Estudo sobre 1 Coríntios 11:23-25

1 Coríntios 11:23-25

“O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue” [TEB]. Sempre temos de nos lembrar que a palavra “Senhor”, desgastada para nós, era um conceito poderoso e de conteúdo significativo. Está agindo Aquele que era kyrios, “Senhor” em sentido pleno.260 Ao mesmo tempo, porém, ele é mencionado com seu nome pessoal “Jesus”. Por ter-se tornado ser humano ele tinha condições de entregar corpo e sangue por um mundo perdido. Ele age “na noite em que ele foi entregue”. Paulo está usando a mesma palavra “entregar, abandonar” empregada também em sua poderosa afirmação de Rm 4.25; 8.32. Por isso também na presente passagem não deve ter o intuito de salientar especialmente a traição de Judas. Essa noite não se caracteriza basicamente por um detalhe assim, mas o que determina todo o acontecimento é que agora o kyrios, o “Filho” foi “entregue” pelo próprio Pai, no presente caso “entregue” ao juízo e por isso também ao mundo, ao diabo, ao abandono por Deus. Isso nos revela que o Pai não suporta passivamente o sofrimento e a morte do Filho, mas que nisso o amor sacrifical do Pai é tão incompreensivelmente grande quanto o amor do Filho, que obedientemente se deixa sacrificar.

O Senhor Jesus “tomou o pão e, depois de oração de graças, ele o partiu e disse: Isto é meu corpo que é para vós” [tradução do autor]. Também agora, quando Jesus vê toda a realidade de sua paixão e morte diante de si no “partir do pão”, ele “agradece”. Não é lamento nem tampouco pesar pela despedida que preenchem seu coração, e sim a gratidão. Seu corpo partido, afinal, é “o para vós”, como é dito aqui com a mais lacônica reserva bíblica. Nesse breve e contido “para vós” concentra-se tudo: todo o amor que se entrega pelos culpados e perdidos, e todo o imenso ganho que resulta desse sacrifício, a eterna redenção dos perdidos. É por isso que Jesus consegue agradecer; e por essa razão sua igreja pode celebrar esse “partir do pão”, essa lembrança da entrega, paixão e morte como santa festa de alegria.

Nada é dito sobre a distribuição do pão, sobre receber e comer. Os participantes daquela ceia na última noite ficam completamente fora do foco. Unicamente o próprio Senhor e sua ação e fala preenchem tudo. No entanto, o pão foi “partido”, a fim de ser distribuído aos companheiros da ceia e comido por eles. Jesus não protagonizou uma ação simbólica, a fim de expor aos discípulos uma verdade de maneira figurada e compreensível, mas com o pão partido ele lhes deu seu corpo. Não um corpo místico, uma substância transfigurada e sobrenatural, mas justamente corpo terreno, partido por eles. Contudo, agora recebem verdadeiramente esse corpo com todo seu sentido de salvação e o “comem”, ou seja, acolhem-no para si com toda sua realidade.


Jesus não queria celebrar apenas essa uma ceia com seus discípulos e não queria conceder seu amor apenas a esse pequeno grupo. Ele olhou para a igreja de todos os tempos e por isso ordenou expressamente: “Fazei isto em memória de mim.” Desse modo a ceia não se torna mera “celebração memorial”. O “recordar” autêntico traz à presença.261 A igreja de fato tem necessidade de que toda a sua perdição e toda a magnitude da ação redentora de seu Senhor sejam expostas vivamente diante dela. Também o crente repetidamente começa a “esquecer” quem ele é e o que o Senhor fez por ele. Ao receber, tomar e comer no pão o corpo partido de seu Senhor, a igreja “recorda” toda a história da salvação de Deus em Cristo. Porém esse “recordar” não consiste apenas de “pensamentos” e recordações, mas de “fazer”, uma ação, um verdadeiro receber. De qualquer forma, o próprio Paulo estava convicto da “participação” real no corpo do Senhor, como já constatamos em 1Co 10.16.262

“Do mesmo modo também o copo após a refeição” [tradução do autor].263 “Do mesmo modo” como com o pão, Jesus procedeu com o copo. Também o “tomou”, proferiu sobre ele a oração de graças, e o ofereceu aos participantes na mesa, como o pão. Fica explícito o quanto a “santa ceia” estava inserida na refeição toda e não representava um ato fechado em si próprio, como entre nós. A partição e distribuição do pão pelo dono da casa fazia parte do começo de uma refeição. Ela prosseguia até o final, e somente agora, “após a refeição”, bem depois da distribuição do pão, o copo é abençoado e oferecido.

De maneira mais clara que no caso do pão Jesus profere aqui todo o significado de salvação da dádiva: “Esse copo é a nova aliança em meu sangue.” A declaração torna singularmente perceptível para nós que apesar de toda a realidade da dádiva de modo algum se trata de quaisquer substâncias sagradas. De acordo com a própria palavra de Jesus, não está no copo propriamente “o sangue”, e sim “a nova aliança”, que por sua vez somente se concretiza “no sangue de Jesus”, por intermédio de seu sangue.264 Quem recebe e bebe esse copo não recebe por meio dele uma matéria celestial, mas participação na nova aliança. Deus a havia prometido através do profeta Jeremias (Jr 31.31-34). Agora a institui e realiza em Jesus. Essa instituição, porém, não é uma coisa simples, não uma mera declaração de propósitos. O perdão prometido e necessário para essa nova aliança somente pode tornar-se realidade pelo fato de que toda a carga de pecados é levada embora por aquele que é o Cordeiro imaculado e santo de Deus (Jo 1.29). Em decorrência, a instituição dessa aliança somente podia acontecer através do sangue e custou o alto preço da morte maldita do Filho de Deus.


Notas:
260 Sobre kyrios, “senhor”, cf. acima, a nota 189.

261 Quando o Senhor exaltado exorta uma igreja em Ap 2.5: “Lembra-te de onde caíste”, ele não se refere justamente a uma mera retrospectiva edificante, mas a uma dolorosa conscientização daquilo que a igreja possuía e perdeu. O mesmo vale para os numerosos convites para “recordar” no AT.

262 Uma interpretação completamente nova da fórmula “em memória de mim” foi apresentada por Joachim Jeremias em seu livro “Die Abendmahlsworte Jesu” [As palavras da santa ceia de Jesus], EVA, Berlim 1963, p. 229ss. Apoiado num respeitável material linguístico, Jeremias tenta comprovar que com essas suas palavras Jesus teria dito: “Para que Deus se lembre de mim.” Deus deveria recordar-se dele, o Messias, e trazer em breve o dia da parusia, no qual de fato se torna visível todo o produto da amarga paixão e morte do Messias. Em decorrência, toda celebração da ceia do Senhor seria uma súplica por essa lembrança por parte de Deus. Consideráveis partes do livro também são de fácil leitura para não-teólogos.

263 As palavras de Paulo não permitem depreender se essa refeição era uma ceia de Páscoa. O termo grego utilizado também pode ser utilizado para uma ceia da Páscoa, mas em primeiro lugar significava o “consumo” da refeição principal que acontecia no início da noite. Seja como for, Paulo não dá importância à esta questão, uma vez que não traz nenhuma menção expressa disso. Somente o festivo copo de vinho poderia fornecer certo indício dessa circunstância. Porém, considerando que os adversários de Jesus o chamaram de “glutão e bebedor de vinho” (Mt 11.19), deve ter havido o copo festivo também nas demais ocasiões em que tomou refeições.

264 Cf. a observação à p. 125 a respeito do sentido instrumental da preposição grega en.