O Deus de Israel
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Sequência do Estudo:
Paulo e a Unicidade de Deus
Há Outros Deuses?
Deus e o Cosmo na Teologia de Paulo
Estudos relacionados:
Anjos na Teologia de Paulo
Demônios na Teologia de Paulo
Tribulações na Teologia de Paulo
Amor na Teologia de Paulo
Nova Aliança na Teologia de Paulo
Alegria na Teologia de Paulo
Filiação na Teologia de Paulo
Ceia do Senhor na Teologia de Paulo
O fim da Leia na Teologia Paulina
Justificação na Teologia Paulina
Influência Farisaica na Teologia Paulina
Classificação das Cartas Paulinas
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Classificação das Cartas Paulinas
§2.5 O Deus de Israel
Em tudo o que foi dito até aqui
está implícito que esse único Deus, criador e juiz de tudo, também era
entendido como o Deus de Israel. Não simplesmente no sentido de que o Deus
único era professado por Israel (no Shemá).
A verdade é, antes, que Israel cria ter sido escolhi do por Deus para ser seu
(classicamente em Dt 7,6-9) povo. Esta era a parte maior da ofensiva do
monoteísmo judaico: que Javé não era simplesmente a manifestação nacional do
Deus supremo tal como todos os povos podiam reivindicar para si mesmos. Pelo
contrário, só Israel tinha a verdadeira percepção de Deus, porque o Deus único
oferecera a Israel a revelação especial de si mesmo mediante os pais e Moisés e
porque de todas as nações Deus escolhera só Israel como seu. A reivindicação
foi classicamente expressa em Dt 32,8-9:84 Quando o Altíssimo distribuía as
nações, quando espalhava os filhos de Adão, ele fixou fronteiras para os povos,
conforme o número dos filhos de Deus; mas a parte de Javé foi o seu povo, o
lote da sua herança foi Jacó. Naturalmente esta reivindicação criou tensão na
teologia de Israel, tensão inevitável entre particularismo (Deus de Israel) e universalismo
(um só Deus).
Isso aparece evidente em
profecias tais como a de Amós 9,7 (“Não fiz Israel subir do país do Egito, os
filisteus de Cáftor e Aram de Quir?”), e de Jonas (o Deus de Israel igualmente interessado
pelo povo de Nínive).85 Também poderíamos mencionar João Batista: “Não penseis
que basta dizer: ‘Temos por pai a Abraão’; pois eu vos digo que até destas
pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3,9/Lc 3,8). Isso também era
implícito na tensão entre as obrigações de Deus como criador e como Deus de
Israel, e na afirmação de que o Deus de Israel julga imparcialmente. Mas o
aspecto a ser notado aqui é que Paulo estava plenamente consciente dessa tensão
e soube explorá-la com efeito num ponto-chave da sua argu mentação em Romanos.
“Deus é Deus só dos judeus? Não é também Deus dos gentios? E certo que também
dos gentios, pois há um só Deus” (Rm 3,29-30). Esta não era uma proposição da
qual discordas sem muitos judeus da época de Paulo. Uma apologética cristã
exagerada supôs uma antítese injustificada entre particularismo judaico e universalismo
cristão.86 Neste caso era o corolário imediato, deduzi do por Paulo, explorando
essa mesma tensão, que era mais controvertido: que esse Deus único de todos
justifica tanto o judeu quanto o gentio pela fé (3,30).
