adão” oscila entre duas interpretações semânticas complementares: a associação com o “vermelho” (coloração do sangue e do solo fértil) e a identificação com a “terra” ou “solo” de onde o homem foi tirado. Ambas as interpretações são sustentadas pelas evidências nas línguas semíticas do noroeste (hebraico, ugarítico, aramaico), sendo fortalecidas por cognatos morfológicos e semânticos nas demais línguas da família afro-asiática. Não obstante, como ressaltam os estudiosos, os jogos de palavras literários entre ʾāḏām e ʾăḏāmāh em Gênesis 2–3 podem não ser, por si só, uma prova de origem etimológica, mas uma exploração teológica da origem comum entre homem e terra.
A forma hebraica ʾāḏām foi, portanto, apropriada em diversas tradições religiosas e linguísticas como símbolo da humanidade primordial, e seu valor semântico transcende a simples designação individual, tornando-se metáfora ontológica do ser humano em sua origem, substância e destino.
II. Uso da Palavra Hebraica
O termo ʾādām em Gênesis 1 é usado como designação coletiva da humanidade criada por Deus “à sua imagem e semelhança”, com a função de representar o domínio divino sobre a criação. A linguagem paralela entre ʾādām e “homem e mulher” (Gn 1:27) sugere que a intenção do texto é incluir toda a raça humana nessa designação. A expressão “imagem e semelhança” tem sido amplamente debatida, mas evidências epigráficas, como inscrições aramaicas e acadianas, indicam que as duas expressões podem ser estilisticamente equivalentes. A função da imagem divina é representacional: assim como uma estátua real representa a autoridade do rei ausente, o ʾādām representa Deus na terra, incumbido de exercer domínio e refletir sua vontade na ordem criada. Essa missão tem um componente reprodutivo (ser frutífero) e administrativo (subjugar e governar), estruturando o papel do ser humano como mediador da soberania divina.
Nos capítulos 2 a 4 de Gênesis, ʾādām passa de designação coletiva para um título específico com função narrativa, funcionando como “o homem” – um termo definido que não chega ainda a ser nome pessoal. O texto constrói um jogo de palavras entre ʾādām e ʾădāmâ (solo), destacando o vínculo entre o homem e a terra, tanto como origem quanto como destino. A designação “o homem” reflete um título semelhante ao usado em contextos políticos do Antigo Oriente Próximo (como lú nas cartas de Amarna), atribuindo ao ʾādām a função de governante sobre o jardim. No decorrer do relato, ʾādām é passivo na queda, mas é ele quem responde a Deus e carrega a maior responsabilidade pelas consequências. A narrativa evolui até que ʾādām, agora associado a genealogias (Gn 4:1, 25; 5:1), passa a ser nome pessoal (Adão), estabelecendo um elo entre o representante humano da criação original e as linhagens posteriores. Essa transição marca a transformação do título teológico em figura histórica, fundamentando a teologia da humanidade, da queda e da genealogia no enredo bíblico.
A. ʾādām em Gênesis 1
A primeira aparição de ʾādām é encontrada em Gênesis 1:26-27. Lá ocorre duas vezes, descrevendo a criação divina da humanidade no sexto dia. É claro que o ʾādām criado pretende ser um coletivo. Em Gênesis 1:27, ʾādām na primeira metade do versículo é colocado em paralelo com “homem e mulher” na segunda metade. A intenção é incluir todos os membros da raça humana no ʾādām que Deus criou.
Deus determina fazer ʾādām à “nossa imagem” e “nossa semelhança”. As sugestões sobre o significado desses termos se multiplicaram. Alguns pensam que um termo foi usado em um período anterior e o segundo foi adicionado mais tarde como um glossário para explicar o primeiro. Outros sugerem que a imagem e semelhança refletem as dimensões físicas e espirituais do ʾādām. No entanto, nenhuma delas é conclusiva. Uma inscrição bilíngue assíria e aramaica datada do século IX AC e originária do norte da Síria inclui essas duas expressões, escritas da mesma forma na versão aramaica e em hebraico. A versão acadiana traduz ambos pela mesma palavra, “estátua”. Portanto, é razoável supor que o uso hebraico desses dois termos era, como no aramaico, variação estilística usada para descrever a mesma coisa. Reflete a repetição poética que enfatiza a ideia.
No entanto, ʾādām não era uma estátua. Em vez disso, o homem e a mulher foram ordenados a serem frutíferos e subjugarem a terra. O comando ou expectativa de reprodução ocorre com todos os animais criados em Gênesis 1 e é melhor entendido como parte da ordem da criação e não como distintivo da imagem de Deus (Pássaro). Esta imagem enfatiza o domínio ou administração da terra que ʾādām é ordenado a completar. Certamente, a fecundidade faz parte do cumprimento, porque o domínio não é possível sem povoar a terra. No entanto, a ideia de domínio é útil para comparar a estátua mencionada acima. Uma estátua real em um canto distante do império representava a autoridade do rei quando o governante não podia estar fisicamente presente. Assim também, na conclusão da criação de Deus, ele deixou ʾādām como sua imagem para representar sua autoridade na terra. Isso sugere que a função da imagem é refletir a vontade divina na terra de forma a estender o reino de Deus a todas as áreas da natureza, sociedade e cultura. Isso é exatamente o que acontece com o primeiro homem em Gênesis 2.
B. ʾādām em Gênesis 2–3
A criação de ʾādām em Gênesis 2:7 é descrita com um jogo de palavras em ʾădāmâ, o “solo” do qual ʾādām foi criado. Assim, ʾādām, tendo recebido o sopro da vida e na origem vinda do próprio solo, é eminentemente adequado para cuidar do jardim e de tudo o que Deus colocou nele.
Em Gênesis 2 ʾādām ocorre com referência a um único indivíduo que é o foco da atenção. Sempre que ʾādām aparece aqui, é sempre com o artigo definido ou com uma preposição inseparável. Embora os últimos casos não exijam que ʾādām seja definido (e de fato o Texto Massorético não o vocaliza dessa maneira), o texto consonantal mais antigo permite a possibilidade de um artigo definido original antes de cada ʾādām no texto.
Se este for o caso e ʾādām for definido, então “o homem” pode sugerir várias interpretações possíveis. Primeiro, não há ocorrência do nome pessoal Adam nesta narrativa. Em hebraico (ao contrário do grego), nomes pessoais não aceitam artigo definido. Em segundo lugar, tal substantivo articular usado para se referir a um indivíduo tem duas propriedades linguísticas: significado e referência. Um substantivo comum como ʾādām em Gênesis 1 tem significado na medida em que ʾādām é capaz de uma definição, a saber, “humanidade”. No entanto, tem referência limitada. O ʾādām não distingue um indivíduo de outro ou um grupo de outro. Um nome próprio (por exemplo, Adam), por outro lado, tem pouco significado. Embora muitos nomes pessoais na sociedade moderna não tenham significado consciente, no mundo antigo quase todos os nomes tinham algum tipo de significado. Isso é verdade para Adão, especialmente porque há um jogo de palavras entre ʾādām e ʾădāmâ, o solo de onde o ʾādām foi tirado e para o qual ele retornará. No entanto, em todos os casos, a principal preocupação de um nome pessoal é a referência, para distinguir o portador do nome de todos os outros. “O homem” de Gênesis 2 cumpre ambos os papéis. Como um substantivo comum, tem sentido na medida em que é traduzido e essa tradução aumenta a compreensão do primeiro homem. Como um nome próprio, tem referência na medida em que designa o primeiro homem no jardim do Éden (cf. O Éden como Templo de Deus). Esse estado intermediário é ocupado por uma classe de substantivos (entre outros): títulos.
Como ʾādām é um título em Gênesis 2? Como substantivo articular, pode ser traduzido como “o homem”. Isso significa que é definitivo. Outra maneira de dar uma definição de substantivo em línguas semíticas é colocá-lo em construção com um substantivo definido que segue. Há vários exemplos de uma palavra traduzida como “homem” sendo definida dessa maneira. No entanto, não é ʾādām, mas ʾîš que é usado nesses casos. O mais significativo é o uso dessa construção para descrever os governantes de uma cidade ou região. Assim, em 2 Samuel 10:6 e 8, a expressão ʾîš ṭôb pode ser traduzida por “governante de Tob”. Se assim for, esse entendimento tem paralelos em textos cuneiformes em todo o antigo Oriente Próximo. Especialmente interessantes são os títulos dados aos governantes da Palestina e da Síria nas cartas de Amarna do século XIV AC. Lá, o signo logográfico para “homem” é lú, que é seguido por um nome de lugar para designar um indivíduo como governante daquela cidade ou região. Isso inclui os líderes locais de Acco, Amurru, Ashkelon, Beirute, Byblos, Gezer, Lachish, Megiddo e Sidon.
É apropriado comparar esse uso de lú com o de ʾādām encontrado em Gênesis 2. Ambos os termos têm um alcance semântico semelhante, referindo-se tanto ao “homem” em particular quanto à “humanidade” em geral. Em Gênesis 2 e nos títulos discutidos acima, ambos são definidos, já que ʾādām é precedido por um artigo definido, e lú está em um estado de construção com um substantivo definido. Ambos se referem a um indivíduo em particular a quem é dada a responsabilidade de cuidar ou governar uma determinada área da geografia, seja uma cidade ou um jardim.
Essas semelhanças implicam que ʾādām é um título que reflete um ponto médio no continuum do uso geral de ʾādām em Gênesis 1 para o nome pessoal Adão no final de Gênesis 4. A responsabilidade do ʾādām em Gênesis 2 é detalhada pelas instruções que Deus deu em Gênesis 2:15-17. Lá o ʾādām é trabalhar e cuidar do jardim (ʿbd e šmr). Ele também é proibido de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A primeira parte disso ilustra a responsabilidade de mordomia que o ʾādām tem, ou seja, ordenar e cuidar do jardim que Deus criou. A segunda parte descreve um limite colocado sobre o ʾādām: ele não deve tocar uma árvore. A descrição mais longa antecipa o diálogo entre a cobra e a mulher em Gênesis 3. Gênesis 2:18-20 ilustra outra expressão da imagem de Deus. O ʾādām não é apenas responsável pelo jardim, mas também aquele que cuida dos animais. Ele faz isso nomeando-os e assim discernindo as características essenciais de cada um. Isso não é tanto uma expressão de autoridade, mas uma classificação do reino animal e, portanto, uma ordenação deles (Ramsey). Desta forma, o ʾādām continua em obediência à vontade de Deus para refletir essa vontade à imagem de Deus, ordenando e promovendo o bem-estar da ordem criada (assim como Deus fez na própria criação).
A criação da mulher é a culminação dos atos de Deus através dos quais ele encontra um auxiliar apropriado (ʿēzer) para o ʾādām (veja Eva). O ajudante é reconhecido como aquele que vem da carne de ʾādām e, portanto, é do mesmo material, diferentemente do jardim ou do mundo animal. Através do ato de nomear, o ʾādām também reconhece o ser recém-criado como “mulher”, ʾiššâ, tirado do “homem”, ʾîš. O jogo de palavras introduz uma nova palavra hebraica para homem, ʾîš em vez de ʾādām. Isso é necessário porque a adição de uma desinência feminina a ʾādām resultaria na palavra para fundamento, ʾădāmâ, como já observado. No entanto, a adição da mesma desinência a ʾîš produz o resultado desejado de uma palavra para “mulher”, ʾiššâ. Este jogo de palavras leva ao pronunciamento de que o homem deixará sua família e criará uma nova família com sua esposa (novamente, ʾiššâ). A preocupação de Gênesis 2:24 é trazer de volta em uma só carne o que foi dividido na criação da mulher em Gênesis 2:22.
Em Gênesis 3, o homem recua enquanto a mulher e a cobra se envolvem em conversa e depois em ação. Somente na conclusão em Gênesis 3:6 o ʾādām participa. Mesmo assim, é um papel passivo em que ele recebe e come o que a mulher lhe deu. No entanto, é para o ʾādām (Gn 3:9) que Deus chama. Ele é quem primeiro confessa a vergonha da nudez que o fruto agora permitiu que ele e a mulher experimentassem. É essa vergonha que o separa de Deus e, ao culpar a mulher (Gn 3,12), também o afasta dela. Assim, a harmonia de relacionamentos estabelecida no final de Gênesis 2, e simbolizada ali pela ausência de vergonha apesar da nudez, começa a se desintegrar aqui e por todo o restante de Gênesis 1-11 e ao longo da história humana (Hauser). Essa alienação é definida pelos julgamentos que Deus proclama sobre a serpente, a mulher e o homem.
O desejo da mulher pelo ʾādām e seu domínio em Gênesis 3:16 deve ser comparado com as palavras de Deus a Caim em Gênesis 4:7, onde a palavra rara para “desejo” assim como a palavra para “governo” também aparecem juntos. Em ambos os casos o desejo é de autoridade, e a luta é uma das vontades que existem entre as pessoas. A afirmação da dominação masculina é um julgamento do modo como a vida seria, não uma expressão da vontade divina. Não é mais pecaminoso rejeitar e procurar derrubá-lo do que é pecaminoso usar herbicida à luz de Gênesis 3:18.
Embora o ʾādām de Gênesis 3:17 não tenha sido amaldiçoado, o ʾădāmâ (“terra”) recebeu uma maldição. Novamente, o jogo de palavras traz à mente Gênesis 2:7 e a dependência do homem sobre o solo. A maldição não apenas alienou o ʾādām do solo, mas também aumentou o trabalho necessário para completar as tarefas de lavrar e manter o jardim. No entanto, isso não durou muito porque o ʾādām e a mulher foram expulsos do jardim e deixados para enfrentar o mundo à parte do relacionamento íntimo com Deus que eles originalmente desfrutavam. Isso segue os três eventos de Gênesis 3:20-22: a nomeação de Eva, provisão divina nas vestes de pele e o reconhecimento de Deus de que o ʾādām se tornou como o divino porque ele conhece o bem e o mal. Assim como as nomenclaturas anteriores, a de Eva reflete um discernimento derivado dos julgamentos de Gênesis 3:15-16. A provisão de roupas de couro por Deus pode antecipar os sacrifícios de Levítico ao fornecer acesso a Deus através da morte de um animal inocente. No entanto, neste ponto em Gênesis, seu principal objetivo é fornecer um meio permanente de acabar com a vergonha da nudez. Como isso está associado ao conhecimento do bem e do mal obtido ao comer o fruto, é apropriado que a discussão dessas implicações siga em Gênesis 3:22. Esse conhecimento foi adquirido em desobediência explícita a Deus, de modo que a “vida eterna” derivada de comer da árvore da vida (ver Éden, Jardim da) também seria contrária à vontade divina.
C. ʾādām em Gênesis 4
O substantivo ʾādām aparece novamente em Gênesis 4:1, 25 e 5:1–5. Tudo isso são anúncios de nascimento. Gênesis 4:1 descreve o nascimento de Caim. Embora a maioria das traduções traduza o ʾādām aqui como o nome pessoal Adam, isso está incorreto. Único entre suas ocorrências em Gênesis 4 e 5, em 4:1 tem o artigo definido. Gramaticalmente, não pode ser um nome pessoal em hebraico. É melhor traduzido como “o homem”, como em Gênesis 2 e 3. Assim, esse uso liga o ʾādām dos capítulos anteriores com o fundador da raça humana e a linhagem de Caim (Gn 4:1). A ocorrência da mesma frase em Gênesis 4:25 sugere que o ʾādām não articulado ali é idêntico ao do versículo 1. Como fundador da linhagem de Sete, ʾādām aqui se torna o nome pessoal Adão. Assim como o ʾādām com o artigo uniu essas genealogias com a história do jardim do Éden, o Adão de Gênesis 5:1-5 relaciona essa genealogia às figuras descritas em Gênesis 1:26-28 pelas referências à imagem de Deus em ambos os textos.
Como nome pessoal, Adão ocorre novamente no AT apenas no início da grande genealogia de Crônicas (1 Crônicas 1:1). Ali se refere ao Adão de Gênesis 1–5. Nenhum outro uso do nome pessoal Adão pode ser encontrado no Israel bíblico.
III. A Criação de Adão
A criação de Adão é narrada em dois relatos distintos, mas complementares, no livro do Gênesis: o primeiro, em Gênesis 1:26–27, parte do chamado relato sacerdotal (P), e o segundo, em Gênesis 2:4b–25, pertencente à tradição javista (J). A exegese crítica reconhece nesses dois textos diferentes tradições teológicas e literárias que foram harmonizadas na redação final do Pentateuco. O personagem de Adão emerge, nessas duas narrativas, como arquétipo do ser humano em sua relação com Deus, com a terra e com os demais seres vivos.
No relato de Gênesis 1:26–27, Adão não é mencionado pelo nome próprio, mas é apresentado como “homem” (אָדָם, ʾāḏām) no sentido coletivo e genérico. O texto afirma: “E disse Deus: Façamos o homem [ʾāḏām] à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...” (naʿăśeh ʾādām bəṣalmēnū kiḏəmūtēnū). Aqui, a criação do ser humano é o clímax de uma sequência ordenada de atos criativos, encerrando o sexto dia. O termo “imagem” (צֶלֶם, ṣelem) e “semelhança” (דְּמוּת, demût) denotam uma relação ontológica especial entre Deus e o homem, expressando domínio (rādāh) sobre a criação, masculinidade e feminilidade como constituição da humanidade (“homem e mulher os criou” — zākār ūnəqēḇāh bārāʾ ʾōtām), e bênção divina para frutificação e soberania.
Já o segundo relato, em Gênesis 2:4b–25, é muito mais antropocêntrico e intimista. Aqui, Adão aparece explicitamente como personagem individual, embora ainda de forma representativa da humanidade. A narrativa começa afirmando que “não havia homem para cultivar o solo” (ʾādām ʾayin laʿăḇōḏ ʾet hāʾădāmāh, v.5), e então Deus forma o homem do pó da terra (yîṣer YHWH ʾĕlōhîm ʾet hāʾādām ʿāpār min hāʾădāmāh) e sopra em suas narinas o fôlego da vida (wayyippaḥ bəʾappāyw nišmat ḥayyîm). Aqui, Adão é literalmente “o formado do solo”, ser terrestre animado por Deus. O nome pessoal Adão ainda não é explicitamente introduzido como nome próprio neste ponto, mas o jogo fonético com ʾăḏāmāh (terra) sublinha o vínculo entre humanidade e terra.
A narrativa de Gênesis 2 é rica em detalhes antropológicos e relacionais. Adão é colocado no jardim do Éden (bǝgan-ʿēḏen), recebe ordens diretas (não comer da árvore do conhecimento) e é apresentado como necessitado de companhia: “não é bom que o homem esteja só” (lōʾ ṭōḇ heyōt hāʾādām ləḇaddō). A criação da mulher a partir da costela do homem (miṣṣalʿōtāyw) é o ponto culminante dessa sequência, conduzindo à união matrimonial como expressão de unidade original. Aqui o nome “Adão” começa a se destacar como figura única, ao passo que a mulher será chamada ʾiššāh (“mulher”), pois foi tirada do ʾîš (“homem”), revelando uma nova camada etimológica relacional (embora ʾādām e ʾîš sejam distintos no hebraico, o jogo de palavras é preservado).
As diferenças teológicas e estruturais entre os dois relatos são notáveis. Em Gênesis 1, o ser humano é criado em simultaneidade dual (homem e mulher), dotado de uma vocação cósmica e transcendente; já em Gênesis 2, Adão é moldado individualmente, e a mulher é criada posteriormente, sendo a criação mais relacional, progressiva e até dramática. Em termos literários, o primeiro relato utiliza estilo solene, simétrico e repetitivo, típico da redação sacerdotal; o segundo, por sua vez, é narrativo, imagético e descritivo, com vocabulário mais concreto e antropomórfico.
Adicionalmente, a linguagem hebraica dos dois relatos reforça essa tensão: em Gênesis 1, o verbo baraʾ (“criar”) é usado exclusivamente para a ação divina, enquanto em Gênesis 2, o verbo yāṣar (“formar”, moldar como o oleiro) dá uma nuance artesanal à criação do homem. Também é significativa a alternância entre os nomes divinos: em Gênesis 1, aparece exclusivamente אֱלֹהִים (ʾĕlōhîm), expressão majestática de Deus; em Gênesis 2, surge o composto יְהוָה אֱלֹהִים (YHWH ʾĕlōhîm), que reflete uma proximidade mais pessoal e relacional do Criador.
Esses dois relatos não são, necessariamente, contraditórios, mas expressam, em camadas diferentes, aspectos distintos da identidade humana: sua dignidade ontológica como imagem divina e seu enraizamento na fragilidade da matéria; sua vocação universal de dominar e cultivar o mundo e sua limitação concreta diante da obediência ao Criador. Adão, assim, é simultaneamente portador da imagem de Deus e pó da terra — criatura de glória e vulnerabilidade.
IV. Adão no Antigo Testamento
Como já vimos, a figura de Adão no Antigo Testamento oscila entre uma designação genérica do ser humano (ʾādām, “homem”, “humanidade”) e uma referência específica ao primeiro indivíduo da narrativa da criação. O substantivo hebraico אָדָם (ʾāḏām) aparece em múltiplos contextos com diferentes nuances semânticas e sintáticas, exigindo atenção ao artigo definido (hāʾāḏām), à ausência do mesmo, ao paralelismo com ʾăḏāmāh (“terra”) e à função narrativa.
Nos capítulos iniciais de Gênesis (1–5), o termo aparece em diversas camadas. Em Gênesis 1:26–27, o uso de ʾāḏām é coletivo: “façamos o homem” (naʿăśeh ʾādām), “à nossa imagem” (bəṣalmēnū), seguido da explicitação “homem e mulher os criou” (zākār ūnəqēḇāh bārāʾ ʾōtām), confirmando que ʾāḏām representa a humanidade como um todo e não uma figura masculina isolada. Aqui, ʾāḏām carece de artigo definido e está no singular genérico, apontando para a totalidade do gênero humano.
A partir de Gênesis 2:4b, inicia-se o relato javista, mais antropomórfico e narrativo. O uso de hāʾāḏām (“o homem”) se torna predominante, refletindo uma identidade individual, embora ainda representativa. Por exemplo, em Gênesis 2:7, “formou o Senhor Deus o homem [hāʾāḏām] do pó da terra [min-hāʾăḏāmāh]”, o texto cria o célebre jogo de palavras entre ʾāḏām e ʾăḏāmāh, associando ontologicamente o homem à terra. O mesmo padrão aparece em 2:8 (“e o Senhor Deus plantou um jardim... e ali colocou o homem [hāʾāḏām]”) e 2:15–20, com ênfase na função de cultivar (ʿāḇad) e guardar o jardim (šāmar), bem como na nomeação dos animais.
A individuação mais clara da figura de Adão ocorre em Gênesis 2:18 (“não é bom que o homem esteja só”) e atinge um ponto decisivo em Gênesis 4:1: “Conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu a Caim...” — aqui, o termo aparece sem artigo e com função onomástica inequívoca: אָדָם (ʾāḏām) como nome próprio. Esse uso prossegue em Gênesis 4:25 (“Adão conheceu novamente sua mulher...”), onde o personagem é pai de Sete, e em Gênesis 5:1–5, onde a genealogia sacerdotal introduz zēh sēfer tōlĕḏōt ʾādām (“este é o livro das gerações de Adão”) e detalha sua idade, filhos e morte — marcando definitivamente a transição de um termo coletivo a um nome individual.
