O Deus de Israel

O Deus de Israel

O Deus de Israel

§2.5 O Deus de Israel

Em tudo o que foi dito até aqui está implícito que esse único Deus, criador e juiz de tudo, também era entendido como o Deus de Israel. Não simplesmente no sentido de que o Deus único era professado por Israel (no Shemá). A verdade é, antes, que Israel cria ter sido escolhi do por Deus para ser seu (classicamente em Dt 7,6-9) povo. Esta era a parte maior da ofensiva do monoteísmo judaico: que Javé não era simplesmente a manifestação nacional do Deus supremo tal como todos os povos podiam reivindicar para si mesmos. Pelo contrário, só Israel tinha a verdadeira percepção de Deus, porque o Deus único oferecera a Israel a revelação especial de si mesmo mediante os pais e Moisés e porque de todas as nações Deus escolhera só Israel como seu. A reivindicação foi classicamente expressa em Dt 32,8-9:84 Quando o Altíssimo distribuía as nações, quando espalhava os filhos de Adão, ele fixou fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus; mas a parte de Javé foi o seu povo, o lote da sua herança foi Jacó. Naturalmente esta reivindicação criou tensão na teologia de Israel, tensão inevitável entre particularismo (Deus de Israel) e universalismo (um só Deus).

Isso aparece evidente em profecias tais como a de Amós 9,7 (“Não fiz Israel subir do país do Egito, os filisteus de Cáftor e Aram de Quir?”), e de Jonas (o Deus de Israel igualmente interessado pelo povo de Nínive).85 Também poderíamos mencionar João Batista: “Não penseis que basta dizer: ‘Temos por pai a Abraão’; pois eu vos digo que até destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3,9/Lc 3,8). Isso também era implícito na tensão entre as obrigações de Deus como criador e como Deus de Israel, e na afirmação de que o Deus de Israel julga imparcialmente. Mas o aspecto a ser notado aqui é que Paulo estava plenamente consciente dessa tensão e soube explorá-la com efeito num ponto-chave da sua argu mentação em Romanos. “Deus é Deus só dos judeus? Não é também Deus dos gentios? E certo que também dos gentios, pois há um só Deus” (Rm 3,29-30). Esta não era uma proposição da qual discordas sem muitos judeus da época de Paulo. Uma apologética cristã exagerada supôs uma antítese injustificada entre particularismo judaico e universalismo cristão.86 Neste caso era o corolário imediato, deduzi do por Paulo, explorando essa mesma tensão, que era mais controvertido: que esse Deus único de todos justifica tanto o judeu quanto o gentio pela fé (3,30).

Para Paulo era igualmente importante que a mesma afirmação pudesse ser expressa alternativamente: agora os gentios chegavam para participar das bênçãos prometidas por Deus particularmente a (por meio de) Israel (G1 3,6-14). Os gentios que não haviam conheci do a Deus87 agora receberam participação no conhecimento de Israel (4,8-9).88 Daqui o desembaraço de Paulo ao saudar as comunidades predominantemente gentílicas de Roma e outros lugares como “ama dos por Deus,89 chamados para ser santos”,90 “eleitos de Deus”,91 isto é, usando epítetos que haviam caracterizado a visão que Israel tinha de si. Os gentios participam das bênçãos de Deus participando do status especial que Deus conferira a Israel. De fato, esta se torna a versão paulina da tensão entre particularismo e universalismo na teologia de Israel. Como podia Deus ser o Deus de Israel e o Deus dos gentios e dos judeus ao mesmo tempo? A tensão é evidente no uso que Paulo faz do que, segundo parece, já se havia tornado uma formulação tradicional: “herdar o reino de Deus”.92 Pois a linguagem da herança inevitavelmente evoca a promessa aos patriarcas, fundamental para a autocompreensão de Israel (a herança da terra de Israel).93 Mas o conceito de reino de Deus, como aparece em Paulo, parece destituído de qualquer caráter nacional e ter-se tornado expressão universal do domínio de Deus.94 Talvez possamos ver aqui um eco do que foi o tema central de Jesus (o reino de Deus), especialmente em vista de tradições como Mt 8,11- 12/Lc 13,28-29 e Mc 12,9, nas quais a adaptação da tensão judaica já é evidente.95 Em Romanos a tensão alcança expressão crucial aguda em um dos subtemas principais da carta: a “fidelidade de Deus”. Era a questão proposta diretamente pela acusação do “judeu” por Paulo em Rm 2: “Que vantagem há então em ser judeu?... A infidelidade deles não anulará a fidelidade de Deus?” (Rm 3,1-3). Em outras palavras, Paulo só podia defender o seu evangelho para os gentios negando que Deus permanecia fiel a Israel? Sua negação, como lhe era habitual, foi enfática: me genoito: “De modo algum”. Mas a tensão permaneceu. Efetivamente, a argumentação teológica da carta atinge o seu clímax precisamente como a tentativa de descobrir a quadratura do círculo: que Deus é ao mesmo tempo Deus que elege e rejeita o outro (9,6-13) e o Deus que terá misericórdia de todos (11,25-32). O Deus de Israel é o Deus único, é o Deus de todos. E no seu sumário de conclusão Paulo procura manter a tensão, declarando que “Cristo assume ser ministro dos incircuncisos para honrar a fidelidade de Deus” (Rm 15,8).96 Portanto, Christiaan Beker tem razão em ver nessa solução uma chave para o tema coerente do evangelho de Paulo, que ele postula como o triunfo final de Deus.97   