Para Paulo era igualmente
importante que a mesma afirmação pudesse ser expressa alternativamente: agora
os gentios chegavam para participar das bênçãos prometidas por Deus
particularmente a (por meio de) Israel (G1 3,6-14). Os gentios que não haviam
conheci do a Deus87 agora receberam participação no conhecimento de Israel (4,8-9).88
Daqui o desembaraço de Paulo ao saudar as comunidades predominantemente
gentílicas de Roma e outros lugares como “ama dos por Deus,89 chamados para ser
santos”,90 “eleitos de Deus”,91 isto é, usando epítetos que haviam
caracterizado a visão que Israel tinha de si. Os gentios participam das bênçãos
de Deus participando do status especial que Deus conferira a Israel. De fato,
esta se torna a versão paulina da tensão entre particularismo e universalismo
na teologia de Israel. Como podia Deus ser o Deus de Israel e o Deus dos
gentios e dos judeus ao mesmo tempo? A tensão é evidente no uso que Paulo faz
do que, segundo parece, já se havia tornado uma formulação tradicional: “herdar
o reino de Deus”.92 Pois a linguagem da herança inevitavelmente evoca a
promessa aos patriarcas, fundamental para a autocompreensão de Israel (a
herança da terra de Israel).93 Mas o conceito de reino de Deus, como aparece em
Paulo, parece destituído de qualquer caráter nacional e ter-se tornado
expressão universal do domínio de Deus.94 Talvez possamos ver aqui um eco do
que foi o tema central de Jesus (o reino de Deus), especialmente em vista de
tradições como Mt 8,11- 12/Lc 13,28-29 e Mc 12,9, nas quais a adaptação da
tensão judaica já é evidente.95 Em Romanos a tensão alcança expressão crucial
aguda em um dos subtemas principais da carta: a “fidelidade de Deus”. Era a
questão proposta diretamente pela acusação do “judeu” por Paulo em Rm 2: “Que
vantagem há então em ser judeu?... A infidelidade deles não anulará a
fidelidade de Deus?” (Rm 3,1-3). Em outras palavras, Paulo só podia defender o
seu evangelho para os gentios negando que Deus permanecia fiel a Israel? Sua
negação, como lhe era habitual, foi enfática: me genoito: “De modo algum”. Mas a tensão permaneceu. Efetivamente,
a argumentação teológica da carta atinge o seu clímax precisamente como a
tentativa de descobrir a quadratura do círculo: que Deus é ao mesmo tempo Deus
que elege e rejeita o outro (9,6-13) e o Deus que terá misericórdia de todos
(11,25-32). O Deus de Israel é o Deus único, é o Deus de todos. E no seu sumário
de conclusão Paulo procura manter a tensão, declarando que “Cristo assume ser
ministro dos incircuncisos para honrar a fidelidade de Deus” (Rm 15,8).96
Portanto, Christiaan Beker tem razão em ver nessa solução uma chave para o tema
coerente do evangelho de Paulo, que ele postula como o triunfo final de Deus.97
Notas
80 Cf. Dodd, Romans 20,24; G.H.C.
Macgregor, “The concept of the Wrath of God in the New Testament”, NTS 7
(1960-61) 101-9 (aqui 105); A.T. Hanson, The
Wrath of the Lamb (Londres: SPCK, 1957) 85, 110; Whiteley, Theology 61-72; Ridderbos, Paul 108-10.
Mas o pensamento não deve ser reduzido a uma visão deísta: Deus é ativo
sustentando essa estrutura moral da sua criação. Ver abaixo §18.6.
81 Fitzmyer, Paul 42.
82 Notar o paralelo deliberado entre
a revelação da justiça de Deus (1,17) e a revelação da sua ira (1,18). Sobre o
significado da “justiça de Deus”, ver abaixo §14,2.
83 Este entendimento da ira de
Deus como consequência e resultado da desobediência ajuda a explicar a difícil
passagem de lTs 2,16. Feine, Theologie
307-8, compara SI 79,5; 103,9 e Is 57,16 e observa que Rm 9,22 é qualificado
por 11,32. Ver também Cl 3,6 e meu Colossians 216-17.
84 Sobre a ideia de Israel como
herança de Deus, ver, p. ex., lRs 8,51.53; SI 33,12; 74,2; Is 6,17; Jr 10,16;
Mq 7,18; Eclo 24,8; Salmos de Salomão 9.8-9.
85 Sobre Deus como Deus de todas
as nações, ver também SI 145,9; Sb 11,22-24; 1Enoc 84,2.