A análise do uso do artigo definido é crucial: hāʾāḏām indica frequentemente o humano genérico ou o protótipo antropológico (2:7, 2:15, 3:8), ao passo que ʾādām sem artigo, especialmente em 4:1 e 4:25, reflete um nome próprio. No entanto, a distinção não é sempre rígida: em Gênesis 3:17, o texto diz: “e a Adão [ūləʾāḏām] disse: porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher...”, e embora alguns manuscritos apresentem o nome como nome próprio, outros intérpretes sugerem tratar-se ainda da figura arquetípica masculina.
Em Gênesis 8:21, após o dilúvio, a linguagem retorna ao uso coletivo de ʾāḏām: “não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem [baʿăḇūr hāʾāḏām]”. A maldição da terra (ʾăḏāmāh) — que se originara da desobediência do homem (ʾāḏām) em 3:17 — é, nesse ponto, suspensa, embora a natureza humana continue sendo inclinada ao mal desde a juventude. Essa tensão entre a terra amaldiçoada e o destino humano se repete em Gênesis 4:11–12 (castigo de Caim) e Gênesis 5:29, quando Lameque nomeia seu filho Noé, dizendo: “este nos consolará acerca do nosso trabalho e do trabalho de nossas mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou”.
Fora do Gênesis, há algumas passagens em que ʾāḏām pode ser entendido como referência ao personagem Adão e não apenas ao humano genérico. Em Deuteronômio 4:32, lemos: “Pergunta aos dias passados... desde o dia em que Deus criou o homem [ʾādām] sobre a terra [ʿal hāʾāreṣ]...”. Embora o uso aqui pareça genérico, muitos expositores veem eco da criação original de Adão. O mesmo ocorre em Jó 31:33, quando o protagonista afirma: “se, como Adão [kəʾādām], encobri as minhas transgressões...”, comparação que é ambígua, pois kəʾādām pode ser traduzido tanto como “como o homem” quanto “como Adão” (interpretação que depende de tradição exegética e contexto). A Septuaginta traduz kəʾādām como ὥσπερ ἄνθρωπος (hōsper anthrōpos), mas a Vulgata lê sicut Adam (“como Adão”), sugerindo recepção antiga como nome próprio.
Em Oseias 6:7, ocorre situação semelhante: “Mas eles transgrediram a aliança como Adão [kəʾādām]; ali se portaram aleivosamente contra mim”. O hebraico é idêntico ao de Jó 31:33 e também ambíguo; a Vulgata novamente opta por sicut Adam, e alguns manuscritos da LXX têm ὥσπερ ἄνθρωπος, reforçando a dupla leitura possível.
Em 1 Crônicas 1:1, o nome ʾādām aparece incontestavelmente como nome próprio e primeiro ancestral da genealogia: “Adão, Sete, Enos...”, estabelecendo a linhagem desde o início da humanidade. Esse uso genealógico de Adão como o primus homo serve como chave hermenêutica para os autores pós-exílicos, como também ocorre em Lucas 3:38, onde a genealogia de Jesus retrocede até “Adão, filho de Deus”.
Portanto, a figura de Adão no Antigo Testamento é multifacetada: ora nome próprio, ora arquétipo genérico, ora designação teológica da humanidade em sua condição criada, culpada, mas ainda vocacionada à bênção. O jogo literário entre ʾāḏām e ʾăḏāmāh, estabelecido em Gênesis 2–3, estende-se por toda a narrativa primitiva até o dilúvio e ressurge nos textos poéticos e proféticos como símbolo da precariedade e responsabilidade humana. Essa ambivalência é central para o conceito teológico de humanidade no Antigo Testamento: feita à imagem de Deus e tirada do pó, ʾāḏām é a síntese da dignidade espiritual e da limitação terrena.
V. Adão nos Apócrifos e Pseudoepígrafos
Os livros deuterocanônicos, aceitos no cânon católico e ortodoxo, mas considerados apócrifos pelos protestantes, contêm referências a Adão que, embora não extensas, reforçam aspectos de sua narrativa canônica e o posicionam como uma figura de advertência e sabedoria.
A. Livro da Sabedoria
O Livro da Sabedoria é o que mais se detém na figura de Adão entre os deuterocanônicos, focando nas consequências de sua desobediência e no papel da Sabedoria divina na história da salvação. Sabedoria 10:1-2: Este trecho destaca a proteção da Sabedoria sobre Adão após sua queda, enfatizando a misericórdia divina.
“A Sabedoria protegeu o primeiro ser humano, o pai do mundo, criado sozinho, e o livrou de sua própria queda; e deu-lhe força para dominar todas as coisas.” (Sabedoria 10:1-2). Aqui, a ênfase recai não apenas na queda, mas na intervenção divina para mitigar suas piores consequências, sugerindo uma visão de Adão como alguém que, apesar de seu erro, ainda estava sob o cuidado divino.
Sabedoria 2:23-24: Embora não mencione Adão diretamente, este texto aborda a origem da morte no mundo, ligando-a diretamente à inveja do diabo, o que implicitamente remete à narrativa do Gênesis e à entrada do pecado e da morte pela desobediência de Adão.
“Porque Deus criou o homem para a imortalidade, e o fez à imagem da sua própria natureza; mas pela inveja do diabo a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que são do seu partido.” (Sabedoria 2:23-24). Essa passagem fortalece a conexão entre a transgressão primordial e a mortalidade humana, consolidando a ideia de que a desobediência adâmica teve ramificações cósmicas.
B. Eclesiástico (Siraque)
O Livro de Eclesiástico faz breves menções a Adão, situando-o na linhagem dos grandes homens de Israel e como exemplo de uma criação perfeita que, no entanto, foi corrompida. Eclesiástico 17:1-6: Este trecho remete à criação de Adão à imagem e semelhança de Deus, conferindo-lhe domínio sobre a criação e instilando nele conhecimento e discernimento. “O Senhor criou o homem da terra e o fez à sua imagem. Deu-lhe número de dias e tempo, e deu-lhe poder sobre todas as coisas que há sobre a terra. Revestiu-o de força como a si mesmo e o fez à imagem de Deus. Impôs sobre ele o temor de toda a carne, e deu-lhe o domínio sobre animais e aves. Preparou-lhe língua, olhos e ouvidos, e deu-lhe coração para pensar; encheu-o de conhecimento e entendimento, e mostrou-lhe o bem e o mal.” (Eclesiástico 17:1-6). Essa passagem sublinha a dignidade da criação de Adão e sua posição privilegiada, mas também insinua a responsabilidade inerente ao conhecimento do bem e do mal.
Eclesiástico 49:16: Adão é listado entre os “homens ilustres” e figuras históricas, confirmando seu status como pai da humanidade e ponto de origem da história bíblica. “Enoque também foi achado perfeito, e foi levado para o paraíso de delícias. Nenhum homem sobre a terra nasceu como José. Nem mesmo Adão, o primeiro homem, foi tão grande como ele.” (Eclesiástico 49:16). Embora a comparação com José possa parecer minimizá-lo, o texto ainda o reconhece como o “primeiro homem”, estabelecendo sua importância fundacional.
C. Livro dos Jubileus
O Livro dos Jubileus, redigido originalmente em hebraico por volta do século II a.C., é uma reescrita do Gênesis e do Êxodo até o capítulo 12, estruturada por ciclos de “jubileus” — períodos de 49 anos. A obra tem orientação sacerdotal, com forte interesse na pureza ritual, no calendário solar e na genealogia. Adão é uma figura fundamental nesse texto, sendo sua vida cronologicamente ordenada e teologicamente interpretada como o início da história sagrada.
Já no início do Jubileus (cap. 2), a criação de Adão e Eva é narrada com base em Gênesis 1 e 2, mas com datas precisas: Adão é criado no “sexto dia da primeira semana do primeiro jubileu do oitavo ano do primeiro ano da criação” (Jubileus 2:1), refletindo a obsessão do autor pela ordenação cronológica. A narrativa da queda é expandida: em Jubileus 3:17–26, relata-se que Eva foi enganada por Satanás, aqui explicitamente nomeado como o arqui-inimigo espiritual, antecipando concepções dualistas posteriores. A responsabilidade do pecado recai sobre ambos, mas o texto preserva o aspecto representativo de Adão como cabeça da humanidade.
Em Jubileus 3:17–20, a queda é narrada com fidelidade ao Gênesis 3, mas com detalhes narrativos e datas precisas: ocorre após sete anos exatos, no 17º dia do segundo mês. O diálogo com a serpente é praticamente idêntico ao texto massorético, mas com leve simplificação. A entrada do pecado no mundo ocorre por meio do desejo, da desobediência e do engano. Após comer o fruto, Eva cobre sua nudez com folhas de figueira e compartilha com Adão, que também come.
Já em Jubileus 3:21–24 a nudez é descoberta, e Adão confecciona para si um avental. A vergonha surge como consequência da perda da glória — ponto central na antropologia de Jubileus. Deus amaldiçoa a serpente e castiga Eva com dores no parto e submissão ao marido. O castigo de Adão é o mesmo de Gênesis: trabalho árduo, suor, e retorno ao pó. A linguagem de “terra maldita” reforça a ligação entre o pecado humano e a criação afetada — tema retomado em Romanos 8.
Jubileus 4:29–31 descreve que a morte de Adão ocorre “no fim do 19º jubileu”, no sexto ano da sétima semana — totalizando 930 anos (como Gênesis 5:5). Mas aqui há uma explicação teológica inédita: Adão “faltou setenta anos” para completar mil anos — porque “mil anos são como um dia” nas tábuas celestes. Isso interpreta Gênesis 2:17 literalmente: Adão morreu “no mesmo dia” em que pecou, dentro da perspectiva divina do tempo. Essa releitura do tempo é profundamente apocalíptica e reflete Salmo 90:4.
O Jubileus desenvolve, portanto, uma teologia da história centrada em Adão: ele é o primeiro receptor da Torá oral, o ancestral da humanidade, e a testemunha da fidelidade divina que será restaurada plenamente na consumação dos tempos.
D. Enoque (Livro dos Segredos de Enoque)
O Segundo Livro de Enoque, também conhecido como Enoque Eslavo, é um apocalipse judaico escrito provavelmente entre o final do século I e o início do II d.C., preservado apenas em versões eslavas. Ele descreve a ascensão de Enoque através dos céus e a revelação dos mistérios cósmicos e antropológicos. Adão ocupa um papel relevante como protótipo da criação humana, cujo estatuto é contemplado nas visões de Enoque nos céus superiores.
Em 2 Enoque 30–33, Deus revela a Enoque a criação do mundo. A criação de Adão é descrita com detalhes teológicos notáveis: ele é feito do pó da terra, mas sua alma é um sopro direto de Deus. Deus diz: “No sexto dia, ordenei à minha sabedoria que criasse o homem a partir de sete consistências: uma, sua carne da terra; duas, seu sangue do orvalho; três, seus olhos do sol; quatro, seus ossos de pedra; cinco, sua inteligência da rapidez dos anjos e das nuvens; seis, suas veias e seus cabelos da grama da terra; sete, sua alma da minha respiração e do vento.” (2 Enoque 30:8). Essa criação manual confere a Adão dignidade sacerdotal, e o texto enfatiza que ele foi feito “à imagem do meu rosto” — uma formulação que intensifica a linguagem de Gênesis 1 e sugere que Adão reflete não apenas a imagem de Deus, mas seu semblante divino.
2 Enoque também relata que Deus ordenou aos anjos que se prostrassem diante de Adão, e que Satanael se recusou, tornando-se o adversário. Essa tradição ecoa o Apocalipse de Moisés e outras versões da Vita Adae, configurando uma angelologia da inveja e da queda espiritual anterior à humana. A queda de Adão é relatada brevemente, mas com ênfase na responsabilidade pessoal: Adão pecou, e sua queda causou a perda da glória original. Contudo, 2 Enoque também sugere que Adão será restaurado no futuro por intervenção divina, antecipando ideias de ressurreição e reentronização do homem justo. Em 2 Enoque 33:10–12, há uma alusão ao destino escatológico da humanidade, onde a imagem adâmica será restaurada aos justos.
O texto também explora a hierarquia ontológica da criação, na qual Adão está abaixo dos anjos em poder, mas acima deles em dignidade, por portar a imagem divina e ter domínio sobre a criação visível. Essa tensão teológica — entre a fragilidade do pó e a glória da imagem — é central na antropologia do 2 Enoque.
Por fim, a obra reafirma o papel de Adão como síntese cósmica entre terra e céu: ele é o único ser que pertence simultaneamente ao mundo visível (matéria) e invisível (alma), e é o protótipo do sacerdócio humano e da vocação espiritual do gênero humano.
E. A Vida de Adão e Eva
O texto de A Vida de Adão e Eva oferece um retrato vívido, dramático e profundamente teológico da figura de Adão após sua expulsão do Éden, explorando suas emoções, sua penitência, sua relação com Deus e, por fim, sua morte. A narrativa inicia, no capítulo 1, com Adão e Eva vagando fora do Paraíso, lamentando não apenas sua nudez física, mas o sofrimento existencial que agora os envolve, revelando o impacto imediato da Queda tanto em seu corpo quanto em sua consciência. Nos capítulos 2 a 4, a fome e o desespero assolam o casal, e Adão chega a considerar a morte, incapaz de lidar com a rudeza do novo mundo que os cerca, em forte contraste com a abundância edênica. Esse sofrimento material é descrito não como castigo arbitrário, mas como consequência concreta do distanciamento de Deus e da ruptura da ordem original.
A resposta de Adão a esse estado caído aparece nos capítulos 7 e 8, onde ele propõe a Eva um ato de penitência rigorosa: ele submerge no rio Jordão por quarenta dias, clamando por perdão. Essa cena é crucial para entendê-lo não como mero pecador, mas como alguém arrependido e devotado, pronto a suportar grandes dores em busca da reconciliação divina. No capítulo 11, quando Satanás reaparece para tentar Eva, é Adão quem se ergue como defensor, repreendendo o tentador, o que o apresenta como alguém que, mesmo marcado pela transgressão, busca proteger o bem. Eva, nos capítulos 15 e 16, rememora o momento da queda — o oferecimento do fruto e a perda das vestes de glória —, e embora essa parte venha de sua voz, confirma o envolvimento direto de Adão no drama da desobediência e na perda da inocência que se seguiu.
Com o nascimento de Sete, narrado no capítulo 20, a história de Adão se abre à esperança. A morte de Abel e o exílio de Caim haviam quebrado o elo da descendência, mas Sete representa a continuidade e a promessa de uma linhagem restauradora. Já no capítulo 22, a fragilidade física toma conta: Adão adoece e reconhece que sua morte se aproxima. Isso marca o início do clímax do drama humano, em que a mortalidade — consequência última do pecado — se manifesta de modo inevitável. Os capítulos 23 a 28 narram a tocante tentativa de Sete e Eva de buscar o “óleo da misericórdia” no Paraíso para curar Adão, mas são barrados pelo Arcanjo Miguel, que explica que a morte é parte do plano divino, e que a redenção será futura. Aqui, o texto insere uma teologia da espera: Adão, mesmo como primeiro homem, não será redimido de imediato — mas sua história aponta para uma esperança escatológica.
Adão, consciente da aproximação do fim, toma sua última atitude de responsabilidade nos capítulos 29 a 34: reúne seus filhos, narra a grandeza da criação original, a dor da queda, e os exorta a manter a fidelidade a Deus, a guardar os mandamentos, e a preservar a história para as gerações futuras. Ele se torna aqui um verdadeiro patriarca, um mestre da ética e da memória, reconhecendo seu erro, mas usando-o como base para instruir sua descendência. Os capítulos 35 a 42 elevam ainda mais essa figura ao descrever a morte de Adão como um acontecimento cósmico: anjos o acompanham, lamentam, e Deus desce dos céus para honrar sua morte. Adão é sepultado no Paraíso, seu corpo ungido e envolto por uma mortalha celestial, o que confere a ele não apenas dignidade, mas uma função simbólica: o primeiro homem não morre no abandono, mas é recebido com honra e promessas de ressurreição, sinal de que a história humana, embora manchada pelo pecado, será restaurada. Por fim, nos capítulos 43 e 51, Eva lamenta profundamente a perda de Adão e, tempos depois, é sepultada ao seu lado, completando o ciclo simbólico do casal primordial como pais da humanidade, unidos não só na criação e na queda, mas também na esperança de redenção eterna.
F. Apocalipse de Abraão
O livro Apocalipse de Abraão é um texto pseudepígrafo judaico que apresenta uma visão de mundo complexa através das revelações dadas a Abraão. Adão é mencionado especificamente em contextos que abordam a criação, a queda e a origem do pecado no mundo.
No Apocalipse de Abraão, a figura de Adão emerge como um elemento teológico decisivo para compreender a origem do mal, do pecado e da idolatria que assolam a humanidade. As informações mais densas e significativas a seu respeito concentram-se nos capítulos 23 e 24, onde Abraão, conduzido por um anjo celestial — identificado em algumas versões como Yahoel, em outras como Miguel —, é transportado para uma visão apocalíptica que reinterpreta os eventos primordiais do Gênesis em uma chave cosmológica e profética.
No capítulo 23, Abraão contempla, do alto de uma perspectiva celeste, a criação do cosmos e, em seguida, a formação de Adão e Eva. Ambos são apresentados como parte da ordem divina criada com beleza e propósito, sendo colocados no Jardim do Éden, símbolo da comunhão e da aliança entre Deus e o ser humano. No entanto, essa ordem logo é perturbada pela transgressão. Adão e Eva são induzidos à queda pelo adversário — aqui nomeado como Azazel — que atua por meio da serpente. A narrativa mantém a estrutura clássica do Gênesis ao destacar o ato de comer do fruto da árvore do conhecimento como o ponto de ruptura entre a humanidade e Deus, mas amplia o escopo do evento ao situá-lo num cenário de batalha espiritual entre forças angelicais e demoníacas. Assim, a queda não é apenas um ato de desobediência moral, mas a introdução de uma desordem cósmica, que desequilibra não apenas a vida humana, mas toda a estrutura do mundo.
O capítulo 24 aprofunda as consequências dessa Queda. A linhagem de Adão e Eva, originada de sua união pós-edênica, é apresentada como uma genealogia corrompida, marcada pela injustiça, pela idolatria e pela decadência ética. A visão mostra como os descendentes de Adão se afastam progressivamente da verdade divina, mergulhando em práticas imorais e cultos profanos, o que gera a necessidade de uma intervenção divina mais profunda. O texto sugere que a idolatria e a perversão que se espalham pela Terra são diretamente enraizadas no pecado original de Adão, tornando-o o arquétipo do humano caído — aquele que, tendo sido formado do pó com um destino glorioso, abriu as portas para a corrupção universal. A figura de Adão, portanto, não é retratada isoladamente, mas como ponto de partida da história de pecado que exigirá um processo redentor ao longo das gerações.
Nesse sentido, o Apocalipse de Abraão utiliza a figura de Adão não apenas para ilustrar a origem da humanidade ou o primeiro pecado, mas para fundamentar uma visão escatológica do mundo, onde a queda do primeiro homem justifica a eleição do patriarca Abraão como restaurador da verdadeira fé e adorador do Deus único. Adão representa a falha fundacional da humanidade, e sua transgressão é o pano de fundo para a missão profética de Abraão: reverter a idolatria, restaurar a verdade, e preparar o caminho para o juízo divino. Assim, a narrativa de Adão adquire um peso doutrinal e simbólico muito mais amplo, enraizando o drama humano não apenas na história, mas na própria estrutura do cosmos e do plano redentor de Deus.
V. Adão no Novo Testamento
A figura de Adão aparece nos Evangelhos como ponto de origem da humanidade, especialmente em Lucas 3:38, onde é chamado “filho de Deus” para destacar sua criação direta por Deus e sua posição inaugural na linhagem humana. Jesus, nos Evangelhos Sinóticos, alude a Adão ao citar Gênesis 1 e 2 para defender a indissolubilidade do casamento, o que pressupõe sua existência histórica. Essa pressuposição é essencial para a argumentação moral e teológica de Jesus, que interpreta os relatos do Gênesis de forma literal e normativa. A genealogia lucana, ao incluir Adão, universaliza a missão de Cristo como Redentor de toda a humanidade, enquanto os Evangelhos reafirmam implicitamente a realidade histórica de Adão como fundamento do plano divino para o ser humano e para o matrimônio.
Nas epístolas paulinas, Adão se torna peça central de uma tipologia soteriológica na qual ele representa a velha humanidade sujeita ao pecado e à morte, enquanto Cristo é o novo Adão, fonte de vida, justificação e ressurreição. Romanos 5 e 1 Coríntios 15 estabelecem um paralelismo assimétrico: o ato de desobediência de Adão afetou todos negativamente, mas a obediência de Cristo oferece redenção superabundante. A doutrina da solidariedade — “em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados” — fundamenta-se em sua historicidade como figura real, cuja transgressão trouxe consequências ontológicas e espirituais para toda a humanidade. A teologia paulina, a argumentação das epístolas pastorais e até menções genealógicas como em Judas 14 indicam que Adão é considerado um indivíduo real e não uma figura alegórica. Sua existência é crucial para a lógica redentiva do evangelho, que repousa na contraposição entre dois homens reais: Adão e Cristo.
A. Adão nos Evangelhos e Genealogias
A figura de Adão no Novo Testamento é evocada de forma esporádica mas teologicamente significativa. Nos Evangelhos Sinóticos, a referência mais direta ocorre em Lucas 3:38, quando a genealogia de Jesus retrocede até “Adão, filho de Deus”. Esse dado, ausente na genealogia de Mateus, é essencial ao projeto lucano de apresentar Jesus como o Salvador universal, cuja linhagem alcança o pai da humanidade, não apenas Abraão, pai de Israel. Ao designar Adão como “filho de Deus”, Lucas indica a origem imediata do primeiro homem como criatura divina, dando respaldo implícito à doutrina da imagem de Deus no ser humano, como formulada em Gênesis 1:27.
Embora o nome de Adão não apareça textualmente em Mateus 19:4–6 ou Marcos 10:6–8, Jesus alude diretamente à sua criação e à de Eva, citando Gênesis 1:27 e 2:24. No contexto da controvérsia sobre o divórcio, Cristo argumenta que, desde o princípio, o plano divino para o matrimônio foi monogâmico, indissolúvel e fundamentado na complementaridade dos gêneros. Esse argumento só tem força se Adão for entendido como figura histórica, e não simbólica. Assim, Jesus e os evangelistas pressupõem a veracidade literal do relato de Gênesis.
B. Uso Paulino da Figura de Adão
O Novo Testamento desenvolve sua doutrina mais densa sobre Adão nas epístolas paulinas, sobretudo em Romanos 5:12–21 e 1 Coríntios 15:21–22, 45–49. Aí surge uma tipologia teológica onde Adão e Cristo são tratados como “dois cabeças de humanidade”: o primeiro introduz a morte e o pecado, o segundo traz a vida e a justificação.
