A Cura do Cego de Nascença

A Cura do Cego de Nascença

A questão do sofrimento humano sempre foi motivo de reflexão por filósofos e líderes religiosos. O sofrimento parece ser algo tão intrínseco da existência humana e parece se manifestar de formas tão variadas, que parece impossível pensar em uma resposta única que abarque todas as variáveis onde os sofrimentos possam manifestar-se debaixo do céu.

Siddharta Gautama, vulgarmente conhecido como Buda, foi levado a refletir a vida quando observou o sofrimento alheio. Através de sua própria reflexão, concluiu que o sofrimento é o resultado do acumulo de karma de vidas passadas, cujo círculo de causa e efeito é repassado nas vidas posteriores. (Ainda assim, a ideia do karma já era antiga e espraiada muito tempo antes de Siddharta nos textos védicos)

Entre os judeus do tempo de Jesus havia, desde há muito, a ideia também de causa e efeito (Gálatas 6:7). Às vezes, a opinião expressa entre os contemporâneos de Jesus não significava que aquilo era pregado pela ortodoxia judaica (a teologia “oficial” que se encontra hoje na Bíblia. Veja: Influência Judaica no Conceito de Pecado). Na maioria das vezes refletia apenas opinião de pessoas ou crença popular da época.

Isso pode ser visto no relato de João 9:

“Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”

Percebam: Para que o homem nascesse cego, alguém devia ter pecado. Se não o portador da deficiência, certamente seus pais. Pela estrutura da frase, os discípulos não querem saber quando ocorreu o pecado. O pecado é tido como certo. Não é possível conceber consequências ruins da existência humana a parte do pecado (cf. As Consequências do Pecado), de uma violação moral às leis divinas. Eles só querem saber quem pecou. Quem foi o responsável. Foi o próprio indivíduo, ou foram seu pais? A dúvida paira unicamente na identidade do causador do pecado. Assim, para os discípulos de Jesus era fácil identificar as causas do sofrimento humano (que é o pecado), assim como os efeitos (o sofrimento em suas variadas formas visíveis), mas nem sempre é fácil identificar o responsável (ou responsáveis) quando se refere a algo feito em um passado não rastreável, que é exemplificado aqui com uma pessoa que nasceu cega.

Se uma pessoa perde a visão depois de adulta, porque, digamos, foi imprudente em alguma conduta, é fácil vermos a sequência entre o erro e seu efeito. Se alguém perde a visão porque foi agredido por um terceiro, também é evidente a sequência entre o erro (a agressão) e o efeito (a cegueira). Mas e quando a pessoa já nasceu cega?

Então na questão colocada pelos discípulos, havia duas opções. Uma delas não nos parece muito estranha como a outra: se a causa da cegueira do homem tivesse sido seus pais, então não haveria muita dificuldade aqui para compreender a questão, pois é óbvio que os país existiram antes de seus filhos. Eles podem ter cometido um pecado no passado e foram castigados por Deus ao gerarem um filho cego (uma concepção teológica). Mas se não foram os pais que pecaram, e ainda assim a pessoa nasceu com um efeito (a cegueira) e todo defeito é fruto do pecado, é então preciso que o agente causador do pecado (o próprio indivíduo portador do defeito físico) tenha cometido o ato pecaminoso antes de seu nascimento.

Para que isso ocorra, há três possibilidades:

(1) O indivíduo teve uma existência prévia. Mas essa existência não pode ser uma existência não-humana. Não poderíamos supor, por exemplo, uma preexistência espiritual, ainda que seres em espírito possam pecar, como ocorreu como os anjos, e assim ter como consequência nascer como humano e cego, o que fugiria completamente a todo e qualquer indício textual (seria possível no puro espaço imaginativo). Os seres espirituais que pecaram foram castigados de outra forma (1 Pedro 3:19 - Jesus Pregou aos Espíritos em Prisão) Portanto, o que nos resta aqui é o indivíduo ter tido uma outra vida HUMANA anterior à que ele agora goza como indivíduo cego.

Essa interpretação se assemelharia ao conceito no Budismo do Karma. O indivíduo havia tido uma outra vida humana e, na vida seguinte, nasceu cego como consequência de algum “pecado”. Há indícios de que o conceito de reencarnação coexistia na palestina do primeiro século. Há algumas evidências, ainda que não fosse uma doutrina “ortodoxa” (What Josephus Really Said about Reincarnation)

(2) Alguns judeus também tinham a estranha noção de pecado pré-natal. Eles realmente acreditavam que um homem poderia começar a pecar enquanto ainda estava no ventre de sua mãe. Nas conversas imaginárias entre Antonino e Rabino Judá, o Patriarca, Antonino pergunta: “A partir de que momento a influência do mal influencia o homem, desde a formação do embrião no útero ou desde o momento do nascimento?”: “Desde a formação do embrião.” O judeu encontrou um texto para apoiar essa visão. Ele tomou o texto em Gênesis 4:7: “O pecado está à porta”. Ele interpretou que o pecado aguardava o homem na porta do útero, assim que ele nascesse. Esse exemplo nos mostra que a ideia do pecado pré-natal era conhecida.