Notas
80 Cf. Dodd, Romans 20,24; G.H.C. Macgregor, “The concept of the Wrath of God in the New Testament”, NTS 7 (1960-61) 101-9 (aqui 105); A.T. Hanson, The Wrath of the Lamb (Londres: SPCK, 1957) 85, 110; Whiteley, Theology 61-72; Ridderbos, Paul 108-10. Mas o pensamento não deve ser reduzido a uma visão deísta: Deus é ativo sustentando essa estrutura moral da sua criação. Ver abaixo §18.6.
81 Fitzmyer, Paul 42.
82 Notar o paralelo deliberado entre a revelação da justiça de Deus (1,17) e a revelação da sua ira (1,18). Sobre o significado da “justiça de Deus”, ver abaixo §14,2.
83 Este entendimento da ira de Deus como consequência e resultado da desobediência ajuda a explicar a difícil passagem de lTs 2,16. Feine, Theologie 307-8, compara SI 79,5; 103,9 e Is 57,16 e observa que Rm 9,22 é qualificado por 11,32. Ver também Cl 3,6 e meu Colossians 216-17.
84 Sobre a ideia de Israel como herança de Deus, ver, p. ex., lRs 8,51.53; SI 33,12; 74,2; Is 6,17; Jr 10,16; Mq 7,18; Eclo 24,8; Salmos de Salomão 9.8-9.
85 Sobre Deus como Deus de todas as nações, ver também SI 145,9; Sb 11,22-24; 1Enoc 84,2.
86 O protesto de Dahl nesse ponto tem sido por demais ignorado: “Nenhum judeu ou cristão judeu negaria que Deus, sendo único, é não só o Deus dos judeus, mas também o Deus dos gentios... tanto o monoteísmo judaico quanto o monoteísmo cristão é particular e universal” (“Um Deus” 189,191). Ver também A.F. Segai, “Universalism in Judaism and Christianity”, in Engberg-Pedersen, org., Paul in His Hellenistic Context 1-29. Sobre a aceitabilidade final dos gentios como “gentios justos”, ver particularmente T.L. Donaldson, “Proselytes or ‘Righteous Gentiles’? The Status of Gentiles in Eschatological Pilgrimage Patterns of Thought”, JSP (1990) 3-27; e abaixo §6 n. 50. Ver também §24 n. 35 abaixo.
87 Cf. também ITs 4,5; 2Ts 1,8. Que as nações não conhecem Deus é visão judaica clássica (Jó 18,21; SI 79,6; Jr 10,25; Sb 13,1; 14,22). Ver também Dupont, Gnosis 1-8.
88 O tema é mais bem expresso no resumo do pensamento paulino que é Efésios: não mais “excluídos da cidadania de Israel, estranhos às alianças da Promessa” e “sem Deus no mundo”, mas “concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2 12.19).
89 P. ex., Dt 32,15; 33,26; SI 60,5; 108,6; Is 5,1.7; 44,2; Jr 12,7; 31,3; Br 3,36; a LXX traduz “Jeshurun” por egapemenos (“amado”). Notar ainda em Paulo Rm 9,25; 11,28; lTs 1,4; 2Ts 2,13.
90 “Os santos” = Israel (p. ex., SI 16,3; SI 34,9; SI 74,3; Is 4,3; Dn 7,18.21-22; Tb 8,15; Sb 18,9; 1 QSb 3.2; 1 QM 3.5; 10.10), um elemento característico da saudação de Paulo (ICor 1,2; 2Cor 1,1; F1 1,1; Cl 1,2; também Ef 1,1).
91 Rm 1,7; 8,33; Cl 3,12. Cf. p. ex., lCr 16,13; SI 105,6; Is 43,20; 65,22; Tb 8,15; Eclo 46,1; Sb 4,15; Jub. 1.29; 1 Enoc 1,3.8; 5,7-8; CD 4,3-4; 1 QM 12,1; 1 QpHab 10,13. Ver também meu Romans 502. É uma preocupação primária da argumentação de Paulo em Romanos 9-11 explicar o que a eleição de Israel significa para Israel; ver abaixo §19.
92 Mt 25,34; ICor 6,9-10; 15,50; G1 5,21; também Ef 5,5; Tg 2,5.
93 Gn 15,7-8; 28,4; Dt 1,39; 2,12; etc.; ver ainda J. Herrmann e W. Foerster, TDNT 3.769-80. Comparar o fato de que em Dn 7 o reino é dado aos “santos do Altíssimo”, a Israel (7,25-27). Haverá um eco disso em Cl 4,11, que parece associar os judeus particularmente com o reino (cf. At 28,23.31)?
95 Para Mt 8,11-12/Lc 3,28-29, cf. particularmente SI 107,3; Is 43,5-6; 49,12; Ml 1,11; Br 4,37. Para Mc 12,9, cf. m 5,1-7.
96 O fato de que o mesmo conceito hebraico “fidelidade” (emet, emunah) está atrás de aletheia (verdade) e pistis (fidelidade) obscurece a importância do tema para Romanos: aletheia (Rm 1,18.25; 2,2.8.20; 3,7; 15,8); pistis (Rm 1,17; 3,3.25). Ver meu Romans 44, 133, 847 e sobre 15,11 (850); ver também abaixo sobre “a justiça de Deus” (§14.2). Sobre a “fidelidade de Deus” em outras passagens de Paulo ver ICor 1,9; 10,13; 2Cor 1,18; lTs 5,24; cf. 2Tfe 3,3 e 2Tm 2,13.
97 Beker, Paul 77-89,328-37. Mas Klumbies persiste em pôr o discurso de Paulo sobre Deus fundamentado em Cristo em “oposição diametral com a maneira judaica de entender Deus” (Rede 205; ver também sua conclusão, 245-46,251-52). A abordagem de Moxnes é mais equilibrada (Theology in Conflict).