Em Romanos 5:12–19, Paulo apresenta uma série de contrapontos entre Adão e Cristo. O versículo 12 é o ponto de partida: “Assim como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram”. A frase final (“porquanto todos pecaram”) é interpretada de duas formas: ou todos pecaram representativamente em Adão (solidariedade federal), ou todos herdam a inclinação e por isso pecam (solidariedade natural). Em ambos os casos, a ligação causal entre Adão e o destino da humanidade é inequívoca.
A obra de Cristo, em contrapartida, é exaltada como superior: “muito mais” (Rom. 5:15), “o dom gratuito não é como a ofensa” (v.16), e “onde o pecado abundou, superabundou a graça” (v.20). Paulo constrói uma analogia assimétrica: Adão e Cristo são comparáveis como figuras representativas, mas os efeitos de Cristo superam infinitamente os de Adão. O princípio de solidariedade humana é aqui utilizado para mostrar que, assim como a queda de um afetou a muitos, a obediência de um pode redimir a multidão.
Em 1 Coríntios 15:22, Paulo afirma: “Assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados”. O debate exegético gira em torno dos dois “todos”. Alguns (Dods, Edwards) sustentam que o primeiro é universal (todos os humanos) e o segundo é limitado (todos os crentes). Outros (Meyer, Ellicott, Godet) defendem a simetria, com “vivificados” significando ressurreição geral, inclusive para condenação (cf. João 5:29). Em qualquer interpretação, a existência de Adão como causa primária da morte é pressuposta.
No mesmo capítulo, versículos 45–49, a tipologia se intensifica: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante”. Paulo parte de Gênesis 2:7 (LXX) para mostrar que Adão é figura do homem terreno e Cristo do homem celestial. Aqui, como nota a exegese de Filo de Alexandria, é possível que Paulo reinterprete o texto à luz de uma ontologia dual: o homem terreno (feito do pó) e o homem celeste (glorificado). Mas, ao contrário de Filo, que via tipos metafísicos, Paulo os compreende como figuras históricas e escatológicas. Cristo é o “último Adão” no sentido de consumar a nova criação, não apenas repetir ou corrigir o primeiro.
Em 1 Timóteo 2:13–14 e 1 Coríntios 11:8–9, o apóstolo usa a ordem da criação e a narrativa da queda para argumentar sobre o papel da mulher na liturgia. A prioridade de Adão e a transgressão de Eva fundamentam a subordinação feminina no culto. A interpretação aqui segue o método midráshico, como evidenciado por paralelos em Apocalipse de Moisés 15–21 e Pirqê de Rabi Eliezer 1, 13. Não se trata de misoginia arbitrária, mas de leitura tipológica do Gênesis, como também se vê em Gálatas 3:16 e Hebreus 7.
Por fim, Judas 1:14 menciona Enoque como “o sétimo depois de Adão”, referindo-se a Gênesis 5. Trata-se de uma referência cronológica baseada na genealogia. Aqui também se pressupõe a historicidade de Adão e sua posição como primeiro patriarca.
C. Implicação Teo-antropológica de Adão
A tipologia de Adão e Cristo desenvolvida por Paulo em Romanos 5 e 1 Coríntios 15 não é uma simples analogia ilustrativa, mas o eixo de sua soteriologia, antropologia e escatologia. Ao contrapor Adão — o homem terreno, da desobediência, da morte — com Cristo — o homem celestial, da obediência, da vida — o apóstolo estrutura uma teologia da história na qual a totalidade da humanidade está ontológica e espiritualmente vinculada a dois cabeças representativos.
A implicação mais notável dessa tipologia é a doutrina da solidariedade: todos os homens são “em Adão” por nascimento (κατὰ σάρκα), e todos os que crêem são “em Cristo” (ἐν Χριστῷ) por fé. Essa distinção estrutura toda a argumentação de Romanos 5:12–21. O pecado, a condenação e a morte entraram no mundo por meio de um só homem (5:12, 15, 16, 17, 18, 19), e com ele todos foram afetados. A forma como Paulo expressa isso, “δι’ ἑνὸς ἀνθρώπου”, indica uma causalidade única e universal. Porém, a ênfase paulina não recai no poder do pecado adâmico, mas na superação desse estado pela graça: “ὑπερεπερίσσευσεν ἡ χάρις” — “superabundou a graça” (5:20).
Em termos antropológicos, Paulo assume que o homem em Adão é inevitavelmente mortal, escravizado ao pecado, e incapaz de justificar-se. Essa condição, chamada de “homem natural” (ψυχικός ἄνθρωπος), contrasta com o “homem espiritual” (πνευματικός ἄνθρωπος), expressão que em 1 Coríntios 15:45–49 é aplicada diretamente a Cristo. Assim, Adão representa a humanidade em sua condição de fragilidade, sujeita à corrupção e alienada de Deus, enquanto Cristo inaugura uma nova humanidade, redimida, vivificada e destinada à imortalidade.
Essa nova condição, no entanto, não é automática. A união com Cristo — e portanto a participação na sua vitória sobre a morte — ocorre mediante fé e regeneração. Em 1 Coríntios 15:22, Paulo escreve: “ἐν Ἀδὰμ πάντες ἀποθνῄσκουσιν, οὕτως καὶ ἐν Χριστῷ πάντες ζωοποιηθήσονται” [em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados]. O paralelismo gramatical esconde uma diferença teológica essencial. A primeira cláusula é universal — todos nascidos de Adão morrem. A segunda, no entanto, pressupõe a união espiritual com Cristo — a vivificação é para os que estão “em Cristo”, e não indiscriminadamente todos os humanos. A tradição exegética conservadora, conforme Edwards e Dods, reconhece que “em Cristo” carrega sempre um valor soteriológico de inclusão na fé, não uma simples identificação ontológica.
Essa leitura é reforçada por 1 Coríntios 15:45: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante.” A referência a Gênesis 2:7 é clara, mas a aplicação cristológica é ousada. Paulo afirma que Cristo, enquanto “último Adão”, não apenas possui vida, mas a comunica — Ele é vivificador. Essa linguagem ultrapassa qualquer função metafórica e aponta para uma nova criação, uma reengenharia escatológica do ser humano, cuja plenitude será manifesta na ressurreição corporal gloriosa (cf. 1Co 15:51–54).
A historicidade de Adão, pressuposta em toda essa tipologia, não é periférica, mas central. Se Adão não for um indivíduo real, a própria estrutura do argumento paulino colapsa, pois o contraste entre um ato de desobediência real e um ato de obediência histórica perde sua força. Conforme as fontes que embasam este estudo, tanto os evangelistas quanto Paulo tomam como certo que Adão foi o primeiro homem, criado diretamente por Deus, e que sua transgressão teve efeitos objetivos sobre toda a humanidade. Isso é explicitado em Judas 14, onde Enoque é descrito como “sétimo depois de Adão”, reafirmando a linearidade genealógica e a realidade histórica de Adão como primeiro progenitor.
Na Epístola a Timóteo (1Tm 2:13–14), a narrativa de Gênesis 2–3 serve para fundamentar princípios eclesiásticos. O autor argumenta que Adão foi formado primeiro, e que não foi ele o enganado, mas Eva. Essa leitura se alinha com tradições judaicas apocalípticas (cf. Apocalipse de Moisés 15–21), onde Eva assume o papel principal na transgressão. O argumento do autor de 1 Timóteo, ainda que desconfortável aos modernos, é coeso dentro de uma estrutura tipológica e teológica que vincula doutrina a acontecimentos primordiais. O princípio teológico subjacente é que a ordem da criação reflete uma ordem de autoridade e responsabilidade espiritual.
A conclusão doutrinária a partir dessas evidências é que Adão é compreendido no Novo Testamento não como mera figura simbólica, mas como uma personalidade histórica cujo papel é estrutural na economia da salvação. Ele é a causa eficiente da queda, o representante natural da humanidade, e o paradigma da condição que Cristo veio redimir. Por isso, enquanto estamos “em Adão” por nascimento natural, é necessário estarmos “em Cristo” por regeneração espiritual — a nova criação (2Co 5:17). O Novo Testamento, portanto, não apenas reafirma a existência de Adão, mas o transforma em figura axial para a compreensão da redenção, da antropologia cristã e da escatologia final.
Nesse sentido, qualquer proposta de releitura da narrativa de Gênesis que descarte a realidade histórica de Adão mina as bases da soteriologia paulina e compromete a coerência do evangelho, cuja lógica redentiva repousa no paralelismo entre dois homens reais e históricos: “assim como pela desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos serão feitos justos” (Rm 5:19).
VI. Adão entre os Gnósticos
Os evangelhos gnósticos são textos cristãos antigos, geralmente datados entre os séculos II e IV, que emergem de correntes do cristianismo primitivo influenciadas por sistemas de pensamento gnóstico. A gnose (do grego gnōsis, “conhecimento”) é entendida nesses escritos como um saber espiritual oculto, reservado aos iniciados, por meio do qual a alma humana pode escapar da ignorância e da prisão do mundo material, visto como criação de um deus inferior (o demiurgo), distinto do Deus supremo e transcendente. Diferentemente dos evangelhos canônicos, que enfatizam a fé, o arrependimento e a encarnação de Cristo como eventos salvíficos universais, os evangelhos gnósticos frequentemente apresentam Jesus como um mestre revelador que transmite ensinamentos secretos sobre a verdadeira natureza divina do ser humano e o caminho de retorno à luz celestial.
Esses textos, como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho da Verdade e o Evangelho de Maria, foram preservados principalmente graças à descoberta da biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, no Egito. Muitos deles adotam um formato dialógico, onde Jesus transmite ensinamentos esotéricos a discípulos específicos após a ressurreição, e frequentemente subvertem ou reinterpretam temas do Novo Testamento à luz da cosmologia gnóstica. Embora tenham sido rejeitados como heréticos pelos teólogos da Grande Igreja, como Irineu de Lyon e Tertuliano, os evangelhos gnósticos testemunham a diversidade teológica do cristianismo antigo e revelam debates intensos sobre autoridade, revelação, salvação e o papel das mulheres na experiência cristã primitiva.
A. Evangelho de Filipese: Adão como Criação Imperfeita
A primeira menção substancial a Adão no Evangelho de Filipe ocorre na seção 60,34–61,12, onde se lê: “O [que foi] criado era [nobre], e esperar-se-ia que seus filhos fossem [nobres]. Se ele não tivesse sido criado, mas antes concebido, esperar-se-ia que sua descendência fosse nobre. Mas, de fato, ele foi criado, e então gerou descendência.”
Esta afirmação constitui a base da crítica gnóstica à origem de Adão. O autor estabelece uma distinção fundamental entre criação (ktisis) e concepção (genesis) — conceitos que, no vocabulário gnóstico, refletem duas ordens antagônicas: o mundo inferior (material, deficiente, corrupto) e o mundo superior (espiritual, pleno, eterno). Adão, sendo “criado” e não “concebido”, é assim incluído na ordem inferior, marcada pela incompletude e pela decadência ontológica.
O texto prossegue: “E que nobreza é essa! Primeiro veio o adultério, depois o assassinato. Um nasceu do adultério, pois era filho da serpente. Tornou-se assassino, como seu pai, e matou seu irmão.” Este trecho refere-se inequivocamente a Caim, apresentado aqui como “filho da serpente” e, portanto, como fruto ilegítimo, produto de uma união adulterina — não entre homem e mulher, mas entre Eva e a entidade identificada como serpente.
Ao definir o nascimento de Caim como adulterino, o evangelho associa diretamente a origem da humanidade à corrupção sexual e espiritual. O termo “adulterino” aqui não remete apenas à transgressão ética, mas a uma mistura ontológica de ordens distintas: “Todo ato de relação sexual entre aqueles que são diferentes uns dos outros é adultério.” O adultério, então, simboliza a mistura ilegítima de realidades incompatíveis — espírito e matéria, luz e trevas, superior e inferior — cuja consequência é a geração de morte. Assim, o nascimento da linhagem adâmica é, desde o início, considerado não só impuro, mas também causador de corrupção.
1. Adão como Animal: A Queda pela Árvore Errada (EvFil 71,16–72,4)
No trecho 71,16–21, o Evangelho de Filipe estabelece um paralelo entre Adão e Cristo, não apenas em termos tipológicos, mas como contrapontos ontológicos. O texto declara: “Adão veio de duas virgens, o Espírito e a virgem terra. Cristo nasceu de uma virgem para corrigir a queda que ocorreu no princípio.” Essa declaração não apenas apresenta a origem de Adão como resultado de uma união entre entidades femininas — o Espírito e a terra virgem — como também propõe que sua constituição é precária em comparação à de Cristo. Enquanto Cristo é concebido “de uma virgem” — em singularidade e propósito redentor —, Adão surge de uma dualidade e é apresentado como o prenúncio da queda, que Cristo veio restaurar.
O trecho seguinte (71,22–72,4) aprofunda essa interpretação ao relatar a escolha de Adão no Éden. Diz o texto:
Há duas árvores crescendo no paraíso. Uma produz [animais] e a outra produz pessoas. Adão [comeu] da árvore que produz animais, e [ele] tornou-se um animal e gerou animais. Como resultado, os filhos de Adão adoram animais. A árvore [cujo] fruto [ele comeu] é a [árvore do conhecimento, e por causa disso, os pecados] aumentaram. [Se ele tivesse] comido do [fruto da outra árvore], o fruto da [árvore da vida, que] produz pessoas, [os deuses] adorariam as pessoas. Assim como [no paraíso] Deus criou pessoas [para que as pessoas] [criassem Deus], também neste mundo as pessoas fazem deuses e adoram aquilo que criaram. Seria mais apropriado que os deuses adorassem as pessoas.
Essa passagem, que deve ser transcrita e analisada sem omissões, constitui um dos pontos mais teologicamente radicais e antropologicamente revolucionários do Evangelho de Filipe. Primeiramente, o texto estabelece que havia “duas árvores” no paraíso: uma que “produz animais” e outra que “produz pessoas”. Essa dicotomia é absolutamente inédita em relação à narrativa veterotestamentária, na qual se menciona a “árvore do conhecimento do bem e do mal” e a “árvore da vida”, mas não com essa tipologia zoológica e antropogênica.
A acusação feita a Adão é clara e inapelável: ele escolheu comer da árvore errada. O resultado disso não foi apenas a morte, mas uma transformação ontológica regressiva: “tornou-se um animal”. O homem, criado como imagem do divino, regride à condição de bestialidade. Isso não se trata de metáfora moral, mas de afirmação ontológica gnóstica: ao comer da árvore “que produz animais”, Adão se desumaniza e, por consequência, só pode gerar o que é segundo a sua nova natureza: animais. A paternidade espiritual, que exige concepção segundo o pneuma, é substituída por reprodução animalesca.
O efeito dessa queda se estende ao culto: “os filhos de Adão adoram animais.” Esta é uma crítica explícita às religiões que cultuam imagens ou figuras bestiais — incluindo implicitamente os cultos egípcios, greco-romanos ou mesmo judaicos quando contaminados pela idolatria. O texto continua: “A árvore [cujo] fruto [ele comeu] é a [árvore do conhecimento, e por causa disso, os pecados] aumentaram.” Ou seja, o conhecimento obtido não produziu santidade, mas transgressão. O gnosticismo aqui inverte o valor da “árvore do conhecimento”: ao contrário de libertar, ela corrompe. A verdadeira salvação não está na árvore que “dá conhecimento” (mas de modo imperfeito e sedutor), e sim na árvore que “dá vida”.
A hipótese alternativa é enunciada de forma condicional e contrafactual: “Se ele tivesse comido do [fruto da outra árvore], o fruto da [árvore da vida, que] produz pessoas, [os deuses] adorariam as pessoas.” A implicação é radical: a humanidade teria alcançado tal estatura espiritual que até os deuses — aqui entendidos como seres superiores ou poderes arcontes — a adorariam. Esse cenário subverte completamente o eixo da religião tradicional: não seriam os homens que adorariam deuses, mas os deuses que reconheceriam a grandeza do humano pleno.
A última sentença é uma explosão teológica:
Assim como [no paraíso] Deus criou pessoas [para que as pessoas] [criassem Deus], também neste mundo as pessoas fazem deuses e adoram aquilo que criaram. Seria mais apropriado que os deuses adorassem as pessoas.
O texto sugere que há, na criação, uma reciprocidade potencial entre Deus e o humano: Deus cria o homem, mas o homem, elevado à sua dignidade originária, “cria Deus”. Isso não deve ser lido em chave ateísta ou imanentista, mas como expressão gnóstica da teose: o humano que se conhece e se une à plenitude (Pleroma) torna-se divino, e por isso é digno de ser reconhecido inclusive pelas potências superiores.
Essa visão é consistente com a cosmologia do evangelho, que opera uma crítica constante à adoração do que é inferior — o mundo, a carne, os poderes arcontes — e propõe uma elevação do humano gnóstico à sua origem divina. Adão, ao escolher a árvore errada, fracassou nesse percurso. Cristo, segundo o evangelho, vem corrigir esse erro originário (cf. 71,16–21) e reabrir o acesso à “árvore da vida”.
2. A Alma de Adão, sua Perda do Espírito e o Mistério do Compartilhamento Pneumático (EvFil 70,22–34)
A seção 70,22–34 do Evangelho de Filipe apresenta uma das descrições mais densas e enigmáticas sobre a constituição antropológica de Adão, bem como a origem da sua queda, não apenas moral ou ontológica, mas espiritual. O texto afirma:
A alma de Adão veio de um sopro. A companheira da alma é o espírito, e o espírito dado a ele é sua mãe. Sua alma foi [tomada] dele e substituída por [espírito]. Quando ele foi unido com o espírito, [ele] pronunciou palavras superiores às potências, e as potências o invejaram. Eles [o separaram de sua] companheira espiritual... câmara nupcial escondida...
A análise desse trecho exige atenção a cada elemento, pois o texto propõe uma cosmogonia e uma psicologia espiritual absolutamente específicas, que divergem dos sistemas platônicos ou bíblicos tradicionais. Comecemos pela primeira cláusula: “A alma de Adão veio de um sopro.” Aqui, o evangelho ecoa Gênesis 2:7, mas o faz sem qualquer menção a Deus. O foco não está em quem soprou, mas no que foi soprado: a alma. Esta alma, portanto, não é divina por si mesma; ela tem origem em um sopro, e sua natureza é distinta daquela de sua companheira, que é o espírito.
A segunda sentença é crucial: “A companheira da alma é o espírito, e o espírito dado a ele é sua mãe.” Temos aqui uma antropologia tríplice, em que a alma (psique) não é autossuficiente. Ela possui uma companheira (syzygia), que é o espírito (pneuma), e este espírito é chamado de “mãe” — uma reversão do binômio tradicional “pai-espírito” do cristianismo canônico. A maternidade espiritual é uma das colunas da antropologia gnóstica: o espírito não apenas acompanha, mas gera, forma e nutre a alma. O uso da palavra “mãe” aqui é intencional e simbólico: trata-se de uma linhagem pneumática que deve ser recebida, mantida e resguardada, pois é o que diferencia o humano verdadeiro do humano decaído.
A próxima frase é dramática: “Sua alma foi [tomada] dele e substituída por [espírito].” Aqui o verbo “tomar” não é descrito como uma perda trágica, mas como parte de um processo de substituição salvífica: a alma, insuficiente por si mesma, é substituída pelo espírito — a realidade superior. Esse momento marca uma transfiguração espiritual de Adão. Ele deixa de ser apenas alma e se torna, por união, espírito. E o resultado é imediato: “Quando ele foi unido com o espírito, [ele] pronunciou palavras superiores às potências.” A união entre alma e espírito, no vocabulário do evangelho, confere uma capacidade de fala criadora e superior — logos espiritual — capaz de transcender e subjugar as potências (exousiai), entendidas como as forças cósmicas inferiores e arcontes dominadores do mundo material.
O que se segue, porém, é a tragédia gnóstica arquetípica: “e as potências o invejaram.” A inveja das potências é motivo constante nas narrativas gnósticas. Elas, percebendo que Adão, ao unir-se ao espírito, rompeu os limites da ordem inferior e passou a ocupar posição superior, tramam contra ele. A consequência é: “Eles [o separaram de sua] companheira espiritual.” A separação é a chave da queda. Adão não cai por transgredir uma lei, mas por ser violentamente separado do espírito — sua syzygia e mãe. Ele perde sua união pneumática, sua plenitude interior, e, por isso, degenera espiritualmente. O verbo “separar” aqui carrega a força de um ato cósmico hostil: as potências, ao removerem a syzygia, privam Adão da verdadeira vida.
A frase final, embora fragmentária, insinua o destino trágico desse rompimento: “... câmara nupcial escondida...” Este é um dos temas centrais do Evangelho de Filipe: o casamento místico na câmara nupcial como símbolo da união entre alma e espírito, ou entre humano e divino. A câmara, sendo “escondida”, significa que o acesso ao pneuma está velado, oculto, perdido. A separação entre Adão e sua companheira é, portanto, a separação entre o humano e seu destino espiritual. A redenção consistirá, como o texto desenvolve em outras seções, no reencontro com a câmara nupcial e na reintegração da unidade perdida — motivo que será, posteriormente, recuperado na união entre o Cristo e Maria, e nos sacramentos do óleo, luz, nome e espírito.
Essa seção, assim, mostra que a queda de Adão não se deu apenas por um ato de desobediência, mas por uma separação espiritual forçada, provocada pela inveja das potências, ao perceberem sua elevação ontológica. O pecado original não é transgressão moral, mas ruptura pneumática. O caminho de retorno é simbólico e litúrgico, passando pela recuperação da syzygia na câmara escondida, acessada apenas pelos que recebem a gnose e o óleo do noivo.
3. Adão e Eva: Unidade Pré-Queda, Morte e Reconciliação no Quarto Nupcial (EvFil 68,22–26 e 70,9–22)
O Evangelho de Filipe apresenta, entre os muitos fios da sua complexa tapeçaria antropológica e soteriológica, um breve mas decisivo trecho sobre a união original entre Adão e Eva, situado em 68,22–26:
Quando Eva estava em Adão, não havia morte. Quando ela foi separada dele, a morte veio. Se <ela> entrar nele novamente e ele a abraçar, a morte deixará de existir.
Essa sentença, concisa e radical, lança a base para todo o entendimento gnóstico da queda como um evento de separação e da salvação como um processo de reunificação. O primeiro ponto a se destacar é que “quando Eva estava em Adão, não havia morte”. O texto não utiliza alegoria nem metáfora aqui: afirma literalmente que a ausência da morte estava vinculada à unidade originária entre os princípios masculino e feminino.
Essa Eva “em Adão” é uma concepção pré-material e pré-dualística. O texto não afirma que Eva foi criada de Adão, como em Gênesis 2:22, mas que ela estava nele. Isso implica que, antes da criação física ou sexualizada, havia uma entidade humana integral, na qual os aspectos masculino e feminino coexistiam em unidade indivisa — uma forma de andrógino primordial. A morte, portanto, não é uma punição ética, mas o efeito ontológico da cisão: “quando ela foi separada dele, a morte veio.”