Carson comenta que os “os rabinos argumentavam que não há morte sem pecado (B. Shabbath 55a; provado por se referir a Ez. 18:20) e nenhum sofrimento sem culpa (citando Sl 89:32), Paulo no Novo Testamento certamente concordaria (Rom 1–2; 3:10ff.).”

Depois diz:
Assim, Rabá 63:6 (um comentário rabínico) em Gn. 25:22, vários discordantes discutem a conduta pré-natal de Esaú e Jacó, e Sl. 58:3 é citado para provar que Esaú mostrava inclinações pecaminosas do útero. Cf. mais SB 2.527-529.
(3) No tempo de Jesus, os judeus acreditavam na preexistência da alma. Eles obtiveram essa ideia de Platão e dos gregos. Acreditavam que todas as almas existiam antes da criação do mundo no jardim do Éden, ou que elas estavam no sétimo céu, ou em certa câmara, esperando para entrar em um corpo. Os gregos acreditavam que essas almas eram boas e que era a entrada no corpo que as contaminava; mas havia certos judeus que acreditavam que essas almas já eram boas e más. O escritor do Livro da Sabedoria diz: “Eu era uma criança boa por natureza, e uma boa alma caiu na minha sorte” (Sabedoria 8:19).

Ora, todas essas são possibilidades que podem ter passado na cabeça dos discípulos ao perguntarem os motivos daquele homem nascer com aquele defeito. No entanto, não são as possibilidades curiosas o que mais me chamou atenção nesse relato, ao ponto de escrever este artigo, mas a resposta que Cristo deu em seguida:

“Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus.”

Jesus não tentou dar uma explicação para o sofrimento daquele homem. Ele eliminou as duas possibilidades. O motivo da sua cegueira nem foi (1) um pecado cometido pelo homem, (2) nem pelos seus pais, mas sim (3) para as obras de Deus serem manifestas. Não que Deus causou a cegueira do homem só para Jesus curá-lo, como alguns poderiam sugerir. O que entendo disso é que nem tudo precisa ter um motivo, especialmente em casos assim. A cegueira daquele homem era apenas um anomalia aleatória que poderia ter acometido qualquer pessoa caso, os elementos genéticos estivessem presentes. Ou seja, não há motivo espiritual para a condição física daquele homem. O que importa não é o que o levou a ser cego, mas como aquilo deu uma oportunidade a Cristo para aliviar a dor do homem, acabando com sua cegueira. Deus fez os homens para que enxerguem e não para que andem na escuridão.

Nosso sofrimento na vida pode ser simples obra do acaso. Pode também, como na maioria das vezes, ser consequências de nossas más escolhas, como as escolhas de outras pessoas que refletem sobre nós. Mesmo que você tenha uma visão teológica onde o chamado “pecado original” trouxe sofrimento ao mundo, e venhamos a sofrer por causa do pecado (então nesse sentido não foram nós, mas nossos pais edênicos os causadores do pecado original), lembre-se que Cristo era perfeito, sem pecado e ainda assim sofreu, logo sofrimento não precisa estar entrelaçado com questões metafísicas de pecado.

Assim como no caso do cego de nascença, não precisamos achar cada razão para as coisas ruins que nos acontecem, podemos, como no caso acima, pensar no que fazer para aliviar esse sofrimento, seja nosso ou dos outros. Ou, também, pensar no que podemos aprender como seres humanos, pois “Cristo”, mesmo em toda perfeição, como a imagem perfeita de Deus, “aprendeu pelas coisas que sofreu”, aprendeu a arte da obediência, o que jamais teria aprendido se não tivesse assumido a vida humana em todas as suas realidades, entre elas o sofrimento; o mesmo que Buda, que abandonou a vida prazerosa do seu reino para poder viver a dor e sofrimento comuns aos homens e assim o levasse a iluminação.

Veja também: Estudo sobre João 9

Eduardo G. Junior


Bibliografia
Carson, D. A. (1991). The Gospel according to John (p. 361). Leicester, England; Grand Rapids, Mich.: Inter-Varsity Press; W.B. Eerdmans.
Barclay, W. The Gospel of John: Volume 2. 2000, c1975. The Daily study Bible series, Rev. ed. (p. 37). Philadelphia: The Westminster Press.
Kohn, S. Chödzin. A Life of Buddha, p. 11.
Gombrich, Richard F. (1997), How Buddhism Began. The Conditioned Genesis of the Early Teachings, New Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd, p. 55