86 O protesto de Dahl nesse ponto
tem sido por demais ignorado: “Nenhum judeu ou cristão judeu negaria que Deus,
sendo único, é não só o Deus dos judeus, mas também o Deus dos gentios... tanto
o monoteísmo judaico quanto o monoteísmo cristão é particular e universal” (“Um
Deus” 189,191). Ver também A.F. Segai, “Universalism in Judaism and
Christianity”, in Engberg-Pedersen, org., Paul
in His Hellenistic Context 1-29. Sobre a aceitabilidade final dos gentios
como “gentios justos”, ver particularmente T.L. Donaldson, “Proselytes or
‘Righteous Gentiles’? The Status of
Gentiles in Eschatological Pilgrimage Patterns of Thought”, JSP (1990)
3-27; e abaixo §6 n. 50. Ver também §24 n. 35 abaixo.
87 Cf. também ITs 4,5; 2Ts 1,8.
Que as nações não conhecem Deus é visão judaica clássica (Jó 18,21; SI 79,6; Jr
10,25; Sb 13,1; 14,22). Ver também Dupont, Gnosis 1-8.
88 O tema é mais bem expresso no
resumo do pensamento paulino que é Efésios: não mais “excluídos da cidadania de
Israel, estranhos às alianças da Promessa” e “sem Deus no mundo”, mas
“concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2 12.19).
89 P. ex., Dt 32,15; 33,26; SI
60,5; 108,6; Is 5,1.7; 44,2; Jr 12,7; 31,3; Br 3,36; a LXX traduz “Jeshurun”
por egapemenos (“amado”). Notar ainda
em Paulo Rm 9,25; 11,28; lTs 1,4; 2Ts 2,13.
90 “Os santos” = Israel (p. ex.,
SI 16,3; SI 34,9; SI 74,3; Is 4,3; Dn 7,18.21-22; Tb 8,15; Sb 18,9; 1 QSb 3.2;
1 QM 3.5; 10.10), um elemento característico da saudação de Paulo (ICor 1,2;
2Cor 1,1; F1 1,1; Cl 1,2; também Ef 1,1).
91 Rm 1,7; 8,33; Cl 3,12. Cf. p.
ex., lCr 16,13; SI 105,6; Is 43,20; 65,22; Tb 8,15; Eclo 46,1; Sb 4,15; Jub.
1.29; 1 Enoc 1,3.8; 5,7-8; CD 4,3-4; 1 QM 12,1; 1 QpHab 10,13. Ver também meu
Romans 502. É uma preocupação primária da argumentação de Paulo em Romanos 9-11
explicar o que a eleição de Israel significa para Israel; ver abaixo §19.
92 Mt 25,34; ICor 6,9-10; 15,50;
G1 5,21; também Ef 5,5; Tg 2,5.
93 Gn 15,7-8; 28,4; Dt 1,39;
2,12; etc.; ver ainda J. Herrmann e W. Foerster, TDNT 3.769-80. Comparar o fato
de que em Dn 7 o reino é dado aos “santos do Altíssimo”, a Israel (7,25-27).
Haverá um eco disso em Cl 4,11, que parece associar os judeus particularmente com
o reino (cf. At 28,23.31)?
95 Para Mt 8,11-12/Lc 3,28-29,
cf. particularmente SI 107,3; Is 43,5-6; 49,12; Ml 1,11; Br 4,37. Para Mc 12,9,
cf. m 5,1-7.
96 O fato de que o mesmo conceito
hebraico “fidelidade” (emet, emunah) está atrás de aletheia (verdade) e pistis (fidelidade) obscurece a
importância do tema para Romanos: aletheia
(Rm 1,18.25; 2,2.8.20; 3,7; 15,8); pistis
(Rm 1,17; 3,3.25). Ver meu Romans 44, 133, 847 e sobre 15,11 (850); ver também
abaixo sobre “a justiça de Deus” (§14.2). Sobre a “fidelidade de Deus” em
outras passagens de Paulo ver ICor 1,9; 10,13; 2Cor 1,18; lTs 5,24; cf. 2Tfe
3,3 e 2Tm 2,13.
97 Beker, Paul 77-89,328-37. Mas
Klumbies persiste em pôr o discurso de Paulo sobre Deus fundamentado em Cristo
em “oposição diametral com a maneira judaica de entender Deus” (Rede 205; ver
também sua conclusão, 245-46,251-52). A abordagem de Moxnes é mais equilibrada
(Theology in Conflict).