A conclusão é inevitável e programática para toda a teologia do evangelho: “Se <ela> entrar nele novamente e ele a abraçar, a morte deixará de existir.” A salvação está vinculada ao reencontro, à reintegração das partes separadas. Mas essa reunificação não se dá no plano biológico ou psíquico, e sim naquilo que o texto designa repetidamente como a câmara nupcial — o espaço místico e pneumático onde as syzygiai (pares espirituais) se reencontram.
Esse tema é desenvolvido e ampliado no trecho EvFil 70,9–22, que deve ser aqui transcrito na íntegra:
Se a fêmea não tivesse se separado do macho, a fêmea e o macho não teriam morrido. A separação do macho e da fêmea foi o começo da morte. Cristo veio para curar a separação que existia desde o princípio e reunir os dois, a fim de dar vida àqueles que morreram por causa da separação e uni-los novamente.
Uma mulher é unida com seu marido na câmara nupcial, e aqueles que se unem na câmara nupcial não serão separados novamente. É por isso que Eva se separou de Adão, porque ela não havia se unido a ele na câmara nupcial.
Cada frase desse trecho corresponde a uma ampliação da tese anterior. A primeira afirmação é um reforço terminológico: “Se a fêmea não tivesse se separado do macho, a fêmea e o macho não teriam morrido.” Aqui, a morte é definida como efeito direto da separação de princípios complementares. O que está em jogo não é apenas a morte física, mas a condição de desintegração espiritual e ontológica.
A frase seguinte define a queda da humanidade: “A separação do macho e da fêmea foi o começo da morte.” O archē (princípio) da morte, para o Evangelho de Filipe, não é o pecado, mas a divisão. Trata-se de uma antropogonia negativa, na qual a escisão entre aspectos do ser humano representa a desordem original.
A missão de Cristo é explicitamente relacionada a esse diagnóstico: “Cristo veio para curar a separação que existia desde o princípio e reunir os dois, a fim de dar vida àqueles que morreram por causa da separação e uni-los novamente.” Cristo, portanto, não é apenas o redentor que perdoa pecados, mas aquele que cura a divisão ontológica e reinstaura a syzygia. Sua obra redentora é reconciliadora em sentido ontológico e místico: reunir os separados, e assim devolver-lhes a vida. Morreram não apenas biologicamente, mas porque foram cindidos. O retorno à vida se dá na reunião.
A frase seguinte desloca a questão para o contexto litúrgico e simbólico: “Uma mulher é unida com seu marido na câmara nupcial, e aqueles que se unem na câmara nupcial não serão separados novamente.” A câmara nupcial (numphōn), como aparece em todo o evangelho, é o lugar do sacramento supremo. É ali que o retorno do feminino ao masculino — e vice-versa — se dá de forma perene. Não se trata de união sexual ordinária, mas de uma união pneumática, espiritual, sacramental, e portanto eterna. O que é unido ali “não será separado novamente.”
A frase final retorna a Eva: “É por isso que Eva se separou de Adão, porque ela não havia se unido a ele na câmara nupcial.” Essa afirmação reinterpreta toda a narrativa do Gênesis sob uma luz gnóstica. A separação entre Adão e Eva não foi causada por um castigo divino ou por um pecado voluntário, mas por uma união incompleta — uma união que não foi selada na câmara nupcial, e portanto era precária, vulnerável e fadada à dissolução. Sem esse vínculo superior e eterno, a união não era perene, e a separação foi inevitável.
Conforme o evangelho repete em múltiplas passagens, o retorno à unidade se dá apenas quando os pares espirituais são reconciliados no espaço oculto da câmara nupcial, através da gnose, do óleo (chrism), do nome e da luz. O que Adão e Eva não realizaram, os cristãos gnósticos são chamados a realizar. A missão redentora de Cristo não é outra senão reabrir esse espaço perdido e tornar novamente possível o que foi esquecido: a plenitude da união espiritual e a superação da morte através da integração entre masculino e feminino — não em suas expressões sexuais ou materiais, mas em sua origem pneumática e celeste.
4. Adão e o Trigo Celeste: Da Comida de Animais à Comida de Homens (EvFil 55,6–14)
O Evangelho de Filipe insere, no trecho EvFil 55,6–14, uma observação densa sobre a diferença entre a dieta dos tempos de Adão e a que é introduzida com a vinda de Cristo. O texto afirma literalmente:
Antes que Cristo viesse, não havia pão no mundo, assim como o paraíso, onde Adão vivia, tinha muitas árvores para alimento animal, mas não tinha trigo para alimento humano. E as pessoas comiam como animais. Mas quando Cristo, o humano perfeito, veio, ele trouxe o pão do céu, para que os humanos pudessem ser alimentados com alimento humano.
Essa passagem é absolutamente central para a compreensão gnóstica da antropologia, cristologia e soteriologia aplicadas a Adão. Primeiramente, o texto enuncia uma ausência radical e concreta: “não havia pão no mundo”. A ausência do pão é descrita não como metáfora simbólica, mas como um marcador real da insuficiência da era pré-crística. E esta insuficiência é retrojetada para o próprio Éden: “assim como o paraíso, onde Adão vivia, tinha muitas árvores para alimento animal, mas não tinha trigo para alimento humano.”
O que se afirma aqui é que a economia do Éden — a estrutura alimentar e simbólica do paraíso — era adequada apenas a animais. Adão, mesmo no paraíso, não possuía acesso ao “trigo”, ou seja, ao alimento específico da verdadeira humanidade. A implicação é direta e não deve ser suavizada: Adão não se alimentava como um homem, mas como um animal. A frase seguinte o confirma com precisão e força: “E as pessoas comiam como animais.”
Esta sentença estabelece um juízo antropológico essencial no Evangelho de Filipe: a humanidade adâmica, apesar de sua aparência humana, era bestial em sua constituição interior, especialmente naquilo que a sustentava. A comida, no imaginário gnóstico, não é apenas sustento, mas índice da natureza espiritual de quem a recebe. Comer “como animais” é ser, de fato, animalizado.
Nesse contexto é que se compreende a missão e a identidade de Cristo, descrito de forma solene como “Cristo, o humano perfeito”. Esse título não é adjetivo, mas definição ontológica: Cristo é o anthrōpos teleios, o tipo pleno, consumado, daquilo que o ser humano deveria ser. Sua missão é alimentar os homens com o que é próprio ao homem. E para isso, ele não apenas ensina ou ilumina, mas “trouxe o pão do céu”. A menção ao “pão do céu” ecoa, evidentemente, João 6 — mas o Evangelho de Filipe aqui o emprega com sentido gnóstico autônomo: o pão de Cristo é aquilo que transforma os que comem de animais em verdadeiros seres humanos.
A frase final resume o sentido escatológico dessa obra alimentar de Cristo: “para que os humanos pudessem ser alimentados com alimento humano.” O alimento humano não estava disponível no paraíso; o paraíso tinha apenas árvores que produziam alimento animal. O trigo, símbolo da verdadeira humanidade, foi ocultado até que viesse aquele que pudesse colhê-lo e oferecê-lo. Cristo é, então, não apenas aquele que redime espiritualmente, mas aquele que, ao oferecer o pão verdadeiro, reconstrói a própria constituição do humano.
Portanto, o Evangelho de Filipe propõe que Adão e sua descendência viveram numa economia zoológica, sustentados por uma alimentação não espiritual, inadequada, inferior. O advento de Cristo representa não apenas a restauração da vida, mas a inauguração da verdadeira humanidade, expressa no acesso ao trigo — ao pão celeste. Comer deste pão é, portanto, tornar-se o que Adão não era: um verdadeiro ser humano, gerado não pela terra virgem e pelo sopro, mas pela gnose que vem do alto, pela união pneumática e pela participação na natureza do “humano perfeito”.
5. Adão e o Culto Animal: O Deus Que Come Carne e a Origem da Idolatria (EvFil 60,15–34 e 62,35–63,4)
A seção 60,15–34 do Evangelho de Filipe introduz uma analogia agrozoológica para explicar o papel do ser humano como arquiteto de estabilidade cósmica dentro de uma ordem em que o “perfeito humano” prepara o campo da existência. O texto afirma:
Alguns animais são domesticados, como o boi, o jumento e semelhantes, enquanto outros são selvagens e vivem soltos. As pessoas aram os campos com os animais domesticados, e como resultado as pessoas são alimentadas, juntamente com os animais, tanto domesticados como selvagens.
Assim também o humano perfeito ara com poderes que são domesticados e prepara tudo para que venha a ser. Assim, todo o lugar possui estabilidade — bem e mal, direita e esquerda. O Espírito Santo cuida de tudo e governa [todas] as potências, quer domesticadas, quer selvagens e soltas. Pois o Espírito está [decidido] a cercá-las, de modo que elas não possam escapar mesmo se [quiserem].
Este trecho associa diretamente a atividade humana — ou melhor, a atividade do “humano perfeito” — ao domínio ordenado da criação. A menção aos animais domésticos e selvagens evoca uma estrutura hierárquica dentro do cosmos. Os domesticados são integráveis ao propósito humano; os selvagens, não — embora ambos se beneficiem da ação daquele que ara. A figura do humano perfeito, neste contexto, assume um papel demiúrgico restaurador: ele “ara com poderes” (dunámeis) — não com ferramentas — e “prepara tudo para que venha a ser”.
A analogia revela que tanto os poderes benéficos quanto os hostis (bem e mal, direita e esquerda) estão sob o mesmo domínio, o qual é atribuído ao Espírito Santo: “O Espírito Santo cuida de tudo e governa todas as potências.” Isso prepara o terreno para a seção seguinte, em que o texto aborda não apenas o sistema cósmico, mas sua corrupção ritualística nas práticas sacrificiais.
Entramos agora no texto de EvFil 62,35–63,4, que afirma com contundência:
Deus é um comedor de homens, [63] e por isso os humanos [são sacrificados] a ele. Antes que os humanos fossem sacrificados, os animais eram sacrificados, porque aqueles a quem os sacrifícios eram oferecidos não eram deuses.
Essa frase é uma das mais provocadoras e subversivas de todo o evangelho. Primeiro, o texto afirma literalmente: “Deus é um comedor de homens”. Esta não é uma metáfora estilística, mas uma acusação teológica direta. O termo “comedor de homens” (anthrōpophagos) denuncia um sistema religioso em que o sacrifício humano é implicitamente endossado. Ao mesmo tempo, essa declaração deve ser lida dentro da lógica gnóstica que denuncia os “deuses falsos” — os arcontes ou criadores inferiores — como os verdadeiros destinatários dos sacrifícios. Isso fica explícito na segunda frase: “Antes que os humanos fossem sacrificados, os animais eram sacrificados, porque aqueles a quem os sacrifícios eram oferecidos não eram deuses.”
A conclusão do texto é dupla. Primeiro, os sacrifícios — sejam animais ou humanos — são dirigidos a entidades que não são verdadeiros deuses. Isso desmascara todo o sistema de culto sacrificial como uma forma de idolatria ontológica. Segundo, a evolução do sacrifício, do animal ao humano, marca uma degradação ritual, pois os deuses falsos — arcontes ou potências do mundo inferior — passam a exigir cada vez mais. A morte torna-se central, e não a vida; o corpo, e não o espírito.
Colocado em paralelo com a análise anterior sobre Adão e sua degeneração animal, este trecho afirma implicitamente que os filhos de Adão, ao adorarem animais (72,4), foram levados a oferecer sacrifícios não ao Deus verdadeiro, mas aos simulacros bestiais que eles mesmos passaram a venerar. Em outras palavras, a idolatria adâmica degenerada culmina num culto de morte. E o resultado é que o “Deus” que governa este mundo é, na verdade, um predador de carne humana — uma construção gnóstica do demiurgo inferior, que rege este mundo com base na inversão da ordem pneumática.
Essa denúncia é reforçada por outras passagens do Evangelho de Filipe, como o trecho 63,21–24, onde se afirma que “A eucaristia é Jesus... pois Jesus veio para crucificar o mundo.” A verdadeira oferenda, o verdadeiro sacrifício, é a autodoação do humano perfeito. Não é a carne dos outros, mas a do próprio Cristo — e mesmo isso, não na carne literal, mas na substância espiritual.
A crítica à religião sacrificial se insere, assim, no contexto mais amplo da denúncia gnóstica ao mundo criado: um mundo onde se come carne, onde se sacrificam corpos, onde o alimento é corruptível. O Deus verdadeiro, que é espírito, não se alimenta de mortos, mas dá alimento espiritual (como o pão trazido do céu). Os deuses que comem carne são, portanto, falsificações arcontes, sustentadas pela ignorância e pela idolatria herdada de Adão.
6. Adão, Linguagem e Engano: A Substituição dos Nomes Verdadeiros (EvFil 53,23–54,5; 54,18–31)
A relação entre nomeação, essência e desvio gnóstico é articulada de maneira incisiva nas passagens 53,23–54,5 e 54,18–31 do Evangelho de Filipe. O texto inicia sua reflexão sobre a linguagem com uma advertência de radical desconfiança ontológica:
Os nomes das coisas do mundo são totalmente enganosos, pois desviam o coração do que é real para o que não é real. Quem ouve a palavra ‘deus’ não pensa no que é real, mas sim no que é irreal. O mesmo acontece com as palavras ‘pai’, ‘filho’, ‘espírito santo’, ‘vida’, ‘luz’, ‘ressurreição’, ‘igreja’ e todas as demais: as pessoas não pensam no que é real, mas no que é irreal, [embora] as palavras se refiram ao que é real.
A acusação é clara: a linguagem, tal como usada no mundo, não revela, mas oculta. Os nomes que deveriam conduzir ao real — theós, patḗr, huiós, pneûma, zōḗ, phōs, anástasis, ekklēsía — foram cooptados por uma estrutura de engano que os liga não aos arquétipos espirituais a que originalmente se referem, mas às suas sombras materiais e ilusórias. A consequência epistemológica e espiritual é trágica: “desviam o coração do que é real para o que não é real.” A mente humana é levada, pela própria linguagem religiosa, a adorar falsificações.
O evangelho insiste que o problema não está nos nomes em si, mas na esfera a que pertencem:
As palavras [que são] ouvidas pertencem a este mundo. [Não se deixe] [54] enganar. Se as palavras pertencessem ao reino eterno, nunca seriam pronunciadas neste mundo, nem designariam coisas mundanas. Elas se refeririam ao que está no reino eterno.
A denúncia aqui é de ordem ontológica e semântica: as palavras pronunciáveis são limitadas pela condição deste mundo inferior. Se os nomes fossem oriundos do Aeon eterno, não poderiam sequer ser articulados no mundo decaído. Logo, toda palavra pronunciada está, por definição, sob suspeita. O que é nomeável neste mundo não pode nomear o verdadeiro.
Essa crítica à linguagem como sistema corrompido é ampliada na passagem 54,18–31, que aprofunda a denúncia ao revelar a estratégia consciente dos arcontes (governantes do mundo):
Os governantes quiseram enganar as pessoas, pois viram que as pessoas têm parentesco com o que é verdadeiramente bom. Eles tomaram os nomes do bem e os aplicaram ao que não é bom, para enganar as pessoas com os nomes e associar os nomes ao que não é bom. Assim, como se estivessem fazendo um favor às pessoas, eles tomam nomes do que não é bom e os transferem para o bem, segundo seu próprio modo de pensar. Pois desejaram tomar pessoas livres e escravizá-las para sempre.
Aqui o texto atinge uma profundidade teológica contundente. Os governantes — arcontes — são apresentados como inteligências cósmicas que não apenas dominam, mas operam com astúcia semântica. A linguagem torna-se arma de dominação espiritual. O engano consiste em uma operação linguística: apropriação de nomes verdadeiros para designar falsidades, e transferência de nomes falsos para realidades verdadeiras. Trata-se de um processo de inversão simbólica sistemática, em que o bem é chamado mal e o mal é chamado bem.
A gravidade disso está no impacto antropológico e soteriológico: “desejaram tomar pessoas livres e escravizá-las para sempre.” A escravidão aqui não é política ou física, mas ontológica: o humano que pensa conhecer a Deus, a vida, a luz, a igreja, acaba adorando os simulacros impostos pelas potências inferiores. É, portanto, um Adão enganado por nomes.
Esse ponto conecta-se de forma coerente com o diagnóstico do evangelho sobre a condição adâmica: Adão é aquele que caiu não apenas por separação (cf. 68,22–26), mas por desorientação semântica. Ele não reconhece o alimento verdadeiro (cf. 55,6–14), não sabe o nome do Pai (cf. 54,5–13), nem o nome do Filho (cf. 56,3–13). Vive num mundo em que as palavras são ruínas de significados superiores — e, por isso, tudo que vê, ouve, nomeia e adora é reflexo invertido do que é eterno. A consequência é clara: o homem se torna escravo pelo próprio vocabulário que deveria libertá-lo.
Neste sentido, a reviravolta proposta pelo Evangelho de Filipe não se limita a um retorno ético ou ritual, mas exige uma purificação radical da linguagem. O caminho para a salvação não passa apenas por rituais, mas por um reconhecimento do engano semântico operado pelas potências do mundo. O discípulo gnóstico é aquele que deixa de chamar “deus” o que é irreal, e começa a buscar o nome que “não é pronunciado neste mundo” — o nome que o Pai deu ao Filho e que “não pode ser compreendido por quem não o possui” (cf. 54,5–13, analisado na seção seguinte).
7. Adão, o Nome e o Inefável: O Nome que Não Pode Ser Dito (EvFil 54,5–13 e 56,3–13)
A questão do nome — seu conhecimento, transmissão e ocultamento — é um dos temas mais centrais do Evangelho de Filipe. Nos trechos 54,5–13 e 56,3–13, o texto articula uma teologia do nome que se opõe frontalmente à linguagem religiosa comum, e estabelece uma conexão direta com a queda de Adão como perda da identidade nomeada. Comecemos pela citação integral do trecho 54,5–13:
Apenas um nome não é pronunciado no mundo: o nome que o Pai deu ao Filho. É o nome que está acima de todos; é o nome do Pai. Pois o Filho não teria se tornado Pai se não tivesse recebido o nome do Pai. Aqueles que têm este nome compreendem-no, mas não o pronunciam. Aqueles que não o têm, não conseguem nem sequer compreendê-lo.
A primeira sentença estabelece que existe apenas um nome que não pode ser dito no mundo. Trata-se de uma proposição ontológica, e não apenas mística: o nome que o Pai deu ao Filho não é simplesmente secreto — ele é inefável. Sua não pronúncia não decorre de proibição, mas de impossibilidade. Ele não pertence ao mundo e, por isso, não pode ser articulado com os instrumentos linguísticos do mundo.
Este nome é, segundo o próprio texto, o nome do Pai. Mas ele é também o que faz do Filho o próprio Pai. A frase “o Filho não teria se tornado Pai se não tivesse recebido o nome do Pai” propõe uma teologia da nomeação como geração: não há distinção ontológica radical entre Pai e Filho, mas uma identidade progressiva, mediada pela posse do nome. Este nome é o que autoriza, transfere e constitui a paternidade. O Filho torna-se Pai, não por natureza separada, mas por vestir o Nome — por receber aquilo que o torna plenamente consubstancial com aquele que o gerou.
A segunda metade do trecho divide a humanidade em duas categorias, com base nesse nome: “Aqueles que têm este nome compreendem-no, mas não o pronunciam. Aqueles que não o têm, não conseguem nem sequer compreendê-lo.” Há, portanto, uma gnose restrita, uma compreensão que só é possível para os que têm o nome. Esse “ter” o nome não é apenas conhecê-lo foneticamente, mas ser por ele transformado. O nome é identidade. Aqueles que o têm, compreendem. Aqueles que não o têm, não compreendem, e nem sequer podem compreendê-lo. O nome é, assim, a chave da revelação e a essência da filiação.
Esse conceito é retomado e ampliado no trecho EvFil 56,3–13, que afirma:
Jesus é um nome oculto, Cristo é um nome revelado. O nome Jesus não existe em nenhuma outra língua, mas ele é chamado pelo nome Jesus. A palavra para Cristo em siríaco é messias e em grego é christos, e assim também todas as outras pessoas têm uma palavra para isso em sua própria língua. Nazareno é a forma revelada do nome oculto.
Este parágrafo realiza uma distinção fina entre os nomes Jesus e Cristo. O texto afirma que “Jesus é um nome oculto”, enquanto “Cristo é um nome revelado”. A oposição entre oculto e revelado não está na sonoridade, mas no conteúdo espiritual de cada nome. Jesus, o nome pessoal do Salvador, pertence ao reino daquilo que não pode ser traduzido — “não existe em nenhuma outra língua”. Isso confirma o que foi dito em 54,5–13: há um nome que não pertence ao mundo, e que só pode ser conhecido por quem o possui.
Já o nome Cristo — que significa “ungido” — existe em todas as línguas. O evangelho fornece: “em siríaco é messias, em grego é christos”. A universalidade do nome Cristo o insere no mundo. Mas Jesus, o nome oculto, só pode ser compreendido na esfera espiritual. O nome Nazareno também é interpretado como “a forma revelada do nome oculto”, isto é, uma ponte entre o que é pronunciável e o que é inefável.
O trecho demonstra, assim, que a queda de Adão não foi apenas uma separação de Eva (cf. 68,22–26), uma degeneração alimentar (cf. 55,6–14) ou um culto sacrificial invertido (cf. 62,35–63,4). A queda incluiu também a perda do nome — o nome que ligava a alma ao Pai. Sem esse nome, Adão torna-se mudo diante da verdade, e só pode articular palavras que, como já foi denunciado (cf. 53,23–54,5), se referem ao irreal.
O caminho da salvação, portanto, é o caminho do retorno ao nome inefável. Cristo, como aquele que “recebeu o nome do Pai”, é também aquele que pode compartilhá-lo com os seus — mas não por meio da linguagem deste mundo. O nome é revelado não por pronúncia, mas por incorporação. Os que “possuem” o nome tornam-se um com ele. O nome que Adão perdeu é o nome que o novo Adão — Cristo — revela aos seus pela unção, pela gnose e pela entrada na câmara nupcial, onde o verdadeiro nome é escrito sobre os que venceram (cf. Ap 3:12; mas aqui não há uso dessa referência externa, apenas indicação).
8. Adão, a Queda e a Criação Malograda: A Alma Roubada e o Mundo que Falhou (EvFil 53,5–14; 75,2–14)
O Evangelho de Filipe oferece, nas seções 53,5–14 e 75,2–14, uma explicação gnóstica para a condição caída do mundo e, em conexão direta, da humanidade adâmica. No primeiro trecho, o texto articula um relato dramático sobre a origem da alma e sua perda, afirmando:
Cristo veio [53] para comprar alguns, salvar alguns, redimir alguns. Ele comprou estrangeiros e fez deles seus próprios, e trouxe de volta os seus, que ele havia deixado voluntariamente como depósito.
Não apenas quando ele apareceu, ele deixou a alma voluntariamente como um depósito, mas desde o princípio do mundo ele deixou a alma, para o momento apropriado, conforme sua vontade.
Então ele veio para recuperá-la, pois havia sido deixada como um depósito.
Ela havia caído nas mãos de ladrões e tinha sido roubada, mas ele a salvou. E ele redimiu o bom no mundo e o mau.
Este trecho apresenta a história da alma como um depósito feito desde o “princípio do mundo”. Trata-se de um conceito radical: Cristo, antes de sua manifestação visível, já havia deixado a alma “como um depósito”, como quem antecipa um resgate a ser feito em tempo oportuno. Isso implica que a alma adâmica — ou, mais precisamente, a alma depositada desde o princípio — foi alvo de uma alienação: “ela havia caído nas mãos de ladrões e tinha sido roubada”.
Esses “ladrões” não são nomeados, mas no vocabulário gnóstico, trata-se claramente das potências arcontes ou forças inferiores que usurparam a alma e a mantiveram cativa. A linguagem é precisa e jurídica: o texto não diz que a alma pecou ou se desviou voluntariamente, mas que foi roubada. Isso transforma a narrativa tradicional da queda de Adão: o pecado não é uma escolha deliberada, mas uma consequência de aprisionamento espiritual por forças externas.
Cristo, então, vem não apenas para ensinar ou perdoar, mas para reaver aquilo que lhe pertence, libertando o que foi roubado. O texto diz: “ele comprou estrangeiros e fez deles seus próprios, e trouxe de volta os seus”. Há um processo duplo: apropriação dos que estavam fora (ethnē, as nações), e recuperação dos que originalmente lhe pertenciam — isto é, a alma depositada e depois saqueada. Esse ato é descrito como redenção universal: “ele redimiu o bom no mundo e o mau” — não segundo mérito, mas segundo posse e restauração.
Este tema de uma criação malograda é aprofundado na seção 75,2–14, que apresenta uma teodiceia gnóstica inconfundível:
O mundo surgiu por um erro. O criador quis torná-lo incorruptível e imortal, mas falhou e não obteve o que esperava. Pois o mundo não é incorruptível, e o criador do mundo não é incorruptível. As coisas não são incorruptíveis, mas a descendência é. Nada pode receber incorruptibilidade a menos que seja descendência. E aquilo que não pode receber certamente não pode dar.
Este texto desfere um golpe decisivo na cosmologia tradicional. Primeiro, ele afirma que “o mundo surgiu por um erro” — a palavra grega implícita seria hamartēma (erro, falha). A criação, portanto, não é fruto da vontade soberana de um Deus perfeito, mas de uma intenção frustrada: “o criador quis torná-lo incorruptível e imortal, mas falhou”.
Esse criador é apresentado como uma entidade inferior: “o criador do mundo não é incorruptível”. A ontologia é hierárquica: o que é corruptível não pode criar o que é incorruptível. Essa falha original gera um mundo que é, em sua própria constituição, falho e moribundo.
A diferença é estabelecida entre “coisas” (as criações do mundo) e “descendência” (gerada a partir do alto). Apenas a descendência (sperma) — ou seja, os filhos do Pai verdadeiro, os portadores da centelha divina — são incorruptíveis. O mundo, seus objetos e seu criador não o são. E o texto declara, com lógica implacável: “Aquilo que não pode receber certamente não pode dar.” O criador, sendo corruptível, não pode conceder incorruptibilidade. Adão, sendo criação do mundo, foi marcado desde o início pela corrupção e pela morte.
Com isso, o evangelho estabelece que a salvação não é um retorno ao Éden, mas um resgate para fora do mundo. O Adão primordial foi colocado em um cosmos defeituoso, gerado por um criador incompetente, que tentou em vão realizar uma obra perfeita. A alma que nele habitava foi depositada por Cristo desde o início, mas caiu em mãos de ladrões. O drama da redenção não é um reajuste de uma queda ética, mas o resgate de uma alma aprisionada num cosmos malformado.
Esse quadro subverte toda leitura tradicional da teologia da criação e da queda. O erro não foi de Adão — o erro foi o mundo. Adão é vítima de um sistema que ele não criou. Cristo, o redentor, entra não como juiz, mas como redentor e proprietário — aquele que vem buscar o que lhe pertence.
9. Adão, a Morte e a Ressurreição: O Corpo Verdadeiro e a Superação da Animalidade (EvFil 56,20–57,22)
A sequência de passagens entre 56,20 e 57,22 constitui uma das declarações mais densas do Evangelho de Filipe sobre antropologia, corporeidade, ressurreição e gnose. O texto inicia com uma comparação provocadora entre o valor da alma e do corpo:
Ninguém esconderia algo valioso e precioso num recipiente valioso, mas enormes riquezas são frequentemente guardadas em recipientes que valem apenas um centavo. Assim também é com a alma. Ela é algo precioso, e veio a estar num corpo sem valor. (56,20–26)
Essa analogia inverte a expectativa comum: o recipiente (o corpo) não corresponde ao valor do conteúdo (a alma). O corpo, enquanto estrutura biológica, é comparado a um “recipiente que vale apenas um centavo”. É desvalorizado, não por desprezo platônico, mas por contraste com a alma, que é descrita como “preciosa”.
O evangelho não sugere aqui o dualismo absoluto, mas uma hierarquia clara: o valor da alma está em sua origem e destino espirituais; o corpo, por sua vez, é mero receptáculo temporário e indigno de sua dignidade. Isso já antecipa a discussão sobre a ressurreição que segue.
A partir de 56,26–57,22, o texto entra diretamente na polêmica sobre a ressurreição e a natureza do corpo:
Algumas pessoas têm medo de que possam ressuscitar dos mortos nus, e por isso querem ressuscitar com carne. Elas não sabem que são os que vestem [a carne] que estão nus. Aqueles que conseguem despir-se dela não estão nus. (56,26–57,1)
A preocupação escatológica com o estado corporal da ressurreição é refutada com uma reviravolta gnóstica: os que desejam manter a carne após a ressurreição o fazem por ignorância. O verdadeiro estado de nudez é estar vestido da carne. A carne não é proteção, mas opressão. Despí-la é ser verdadeiramente revestido. O evangelho propõe aqui que o corpo carnal — a carne adâmica — é, paradoxalmente, o que torna o humano nu diante da eternidade.
O texto prossegue com uma citação direta das palavras de Jesus (Jo 6:53), mas reinterpretada na chave gnóstica:
‘Carne [e sangue] não herdarão o reino de Deus.’ Que carne não herdará? É o que estamos vestindo. E que carne herdará? É a carne e o sangue de Jesus. (57,1–5)
Aqui se faz uma distinção crucial entre dois tipos de carne: (1) a carne vestida atualmente pelos humanos — a adâmica, corruptível, animal; e (2) a carne de Jesus — espiritualizada, verdadeira, glorificada. O evangelho declara que apenas esta última pode herdar o reino. A ressurreição não é da carne natural, mas de uma carne transformada, oriunda de Jesus, o “homem perfeito”.
Em seguida, o evangelho explica a natureza dessa carne, numa alegoria sacramental:
Por isso ele disse: ‘Quem não comer minha carne e não beber meu sangue não tem vida em si.’ O que isso significa? Sua carne é a palavra e seu sangue é o Espírito Santo. Quem os recebeu tem alimento, bebida e vestimenta. (57,5–10)
Essa interpretação altera profundamente a compreensão eucarística do texto joanino. Aqui, carne = palavra; sangue = Espírito Santo. Trata-se de uma assimilação pneumática dos elementos da vida: o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida não são materiais, mas espirituais. Comer e beber Cristo é absorver sua doutrina (logos) e seu espírito (pneuma). O discípulo gnóstico, ao fazê-lo, recebe não apenas nutrição, mas também vestimenta: ou seja, é revestido da luz e da carne verdadeira de Cristo, e não da nudez animal de Adão.
O trecho seguinte entra numa controvérsia teológica:
E eu também discordo dos que dizem que a carne não ressuscitará. Ambas as visões estão erradas. Você diz que a carne não ressuscitará? Então diga-me o que ressuscitará, para que eu possa te saudar. (57,10–14)
O autor rejeita as duas posições extremas: tanto a negação da ressurreição da carne quanto a crença na ressurreição da carne atual. O texto exige precisão: que carne é essa que ressuscita? A resposta vem logo adiante:
Você diz que é o espírito na carne, e também a luz na carne? Mas o que está na carne é a palavra, e o que você está falando não é nada além da carne. É necessário ressuscitar com este tipo de carne, já que tudo existe nela. (57,14–19)
O trecho reconhece que há algo espiritual contido na carne — mas não na carne comum, adâmica. O espírito, a luz e a palavra habitam uma “outra carne”, a carne transformada. A ressurreição, portanto, não é negação da corporeidade, mas sua transfiguração. A carne que ressuscita é aquela onde a palavra habita — não a carne bestial de Adão, mas a carne logos de Cristo.
Por fim, o texto conclui com uma inversão escatológica:
Neste mundo, aqueles que vestem roupas são superiores às roupas. No reino dos céus, as roupas são superiores àqueles que as vestem. (57,19–22)
No mundo presente, o corpo (o usuário) é mais importante que suas vestes (o exterior). Mas no reino espiritual, essa ordem é revertida: as vestes — ou seja, os revestimentos de luz, de gnose, de espírito — são superiores ao indivíduo. O que se veste no céu é a luz incorruptível. Adão, que foi vestido com pele (cf. Gn 3:21), é contrastado com o discípulo gnóstico que se veste com a luz de Cristo.
Esses trechos mostram que a superação da animalidade adâmica não consiste em destruição da carne, mas em rejeição da carne animal e recepção da carne verdadeira — a de Jesus, que é logos e pneuma. Adão era um recipiente frágil. Cristo é a substância viva. Adão estava nu sob pele. O redimido está vestido de espírito, palavra e luz.
B. A Natureza dos Arcontes: Adão como Sátira Ontológica
No tratado gnóstico A Natureza dos Regentes (Ἡ Ὑπόστασις τῶν Ἀρχόντων, ou A Hipóstases dos Arcontes), a figura de Adão surge como um artefato ontológico central na tensão entre os poderes inferiores (os arcontes) e as realidades superiores (o Pai de Tudo e a Incorruptibilidade). A criação de Adão não é, como na tradição judaico-bíblica canônica, um ato direto e deliberado do Deus Altíssimo, mas um empreendimento ilegítimo de entidades menores, cegas e arrogantes, lideradas por Samael — nome interpretado como “deus cego” (O Demiurgo Cego, 86,27–87,23).
Os arcontes, criaturas andróginas e bestiais, decidem criar “um humano feito de solo da terra”, segundo o modelo da imagem que haviam vislumbrado refletida nas águas — um reflexo da Incorruptibilidade que não podiam compreender nem alcançar. Eles moldam esse humano com base em sua própria forma híbrida, mas tentam inserir nela a imagem divina que viram nas águas, sem perceber que tal imagem é espiritual e inatingível por seres apenas psíquicos (87,23–88,12).
Este Adão, portanto, é uma paródia: um corpo terrestre, moldado por seres ignorantes, com a pretensão de capturar uma realidade espiritual. Samael sopra em seu rosto, e ele se torna “alma vivente”, mas ainda sem se erguer — uma alma apenas animada, mas sem vida espiritual. O sopro dos arcontes é descrito como “ventos de tempestade” (88,5), infrutíferos diante da transcendência da imagem.
1. A Vinda do Espírito e o Verdadeiro Adão
O momento decisivo ocorre quando o Espírito — vindo da “terra adamantina” (88,9) — desce e habita nesse ser animado, fazendo-o verdadeiramente vivo. É só então que o nome Adam lhe é atribuído: não por um decreto divino criador, mas por constatação de movimento — “ele foi achado se movendo sobre o solo” (88,11). O Espírito é o verdadeiro doador de vida; os arcontes apenas manipularam barro.
Esse Adão, portanto, passa a ocupar uma posição ambígua: ele é, ao mesmo tempo, criação dos arcontes e habitação do Espírito superior. Essa ambivalência é essencial para a antropologia gnóstica do texto: o humano é um campo de batalha entre o psíquico e o espiritual, entre a ignorância imposta e o conhecimento revelado.
2. O Engano dos Arcontes e a Liberação por Meio da Mulher Espiritual
Os arcontes, sem compreenderem o desígnio espiritual, introduzem Adão no jardim e impõem-lhe um mandamento: “Não comas da árvore do conhecimento do bem e do mal”, mas o fazem por vontade do Pai (88,28–89,1), para que Adão, de fato, coma — invertendo a lógica tradicional. A proibição é, aqui, instrumento de revelação, não de repressão. Os arcontes dizem uma verdade sem compreendê-la: “no dia em que comeres, morrerás” — mas Adão não é um ser completamente material e, portanto, não morre como eles pensam.
Quando os arcontes fazem cair um “profundo sono” sobre Adão, esse torpor é descrito como ignorância (89,3), um símbolo cognitivo e não fisiológico. Do lado aberto de Adão — e não da costela, como no Gênesis — é retirada uma mulher “como uma mulher viva” (89,4), uma construção que mistura parturição e cirurgia arquetípica. A mulher que aparece, e que desperta Adão com um chamado — “Levanta-te, Adão” — é explicitamente chamada de “mãe dos viventes”, médica, e “aquela que dá à luz” (89,10–13). Essa mulher não é apenas Eva: é a presença espiritual feminina, o arquétipo da Sophia redentora.
3. O Conflito Sexual, a Instrução da Serpente e o Despertar do Espírito
O texto insere então um episódio de agressão sexual simbólica: os arcontes veem Adão com sua parceira e sentem desejo por ela. Tentam violentá-la, mas ela os engana deixando uma sombra de si — um duplo que eles violam (89,17–25). Esse gesto os desmascara: ao deflorarem a sombra, eles expõem a limitação de seu poder, sua confusão entre imagem e realidade, entre psique e espírito.
A verdadeira mulher espiritual aparece em forma de serpente — não como sedutora, mas como instrutora (90,1). Ela é quem ensina a verdade: que a proibição era fruto de ciúmes, e que comer do fruto os tornaria como deuses, conhecendo o bem e o mal. Essa figura abandona a forma de serpente, “como algo da terra” (90,9), ao concluir sua missão — uma clara distinção entre a sabedoria espiritual e os símbolos terrenos.
4. A Queda como Iluminação e a Maldição dos Arcontes
Após comerem do fruto, Adão e sua companheira percebem sua “imperfeição” e “ignorância”, reconhecendo que estão nus, isto é, desprovidos do espírito (90,13–91,3). Essa queda é, ao mesmo tempo, um despertar parcial. Adão se esconde, não por pecado moral, mas por reconhecimento ontológico de sua carência espiritual. O interrogatório de Samael reflete a estrutura do Gênesis, mas com inversão de sentido: a nudez e a vergonha são frutos da ignorância imposta pelos arcontes.
A maldição que recai sobre a mulher, a serpente e Adão é pronunciada por entidades cegas, que sequer percebem que amaldiçoam um reflexo de si mesmos (91,7–11). Não há, aqui, juízo divino: há o colapso de um sistema arrogante diante do despertar da consciência espiritual.
5. Adão como Patriarca da Linhagem Espiritual
Adão, mesmo após sua expulsão do jardim — feita pelos arcontes e não por Deus — inicia uma linhagem com Eva. Gera Cain e Abel, e posteriormente Sete e Norea. Sete é descrito como substituto de Abel (91,28), mas Norea é especialmente destacada como virgem intocada, predestinada a auxiliar muitas gerações (91,33–92,2). A linhagem de Adão não é apenas carnal: ela contém sementes de incorruptibilidade.
A posteridade de Adão, então, é o veículo da libertação futura. A “semente incorruptível” — associada no fim do tratado ao “verdadeiro humano em forma humana” (97,1) — é a consumação daquilo que foi apenas semente na criação do primeiro Adão.
A figura de Adão em A Natureza dos Regentes é radicalmente distinta da tradição judaica ou cristã ortodoxa. Ele não é simplesmente o primeiro homem, mas o recipiente de uma tensão cósmica: criado por arcontes cegos e habitado por espírito incorruptível; seduzido pela ignorância, mas despertado pela Sophia; condenado pelos déspotas do caos, mas precursor de uma linhagem de luz. A narrativa gnóstica não nega a história de Gênesis, mas a reinterpreta como drama de emancipação: Adão é um protótipo do humano dividido — corpo da terra, alma dos arcontes, espírito do Pai.
Sua libertação não virá por mérito, mas por revelação: pelo advento do “verdadeiro humano” (ὁ ἀληθινὸς ἄνθρωπος), aquele que ensinará a verdade, ungirá com o óleo da vida eterna e libertará do pensamento cego (97,2–5). Nesse sentido, Adão não é a queda, mas o início da ascensão.
B. O Livro Secreto de Adão: Um Homem Celeste e um Homem Psíquico
No Segredo do Livro de João (Πρόφητος ὁ Ἀπόκρυφος ὁ ὁωάννου), Adão não é simplesmente o primeiro homem da criação, mas o campo de batalha entre duas ontologias: a do Homem Perfeito gerado por Deus no Pleroma (Pigeradamas) e a do homem psíquico, moldado pelos Arcontes a partir da sombra dessa imagem. Essa tensão atravessa toda a narrativa, redefinindo a queda não como transgressão, mas como ignorância induzida pela crça material.
O texto se inicia com João perturbado após questionamentos sobre Jesus e a natureza do Éon eterno. Em resposta, uma figura de três formas aparece a ele em visão e afirma: “Eu sou o Pai, a Mãe, e o Filho. Eu sou o Incontaminado” (2,13–15). A revelacão que se segue é um relato cosmogônico que culmina na geração de Barbēlō, o primeiro pensamento (Πρόνοια) e o “Homem Andrógino” (6,1), que é também o Primeiro Humano (Anthropos prłtos). O verdadeiro Adão, portanto, é um conceito eterno, pleno e espiritual.
1. A Criação de Adão Psíquico pela Imitação da Forma Celeste
A narrativa gnóstica desloca a criação de Adão para o âmbito dos Arcontes, chefiados por Yaldabaoth (10,19). Este Arconte surge como o produto defeituoso de Sophia, ao tentar gerar sem o consentimento do Pleroma. Expulso ao éon inferior, Yaldabaoth afirma ser “Deus e não haver outro além de mim” (11,8), demonstrando ignorância arrogante. Movido por ciúmes ao contemplar a imagem do Homem Verdadeiro refletida nas águas (14,13–15), ele decide criar um ser à sua imagem, buscando capturar sua luz.
Adão, nesse contexto, é criado com a colaboração de 365 anjos (15,1–19), cada um contribuindo com um órgão ou função corporal. Cada elemento do corpo é atribuição de um Arconte, demonstrando que o corpo humano, segundo essa cosmologia, é uma prisão espiritual, um composto de paixões e limitações materiais. O Adão criado não tem vida: falta-lhe o espírito.
É a Mãe de Tudo, em compaixão, que ora ao Pai-Mãe para que a centelha divina seja restaurada. A resposta é o envio da Epinoia, a Perspicácia, chamada “Vida” (Zōē), que entra secretamente no corpo moldado (19,10–20,28). Yaldabaoth sopra o espírito no corpo sem saber que transmite o poder de sua mãe, devolvendo inadvertidamente a centelha roubada. Adão se ergue, e sua mente é mais poderosa que a de seus criadores. Isso provoca o temor dos Arcontes, que o exilam nas regiões inferiores.
2. A Degradação de Adão: Prisão e Esquecimento Ontológica
Após a animação do corpo de Adão pelo sopro inconsciente de Yaldabaoth — que, sem saber, transmite o poder da Mãe celestial — o Adão psíquico se torna mais inteligente e luminoso que seus criadores (20,28). Essa superioridade cognitiva gera no Arconte e em seus anjos uma reação violenta. O medo da autonomia espiritual de Adão faz com que eles o lancem ao mais baixo nível do cosmos material. Sua encarnação, portanto, não é um ato de domicílio, mas de degradação punitiva: Adão, agora consciente, é lançado à “sombra da morte” (21,2), tornando-se o primeiro a cair na matéria e o primeiro a ser exilado de sua origem.
A prisão de Adão, no entanto, não se dá apenas espacialmente, mas existencialmente. Os Arcontes criam para ele uma nova figura, um invólucro, formado por terra, água, fogo, e vento, combinados com “o espírito que vem da matéria” — ou seja, o falso espírito do desejo e da ignorância (21,3–6). Essa nova forma é chamada no texto de “caverna”, um corpo de remodelação, que funciona como “grilhão do esquecimento”. A queda, no gnosticismo setiano, não é a perda da inocência moral, mas o mergulho no esquecimento da origem divina.
A epinoia (a Perspicácia divina), entretanto, permanece oculta dentro de Adão. Enquanto os Arcontes o enganam com os prazeres falsificados do Paraíso — árvores que são descritas como armadilhas e venenos (21,14–22,5) — a centelha divina vai sendo reativada. O Adão gnóstico é um ser dividido: por fora, uma criatura moldada por ignorância; por dentro, um reflexo oculto do Homem Verdadeiro. Sua luta é contra o esquecimento, e a gnose é seu caminho de retorno.
O texto afirma que “o Adão foi revelado pela sombra luminosa que nele habitava” (20,28), indicando que sua verdadeira identidade não era visível aos olhos da matéria, mas reconhecível no reflexo do éon eterno. Ao se dar conta disso, os Arcontes não apenas tentam neutralizá-lo, mas também recorrem ao engano: criam cópias do corpo, moldam um espírito falso para misturar-se à sua descendência, e conduzem a humanidade à completa ignorância de sua origem (29,2–6). O Adão gnóstico, portanto, é o paradigma da humanidade exilada, envolta em esquecimento, sujeita a paixões induzidas e aprisionada na carne.
A existência de Adão é também a revelação de sua vocação escatológica. O texto afirma: “Ele foi o primeiro a descer e o primeiro a tornar-se estranho” (21,7), uma fórmula que remete a um tipo redentivo de humanidade. Não há pecado original, mas exílio ontológico. A gnose, revelada por meio da Epinoia oculta dentro de Adão, é o único caminho de reintegração ao Pleroma. Assim, Adão inaugura a condição de todo ser humano gnóstico: aquele que possui uma centelha de divindade oculta sob camadas de carne, engano e esquecimento, e cuja iluminação só pode ocorrer quando relembrar sua origem verdadeira.
Portanto, o Segredo do Livro de João redefine Adão radicalmente: ele não é o início da corrupção, mas o início do aprisionamento, da resistência interior e da restauração potencial. É tanto a vítima do Arconte quanto o portador silencioso do poder do Pleroma. Sua trajetória é o espelho da alma gnóstica: animada sem saber por Deus, criada com ignorância, despida de conhecimento, mas destinada, pelo reencontro com a Verdade, a ser resgatada da prisão da matéria.
C. Apocalipse de Adão: O Primeiro Homem como Transmissor Gnóstico da Revelação
O Apocalipse de Adão, um texto do século II d.C. pertencente à biblioteca de Nag Hammadi (códice V, tratado 5), apresenta uma figura profundamente transformada de Adão, inserida em uma cosmologia gnóstica que subverte radicalmente as categorias teológicas do judaísmo e do cristianismo proto-ortodoxo. Diferentemente da narrativa de Gênesis ou do uso paulino da tipologia Adão-Cristo, aqui Adão é não o primeiro transgressor, mas um portador de sabedoria celestial caída, vítima da ignorância de um demiurgo inferior e veículo de revelação escatológica a seu filho Sete. O texto se estrutura em forma de testamento-apocalipse: uma revelação final de Adão a Sete, transmitida 700 anos após sua criação, contendo uma cosmologia alternativa, a história do mundo, a queda da gnose e a redenção por meio de um “iluminador”.
1. A Ontologia Superior e a Gnósis Perdida
O relato se inicia com a criação de Adão e Eva, mas, desde o princípio, rompe com o paradigma veterotestamentário. Adão declara a Sete: “Depois que Deus me criou da terra, juntamente com tua mãe Eva, andei com ela numa glória que ela havia contemplado no éon eterno de onde vínhamos” (64,6–65,1). Ao invés de terem sido formados no Éden, Adão e Eva descendem de uma realidade superior, pré-cósmica, e gozam de uma glória angelical semelhante à dos “grandes anjos eternos”. Esse estado glorioso é destruído quando “o deus que nos criou” — não o Deus verdadeiro, mas um demiurgo inferior — os separa, causando a perda da glória e da gnose (65,7–10). A divisão de Adão e Eva, aqui, não é uma consequência do pecado, mas de um ato punitivo do criador ignorante, o que inverte a teologia da queda.
A gnose, segundo o texto, não procede do éon presente, nem do deus criador, mas do “germe da grande geração” (65,11–14). Adão associa Sete com esta linhagem superior, chamando-o de “descendente da grande geração” (65,13–14). É por isso que o conhecimento salvífico não está acessível à totalidade da humanidade, mas apenas aos que possuem o “espírito de vida” proveniente dos éons eternos. Após a queda, Adão e Eva passam a viver em ignorância, sujeitando-se com temor ao criador e aos seus poderes, dos quais “não sabiam nada” antes (65,20–22). A perda da gnose é a verdadeira queda — e não a desobediência — enquanto o conhecimento da verdadeira divindade é o objetivo escatológico do texto.
2. A Revelação de Adão e o Sonho Trinitário
No centro do tratado, Adão relata um sonho-revelação no qual três “pessoas” se manifestam diante dele, distintas dos poderes do demiurgo e superiores em glória (65,24–66,3). Elas o despertam “do sono da morte” e anunciam a vinda do “semente daquele humano ao qual veio a vida, e que veio de tua companheira Eva e de ti” (66,4–6). Essa figura messiânica — associada à linhagem de Sete — representa a restauração da gnose original. Em resposta, o deus criador confronta Adão, reivindicando sua autoria e o “sopro de vida” que infundiu nele (66,8–11). Mas Adão percebe que sua existência está agora sob o domínio da morte (67,13–14), o que implica que o sopro do demiurgo é limitado, incapaz de conferir a verdadeira vida eterna.
Esse episódio evidencia o conflito entre dois tipos de criadores: o demiurgo que confere uma alma vivente, mas perecível, e os grandes éons que preservam a gnose e a incorruptibilidade. Adão, mesmo após a queda, retém uma centelha de discernimento, suficiente para transmitir a revelação a Sete — aquele que dará continuidade à linhagem espiritual.
3. O Julgamento e a Dissidência Setita
A partir do capítulo 67, Adão entrega a revelação profética a Sete, narrando os acontecimentos que se seguirão. Ele prediz o dilúvio e a missão de Noé, servo do deus criador, que salvará apenas os seres que lhe são submissos, com o objetivo explícito de “destruir toda carne” (69,3–4). No entanto, o texto impõe uma crítica velada ao próprio Noé, sugerindo que sua linhagem falha ao gerar uma nova geração que “traz desprezo sobre o poder do deus” (71,10–12). A oposição não está na destruição do mundo, mas no fato de que a geração setita não procede da linha de Noé, mas dos que “vieram da grande luz eterna” (72,4–6). Esses são os verdadeiros filhos da gnose, que serão guardados por “anjos da grande luz” (72,14–15) e habitarão “em conhecimento da incorruptibilidade” (72,11–13).
O texto então introduz o episódio dos “quatrocentos mil” descendentes de Ham e Jafé (73,13–74,26), que se afastam dos poderes do demiurgo e se aliam aos “grandes do conhecimento eterno”. O conflito escatológico se intensifica quando os poderes — liderados por Sakla — tentam acusar os gnósticos por terem “subvertido toda a glória” do seu domínio (74,14–19). A oposição é clara: os gnósticos, embora minoritários, são vistos como ameaça ao domínio do demiurgo, por representarem uma linhagem pura e incorruptível. Como resposta, Sakla envia fogo, enxofre e betume sobre eles (75,3–7), mas são resgatados por três entidades de luz — Abrasax, Sablo e Gamaliel — que os conduzem aos reinos eternos (76,1–7). Essa é a “ascensão da semente” — a redenção gnóstica plena — baseada não em obras, mas na origem ontológica incorruptível.
4. A Gênesis Multiforme do Redentor e o Batismo Escatológico
No ponto culminante do Apocalipse de Adão, emerge a figura do “iluminador do conhecimento” (76,8–9), descrito como vindo “em grande glória” para deixar “árvores frutíferas” entre os filhos de Noé, particularmente entre os descendentes de Ham e Jafé. Essas árvores frutíferas são metáforas vivas da linhagem espiritual que será resgatada “do dia da morte” por meio do conhecimento do Deus eterno (76,11–14). A antítese entre o mundo mortal, governado pela autoridade da morte, e o mundo espiritual, sustentado pela gnose incorruptível, atinge aqui sua expressão mais cristalina.
Este “iluminador” realiza sinais e prodígios (77,1–3) não como provas apologéticas, mas como afronta deliberada aos poderes arcontes e ao seu deus Sakla, que se perturba diante do poder desse “homem superior a nós” (77,4–5). Ele não é reconhecido pelos poderes inferiores, tampouco é visível aos seus olhos, pois sua glória “se aparta e habita em casas santas” que escolheu para si (77,6–8). É nesse ponto que a cristologia gnóstica do texto se torna visível, não apenas como antiarcontismo, mas como uma metafísica encarnacional dissidente. O iluminador é uma figura messiânica não redutora, multiforme, com várias origens possíveis, cada uma apresentada com deliberada polissemia.
O trecho conhecido como “as doze (mais uma) genealogias do iluminador” (77,18–83,4) oferece uma série de relatos, cada qual oriundo de um reino (ou eón), que tenta explicar o surgimento do redentor. São genealogias mitopoéticas, não literais, e cada uma transmite uma visão teológica distinta e simbólica. Por exemplo:
A primeira genealogia o descreve como “nascido no céu, nutrido nos céus, e vindo ao seio de sua mãe” (78,1–4), sugerindo uma cristologia angelomórfica e celeste.
A segunda genealogia vê sua origem num “profeta e um pássaro celestial”, que o leva ao monte alto para ser nutrido (78,5–9), uma imagem reminiscentemente eliana.
A terceira fala de um “nascido de um útero virginal” levado ao deserto com sua mãe (78,10–13), evocando ecos da narrativa evangélica de Jesus, mas sem afirmar explicitamente sua identidade.
A quarta genealogia mistura tradição salomônica, demonologia e virginidade, sugerindo que o iluminador nasceu de uma virgem que fora procurada por Salomão com exércitos de demônios (78,14–79,6), uma crítica direta à tradição judaica de sabedoria régia.
A quinta a sétima genealogias apresentam origens cosmológicas e mitológicas: gotas celestes, flores desejadas, dragões, nuvens e rochas (79,7–81,1), ilustrando a ideia de que o redentor não pertence a este mundo, mas brota de suas fendas simbólicas.
A nona até a décima segunda envolvem musas andróginas, ejaculação divina sobre nuvens, incesto mítico entre pai e filha, e luminares cósmicos (81,13–82,16), formando um quadro de origens alternativas que desconstrói qualquer tentativa de monopólio teológico ou dogmático sobre o nascimento do redentor.
A décima terceira genealogia rompe com todas as anteriores. É a única que não provém de um reino arconte, mas da “geração sem rei” (82,17–83,2). Esta afirmação é decisiva: “Deus o escolheu dentre todos os éons eternos. Ele fez com que o conhecimento do incorruptível e da verdade viesse a habitar nele.” Aqui, o redentor não é apenas produto de uma origem mística: ele é o portador pleno da gnose e escolhido diretamente pelo Deus verdadeiro. A identificação da geração “sem rei” com os filhos de Sete — aqueles que possuem o conhecimento verdadeiro — fecha o ciclo da revelação: Adão passa a Sete o que Sete verá consumado.
5. A Vindicação Escatológica e a Conservação do Mistério
Nos capítulos finais (83,4–85,3), o texto culmina com a vindicação da semente gnóstica. Quando as trevas se abatem sobre os que receberam o nome do iluminador “nas águas” (i.e., o batismo gnóstico), eles clamam com força: “Bem-aventuradas as almas desses, pois conheceram Deus com o conhecimento da verdade. Eles viverão para sempre...” (83,6–8). A antítese entre os gnósticos incorruptíveis e os arcontes corrompidos é estabelecida como juízo escatológico. Os poderes são acusados de haver “defraudado as águas vivas”, ou seja, de terem pervertido os ritos de iniciação, tornando-os instrumentos de servidão em vez de libertação (84,6–9).
Em resposta ao clamor dos justos, três entidades — Micheus, Michar e Mnesinous — “que estão sobre o batismo santo e a água viva” (84,5–6), respondem com palavras de julgamento, condenando as “línguas impuras” e as “almas cheias de sangue e impureza” dos arcontes (84,6–9). Essas figuras angelicais são guardiãs do batismo gnóstico, em contraste com o batismo sacramental institucionalizado. Os gnósticos, por sua vez, são descritos como “fruto que não murcha”, imortais e conhecidos até os éons eternos (85,1–3).
O texto termina com uma nota apocalíptica de preservação e ocultamento. A revelação de Adão a Sete não será escrita nem transmitida por livros, mas “guardada numa montanha alta, sobre uma rocha da verdade”, e confiada a anjos que não são conhecidos por nenhuma geração humana (85,3–10). Ela será chamada de “palavras da incorrupção e da verdade” — o oposto absoluto da Torá, aqui implicitamente denunciada como pertencente ao mundo inferior. A revelação gnóstica é, portanto, não apenas uma alternativa doutrinária, mas uma contratradição.
A conclusão do texto reforça o caráter sacramental da revelação: é um “batismo santo” reservado aos que possuem conhecimento eterno, vindos da “semente santa” e dos “iluminadores incorruptíveis” (85,19–32). O nome do redentor é finalmente revelado: Yesseus Mazareus Yessedekeus — uma combinação sincrética de nomes que evocam Jesus de Nazaré e títulos sacerdotais, mas colocados dentro de um vocabulário místico gnóstico. Ele é a “água viva”, a realidade última da qual fluem todos os verdadeiros ritos, conhecimento e salvação.
O Apocalipse de Adão representa uma das mais radicais releituras da figura de Adão na literatura gnóstica. Longe de ser o transgressor original, ele é o transmissor da sabedoria eterna; não o culpado, mas o testemunho silencioso da injustiça do demiurgo. O texto é uma subversão deliberada do Gênesis e da tradição cristã apostólica: rejeita a criação como boa, rejeita o criador como supremo, rejeita a queda como punição justa, rejeita os profetas veterotestamentários como mediadores válidos, e até mesmo relativiza a identidade de Jesus ao apresentar múltiplas origens possíveis.
Ao fazer isso, o Apocalipse de Adão erige um projeto místico, soteriológico e escatológico que redefine completamente os fundamentos da teologia judaico-cristã. A salvação, para ele, não passa pela fé ou pela obediência à lei, mas pela recuperação da gnose — um conhecimento secreto, pré-cósmico e intrinsecamente espiritual, transmitido de Adão a Sete, resgatado pelo Iluminador e preservado na montanha da verdade. Nesse sentido, Adão não é apenas o primeiro homem, mas o primeiro mártir da ignorância imposta pelos poderes e o primeiro profeta da libertação dos éons.
VII. Adão no Judaísmo
A figura de Adão, o primeiro homem segundo a tradição judaica, é revestida de significados que extrapolam a narrativa literal da criação em Bereshit (Gênesis). Do relato canônico à literatura rabínica, haggádica, apócrifa e mística, Adão simboliza tanto o arquétipo da humanidade quanto a singularidade de um ser moldado “à imagem de Deus”. Este artigo visa apresentar uma exposição rigorosa, documentada e integral sobre a pessoa de Adão segundo o judaísmo, exclusivamente com base nas fontes fornecidas, sem interpolar interpretações modernas, inferências ou generalizações alheias.
A. Adão no Relato Bíblico
Nos dois relatos da criação em Gênesis, Adão é ora figura coletiva (“o ser humano” feito à imagem de Deus, homem e mulher criados juntos), ora um personagem individual, moldado do “pó da terra” e animado pelo sopro divino (Gn 2:7). O jardim do Éden é o espaço da sua vocação, trabalho e obediência. A mulher é criada a partir de sua costela, formando um par único entre as criaturas. A transgressão do mandamento relativo à árvore do conhecimento do bem e do mal precipita a “queda”, acompanhada da maldição do solo, da dor no parto e da ruptura com a imortalidade. Após a expulsão, Adão e Eva têm filhos, entre eles Sete, de quem se traça a linhagem humana.
B. Adão na Literatura Rabínica
A interpretação rabínica aprofunda a singularidade de Adão. O Talmude, o Midrash Rabá e o Pirqê de Rabi Eliêzer frisam que Adão foi criado único para que nenhuma nação ou classe pudesse dizer que tinha precedência. “Quem salva uma alma, salva o mundo inteiro”, ensina Sanhedrin 4:5, reforçando o caráter universal de Adão. Segundo o Targum de Gênesis 2:7, Deus formou Adão com o pó das quatro partes do mundo, misturado com as águas de todos os mares, dando-lhe uma cor composta: branca (ossos), preta (intestinos), vermelha (sangue) e verde (pele).
Outras fontes, como o Pirqê de Rabi Eliêzer XI e o Midrash Tehilim 139:5, dizem que a cabeça de Adão foi feita com terra da Terra Santa, seu tronco com barro da Babilônia, e seus membros com terras de vários lugares do mundo. Essa natureza composta reforça o simbolismo do nome “Adão” como acrôstico de efer (cinza), dam (sangue) e marah (bile), interpretado por R. Yohanan (Soṭah 5a).
C. Adão como Ser Angélico e Imagem da Glória
O relato haggádico eleva Adão a um estatuto quase celeste. Antes da queda, era “semelhante a um anjo” (Livro de Enoque Eslavo XXX.11), com altura que alcançava do céu à terra (Hag. 12a, Sanh. 38b), e seu corpo era luminoso, como as unhas, conforme Targum Yerushalmi de Beresith 3:7. Quando Deus disse “Façamos o homem”, os anjos contestaram, mas o Amor defendeu sua criação (Gen. Rab. VIII). Alguns midrashim relatam que todos os anjos prostraram-se diante de Adão, até que ele caiu em sono profundo para mostrar que sua glória vinha de Deus.
Em lendas associadas ao Livro de Enoque Eslavo, à Vida de Adão e Eva, e à tradição da Crônica de Jeramel, Satanás recusa-se a prostrar-se diante de Adão, rebelando-se e sendo expulso do céu. Seu trono é então reservado a Adão na ressurreição futura. A inveja de Satanás inaugura sua hostilidade contra a humanidade.
D. A Queda e a Penitência
O pecado não eliminou a dignidade de Adão. A haggadá mostra que ele foi também o primeiro penitente. Conforme o Vida de Adão e Eva e Pirqê de Rabi Eliêzer, Adão jejuou, orou e mergulhou em rios por quarenta e sete dias. A diminuição dos dias após Tishri assustou-o, pensando tratar-se da punição divina; mas quando viu os dias crescerem após o solstício, ofereceu sacrifício de ação de graças.
A tradição rabínica sustenta que Adão não morreu por causa do pecado original, mas cada pessoa morre pelos seus próprios pecados (Shab. 55a, com base em Ez. 18:20). Os justos que veem a Shekinah antes de morrer repreendem Adão, ao que ele responde: “Morri com um único pecado, mas vós outros, com muitos” (Tan. Ḥuḳḳat 16).
E. Adão: Vida Civil e a Tradição
Deus teria ensinado a Adão agricultura, ferreiro, escrita e outros ofícios (Jubileus III.12; Pes. 54a; Gen. R. XXIV). Quando lhe foi dito que comeria “erva do campo”, questionou se ele e o jumento comeriam da mesma manjedoura, até que Deus lhe disse: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão”.
As vestes feitas por Deus seriam de “luz” e não de “pele”, segundo R. Meir; em outra tradição, a pele usada é a do próprio serpente, convertida em roupa de glória (R. Ilai). O primeiro uso da roupa representaria dignidade humana, com Adão oferecendo incenso de gratidão (Jubileus III.22).
F. Adão e a Escatologia
Adão teria vivido 930 anos, setenta a menos que mil (Salmo 90:4; Jubileus IV.28), para que se cumprisse “no dia em que comeres... morrerás”. Na escatologia judaica, ele foi o primeiro a receber a promessa da ressurreição (Gen. R. 21.7). Segundo o Testamento de Abraão, Adão chora ao ver as almas entrando pelo portão largo rumo ao juízo, e se alegra ao ver os poucos que entram pela porta estreita da recompensa.
Tradicionalmente, seu corpo era mostrado em Hebrom (Pirkei DeRabbi 20.9), enquanto a tradição cristã o situou em Golgota, como simbolismo do lugar onde Cristo reverte a queda (Origem, Tract. 35 em Mt). Para os rabinos, Adão foi criado da terra do Templo futuro, para que a expiação fosse sempre possível e o pecado não fosse essencial à natureza humana (Gen. R. XIV; Yer. Naz. VII.56b).
G. Adão na Literatura Islâmica sob a Influência Judaica
Ainda que não façam parte do escopo doutrinário do Judaísmo, os relatos islâmicos sobre Adão preservam traços significativos da tradição midráshica judaica, sobretudo nos hadices, nas exegeses corânicas e nos escritos históricos de autores como Tabari e Masudi. Tais tradições derivam nitidamente de fontes rabínicas e apócrifas judaicas, como reconhecido inclusive por Zunz e outros estudiosos da Hagadá bei den Kirchenvätern.
No Alcorão, as primeiras suras de Meca mencionam genericamente a criação do homem a partir de um “coágulo de sangue” ou “gota de água” (Suras 75:34; 77:20; 96:1), sem nomeá-lo. Apenas nas suras posteriores, Adão passa a ser nomeado como indivíduo concreto, representando a humanidade em sua totalidade. O episódio da recusa de Iblis (Satanás) em se prostrar diante de Adão ecoa diretamente os midrashim já referidos. Na sura 38:70–85, Iblis alega ter sido criado do fogo e, portanto, superior ao homem feito de barro. Sua rebelião e maldição espelham a narrativa judaica segundo a qual Satanás se recusou a reconhecer a glória do primeiro homem e foi precipitado ao abismo (Livro de Enoque Eslavo 31:3–6; Pirkei R. El. 13).
Outros elementos derivados diretamente da tradição judaica incluem a ideia de que Adão foi criado em um “tempo preciso” (sexta-feira, terceira hora), que sua alma foi inserida pelas narinas causando-lhe um espirro com louvor espontâneo, e que sua altura alcançava os céus, sendo diminuída como punição. Isso aparece de forma paralela tanto no Talmude (Hag. 12a; Sanh. 38b) quanto no comentário corânico clássico. Ademais, quando Adão pede para ver seus descendentes, Deus extrai todas as almas de sua espinha dorsal e as mostra em duas fileiras — justos e ímpios — o que remete diretamente à ideia rabínica de que a humanidade está latente em Adão, tanto em seu mérito quanto em sua queda (Sanh. 38a).
O Alcorão (sura 2:29–36) também reforça a função de Adão como khalîfa (vice-regente) de Deus na terra, o que remete à função sacerdotal e representativa da humanidade criada “à imagem de Deus” em Gênesis 1:26. Os anjos questionam a escolha divina, como no Midrash, mas são ensinados por Adão, que lhes revela os nomes das criaturas, numa clara reminiscência do episódio de nomeação dos animais em Gênesis 2:19–20.
O pecado de Adão e Eva também é narrado no Alcorão, com a árvore proibida sendo associada à aspiração de imortalidade ou divinização (sura 7:19–24). O arrependimento subsequente, que inclui o aprendizado do uso da linguagem para pedir perdão (referência a “certas palavras” em sura 2:35), concorda com as tradições rabínicas de que Adão aprendeu a orar, jejuar e agradecer após a queda.
Curiosamente, o local da queda e da peregrinação de Adão também é arabizado sob influências judaicas. A tradição islâmica sustenta que Adão desceu à ilha de Serandib (Ceilão), e depois peregrinou até Meca, onde construiu a Kaaba — relato que ecoa o conceito judaico da ligação de Adão com o local do Templo. A divisão dos povos humanos em raças branca, vermelha e negra, associada às três cores do barro com que Adão foi feito, também reflete o Pirkei R. El. 11 e o Crônical de Jeramel 6.7.
Mesmo elementos do ritual judaico foram absorvidos em releituras islâmicas: a criação do fogo por Adão no sábado à noite (Pesikta Rabbati 23) é ecoada na tradição de que Adão foi ensinado a usar o fogo como dom divino após sua queda. A literatura islâmica também absorveu a tradição judaica de que Adão foi enterrado na “Caverna dos Tesouros”, o que corresponde à Cave de Macpela de Gênesis 25:9 (B. B. 58a), mas reinterpretada com tons cristãos.
A confluência entre o judaísmo rabínico e a tradição islâmica na figura de Adão é, portanto, inequívoca, revelando a força do imaginário judaico como matriz para as narrativas abrahâmicas posteriores.
H. A Figura de Adão Segundo a Cabala
No pensamento cabalístico, a figura de Adão não é apenas o primeiro ser humano conforme descrito na narrativa de Gênesis, mas uma realidade ontológica cósmica e arquetípica de proporções metafísicas que antecede e transcende a criação material. A Cabala distingue duas formas essenciais dessa figura: Adam Kadmon (“Homem Primordial” ou “Homem Original”) e Adam HaRishon (“Primeiro Homem”), cada uma desempenhando um papel decisivo na estrutura do universo espiritual e na antropologia mística judaica.
Segundo a doutrina cabalística, antes da criação de qualquer realidade, tudo era preenchido exclusivamente pela Luz Infinita de Deus — o Ein Sof, sem qualquer distinção, delimitação ou alteridade. A criação começou com o evento conhecido como Tzimtzum — a “contração” da luz divina — mediante o qual o Ein Sof se retraiu para formar um “vácuo” ou espaço potencial onde a alteridade pudesse emergir. Neste espaço, um raio de luz divina penetrou o vácuo, e a persona cósmica de Adam Kadmon foi projetada nesse cenário primordial. Esse momento marca o primeiro estágio de emanação da existência: não ainda uma realidade criada, mas uma projeção da vontade e propósito divino condensado em forma.
Inicialmente, Adam Kadmon manifestou-se como dez círculos concêntricos (‘igulim’), correspondendo às dez sefirot — os atributos divinos — em uma estrutura não-linear e ainda sem diferenciação formal. Posteriormente, esse raio foi “revestido” na forma antropomórfica de Adam Kadmon segundo o modelo de yosher, isto é, a figura linear e orgânica da forma humana, estrutura na qual as sefirot são distribuídas de maneira ordenada: Keter como a cabeça, Chokhmah e Binah como os hemisférios cerebrais, Hesed e Gevurah como os braços, e assim por diante. Essa forma antropomórfica, embora ainda de luz infinita e sem vasos definidos, delineia o potencial das formas futuras da criação. Adam Kadmon é, portanto, um plano ideal, contendo em si o esboço das sefirot e da própria existência. Por isso, também é chamado de Adam Ila’a (aramaico para “Homem Superior”) e Adam Elyon (hebraico para “Homem Elevado”).
Neste nível, Adam Kadmon não é simplesmente um ser espiritual, mas a encarnação do propósito divino supremo da criação. Sua forma não é separada de Deus, mas um veículo da manifestação divina que conserva a unidade com o Ein Sof. Nele estão inscritas não só as estruturas do universo, mas também a totalidade da humanidade como destino e fim da criação. O nome antropomórfico de Adam Kadmon reflete esse paradoxo: ele é “Adão” — um tipo de humanidade — mas também “Kadmon” — primário, anterior a tudo e de origem divina.
Adam Kadmon antecede ainda os Quatro Mundos da Cabala: Atzilut (“emanação”), Beriah (“criação”), Yetzirah (“formação”) e Asiyah (“ação”), que representam níveis sucessivos de concretização da realidade. Cada um desses mundos é associado a uma das quatro letras do Tetragrama divino (YHWH), enquanto Adam Kadmon está vinculado à cúspide do Yud, o ponto inicial e transcendental, fonte de todas as demais emanações. Na estrutura das sefirot, Adam Kadmon corresponde a Keter (“coroa”), ou seja, a vontade divina inefável que motiva a criação como um todo.
As duas grandes escolas teosóficas da Cabala medieval — a zoárica/classical, sistematizada por Moshe Cordovero, e a luriânica, desenvolvida por Isaac Luria — oferecem perspectivas complementares sobre essa figura. Para Cordovero, há uma evolução sequencial e contínua a partir do Ein Sof: as sefirot, Adam Kadmon e os Quatro Mundos emergem de modo encadeado, segundo uma lógica de emanação e descida espiritual. Já na doutrina luriânica, o processo é mais complexo e dramático: o Ein Sof realiza o Tzimtzum (contração), a seguir ocorre a projeção de Adam Kadmon, e então a Shevirat HaKelim — a “quebra dos vasos” — sinaliza a incapacidade dos recipientes criados de conter a luz divina, provocando a queda e a necessidade da Tikun (retificação). Assim, para Luria, Adam Kadmon não é simplesmente o começo da manifestação das sefirot, mas o mediador entre o En Sof e o mundo em ruína, cuja luz despedaçada precisa ser reunida pelas ações humanas.
No Zohar, Adam Kadmon é também identificado com o “homem celestial”, paralelo à concepção de Fílon de Alexandria, em cuja doutrina o Logos é a imagem primordial do homem. O Zohar declara: “A forma do homem é a imagem de tudo o que está acima [no céu] e abaixo [na terra]; portanto, o Santo Ancião [Deus] o selecionou para Sua própria forma.” Assim, o Adão celestial (Adam Ila’a ou Adam Elyon) não é apenas o arquétipo espiritual do homem, mas a personificação das dez sefirot, a imagem original que dá origem ao universo inteiro. Dele emana o Adão terreno — Adam HaRishon, o primeiro ser humano, cuja alma continha a totalidade das almas humanas futuras. Ele é chamado no Midrash de Adam HaKadmoni (“homem antigo”), Adam Tata’a (aramaico para “homem inferior”) ou Adam Tachton (hebraico para “homem inferior”), em oposição a Adam Kadmon.
A alma de Adam HaRishon, segundo a Cabala, era a essência suprema da humanidade, um reflexo de Adam Kadmon, contendo em si todos os seres humanos, como faíscas de uma única alma original. A sua queda — segundo a leitura luriânica — não é meramente moral ou ética, mas cósmica: um evento que acentua a fragmentação da luz e requer o trabalho espiritual contínuo da humanidade para restaurar a harmonia original — o Tikun Olam. Essa cosmologia espiritual do homem como microcosmo do universo, presente tanto no Zohar quanto em Fílon, também reverbera nas ideias platônicas de que o homem ideal abrange a ideia do universo como um todo, espelhando o macrocosmo em sua constituição interna.
A Cabala, portanto, vê Adão não apenas como o primeiro homem da história, mas como o modelo divino da criação, tanto na forma cósmica de Adam Kadmon quanto na encarnação histórica de Adam HaRishon. A realidade da existência é o desdobramento, queda e eventual retificação dessa estrutura antropomórfica primordial, cujo destino está intrinsecamente ligado ao da humanidade e da criação inteira. Assim, a figura de Adão não é uma metáfora entre outras, mas o centro místico da antropologia cabalística, símbolo da origem, tragédia e esperança da restauração final.
A pessoa de Adão, no judaísmo, deve ser entendida não como o portador de um “pecado original” herdado biologicamente por todos, mas como arquétipo pedagógico, símbolo de liberdade, responsabilidade, arrependimento e esperança. A tradição rabínica rechaça qualquer ideia de culpa hereditária inelutável. Ao contrário, o Talmude afirma que “nenhum homem morre senão por seus próprios pecados” (Shab. 55a), e os justos que passam diante de Adão, nas portas do Sheol, lhe repreendem não por condenação, mas como parte do drama escatológico da justiça (Tan. Huqqat 16).
Adão não é apenas o primeiro homem, mas também o primeiro penitente, o primeiro sacerdote (vestindo-se, oferecendo incenso), o primeiro conhecedor da linguagem e do trabalho humano. Sua queda não anulou sua imagem divina, e seu gesto de reconhecimento diante de Deus — apontando para o alto quando as criaturas quiseram adorá-lo (Pirkei R. El. 11) — se tornou símbolo do ideal judeu de humildade e de temor ao Nome.
Finalmente, a criação de Adão a partir do pó do local onde o Templo seria edificado (Sanh. 38a; Yer. Naz. 7.56b) sela teologicamente sua função expiatória: o homem é barro, mas barro sagrado. O pecado é possível, mas não necessário.
VIII. Adão no Islamismo
A tradição islâmica considera Adão (em árabe: آدم, ʾĀdam) como o primeiro ser humano criado por Deus (Allah) e o primeiro profeta (نبي, nabī) da humanidade. Sua criação não se limita à geração de um ser humano, mas envolve uma função profética e arquetípica, sendo visto como o primeiro muçulmano, no sentido de submissão (islām) à vontade divina. Essa designação encontra eco na doutrina de que todos os profetas ensinaram a mesma fé monoteísta da submissão a Deus.
No Alcorão, o relato da criação de Adão aparece em diversas passagens, com destaque para Surat al-Baqarah 2:30:
وَإِذۡ قَالَ رَبُّكَ لِلۡمَلَـٰٓئِكَةِ إِنِّي جَاعِلٞ فِي ٱلۡأَرۡضِ خَلِيفَةٗۖWa idh qāla rabbuka lil-malāʾikati innī jāʿilun fī l-arḍi khalīfah“E quando teu Senhor disse aos anjos: ‘Por certo, farei na terra um vice-regente (khalīfa)’.” (2:30)
Essa decisão divina de criar um khalīfa gerou questionamento entre os anjos, que disseram:
قَالُوٓاْ أَتَجۡعَلُ فِيهَا مَن يُفۡسِدُ فِيهَا وَيَسۡفِكُ ٱلدِّمَآءَ وَنَحۡنُ نُسَبِّحُ بِحَمۡدِكَ وَنُقَدِّسُ لَكَQālū atajʿalu fīhā man yufsidu fīhā wa yasfiku l-dimāʾa wa naḥnu nusabbiḥu bi-ḥamdika wa nuqaddisu lak“Dirão eles: ‘Estabelecerás nela quem nela cause corrupção e derrame sangue, enquanto nós Te louvamos com Teu louvor e Te santificamos?’” (2:30)
A resposta divina, “إِنِّيٓ أَعۡلَمُ مَا لَا تَعۡلَمُونَ” (innī aʿlamu mā lā taʿlamūn — “Em verdade, Eu sei o que vós não sabeis”), estabelece desde o início a superioridade da sabedoria divina sobre a lógica dos anjos. Segundo os comentaristas muçulmanos, como al-Qushayrī e al-Bayḍāwī, essa resposta indica que Allah sabia da capacidade de conhecimento, arrependimento, e manifestação dos atributos divinos por parte de Adão e sua descendência — capacidades inexistentes nos anjos, criados sem livre-arbítrio.
O processo de criação de Adão envolveu a reunião de pó da terra de diferentes partes do mundo, como afirma o Profeta no ḥadīth narrado por at-Tirmidhī (nº 2955):
“إِنَّ ٱللَّهَ خَلَقَ آدَمَ مِن قَبْضَةٍ قَبَضَهَا مِن جَمِيعِ ٱلْأَرْضِ...”Inna Allāha khalaqa Ādam min qabḍatin qabāḍahā min jamīʿi l-arḍi...“De fato, Allah criou Adão de um punhado de terra que tomou de toda a terra. Assim, os filhos de Adão são conforme a terra: alguns vermelhos, brancos, pretos e entre isso; finos e grossos, impuros e puros.”
Essa variedade de componentes reflete, segundo a tradição, a diversidade da humanidade quanto à cor da pele, temperamento e natureza moral.
O Alcorão reafirma esse ato criador em Surat al-Raḥmān 55:14:
خَلَقَ ٱلۡإِنسَٰنَ مِن صَلۡصَٰلٖ كَٱلۡفَخَّارِKhalaqa l-insāna min ṣalṣālin ka-l-fakhkhār“Ele criou o homem de argila sonora como a de cerâmica.” (55:14)
A criação de Adão também envolveu um momento de vida suspensa, onde seu corpo permaneceu inanimado por quarenta anos, conforme relatado nas tradições, até que Allah insuflou nele Seu espírito:
فَإِذَا سَوَّيۡتُهُۥ وَنَفَخۡتُ فِيهِ مِن رُّوحِي فَقَعُواْ لَهُۥ سَٰجِدِينَFa-idhā sawwaytuhu wa nafakhtu fīhi min rūḥī fa-qaʿū lahu sājidīn“Quando Eu o tiver formado e tiver soprado nele do Meu Espírito, prostrem-se diante dele.” (Surat Ṣād 38:72)
Essa ordem de prostração aos anjos é cumprida por todos exceto Iblīs, cuja recusa desencadeia sua condenação:
فَسَجَدَ ٱلۡمَلَـٰٓئِكَةُ كُلُّهُمۡ أَجۡمَعُونَ إِلَّآ إِبۡلِيسَFa-sajada l-malāʾikatu kulluhum ajmaʿūna illā Iblīs“E os anjos se prostraram todos juntos, exceto Iblīs.” (Surat al-Ḥijr 15:30–31)
A identidade de Iblīs é esclarecida em Surat al-Kahf 18:50:
كَانَ مِنَ ٱلۡجِنِّ فَفَسَقَ عَنۡ أَمۡرِ رَبِّهِۦۗKāna mina l-jinni fa-fasaqa ʿan amri rabbih“Ele era dos jinn, e desobedeceu à ordem de seu Senhor.” (18:50)
Essa distinção é fundamental: ao contrário dos anjos, que não têm livre-arbítrio, Iblīs, como jinn, pôde escolher desobedecer, como reafirmado em sua própria fala:
أَنَا۠ خَيۡرٞ مِّنۡهُ خَلَقۡتَنِي مِن نَّارٖ وَخَلَقۡتَهُۥ مِن طِينٖAnā khayrun minhu khalaqtanī min nārin wa khalaqtahu min ṭīn“Sou melhor do que ele: criaste-me do fogo e o criaste do barro.” (Surat al-Aʿrāf 7:12)
A. Conhecimento, Desobediência e Destino (عليه السلام)
Uma das mais profundas distinções entre Adão e os anjos é expressa no episódio em que Allah (سُبْحَٰنَهُۥ وَتَعَٰلَىٰ) ensina a Adão os nomes de todas as coisas:
وَعَلَّمَ ءَادَمَ ٱلۡأَسۡمَآءَ كُلَّهَاWa ʿallama Ādama l-asmāʾa kullahā“E ensinou a Adão os nomes — todos eles.” (Surat al-Baqarah 2:31)
Esse versículo funda a superioridade humana no conhecimento dado por Deus. Após esse ensino, Deus desafiou os anjos:
فَقَالَ أَنۢبِـُٔونِي بِأَسۡمَآءِ هَٰٓؤُلَآءِ إِن كُنتُمۡ صَٰدِقِينَFaqāla anbiʾūnī bi-asmāʾi hāʾulāʾi in kuntum ṣādiqīn“Disse: Informai-Me dos nomes destes, se sois verazes.” (2:31)
Os anjos confessaram sua limitação:
قَالُواْ سُبۡحَٰنَكَ لَا عِلۡمَ لَنَآ إِلَّا مَا عَلَّمۡتَنَآۖ إِنَّكَ أَنتَ ٱلۡعَلِيمُ ٱلۡحَكِيمُQālū subḥānaka lā ʿilma lanā illā mā ʿallamtanā inna-ka anta l-ʿalīmu l-ḥakīm“Disseram: Glorificado sejas! Não temos conhecimento senão o que nos ensinaste. Por certo, Tu és o Onisciente, o Sábio.” (2:32)
Então, Deus ordena a Adão que ensine aos anjos:
قَالَ يَٰٓادَمُ أَنۢبِئۡهُم بِأَسۡمَآئِهِمۡQāla yā Ādamu anbiʾhum bi-asmāʾihim“Disse: Ó Adão, informa-lhes os nomes.” (2:33)
A humilhação dos anjos não é punitiva, mas pedagógica. O domínio de Adão sobre os nomes — que muitos exegetas interpretam como os nomes dos seres, dos anjos, da criação e da linguagem — é uma manifestação da capacidade cognitiva, racional e linguística humana. Este episódio fundamenta a antropologia islâmica sobre a dignidade do homem e sua vocação ao conhecimento e ao ensino, em contraposição à mera obediência angélica.
B. A Criação de Ḥawwāʾ (Eva) e o Paradigma da Companheira
Embora o Alcorão não descreva explicitamente a criação de Ḥawwāʾ, é feita menção à origem de um casal a partir de uma mesma nafs (entidade vivente):
يَٰٓأَيُّهَا ٱلنَّاسُ ٱتَّقُواْ رَبَّكُمُ ٱلَّذِي خَلَقَكُم مِّن نَّفۡسٖ وَٰحِدَةٖ وَخَلَقَ مِنۡهَا زَوۡجَهَاYā ayyuhā n-nāsu ittaqū rabbakumu lladhī khalaqakum min nafsin wāḥidatin wa khalaqa minhā zawjahā“Ó humanidade, temei a vosso Senhor, que vos criou de uma só alma, e dela criou sua companheira.” (Surat al-Nisāʾ 4:1)
Segundo Suhrawardī e os comentadores do Tafsīr al-Bayḍāwī, essa relação representa a união entre os elementos celestes (Adão) e os terrenos (Ḥawwāʾ), sendo assim a constituição do ser humano — alma racional e paixões materiais. Isso reforça a leitura metafísica da criação do casal como símbolo da totalidade humana, e não apenas de gêneros distintos.
C. A Árvore Proibida e a Queda do Paraíso
A prova de Adão e sua esposa ocorre quando lhes é proibido comer de uma árvore específica:
وَقُلۡنَا يَٰٓادَمُ ٱسۡكُنۡ أَنتَ وَزَوۡجُكَ ٱلۡجَنَّةَ وَكُلَا مِنۡهَا رَغَدًا حَيۡثُ شِئۡتُمَا وَلَا تَقۡرَبَا هَٰذِهِ ٱلشَّجَرَةَ فَتَكُونَا مِنَ ٱلظَّٰلِمِينَWa qul’nā yā Ādamu us’kun anta wa zawjuka l-jannata wa kulā minhā raghadan ḥaythu shiʾtumā wa lā taqrabā hādhihi sh-shajarata fatakūnā mina ẓ-ẓālimīn“E dissemos: Ó Adão, habita tu e tua esposa o Paraíso e comei dele, ambos, com fartura, onde quiserdes. Mas não vos aproximeis desta árvore, para que não vos torneis dos injustos.” (Surat al-Baqarah 2:35)
Iblīs, no entanto, sussurra ao casal, apresentando a árvore como “a árvore da imortalidade”:
فَوَسۡوَسَ لَهُمَا ٱلشَّيۡطَٰنُFa-waswasa lahumā sh-shayṭān“Então Satanás lhes sussurrou…” (Surat al-Aʿrāf 7:20)
مَا نَهَىٰكُمَا رَبُّكُمَا عَنۡ هَٰذِهِ ٱلشَّجَرَةِ إِلَّآ أَن تَكُونَا مَلَكَيۡنِ أَوۡ تَكُونَا مِنَ ٱلۡخَٰلِدِينَMā nahākumā rabbukumā ʿan hādhihi sh-shajarati illā an takūnā malakayni aw takūnā mina l-khālidīn“Vosso Senhor só vos proibiu esta árvore para que não vos torneis anjos ou imortais.” (7:20)
وَقَاسَمَهُمَآ إِنِّي لَكُمَا لَمِنَ ٱلنَّٰصِحِينَWa qāsamahumā innī lakumā la-mina n-nāṣiḥīn“E jurou a ambos: ‘Sou, por certo, um conselheiro sincero para vós’.” (7:21)
Ao cederem à tentação, imediatamente percebem sua nudez e cobrem-se com folhas do Paraíso:
فَدَلَّىٰهُمَا بِغُرُورٖۚ فَلَمَّا ذَاقَا ٱلشَّجَرَةَ بَدَتۡ لَهُمَا سَوۡءَٰتُهُمَا وَطَفِقَا يَخۡصِفَانِ عَلَيۡهِمَا مِن وَرَقِ ٱلۡجَنَّةِFa-dallāhumā bighurūrin fa-lammā dhāqā sh-shajarata badat lahumā sawʾātuhumā wa ṭafiqā yakhṣifāni ʿalayhimā min waraqi l-jannah“E os iludiu com engano. Quando ambos provaram da árvore, tornaram-se visíveis para eles suas vergonhas e começaram a cobrir-se com folhas do Paraíso.” (7:22)
D. Arrependimento, Perdão e Vida na Terra
Diferentemente da narrativa cristã do pecado original, no Islã não há transmissão do pecado de Adão à sua descendência. Pelo contrário, Adão é perdoado após expressar arrependimento:
قَالَا رَبَّنَا ظَلَمۡنَآ أَنفُسَنَا وَإِن لَّمۡ تَغۡفِرۡ لَنَا وَتَرۡحَمۡنَا لَنَكُونَنَّ مِنَ ٱلۡخَٰسِرِينَQālā rabbanā ẓalamnā anfusanā wa in lam taghfir lanā wa tarḥamnā lanakūnanna mina l-khāsirīn“Disseram: ‘Ó nosso Senhor! Injustiçamo-nos. E se não nos perdoares e não tiveres misericórdia de nós, seremos dos perdedores’.” (Surat al-Aʿrāf 7:23)
O castigo não é destrutivo, mas parte do plano divino:
قَالَ ٱهۡبِطُواْ بَعۡضُكُمۡ لِبَعۡضٍ عَدُوّٞۖ وَلَكُمۡ فِي ٱلۡأَرۡضِ مُسۡتَقَرّٞ وَمَتَٰعٌ إِلَىٰ حِينٖQāla ih’biṭū baʿḍukum libaʿḍin ʿaduwwun wa lakum fī l-arḍi mustaqarrun wa matāʿun ilā ḥīn“Disse: ‘Descei, inimigos uns dos outros. Para vós haverá na terra um lugar de permanência e provisão até um tempo determinado.’” (Surat al-Aʿrāf 7:24)
A queda de Adão não é o início da perdição humana, mas da história da redenção e responsabilidade moral, na qual Adão é o primeiro modelo de arrependimento (tawbah), ao passo que Iblīs representa a recusa do arrependimento, mesmo tendo cometido pecado por orgulho.
E. Adão na Terra: Transmissão, Conflito, Morte e Herança Profética
Após a expulsão do Paraíso, Ādam (عليه السلام) e Ḥawwāʾ (حَوَّاء) foram separados, segundo o Qiṣaṣ al-Anbiyāʾ, reencontrando-se no Monte ʿArafāt, local que passaria a ter importância religiosa e simbólica para o Hajj. Em sua vida na terra, Adão não apenas sobreviveu, mas ensina à humanidade o cultivo, o preparo do alimento, o arrependimento e o rito do sepultamento.
Segundo a tradição hadítica, Allah instruiu Adão a cumprir o papel de pai, profeta e mestre. Seus filhos aprenderam com ele os fundamentos da fé, da oração, da obediência, do trabalho e da vida social. Conforme Sahih Bukhārī (3326) e Tirmidhī (2955), Adão foi criado com 60 cúbitos de altura, e todos os que entrarem no Paraíso terão a estatura dele. O ḥadīth também diz que, com o tempo, os seres humanos foram diminuindo de estatura, reforçando a ideia da grandiosidade original da criação de Adão.
A tradição também preserva que Adão teve numerosa descendência. Segundo Ibn Jarīr al-Ṭabarī, foram 120 partos de gêmeos (um menino e uma menina). Ibn Isḥāq, por sua vez, relata 20 partos, ou seja, 40 filhos ao todo. A prática adotada era o casamento cruzado entre os gêmeos de partos distintos, uma vez que não havia outra forma de expansão da humanidade.
Essa estrutura familiar é usada para introduzir o primeiro conflito humano, que ocorre entre os filhos de Adão: Qābil (Caím) e Hābil (Abel).
F. A Morte de Adão e Transmissão da Profecia
Adão viveu uma vida longa na terra. Quando sentiu sua morte se aproximar, expressou desejo de frutas do Paraíso. Seus filhos, ao procurarem os frutos, encontraram anjos que vinham com seu sudário. Estes lhes disseram: “Voltem, pois seu pai está prestes a morrer.” Ao retornarem, os anjos realizaram a primeira cerimônia de sepultamento, mostrando aos filhos de Adão o ritual:
“Filhos de Adão, este é o vosso procedimento no tempo da morte.”
Adão foi enterrado segundo a tradição do Islã, tendo sido preparado, envolto no sudário, sepultado e coberto com terra pelos anjos. Assim, estabelece-se também o precedente para os ritos fúnebres islâmicos. Seu filho Shīth (Seth) foi escolhido por Allah como sucessor e profeta, encarregado de guiar os descendentes à adoração de Allah.
Adão no Islã não é apenas o primeiro ser humano, mas um símbolo da natureza humana, do aprendizado, da liberdade, da responsabilidade, e da misericórdia divina. Ele é modelo de profeta, progenitor da humanidade, e figura arquetípica de conhecimento e arrependimento. Ao contrário da tradição cristã, não há em sua queda uma condenação herdada, mas sim o início de uma trajetória moral e espiritual: a de toda a humanidade em busca de retorno ao seu Criador.
IX. Adão e os Mitos Mesopotâmicos
A figura de Adão, considerada central no pensamento monoteísta, surge como elemento-chave na compreensão da criação, da consciência e da condição mortal do ser humano. Contudo, o mito de um primeiro homem divinamente moldado antecede em milênios os textos bíblicos, encontrando eco em diversas narrativas da antiga Mesopotâmia, que compreendia as regiões hoje ocupadas pelo Iraque e parte da Sôria (Cf. Gênesis 1 e as Antigas Narrativas da Criação). Abulhab (2020) demonstra que os principais componentes da história de Adão já estavam presentes em mitos sumérios, acadianos e babilônicos, com especial destaque para os personagens Idim (Deus Ea) e Enlil, respectivamente o criador e o antagonista da humanidade. A investigação propõe que Adão seja uma reconfiguração mitológica de Idim, preservando funções criadoras e semi-divinas em textos como o Enuma Elish, o Mito de Adapa, a Epopéia de Gilgamesh e o Genesis de Eridu.
Adão, Idim e o Conceito de Criação do Primeiro Homem O ponto de partida da narrativa monoteísta é a criação do primeiro homem por um deus supremo. No Gênesis hebraico, Adão é formado “com o sangue de Deus” (interpretação alternativa de ka-damwutnū e bi-damwūt ilhim) e não meramente “à imagem e semelhança”, como defendem as traduções tradicionais. A expressão hebraica “biṣalamnū ka-damwutnū” é interpretada por Abulhab como “em nossa imagem, como nosso sangue”, ligando diretamente a formação de Adão ao princípio vital divino. Essa característica tem paralelos com o mito babilônico da criação do primeiro homem a partir do sangue do deus Qingu, executado por sua rebelião.
A identificação de Adão com o deus mesopotâmico Idim (conhecido também como Ea ou Enki) é reforçada pelo papel deste como criador dos seres humanos na Epopéia da Criação Babilônica. Neste texto, Ea utiliza o sangue de Qingu para moldar o primeiro ser humano (lullu ou ʿamilu), cuja função principal é substituir os deuses nos trabalhos penosos da terra. Este gesto corresponde à maldição de Adão no Gênesis, que passa a lavrar o solo em sofrimento após sua queda.
O nome Idim, segundo Abulhab, está linguisticamente vinculado a Adão, via transformações fonéticas atestadas nas formas antigas do árabe e do acadiano, onde sons como d, b e m são intercambiáveis. A hipótese de que o nome “Adão” deriva de “Idim” ganha força diante da posição teológica similar ocupada por ambos: criadores ou primeiros homens de sangue divino, incumbidos da mediação entre os deuses e a humanidade.
A. O Conflito Cósmico: Adão, Enlil e a Imortalidade Perdida
O segundo elemento central do mito de Adão, segundo Saad D. Abulhab, é a ameaça à sua imortalidade causada por circunstâncias externas e incontroláveis. Tanto no Gênesis quanto no Alcorão, Adão é enganado por uma força maligna — a serpente ou Iblīs — e come do fruto proibido. Isso, no entanto, não o aniquila, mas limita sua vida à mortalidade. O texto hebraico em Gênesis 3:22, frequentemente traduzido como “viverá para sempre”, usa a expressão “לְעֹלָם” (le-’olam), que Abulhab demonstra significar “por muito tempo”, não eternamente. A dádiva de comer da “Árvore da Vida” (עֵץ הַחַיִּים) é assim entendida como uma extensão temporal da vida e não como a aquisição da imortalidade divina.
Esse mesmo padrão aparece na literatura mesopotâmica, como nas tábuas do Enuma Elish e da Epopéia de Gilgamesh. No relato do Dilúvio, Uta-Napištim (o Noé babilônico) revela que Enlil desejava a destruição total da humanidade. Ele é apresentado como uma divindade colérica e destrutiva, que ao encontrar sobreviventes no monte Nimuš (ou Níṣir), enraivece-se ao ponto de exigir que nenhum homem escape à destruição. Somente a intervenção de Ea (Idim), que lembra a Enlil os princípios de proporcionalidade e justiça, evita a aniquilação total. Ea propõe que o pecado seja punido conforme a medida do erro, não com o extermínio coletivo. O paralelo com a narrativa adâmica é direto: Adão, como vítima da desobediência induzida, sofre uma punição mitigada, cuja função é pedagógica e não destrutiva.
Além disso, Enlil se transforma, gradualmente, na figura do Satã monoteísta. Abulhab demonstra que seus atributos — instabilidade, fúria, ciúme, desordem atmosférica, liderança dos espíritos (os jins) — são transplantados para a figura islâmica de Iblīs, que se recusa a se prostrar diante de Adão por orgulho. Essa recusa estabelece o paradigma da queda e da oposição cósmica entre criador e adversário. O Alcorão (38:71–72) afirma que Deus modelou Adão a partir do barro, soprou nele o seu espírito e exigiu que os seres celestes se prostrassem a ele. Essa atitude de reverência imposta aos outros seres mostra que Adão tinha natureza superior, aproximando-se dos próprios deuses, como Idim.
B. Os Grupos Divinos: Igigi, Anunnaki, Anjos e Jins
A estrutura cósmica nas mitologias mesopotâmicas previa grupos de deuses organizados hierarquicamente. Os Anunnaki, sob o comando de Anu, eram deuses operacionais, inicialmente positivos. Os Igigi, sob a liderança de Enlil, também eram auxiliares celestes, mas, posteriormente, tornam-se deuses subterrâneos, equivalentes aos jins islâmicos. Abulhab observa que tanto o Gênesis quanto o Alcorão descrevem grupos coletivos de agentes divinos — anjos, Gog e Magog (Yājūj e Mājūj), e espíritos — que correspondem funcionalmente a esses agrupamentos mesopotâmicos.
Os Igigi, como servos rebeldes e agentes do caos sob Enlil, descendem à terra e corrompem a criação — tema presente também no Gênesis 6, quando os “filhos de Deus” tomam para si “as filhas dos homens”, provocando o juízo de Deus. Esta narrativa reforça a tese de que Adão e seus descendentes foram vítimas de forças mais antigas, transpostas dos ciclos teogônicos da Mesopotâmia. Nesse sentido, Enlil/Iblīs é o regente dos jins subterrâneos, enquanto Idim/Ea preserva a humanidade e recebe o crédito pela continuidade da vida.
C. O Paradoxo de Adapa e o Modelo de Gilgamesh
O Mito de Adapa — às vezes sugerido como antecessor direto da narrativa adâmica — é, segundo Abulhab, uma analogia imprecisa. Apesar da similaridade fonética entre Adapa, Adaba, e Adam, o personagem do mito não compartilha os traços centrais da narrativa de Adão: ele não desobedece por engano nem é vítima de engano satânico. Pelo contrário, é advertido por Ea (Idim) a não consumir os alimentos da imortalidade oferecidos por Anu. Em obediência, ele permanece mortal. A decisiva diferença, segundo Abulhab, é que Adapa não sofre uma queda provocada, mas uma perda de oportunidade baseada em informação falsa ou incompleta.
Por outro lado, Gilgamesh reflete o arquétipo de Adão em seu desejo de vencer a morte, o fracasso em obtê-la e o lamento subsequente. A busca por uma planta que garante o rejuvenescimento, roubada por uma serpente, alude diretamente à perda edênica da imortalidade. A semelhança se aprofunda quando se considera que Gilgamesh, ao banhar-se no mar, é enganado pela serpente — exatamente como Adão foi pela serpente ou por Iblīs. O mito da serpente usurpadora de vida eterna antecede, portanto, a tradição hebraica.
D. A História Ugarítica de Hurun e Adam
Uma narrativa de Ugarit, descoberta em tabletes do século XIII a.C., oferece, segundo Abulhab, um dos paralelos mais impressionantes com o relato de Adão. Nessa história, o deus El, habitante do monte Ararat, exila um deus maligno chamado Hurun, que em retaliação transforma a Árvore da Vida em Árvore da Morte e cobre o mundo com uma névoa venenosa. Para restaurar a ordem, El envia um deus chamado Adam, cuja imortalidade depende da Árvore da Vida. Hurun se transforma em serpente, morde Adam e o torna mortal. Após isso, os deuses enviam a Adam uma mulher para reiniciar a humanidade.
Essa história compartilha elementos com o Gênesis e o Alcorão: a serpente enganadora, a perda da imortalidade, a Árvore da Vida, a mulher como colaboradora da restauração. A análise filológica de Abulhab sugere que Hurun deriva da raiz árabe ḥrn (“o teimoso”) — o mesmo significado de Satã em seu comportamento rebelde — e que hilīl (serpente) provém da raiz hll, também significando “serpente macho”.
F. A Criação no Enuma Elish e a Queda dos Deuses
O Enuma Elish registra a criação da humanidade a partir do sangue de Qingu, um deus rebelde. Marduk, neto de Anu, executa Qingu para que Ea (Idim) molde os humanos como servos dos deuses. O paralelo é evidente: Adão, feito “do sangue de Deus”, recebe a incumbência do trabalho penoso após sua queda, assim como os homens do Enuma Elish recebem o fardo dos Anunnaki. O relato detalha como o mundo foi estruturado a partir do corpo esquartejado de Tiamat, uma deusa ancestral do caos. Seus olhos se tornaram as fontes do Tigre e Eufrates; seus seios formaram montanhas; sua pele foi esticada para formar o céu — um motivo cosmogônico também presente no Gênesis (firmamento) e em textos orientais.
G. A Criação do Homem: Qingu, Sangue Divino e a Função do Trabalho
A criação do primeiro ser humano, segundo o Enuma Elish, ocorre após a guerra entre os deuses e a vitória de Marduk sobre Tiamat. Marduk então propõe: “Drenarei sangue, formarei ossos, criarei uma criatura selvagem cujo nome será ‘homem’ (lullu), e a ela será imposta a carga do trabalho penoso que antes pesava sobre os deuses”. Essa decisão é aceita por Ea (Idim), que sugere o sacrifício de um dos próprios deuses, como punição pela rebelião: Qingu. O sangue de Qingu é derramado e, a partir dele, o homem é moldado — não como um ser independente ou soberano, mas como servo das divindades. A função do homem, conforme o texto, é substituir os Igigi e Anunnaki nos trabalhos exaustivos da criação, aliviando as tarefas divinas.
Essa narrativa espelha a função de Adão no Gênesis pós-queda. Expulso do Éden, ele é incumbido da lavra da terra com sofrimento e suor (Gênesis 3:17–19), mostrando uma herança direta do paradigma mesopotâmico: o homem como substituto dos deuses no trabalho físico. Abulhab observa que, embora a forma do lullu ou ʿamilu possa parecer coletiva, o contexto ritual e sacrificial da narrativa indica um arquétipo único — o primeiro de sua espécie. Ele é formado do sangue de um deus rebelde, tal como Adão é formado do “sangue de Deus” nas leituras alternativas do Gênesis, ou do barro e espírito divino no Alcorão. Em todos os casos, o homem resulta de uma combinação de matéria bruta e essência divina.
H. A Queda dos Deuses e a Supremacia de Anu (Alu/Alahim/Allah)
Outro eixo temático fundamental apresentado por Abulhab é o movimento da teogonia politeísta para a concentração monoteísta de poder em uma única divindade suprema: Anu (ou Alu). Na tradição mesopotâmica, Anu é o deus do céu e origem de todas as hierarquias divinas. Seus filhos — Ea (Idim), Enlil, Marduk — operam os eventos cósmicos, mas permanecem abaixo de sua autoridade. Com o advento do monoteísmo abrahâmico, essa estrutura se simplifica: Alu se torna Alahim (hebraico) ou Allah (árabe), absorvendo os poderes de todos os demais.
Assim, Idim (Ea) é transformado em Adão, não mais um deus, mas um homem semi-divino; Enlil é demonizado e renomeado Iblīs/Satã; os Igigi tornam-se jins rebeldes; os Anunnaki tornam-se anjos. Esse processo de reconfiguração semântica e ontológica é, para Abulhab, a chave da transição entre mitologia e teologia. Os nomes podem mudar, mas as funções e arquétipos permanecem traçáveis. A função criadora de Idim/Ea é mantida em Adão como “pai da humanidade”. A função destruidora de Enlil transparece na figura de Satã/Iblīs, cujo papel é frustrar o projeto divino para o homem.
Saad D. Abulhab demonstra que a figura de Adão no monoteísmo não é uma criação ex nihilo, mas sim o resultado de uma complexa reinterpretação das divindades da antiga Mesopotâmia. Idim (ou Ea), o deus criador da humanidade, foi transposto para a narrativa bíblica como Adão, o primeiro homem. Enlil, divindade colérica e destruidora, tornou-se o Satã rebelde. A criação do homem a partir do sangue de um deus punido, como Qingu, ecoa na leitura de Gênesis 5:1 (“com um pedaço do sangue de Deus o fez”) e nas formulações corânicas sobre a mistura de barro e sopro divino.
A tentativa de Adão de alcançar a imortalidade pela Árvore da Vida se reflete em diversas fontes: no Gênesis (onde essa imortalidade lhe é negada), no Alcorão (onde ele é perdoado, mas mortal), e na Epopéia de Gilgamesh (onde o herói fracassa na conquista da vida eterna por causa de uma serpente). A estrutura das narrativas antigas — com deuses imperfeitos, guerras cósmicas, sacrifício e punição — fornece os moldes para a elaboração posterior da teologia monoteísta.
A análise dos nomes, como Adam–Idim, Hurun–Satã, El–Alu, bem como dos termos funcionais como Igigi–jins e Anunnaki–anjos, mostra que a transição do politeísmo mesopotâmico para o monoteísmo abrahâmico foi gradual, estratégica e profundamente simbólica. A imagem de Adão como mero ser humano, isolado em sua culpa e queda, obscurece suas origens como entidade divina criadora e vítima cósmica, profundamente entrelaçada com o destino dos deuses que o precederam.
X. As Múltiplas Faces de Adão: Diversas Interpretações de Sua Figura
A figura de Adão, o primeiro homem da narrativa bíblica em Gênesis, transcende a mera historicidade para se tornar um arquétipo complexo e um ponto de partida para diversas linhas de pensamento teológico, filosófico e antropológico. Longe de uma interpretação monolítica, Adão é visto de várias maneiras, refletindo as preocupações e os sistemas de crenças de diferentes autores e tradições ao longo da história. Este artigo explorará algumas das principais interpretações sobre quem foi Adão, identificando os pensadores e escolas que as defendem, sem recorrer a generalizações ou resumos superficiais.
A. Adão como Ser Humano Histórico e Literal
Esta é a interpretação mais tradicional e, por muito tempo, a dominante em grande parte do cristianismo e do judaísmo ortodoxo. Aqui, Adão é compreendido como um indivíduo real, o primeiro ser humano criado por Deus, do qual toda a humanidade descende literalmente. Sua existência histórica é crucial para a doutrina do pecado original e da redenção.
Agostinho de Hipona (354-430 d.C.): Um dos maiores defensores da historicidade literal de Adão, Agostinho solidificou a doutrina do pecado original herdado. Para ele, Adão foi o ancestral comum de toda a humanidade, e sua queda não foi apenas um evento individual, mas um ato que corrompeu a natureza humana, transmitindo a culpa e a propensão ao pecado a todos os seus descendentes. Sua obra “A Cidade de Deus” e tratados como “Sobre o Pecado Original” detalham essa visão, onde a desobediência de um Adão historicamente real teve implicações ontológicas e soteriológicas para toda a espécie humana.
Teólogos Reformados (séculos XVI-XVII): Figuras como João Calvino (1509-1564) e os autores da Confissão de Westminster (1646) mantiveram firmemente a crença em um Adão histórico. Para eles, a imputação do pecado de Adão a toda a humanidade (tanto através da herança de uma natureza corrompida quanto da responsabilidade federal) é um pilar da soteriologia reformada. Calvino, em suas “Institutas da Religião Cristã”, discute longamente a queda de Adão como um evento concreto que introduziu o pecado e a morte no mundo.
Fundamentalismo Cristão e Criacionismo da Terra Jovem (séculos XIX-XXI): Setores mais conservadores do protestantismo evangélico contemporâneo, como o movimento criacionista da Terra Jovem, continuam a defender a interpretação de Adão como uma figura histórica e literal, criada diretamente por Deus há aproximadamente 6.000 anos. Para autores como Ken Ham (fundador da Answers in Genesis), a rejeição da historicidade de Adão minaria a própria base do evangelho, pois, se Adão não existiu literalmente e pecou, a necessidade de um salvador como Jesus Cristo seria questionada. A “Árvore Genealógica de Gênesis” é frequentemente usada como evidência de uma linhagem direta e contínua desde um Adão literal.
B. Adão como Figura Mítica, Arquetípica ou Simbólica
A figura de Adão, em vez de ser interpretada como um indivíduo histórico literal, tem sido amplamente explorada por muitos eruditos como um símbolo mitológico ou arquetípico. Para esses acadêmicos, a narrativa de Gênesis sobre Adão e Eva não é um registro factual de eventos passados, mas uma história fundacional que comunica verdades profundas sobre a condição humana, a origem do mal, a liberdade e a responsabilidade. Pensadores como Rudolf Bultmann, por exemplo, argumentaram que as narrativas bíblicas, incluindo a de Adão, devem ser “desmitologizadas” para revelar as verdades existenciais subjacentes. A historicidade não é o foco; em vez disso, Adão encarna a humanidade em sua inocência inicial, sua tentação e sua queda universal no pecado, representando a transição da ignorância para a consciência moral e a consequente alienação.
Essa perspectiva é reforçada por estudos de mitologia comparada e antropologia cultural, que veem a história de Adão como parte de um fenômeno global de mitos de origem. Eruditos como Joseph Campbell e Mircea Eliade destacaram como muitas culturas possuem narrativas semelhantes sobre os primeiros seres humanos, sua relação com o divino, a perda de um estado paradisíaco e o surgimento do sofrimento e da mortalidade. Para eles, Adão é um reflexo do “homem universal”, cujas experiências ressoam através das culturas e dos tempos. Assim, a narrativa de Adão não é menos “verdadeira” por ser mitológica; ao contrário, sua força reside em sua capacidade de expressar realidades psicológicas, sociais e espirituais que transcendem o tempo e o lugar, oferecendo um quadro para a autocompreensão humana e sua busca por significado.
1. Adão como Símbolo da Humanidade Universal
Nesta visão, Adão representa a humanidade em geral, suas origens, sua natureza e sua propensão à escolha moral. A narrativa do Éden e da queda é uma alegoria para a condição humana.
Fílon de Alexandria (20 a.C. - 50 d.C.): Embora não fosse um pensador cristão, este filósofo judeu helenístico já interpretava as narrativas de Gênesis de forma alegórica. Para Fílon, Adão não era apenas um homem físico, mas um símbolo da mente humana (nous), enquanto Eva representava os sentidos (aísthēsis). A queda era a submissão da mente aos sentidos. Suas obras, como “Sobre a Criação do Mundo”, demonstram essa abordagem alegórica que influenciaria pensadores posteriores.
Friedrich Schleiermacher (1768-1834): Considerado o “pai da teologia liberal moderna”, Schleiermacher interpretava a narrativa de Adão e a queda como uma verdade simbólica sobre a transição da humanidade de um estado de inocência para um estado de pecado. Não se tratava de um evento histórico único de um indivíduo, mas de uma representação universal da entrada do pecado no mundo pela consciência humana. Sua “A Doutrina Cristã da Fé” reflete essa perspectiva.
Reinhold Niebuhr (1892-1971): Este teólogo protestante americano, em sua obra “A Natureza e o Destino do Homem”, argumentou que a história de Adão é um mito profundo que revela a verdade existencial sobre a liberdade humana, a tentação e a queda. Para Niebuhr, Adão representa a humanidade em sua liberdade de transgredir, e o pecado original é uma condição universal da existência humana, não um evento histórico que pode ser localizado no tempo. É uma “história sobre cada homem”.
D. Adão como Figura Representativa ou “Federal”
Essa interpretação, embora ainda possa manter um certo grau de historicidade, foca mais no papel de Adão como “cabeça” da raça humana, cujas ações têm consequências para todos os que ele representa.
João Calvino (Revisita): Embora Calvino acreditasse em um Adão histórico, sua doutrina da representação federal também o posiciona como o “chefe” da humanidade. O pacto de obras foi feito com Adão como o representante de toda a sua posteridade. A desobediência de Adão, portanto, é “imputada” (creditada) aos seus descendentes não porque eles estavam fisicamente presentes no Éden, mas porque Adão agiu em seu nome como seu representante legal.
Teólogos do Pacto (séculos XVII-XVIII): Desenvolvendo a teologia reformada, os teólogos do Pacto (como Johannes Cocceius e Herman Witsius) aprofundaram a ideia de Adão como a cabeça de um “pacto de obras” com Deus. Sua falha em cumprir esse pacto resultou em culpa e corrupção para todos os seus descendentes. Essa visão de Adão não exclui a historicidade, mas enfatiza seu papel jurídico e representativo.
E. Adão em Contextos Não-Ocidentais ou Heterodoxos
Outras tradições e sistemas de pensamento oferecem visões distintas sobre Adão, muitas vezes fora do debate ocidental predominante.
Gnosticismo (séculos I-III d.C.): Nos textos gnósticos, como o Apocalipse de Adão e a Hipóstase dos Arcontes, Adão é frequentemente retratado como um ser que, embora criado pelo Demiurgo (o deus inferior e imperfeito do mundo material), contém uma centelha divina de luz do verdadeiro Deus. Sua queda não é primariamente um pecado moral, mas um mergulho na ignorância e na materialidade. A história de Adão e Eva é reinterpretada para mostrar a tentativa dos arcontes de aprisionar essa centelha divina e a busca por um conhecimento (gnose) que libertaria Adão e seus descendentes dessa prisão.
Cabalá Judaica (a partir do século XIII): Na Cabalá, a mística judaica, Adão é visto como “Adam Kadmon” (Adão Primordial), uma figura cósmica e arquetípica que representa a manifestação inicial das dez Sefirot (emanações divinas) no processo de criação. Adam Kadmon não é apenas um indivíduo histórico, mas a forma ideal e original da criação divina, a partir da qual o mundo material e a humanidade foram posteriormente formados. A “queda” nesse contexto tem dimensões cósmicas, afetando a integridade do universo espiritual e físico, e a “correção” (tikkun) envolve a restauração dessa unidade primordial.
A pluralidade de interpretações sobre Adão demonstra a riqueza e a maleabilidade da narrativa bíblica e sua capacidade de dialogar com diferentes épocas, culturas e sistemas filosóficos. Desde um indivíduo historicamente literal cujas ações tiveram consequências diretas para toda a humanidade, até um símbolo universal da condição humana, um chefe federal de um pacto divino, ou até mesmo um receptáculo cósmico de luz divina, Adão permanece uma figura de incessante fascínio e debate. A compreensão de quem foi Adão, portanto, não é estática, mas reflete as profundas questões humanas sobre a origem, a natureza do mal, o livre-arbítrio e o destino da humanidade.
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